Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA DE AZEREDO COELHO | ||
Descritores: | INTERESSE EM AGIR ACESSO AO DIREITO BENS PRÓPRIOS NATUREZA JURÍDICA PODERES DA RELAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/21/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I) O interesse em agir enquanto pressuposto processual em causa deve ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, quanto à sua consagração e quanto à sua limitação.
II) O acesso ao direito e à justiça implica uma visão necessariamente restrita do interesse processual enquanto implica o direito de expor as suas pretensões em sede judicial e de obter apreciação e decisão sobre elas. III) O mesmo princípio impõe, dada a natureza escassa dos recursos, a delimitação de tal direito pela necessidade de mobilização dos órgãos jurisdicionais já que a mobilização acrítica e sem interesse constitui um desvio de recursos que os fará faltar a quem deles necessita. IV) O interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões invocadas e a sua verificação basta-se com a necessidade razoável do recurso à acção judicial. V) Tem interesse em agir a parte que pretende a declaração da natureza própria de bens adquiridos na constância de casamento dissolvido por divórcio, antes da partilha de bens, mesmo quando não tenha havido oposição expressa a essa pretensão. VI) Na verdade, aquela situação de incerteza especificamente jurídica implica o interesse da Autora em a ver cessar mediante pronúncia judicial. VII) O artigo 715.º, n.º 2, do revogado CPC, impõe a apreciação de mérito substitutiva por parte da Relação apenas quando a decisão recorrida tenha proferido decisão de mérito. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM do Tribunal da Relação de Lisboa:
I) RELATÓRIO IM…, com os sinais dos autos, instaurou acção que identificou como declarativa de condenação com processo ordinário contra PM…, com os sinais dos autos, alegando, em síntese, ter sido casada com o Réu sob o regime de comunhão de bens adquiridos e, na constância do matrimónio, entretanto dissolvido por divórcio, ter adquirido as quotas de uma sociedade que assim são formalmente bem comum embora, por razões que indica na petição, sejam na realidade bem próprio da Autora, como tal consideradas pela Autora e pelo Réu, o que pretende seja declarado nesta acção, condenando-se o Réu a reconhecê-lo. Desta decisão interpôs recurso a Autora apresentando as seguintes conclusões: Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos autos e com efeito meramente devolutivo. Foi ordenada a notificação das partes nos termos do disposto no actual artigo 665.º, n.º 3, do CPC. A Autora pronunciou-se sobre o mérito da causa, na sequência daquela notificação. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II) OBJECTO DO RECURSO Tendo em atenção as conclusões do Recorrente é objecto do recurso a verificação do interesse da Autora em demandar, enquanto pressuposto processual, apreciando-se ainda da questão suscitada pelo despacho liminar. III) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Os factos pertinentes à decisão da questão objecto do recurso interposto são os que resultam do relatório supra, uma vez que a questão do interesse em agir deve ser apreciada face à petição apresentada. IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1. Do interesse em agir A integração do interesse em agir enquanto pressuposto processual tem sido polémica na doutrina nacional. O Professor Castro Mendes defendeu a sua inexistência como pressuposto autónomo, encontrando na norma do artigo 449.º, n.º 2, relativa à tributação da acção “inútil” um argumento em favor da sua tese; reconhecendo que o artigo 472.º, n.º 2, consagra uma situação de exigência de interesse em agir[1]. Termina, porém, a exposição que seguimos, admitindo excepcionalmente situações em que a falta de interesse em agir possa dar origem à absolvição da instância. Em suma, não obstante a discordância de princípio, a própria consideração de situações excepcionais em que o interesse em agir surge como pressuposto processual implica o reconhecimento restrito do seu carácter eventualmente excipiente. Denominando-o como «interesse processual» o Professor Manuel de Andrade[2] caracteriza-o como consistindo em «o direito do demandante estar carecido de tutela judicial», «interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo», ou, em delimitação negativa, «não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece», prosseguindo após com a análise do pressuposto nos diversos tipos de acções. Por seu turno, o Professor Antunes Varela[3], defendendo nomenclatura diversa - «necessidade de tutela judiciária» -, refere: «relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. § O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso». Na jurisprudência[4] é aceite que o interesse em agir é verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolvição da instância. Deste percurso resumido pode extrair-se uma generalizada consideração do interesse em agir como pressuposto autónomo que se exprime pela necessidade da tutela jurisdicional e que, faltando, pode determinar genericamente a verificação de uma excepção dilatória. O pressuposto processual em causa deve ser analisado também à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, em dupla vertente: consagração e limitação. Por um lado, o acesso ao direito e à justiça implica uma visão necessariamente restrita do interesse processual, considerando que a verificação da excepção dilatória terá de ser por natureza excepcional, já que ao cidadão enquanto tal, ou aos estrangeiros e apátridas por equiparação, assiste o direito de exporem as suas pretensões em sede judicial e de obterem apreciação e decisão sobre elas – artigo 20.º da CRP. Mas, dada a natureza escassa dos recursos, a própria consagração do acesso ao direito leva a delimitar tal direito pela necessidade de mobilização dos órgãos jurisdicionais, por isso que a mobilização acrítica e sem interesse constitui um desvio de recursos que os fará faltar a quem deles necessita. O interesse em agir consiste assim na verificação da necessidade ou utilidade da acção, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção»[5]. Este pressuposto apenas tem sentido na parte activa da lide (considerando-se como tal também o réu reconvinte), uma vez que na parte passiva se confunde com a legitimidade enquanto interesse em contradizer – artigo 26.º, n.º 1[6]. A necessidade em causa não pode ser meramente subjectiva, confundindo-se com a opção pela demanda, antes tem de apreciar-se objectivamente e em relação à normatividade jurídica e não a nenhuma outra (moral, profissional, etc). Em conclusão, o interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões invocadas[7]. Em conclusão, extrai-se dos princípios constitucionais e do desenho da acção enquanto adjectivação do direito (artigo 2.º, n.º 2 do CPC) que o interesse em agir é pressuposto processual e que a sua verificação se basta com a necessidade razoável do recurso à acção judicial a que alude o Professor Antunes Varela. Assim, tem de considerar-se que a sua verificação ocorre sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção. In casu a apreciação do interesse em agir tem de ser feita à luz da lei processual em vigor à data da instauração da acção, a saber, o CPC revogado pela lei 41/2013[8]. Considerando agora o caso concreto, temos que a Autora invocando o regime de comunhão de bens adquiridos, aplicável ao seu dissolvido casamento, pretende seja declarado que determinados bens, adquiridos na constância do casamento, não detêm a natureza de bens comuns por estarem excluídos da comunhão. Alegou na petição que como tal os considera e que também o Réu, seu ex-marido, como tal os considerou aquando do divórcio, sendo certo que ainda não ocorreu a partilha de bens. Com fundamento nesta concordância das partes (eventual discordância posterior ao divórcio apenas foi invocada em sede de alegações de recurso) e na natureza de simples apreciação da acção proposta, decidiu a primeira instância pela inexistência do interesse em agir, absolvendo o réu da instância. Não cremos que possa considerar-se inexistente o interesse processual. Está em causa a natureza própria ou comum de certos bens. E a questão colocada não é de mera qualificação intelectual dos bens naquelas duas categorias antes se invoca uma situação de incerteza quanto à natureza dos bens, a qual decorre de ambiguidades não dilucidadas entre o momento da sua aquisição – constância do matrimónio, que aponta no sentido da integração dos bens na comunhão conjugal -, e os meios da aquisição – através de bens doados ou adquiridos por direito próprio anterior, que a verificar-se determina que os bens em causa não integrem a comunhão. Acresce que não foram ainda partilhados os bens integrantes da comunhão, partilha de que é pressuposto a definição da natureza deles. Nem se diga que o litígio é meramente eventual e que a Autora e o Reu podem sempre concordar em que os bens são próprios da primeira, falecendo interesse na sua declaração. Na verdade, aquela mera situação de incerteza especificamente jurídica implica o interesse da Autora em a ver cessar mediante a pronúncia judicial respectiva e adequada. Concluímos assim pela verificação do pressuposto processual do interesse em agir enquanto necessidade da declaração judicial, devendo ser revogada a decisão recorrida. 2. Das consequências da revogação da decisão recorrida Revogado o despacho que julgou verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, cumpre saber se pode operar a norma do artigo 715.º, n.º 2, do CPC, substituindo-se a Relação ao tribunal recorrido quanto à apreciação das questões que o não foram face à decisão de absolvição da instância, ou se devem os autos ser devolvidos para decisão à primeira instância. A questão determinou fosse suscitado o contraditório na fase liminar do recurso. Nos termos do artigo 715.º, nº 2, do CPC, a Relação deve proferir decisão relativamente a questões não decididas pelo tribunal recorrido, nomeadamente, por prejudicadas pela solução dada na primeira instância. Apenas em caso de os autos não conterem todos os elementos necessários deverá remeter os autos à primeira instância sem essa decisão «substitutiva». Ou seja, a Relação não é um tribunal apenas de cassação, funcionando antes como tribunal de substituição nos casos que a norma indica. No caso dos autos a questão de mérito não chegou a ser abordada pelo tribunal a quo. Deve ainda assim a Relação apreciar do mérito da causa? No sentido afirmativo, que informou a prolação do despacho liminar, cremos pronunciar-se o Conselheiro Abrantes Geraldes quando escreve: «O mesmo [apreciação pela Relação do objecto do recurso] ocorre nos casos em que, apesar de não se verificar uma situação de nulidade da sentença, o tribunal a quo tenha deixado de apreciar determinada questão considerada prejudicada pela solução dada a outra. Neste caso, se existirem elementos para conhecer das questões que ficaram excluídas da primitiva decisão a Relação apreciá-las-á também, sem necessidade de expressa iniciativa da parte»[9]. E continua: «Vejamos algumas situações: a) no despacho saneador o juiz conheceu, oficiosamente ou não, de uma excepção dilatória e, por isso, absolveu o réu da instância com fundamento na sua ilegitimidade. Se a Relação expressar um entendimento oposto deve determinar a baixa do processo para que se conheça do mérito se acaso houver factos controvertidos que devam ser objecto de prova. Na situação inversa, verificando-se que, pela posição adoptada pelas partes ou pela análise dos autos, todos os elementos necessários ao enquadramento jurídico do mérito da causa se encontram presentes, deve proferir decisão de mérito»[10]. De modo algo diferente parece pronunciar-se o Conselheiro Lopes do Rego quando escreve: «Os poderes cognitivos da Relação incluem, deste modo, que ao tribunal recorrido era lícito conhecer, ainda que a decisão recorrida as não haja apreciado designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio. Neste caso, após cumprimento da regra do contraditório – a Relação, sempre que disponha dos elementos necessários (por a decisão recorrida conter já integralmente a matéria de facto para a apreciação das pretensões) no próprio acórdão em que revogar a decisão recorrida poderá conhecer das questões de mérito que a 1ª instância não chegou a apreciar. Assim, v.g. deduzida pretensão pelo incumprimento de certo negócio jurídico, se a 1.ª instância não chegou a apreciá-la por ter considerado o contrato nulo, é lícito à Relação – quando entenda que a nulidade não procede – conhecer da pretensão deduzida, se toda a matéria de facto para tal necessária foi apreciada pelo colectivo»[11]. Ora, ao colocar a questão suscitada pelo artigo 715.º após a decisão de facto, necessariamente a prevê quando houve já lugar ao início da apreciação do mérito da causa. Ou seja, ao que nos parece, pressupõe para o funcionamento da regra da substituição, que o tribunal a quo tenha entrado no mérito da causa e tenha decidido questões de mérito que prejudicaram a apreciação das demais suscitadas nos autos a esse nível. O exemplo apresentado é elucidativo dessa posição e a referência ao artigo 660.º, n.º 2, também. O teor da norma parece-nos apontar também nesse sentido ao pressupor que foi dada uma solução ao litígio o que melhor se coaduna com apreciação de mérito. É certo que o confessado objectivo do legislador de sobrepor a celeridade ao duplo grau de jurisdição indicaria solução oposta. Porém, esse objectivo mantém-se na interpretação indicada, embora respeitando o duplo grau quanto a decisão de mérito, embora não quanto à apreciação de todos as questões de mérito. Cremos que em caso como o dos autos em que a substituição sem decisão prévia de mérito na primeira instância implicaria a prolação de decisão de facto irrecorrível não pode considerar-se incluída na regra de substituição do artigo 715.º, aliás inalterada no actual artigo 665.º, do CPC de 2013. Em consequência, revendo a posição que determinou a prolação do despacho interlocutório que suscitou o contraditório, entende-se que não deve conhecer-se do mérito. IV) DECISÃO Pelo exposto, ACORDAM em julgar procedente o recurso e verificado interesse em agir, revogando a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir em primeira instância com a apreciação das questões que o não foram e não estejam por esta prejudicadas. Custas pela parte vencida a final. * Lisboa, 21 de Novembro de 2013 (Ana de Azeredo Coelho) (Tomé Ramião) (Vítor Amaral)
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