Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
660/2006-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: DIVÓRCIO
DEVERES CONJUGAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1 – Assentando o casamento na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, a ambos pertence a direcção da família, devendo, para o efeito, acordar sobre a orientação da vida em comum, tendo em consideração o bem da família que constituíram e os interesses de cada um. E também por isso, ambos os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
2 - E tais deveres são de tal modo valiosos e imprescindíveis na relação matrimonial que qualquer dos cônjuges pode pedir o divórcio se o outro violar culposamente os seus deveres conjugais, sempre que tal violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum do casal.
3 – Um desses deveres, o de coabitação, compreende a obrigação que os cônjuges têm de viver em comum, em comunhão de mesa, e em comunhão de leito, obrigando ao chamado “débito conjugal”.
4 – Se o Réu não fala com a Autora, há cerca de dois anos, deixando, desde então, de tomar com esta as suas refeições à mesma mesa; se não a acompanha, onde quer que seja, nem com esta partilha o leito há cerca de dois anos, violou e continua a violar, de forma grave e reiterada, o dever de coabitação para com a Autora, comprometendo a possibilidade a possibilidade da vida em comum.
5 – Apesar da Autora continuar a confeccionar as refeições, não é exigível que esta continue em união com alguém que a despreza, violando, de forma grave e reiterada, um dos deveres conjugais a que se comprometera, quando com esta casou, já que a possibilidade da vida em comum fica comprometida se exceder, como in casu excede, o limite razoável do sacrifício.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
No Tribunal da Comarca da Amadora, MARIA … intentou a presente acção de divórcio contra seu marido JOSÉ …, pedindo que se decrete o divórcio entre a Autora e o Réu, consagrando-se a dissolução do casamento, por culpa exclusiva deste, alegando, em síntese, que foram violados os deveres conjugais de respeito, coabitação, assistência e cooperação.

O Réu foi regularmente citado mas não contestou.

Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença, julgando a acção improcedente por não provada e, consequentemente, foi absolvido o Réu do pedido contra si formulado pela Autora.

Inconformada, apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Consta da decisão recorrida que Autora e Réu casaram em 08/10/1997 e que o nascimento de Andreia Sofia e Ricardo Jorge, filhos do casal, ocorreu, em 03/07/1978 e 30/12/1998, respectivamente (Fls. 43 dos autos).
2ª - Quando das certidões dos respectivos assentos se certifica que ocorreram respectivamente em 08/10/1978, 07/03/80 e 30/12/88 (fls. 6, 7 e 8 dos autos).
3ª - Donde resulta que a decisão, nesta parte, contém três erros materiais ou de escrita nos termos do artigo 667º do CPC, cuja rectificação é determinada, nos termos previstos nesta mesma disposição legal.
4ª - Da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:
«O Réu amachucou a pontapé a porta do fogão».«O Réu não fala com a Autora, há cerca de dois anos».
«O Réu deixou de tomar as suas refeições à mesma mesa com a Autora e os filhos do casal».
«A Autora continua a confeccionar as refeições».
«O Réu não acompanha com a Autora e a filha, onde quer que seja, nem partilha o leito com a esposa, há cerca de dois anos».
5ª - O que revela que a conduta do Réu se pauta pelo total desprezo pela vida familiar em comum e pela própria família ao ponto de não ter qualquer tipo de relação com os seus membros, o que faz, voluntariamente, e sem apresentar justificação e em completa violação, pelo menos, do direito de coabitação.
6ª - É do senso comum que tais factos, os praticados pelo Réu e provados a fls. 43 dos autos, são muito graves, de per si, e no seu conjunto são muito mais graves e praticados reiteradamente pelo Réu não deixando margem para dúvidas quanto à sua contribuição para a ruptura da vida em comum do casal.
7ª - Donde se conclui, tal como o fez o M. º Juiz no parágrafo 5 de fls. 45 dos autos, que entre os cônjuges está violado o dever de coabitação pois que os mesmos não vivem em comunhão de mesa, leito e habitação.
8ª - Mas se conclui também que apenas e só por culpa do Réu.
9ª – Da conjugação da prova produzida nos n. os 5, 6 e 8 de fls. 43 dos autos resulta a prática do ilícito do Réu e da sua não justificação em contestação a culpabilidade já que o mesmo não contestou podendo fazê-lo
10ª - E, mais uma vez se repete, é do senso comum que os factos provados naqueles n. os 6 e 8 de fls. 43 dos autos e praticados pelo Réu são muito graves, de per si, e no conjunto muito mais graves ainda, cuja gravidade dos factos ilícitos comprovados é sinal iniludível da ruptura da vida em comum.
11ª - Sendo que consubstanciam a prática da violação culposa, muito grave, reiterada e consciente, porque voluntária e não justificada do dever de coabitação por parte do Réu, comprometendo a vida em comum.
12ª – Já que a conduta culposa do mesmo Réu está bem patente na prova produzida nos n. os 5, 6, e 8 de fls. 43 e não pode ser justificada como o fez o M. º Juiz, mas mal, no final de fls. 45, pelo facto de a Autora tudo fazer para não ser ela a violar os deveres conjugais a que se vinculou pelo casamento e, daí continuar a confeccionar as refeições para a sua família, pois este facto não só não justifica o comportamento culposo do Réu como não representa aceitação de tal comportamento ou perdão do mesmo ou renúncia ao exercício do direito do divórcio.
13ª - Salvo o devido respeito, pretender extrair a conclusão de que o Réu não viola culposamente os deveres conjugais que reconhecidamente viola, com fundamento em a contraparte Autora continuar a cozinhar para a família (Réu eventualmente incluído), é um absurdo contrasenso face à prova produzida nos n. os 5, 6, 7 e 8 e da qual resulta precisamente o contrário do decidido pelo Tribunal, uma vez que o Réu não só deixou de fazer vida comum com a família corno renegou os próprios familiares com quem não tem qualquer tipo de relações, sejam elas de que natureza forem como decorre da prova produzida, comprometendo a possibilidade de uma vida em comum atenta a reiteração e gravidade daqueles comportamentos não justificados.

O Réu não contra – alegou.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da apelante, interessa saber se terá havido, por parte do réu, violação dos deveres conjugais, nomeadamente, de coabitação, que permitam decretar o divórcio, com culpa exclusiva deste.
2.
Na 1ª Instância, tendo em conta os documentos autênticos juntos aos autos e a resposta aos quesitos, depois da rectificação de fls. 81, consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - Autora e Réu casaram catolicamente e sem convenção antenupcial em 8 de Outubro de 1978 (al. A).
2º - Do casamento nasceram dois filhos: a Andreia Sofia …, em 7 de Março de 1980 e o Ricardo …, em 30 de Dezembro de 1988 (al. B).
3º - A casa de morada de família está situada no … Casal de S. Brás, Amadora.
4º - O Réu amachucou a pontapé a porta do forno do fogão.
5º - O Réu não fala com a Autora, há cerca de dois anos.
6º - O Réu deixou de tomar as suas refeições à mesma mesa com a Autora e os filhos do casal.
7º - A Autora continua a confeccionar as refeições.
8º - O Réu não acompanha com a Autora e a filha onde quer que seja, nem partilha o leito com a esposa, há cerca de dois anos.
3.
Uma primeira observação:
Tendo em conta a rectificação processada a fls. 81, fica prejudicado o conhecimento das três primeiras conclusões, tal como consta dos factos considerados provados.

O casamento assenta na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Por isso, a ambos pertence a direcção da família, devendo, para o efeito, acordar sobre a orientação da vida em comum, tendo em consideração o bem da família que constituíram e os interesses de cada um (artigo 1671º CC). E também por isso, ambos os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672º CC).

Trata-se de deveres recíprocos, como o exige o princípio da igualdade dos cônjuges. Não há hoje deveres próprios do marido ou da mulher.

E tais deveres são de tal modo valiosos e imprescindíveis na relação matrimonial que qualquer dos cônjuges pode pedir o divórcio se o outro violar culposamente os seus deveres conjugais, sempre que tal violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum do casal (artigo 1799º CC).
Está aqui em causa o dever de coabitação, o qual compreende a obrigação que os cônjuges têm de viver em comum, em comunhão de mesa, vivendo sob o mesmo tecto, dormindo no mesmo leito, abarcando ainda o «jus in corpore», o «debitum conjugale», o qual se traduz ou envolve o compromisso de manutenção de relações com o outro cônjuge, aptas para a concepção. Abrange em suma a normal convivência sob o mesmo tecto.

Como salientou a sentença, a palavra coabitação tem um sentido próprio e mais amplo no direito matrimonial. “Coabitar” não quer dizer apenas habitar conjuntamente, na mesma casa, ou viver em economia comum, mas viver em comunhão de leito, mesa e habitação.

A comunhão de leito obriga os cônjuges ao chamado “débito conjugal”, e a comunhão de mesa é o segundo aspecto em que se analisa o dever de coabitação.

Ora, reportando-nos ao caso sub judicio, provou-se que o Réu não fala com a Autora, há cerca de dois anos, deixando, desde então, de tomar com esta as suas refeições à mesma mesa. E mais se provou que o Réu não acompanha com a filha nem com a Ré, onde quer que seja, nem partilha o leito com a esposa, há cerca de dois anos.

Decorre à evidência dos factos descritos que o Réu violou, de forma grave e reiterada, o dever de coabitação para com a Autora.

Ao deixar de tomar as refeições com a Autora à mesma mesa, ao recusar-se a acompanhar com esta e com a filha onde quer que seja e ao deixar de partilhar o leito conjugal com a esposa, tudo isto há cerca de dois anos, cometeu o Réu uma violação grave e culposa que compromete a possibilidade da vida em comum.

Com efeito, não é exigível à Autora continuar em união com alguém que a despreza, violando, de forma grave e reiterada, um dos deveres conjugais a que se comprometera, quando com esta casou.
E do factualismo descrito resulta que foi o Réu o único culpado do fracasso a que esta relação matrimonial chegou, na medida em que outros factos se não provaram donde se pudesse concluir pela eventual violação culposa por parte da Autora dos deveres conjugais.

Considerou a sentença que, continuando a autora a confeccionar as refeições, não parece que tal violação do dever de coabitação comprometa a possibilidade da vida em comum.

Mas, salvo o devido respeito, sem razão. As ofensas do Réu atingem tão seriamente as bases morais da sociedade conjugal que não é exigível à ofendida a continuação do matrimónio, pois a possibilidade da vida em comum fica comprometida, face ao comportamento do Réu, apesar da Autora tudo ter feito para salvar o matrimónio.

Poder-se-á argumentar que a possibilidade da vida em comum nunca fica comprometida: tudo depende da capacidade de sacrifício. Mas a “doutrina do limite do sacrifício”, elaborada no direito das obrigações, valerá igualmente neste domínio: a continuação da vida em comum não deve ser para o cônjuge ofendido um sacrifício exorbitante e, por isso, inexigível. A possibilidade da vida em comum fica comprometida se exceder o limite razoável do sacrifício.

Ora, quanto a nós, exigir que a Autora, porque tudo fez para manter o casamento, tenha de continuar a aguentar alguém ao seu lado que lhe não dirige a palavra, que a despreza, não a acompanhando nem querendo com ela manter relações sexuais, seria obrigá-la a exceder o limite razoável do sacrifício, apesar da violação grave e reiterada dos deveres conjugais por parte do Réu, o cônjuge infractor.
4.
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, julgando a acção procedente e, consequentemente, decreta-se o divórcio entre a Autora e Réu, por culpa exclusiva deste.

Custas pelo Réu.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2006

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