Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1661/07.5TBMTJ.L1-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O direito de regresso da seguradora não se confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização - e só com essa satisfação - surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior.
-Daí que a R deva pagar o que a Autora pagou, sem azo à discussão da fixação dos valores indemnizatórios.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


Companhia de Seguros ..., com sede ... demanda E...., residente ..., na presente acção declarativa, com forma de processo comum, peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de € 74.220,65, acrescida de juros, à taxa legal supletiva, a contar desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

Alega, para tanto, que a ré foi causadora de um acidente de viação, de onde emergiram os danos, que a autora indemnizou, pelo valor peticionado. Dado que a ré não se encontrava legalmente habilitada para conduzir, invoca a autora direito de regresso contra a mesma ré, da quantia de que se encontra reembolsada.

A ré contestou, impugnando motivadamente a factualidade vertida na petição inicial bem como excepcionando a culpa exclusiva do condutor do outro veículo interveniente no acidente, propugnando pela improcedência da demanda.

Factos provados.

Da discussão da causa resulta provado que:

A.A autora exerce a actividade seguradora e no exercício da sua actividade comercial, celebrou com H... um contrato de seguro para cobertura da responsabilidade civil do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 89-...-BB, contrato esse titulado pela apólice n" 068447894.
B.No dia 20 de Julho de 2005, pelas 07.20 horas, ocorreu um embate, em que foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula 89-...-BB, conduzido pela ré e onde seguia como ocupante A..., e o veículo pesado de mercadorias de matrícula 25-...-VC.
C.O embate ocorreu na Estrada Nacional 4, ao Km 39, em Pegões Velhos, Concelho do Montijo.

D.A estrada nacional 4 consubstancia uma via de dois sentidos, ou uma fila para cada lado, separadas por traços longitudinais descontínuos.
E.O tempo estava bom.
F.O condutor do veículo VC ao tentar desviar-se do veículo BB, perdeu o controle do veículo, indo embater no marco do KM ali existente, tendo de seguida capotado e provocado a queda da carga transportada pelo semi-reboque, na faixa de rodagem.

G.O veículo VC deixou impresso no pavimento um rasto de travagem e ainda marcas do capotamento, vidros e plásticos.
H.À data de 20 de Julho de 2005 a ré não estava habilitada para conduzir, não sendo titular de carta de condução.
I.Os condutores não foram submetidos no local, logo após o embate, ao teste de álcool no ar expirado, tendo sido feita a colheita de sangue ao condutor do VC, não tendo sido possível fazer a recolha de sangue à condutora do BB porquanto a mesma foi imediatamente transportada para o hospital e submetida a uma intervenção cirúrgica.
J.O veículo VC tinha reserva de propriedade a favor do "S... S.A." por força do contrato de locação financeira celebrado com  “S... Lda." com início em 15-06-2003 e fim em 15-06-2006.
K.O veículo VC era conduzido por H...

L.O local do embate é uma recta antecedida de ligeira curva à esquerda com boa visibilidade.

M.O piso é de asfalto em bom estado de conservação.
N.A velocidade máxima permitida é de 50 Kms /hora.
O.No dia e hora referidos em B) o veículo BB circulava no sentido Pegões Velhos/ Montijo e ao aproximar-se do Km 39 ao descrever uma curva para a direita, a ré perdeu o controle do veículo.

P.E saiu da sua faixa de rodagem ocupando a faixa contrária, onde circulava o veículo VC no sentido Montijo/Pegões Velhos.

Q.O condutor do veículo VC ao aperceber-se que o BB tinha invadido a sua faixa de rodagem, travou e guinou à direita a fim de evitar a colisão.

R.Mas não conseguiu evitar o embate.
S.O veículo BB embateu com a sua frente do lado esquerdo na frente do lado esquerdo do veículo VC e lateral e jante esquerda do semi reboque.
T.O veículo VC fazia conjunto com um semi-reboque de matrícula AV-29961 pertencentes à "S..., Lda.".

U.Em resultado do embate, o veículo VC teve perda total.
V.Pelo veículo VC a autora pagou à "S..., Lda." o montante de € 33.278,00.

W.O semi reboque sofreu danos no lado esquerdo e jante.
X.Pela reparação do semi-reboque a autora liquidou a quantia de € 23.100,43.
Y.Como consequência directa e necessária do embate o ocupante do veículo BB sofreu lesões na cabeça ,onde foi suturado com cinco pontos ,ferimentos nos dois braços e nos joelhos que requereram a respectiva assistência hospitalar.
Z.Pela assistência hospitalar do A... a autora despendeu a quantia de € 106,10.

AA.Por via do embate e capotamento do veículo VC e semi-reboque, a carga que era transportada ficou espalhada no asfalto, tendo sido considerada perdida.
BB.A sociedade "S... Lda." sofreu prejuízos pela paralisação de 79 dias das viaturas.

CC.O veículo VC efectuava serviço internacional.
DD.A "S..., Lda." liquidou € 1.364,72 à empresa que procedeu ao reboque das viaturas.

EE.A autora acordou com a "S..., Lda." no pagamento global da quantia de € 17.218,12, a título de indemnização pelos dias de paralisação e reboque dos veículos danificados.
FF.Apesar de instada para o efeito, a ré não liquidou até à data as quantias supra referidas.
GG.A ré foi assistida no local e transportada em estado grave para o hospital.

HH.A carga transportada pelo veículo VC era propriedade da empresa "T..., S.A.".

A final foi proferida esta decisão:

“Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados pela autora Companhia de Seguros ... e, em consequência, condenar a ré E... a pagar à autora a quantia de € 73.702,65 (setenta e três mil, setecentos e dois euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, a contar desde a citação e até integral e efectivo pagamento, sendo os vencidos até 17/12/2015 no valor de € 11.824,73 (onze mil, oitocentos e vinte e quatro euros e setenta e três cêntimos), absolvendo-a do restante peticionado.”

É esta decisão que a R impugna, formulando estas conclusões:

1-A douta decisão do Tribunal recorrido, merece juízo de censura não estando em harmonia coma legislação em vigor e com a orientação jurisprudencial sufragada pelos tribunais superiores.
2-Efectivamente, a Autora reclama o pagamento de uma quantia pelos supostos danos a título de paralisação dos veículos que alega ter a "S... Lda." sofrido em resultado da paralisação das viaturas em causa, contudo, a Autora não logrou provar o alegado dano na vertente mencionada.
4-Ora, a Autora foi bastante específica no seu pedido ao pedir a título de paralisação dos veículos, não alegando nem provando matéria susceptível de conduzir à condenação da ora Recorrente no pagamento de uma indemnização por paralisação dos veículos dano per se, não tendo o douto Tribunal a quo decidido em consonância com a matéria alegada e provada, salvo o devido respeito por entendimento contrário, pelo que o Tribunal de 1ª Instância, decidiu incorrectamente atentos os factos alegados e dados como provados, subsumindo os mesmos incorrectamente ao Direito aplicável (artigo 562° a 566° do CC) ..
5-Nesta situação, a Autora não logrou provar que a paralisação dos veículos originou algum prejuízo específico, o que se impunha face ao instituto da responsabilidade civil. Neste sentido, veja-se a Declaração do Voto do Ex,mo Senhor Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça aposta ao Acórdão n° 0583122 (ln www.dgsi.pt).
6-Ainda que assim não se entenda, o que só por mera hipótese se concebe, o valor arbitrado pelo douto Tribunal é manifestamente exagerado, pois não parece à Recorrida que tenha sido relevado para o cômputo do montante indemnizatório o critério de equidade, previsto no n° 3 do artigo 566° do CCivll.
7-O refúgio do douto Tribunal Recorrido no acordo celebrado entre a ANTRAM e a APS, para o cálculo indemnizatório, é atentatório ao preceituado no n." 3 do artigo 566.° do CCivil, não sendo necessário o recurso a um juízo de equidade, uma vez que o alegado dano a título de paralisação está devidamente quantificado, mas que a Autora não alegou e por conseguinte não provou em sede audiência.
8-Mas ainda que se considerasse admissível, o recurso à tabela resultante do Acordo de paralisação celebrado entre a ANTRAM e a APS, deveria ter ainda em consideração o próprio Acordo, o que salvo o devido respeito, não foi feito pelo Tribunal recorrido, uma vez que os montantes indemnizatórios aí indicados foram calculados tendo em consideração os casos em que os Associados da ANTRAM ficam impossibilitados de-exercer à sua actividade e de recorrer a meios alternativos, o que não reflecte o caso 9 - Assim sendo, conclui-se que a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 5630 e 5660 do Código Civil e o artigo 19° do DL n° 522/85, de 31 de Dezembro .

A A contra-alega, pugnando pela improcedência do recurso.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelo teor das conclusões, o que há a decidir prende-se com o facto de se ter considerado o dano relativo à paralisação dos veículos que alega ter a "S...s Lda." sofrido em resultado da paralisação das viaturas em causa veículos: a apelante entende que o mesmo não se provou . E não se considerando tal, o seu montante deve ser reduzido.

Contudo, importa abordar esta questão prévia:
-é um facto que nas suas conclusões a apelante não observa, especificamente, o preceituado no artº 640 CPC .Porém, no corpo das suas alegações fá-lo.

Por isso, atento o objectivo de alcançar a justiça material , entendemos que se trata de uma mera irregularidade que não prejudica o conhecimento do objecto do recurso.

É que, nas circunstâncias concretas do caso, percebe-se, com muita facilidade, a matéria de facto impugnada pelo Apelante e, da mesma forma, também se compreende que a matéria impugnada, no seu entender, não está provada.

Neste contexto, encontra-se atingido o objetivo legal com a fixação do ónus de impugnação, consubstanciado na delimitação rigorosa e fácil da matéria de facto impugnada. Por isso, só a obediência a um estrito e estreito formalismo, que a lei rejeita, determinaria a rejeição do recurso sobre a matéria de facto, por incumprimento do ónus de alegação, sendo certo ainda que a parte contrária compreendeu inteiramente o objeto de semelhante impugnação.

Vejamos …

O Sr. Juiz deu como provado:

“ A sociedade "S... Lda." sofreu prejuízos pela paralisação de 79 dias das viaturas“ e “A autora acordou com a "S..., Lda." no pagamento global da quantia de € 17.218,12, a título de indemnização pelos dias de paralisação e reboque dos veículos danificados. “
E motivou a sua decisão em prova documental e depoimento de C…
C... foi funcionário da A ,durante 26 anos , exercendo funções de gestor de sinistros.
“…Fez a análise da documentação constante do processo deste sinistro, ainda que à data ,estivesse reformado. Nenhum dos documentos foi da sua autoria.
A conclusão acerca dos 79 dias de paralisação, sustenta-se em declarações dos proprietários, na peritagem e no tempo de reparação. A peritagem foi feita no gabinete de peritagens da A.
Os valores basearam-se no acordo da ATRAN com a Associação Portugesa de Seguradoras . Daí  um valor de tabela de 215,03 - diário .Valor de tabela….”        
Não há dúvida que a A. indemnizou o lesado em € 17.218,12 pela paralisação e pelo reboque, conforme ordem de pagamento datada de Março de 2006. (documento de fls. 64).
Em 8 de Setembro de 2005 o lesado coloca à ponderação da A o facto do veículo estar parado desde 20 de Julho ( cf fls 58)
Em 7 de Novembro de 2005 é emitido o recibo de indemnização referente à reparação do veículo AV .( cf fls 48)
Em 28 de Outubro de 2005 é emitido recibo de pagamento da indemnização relativo à perda total do veículo VC ( cf fls 44).
A Autora indemniza o lesado pela paralisação. Por isso, conjugando as datas em que foram emitidos os recibos de indemnização com a data do acidente e com o facto de ter sido considerado “perda total“ quanto ao veículo VC, não podemos deixar de considerar que houve uma correcta valoração da prova no seu todo.
Na verdade, o veículo AV , semi-reboque ,era objecto de uma licença de transporte internacional de mercadorias ( cf fls 60) e fazia conjunto com o veículo VC .Por isso, os dois veículos constituíam uma unidade “económica” no sentido de acarretarem para o seu proprietário benefícios económicos.
Logo, admitimos que os 79 dias de paralisação correspondem a um período de inactividade , sendo certo que desde a data do acidente até à data da emissão do recibo de indemnização, referente ao AV , vão mais de 79 dias ; não podemos esquecer que ,seguramente, ,atentas as regras da experiência de vida , existirão períodos curtos de inactividade para descanso dos trabalhadores e para outras quaisquer tarefas.

Termos em que nada alteramos .

No que respeita ao montante fixado….

No tocante aos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, cujo condutor não estivesse legalmente habilitado, a seguradora da responsabilidade civil e o responsável directo não podem, em relação ao lesado, deixar ser considerados como responsáveis solidários por aqueles danos: o responsável directo com base na responsabilidade civil extracontratual; a seguradora, com base no contrato de seguro de responsabilidade civil (artº 497 nº 1 do Código Civil).

Todavia, entre a seguradora e o responsável directo, ocorre uma relação de solidariedade imperfeita ou imprópria, dado o escalonamento sucessivo que caracterizam as relações internas entre ambos os condevedores: o devedor principal é o responsável directo, do qual a seguradora - mero garante da indemnização no confronto dos lesados – poderá exigir tudo o que pagou (artº 19 nº c) do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro)[1].

No tocante à indemnização suportada pela seguradora da responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros pelo condutor do veículo automóvel , que não estava legalmente habilitado a conduzir , a lei é terminante em qualificar o direito de reembolso da indemnização que satisfez que lhe assiste, como direito de regresso. Ainda que no plano teórico parecesse mais ajustado o enquadramento a situação na categoria técnica da sub-rogação, o caso deve, ter-se, ex-vi legis, como de verdadeiro direito de regresso[2].

Por força desta qualificação, é patente que o direito de regresso da seguradora se não confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização – e só com essa satisfação – surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior.

Daí que, a R deva pagar o que a Autora pagou ,sem azo à discussão da fixação dos valores indemnizatórios.

Termos em que improcedem as conclusões.

Síntese: o direito de regresso da seguradora se não confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização – e só com essa satisfação – surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior.

Daí que, a R deva pagar o que a Autora pagou, sem azo à discussão da fixação dos valores indemnizatórios.

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e confirmam a decisão impugnada.
Custas pela apelante.
      

  

Lisboa,02/06/2016



Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes       
Octávia Viegas



[1]Este diploma legal foi, entretanto, revogado pelo DL nº 291/2007, de 21 de Agosto que procedeu à recodificação do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (artº 94 nº 1 a)). Todavia, de harmonia com o princípio tempus regit factum, ao caso do recurso, considerada a data em que ocorreu o evento danoso, é aplicável a lei revogada (artº 12 nº 1 do Código Civil)
[2]cfr. Sinde Monteiro, Estudos sobre a Responsabilidade Civil, págs. 175 a 178, Filipe de Albuquerque Matos, “O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, BFDUC, Coimbra, 2002, págs. 353 e 354 e Afonso Correia, Seguro Automóvel de Responsabilidade Civil, Direito de Regresso da Seguradora, II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, pág. 204.

Decisão Texto Integral: