Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALMEIDA CABRAL | ||
Descritores: | CRIME DE ROUBO ACÇÃO DIRECTA REQUISITOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/27/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I- A figura da acção directa, enquanto causa de exclusão da ilicitude, encontra-se no art.º 336.º, n.º 1 do Cód. Civil o qual dita que, “É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”; II-De acordo com o disposto no n.º 3 do mesmo preceito, “a acção directa não é lícita quando se sacrifiquem interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar”; III-Ora, ponderando-se a factualidade dada como comprovada nos autos, não permite a mesma, em nada, fazer reflectir nela qualquer um dos pressupostos que integram a referida figura da “acção directa”, pois esse direito a existir e a subsistir, não era do arguido, mas, sim, de terceiros; IV-Igualmente para a defesa do suposto direito ( que é inexistente no caso) não era “indispensável” o recurso ao chamado golpe de “mata leão”, feito a um cidadão com oitenta anos de idade, em pose descontraída e serena, que foi surpreendido pela conduta agressiva do arguido; IV-A tal acresce que quer o arguido, quer os terceiros, não estavam, “impossibilitados” de recorrer, “em tempo útil”, aos meios coercivos normais, solicitando, designadamente, a intervenção das autoridades policiais. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência (art.º 419.º, n.º 3, al. c), do C.P.P.), os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – No Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 3, Processo Comum Colectivo n.º 647/19.1PDAMD, onde é arguido AA, foi imputada a este a prática, em co-autoria e em concurso, de um crime de roubo agravado, p. p. nos termos dos artºs. 210.º, nºs. 1 e 2 e 204.º, n.º 2, alíneas f) e g), de um crime de roubo, p. p. nos termos do artigo 210.º, n.º 1 e de um crime de coacção, na forma tentada, p. p. nos termos do artigo 154.º, nºs. 1 e 2, todos os dispositivos do Código Penal. Porém, realizado o julgamento, veio o arguido a ser absolvido de todas as imputações criminosas que lhe haviam sido feitas. Com esta decisão, na parte referente à absolvição do crime de roubo, não se conformou o Ministério Público, razão por que dela interpôs o presente recurso, o qual sustentou na deficiente valoração da prova produzida e na incorrecta interpretação dos artºs. 336.º e 1277.º do Cód. Civil, referentes à “acção directa”, bem como na verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Da motivação do recurso extraiu as seguintes conclusões: “(...) 1. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, em 06 de Julho de 2021, na parte em que absolveu o arguido AA da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do Código Penal. 2. Para decidir pela absolvição o Tribunal a quo enquadrou a acção do arguido próxima da figura da acção directa, a que aludem, designadamente, os artigos 336.5 ou 1277.5? do Código Civil, entendendo que, não obstante a desapropriação em questão, não se tem por verificada a “ilegitimidade” da intenção de apropriação, como elemento objectivo do tipo criminal do roubo. 3. A acção directa pressupõe a verificação dos seguintes requisitos, previstos no art.º 336.º do Código Civil: - a existência de um direito próprio do agente, que ele procura realizar ou assegurar; - a indispensabilidade do recurso à força, pela impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais, judiciais ou policiais, para evitar a inutilização prática do direito do agente; - não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo; - não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar, e pode ela consistir, como se dispõe no n.º 2 do citado artigo, «na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente aposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo». 4. De acordo com o artigo 336.º do Código Civil, a acção directa exige que o interesse sacrificado não seja superior ao interesse defendido. 5. De salientar que, no vertente caso, o arguido nem sequer se dirigiu ao ofendido DD ou a CC, proprietária do imóvel, solicitando-lhe a entrega das novas chaves, partindo logo para a abordagem do ofendido, colocando-lhe um braço à volta do seu pescoço e apertando-o, desse modo causando-lhe dores (factualidade dada como provada no ponto 2.6). 6. Pelo que, no caso em apreciação, tudo indicia não estar verificada a impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios normais. 7. Efectivamente, os factos ocorreram cerca das 16h45. 8. Sendo que o arguido poderia ter recorrido às forças policiais e não o fez. 9. Ou seja, por forma a tutelar um interesse patrimonial, o arguido violou a integridade física do ofendido DD, que nem sequer era o proprietário quer das chaves que lhe foram subtraídas através da força, quer do imóvel que a família do arguido ocupava, propriedade de outrem a quem não pagavam qualquer quantia a título de renda. 10. Ora, a integridade física pessoal é mais valiosa que o património, pelo que a acção do arguido nunca poderia ser justificada pelo recurso à figura da acção directa. 11. Assim sendo, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, encontram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de roubo, pelo qual o arguido deverá ser condenado. 12. Efectivamente, ao contrário do entendimento tido pelo Tribunal a quo, tem que se ter por verificada a “ilegitimidade” da intenção de apropriação, como elemento objectivo do tipo criminal do roubo. 13. Pelo que o Tribunal a quo, ao não condenar o arguido AA por este tipo de crime violou o disposto no art.º 210.º do Código Penal. 14. Concluindo-se pela prática, por parte do arguido, do crime de roubo previsto e punido no artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, impõe-se a aplicação da respectiva pena. 15. Face ao exposto, entende-se que o segmento decisório do acórdão que absolveu o arguido da acusação contra si formulada pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal deve ser revogado e substituído por outro que o condene pela prática do referido crime. 16. No entanto, o Tribunal “a quo”, ao proferir decisão absolutório, não curou de apurar dos factos relevantes para a determinação da sanção, não havendo relatório social do arguido junto aos autos. Pelo que, julgando-se procedente o presente recurso, na ausência de relatório social e face ao vício de insuficiência da matéria de facto provada, prevista no artigo 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, com as consequências previstas no artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento restrito à matéria da escolha e determinação da pena (arts.º 426.º e 426º-A do CPP), envolvendo o apuramento (apenas) dos factos relativos à personalidade do arguido, às suas condições pessoais e económicas. (...)” * O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito não suspensivo. * Notificado da interposição do recurso, não apresentou o arguido qualquer “resposta”. * Neste Tribunal o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu “parecer”, também, no sentido da procedência do recurso. * Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida. * 2 - Cumpre apreciar e decidir: É o objecto do presente recurso, à luz da motivação do recorrente, a deficiente valoração da prova produzida e a incorrecta interpretação feita pelo tribunal “a quo” da figura da “acção directa”, prevista nos artºs. 336.º e 1277.º do Cód. Civil, bem como a verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Realizado o julgamento e na parte em que a mesma releva para o conhecimento do objecto do recurso, foi a seguinte, em termos de matéria de facto, a decisão recorrida: “(...) 2. Fundamentação 2.1. Matéria de facto provada Da relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto: I. - 4-9-2019 - 1.1. Em 4-9-2019, cerca das 00H30, quando se encontrava no Bairro da Cova da Moura, Amadora, no seu veículo automóvel Peugeot 308, de matrícula XXXXXX, BB foi abordado por um indivíduo, que lhe pediu boleia e que ele conduziu pelo interior desse Bairro, até ter chegado a um local onde ambos saíram do veículo, ali tendo então aparecido três ou quatro indivíduos, que desferiram murros e pontapés em BB, tiraram-lhe a chave do veículo e puseram-se todos em fuga, no veículo de BB, que conduziram para fora daquele local. 1.2. O veículo valia cerca de 17.000,00 €, encontrando-se no seu interior a carteira de BB, com documentos pessoais e cerca de 50,00 €, além de um telemóvel, no valor de cerca de 200,00 €. 1.3. O veículo automóvel foi apreendido três dias depois, estacionado no interior desse Bairro, sem jantes e outros componentes, tendo sido restituído a BB, que despendeu cerca de 7.000,00 € na sua reparação. II. - 8-5-2020 - 2.1. O prédio correspondente à ………………………… Bairro da Cova da Moura, Amadora, composto por dois pisos, independentes, pertence a CC, que habita no segundo piso. 2.2. Durante cerca de doze anos, o arguido habitou no piso térreo desse prédio, primeiro com a sua mãe e posteriormente com a sua companheira e duas filhas, mediante o pagamento de contraprestação mensal a CC. 2.3. A mãe do arguido, ora emigrada na Suíça, entretanto adquiriu um imóvel nas proximidades desse local, na morada que corresponde à do termo de identidade e residência do arguido, para onde este se mudou após se ter separado da mãe das suas duas filhas, ora com as idades de 4 e de 6 anos, a qual continuou a habitar, com as filhas, no referido piso térreo do prédio de CC, bem assim, não obstante a separação, com frequência não concretamente apurada, o arguido continua a deslocar-se a essa habitação. 2.4. Porque o pagamento da respectiva renda não era efectuado há cerca de um ano, a fim de impedir que os inquilinos continuassem no locado, CC decidiu mudar as fechaduras da porta de entrada do piso térreo do prédio, da grade de protecção da porta e do portão de acesso à via pública, trabalho que contratou com DD.. 2.5. Concluída a mudança dessas três fechaduras, em 8-5-2020, cerca das 16H45, DD preparava-se para entregar as chaves das novas fechaduras a CC, quando chegou ao local o arguido, que tinha sido avisado da mudança das fechaduras que estava a ocorrer e que ali se deslocou para evitar que fosse vedado o acesso à habitação da sua ex-companheira e das suas filhas. 2.6. DD tinha então as chaves na mão, tendo-se o arguido abeirado dele, colocado um braço à volta do seu pescoço e apertado, desse modo causando dores a DD, e lhe retirado as chaves, tendo seguidamente, na posse das chaves, entrado no piso térreo do prédio de CC. 2.7. Posteriormente, o arguido, ou a sua ex-companheira, entregou as chaves a CC, ficando com um exemplar para si, sendo que a ex-companheira do arguido e as suas filhas ainda continuam a habitar nesse imóvel de CC.. 2.8. Ao actuar da forma acima descrita, o arguido quis apoderar-se das chaves da residência, com recurso à força física contra DD. 2.9. O arguido actuou de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que essa sua conduta era proibida e criminalmente punível. 2.2. Matéria de facto não provada Da relevante para a discussão da causa, não resultou provada a seguinte matéria de facto: I. - 4-9-2019 - 1.1. Que o arguido tivesse tido intervenção nos factos que se tiveram por provados, de que foi vítima BB, concretamente que “no dia 4 de Setembro de 2019, pelas 00.30 horas, o suspeito AA abordou BB quando este se encontrava a dormir no interior do seu veículo de matrícula XXXXXX, no valor de 13.000,00 (treze mil euros), no cruzamento das Ruas ………………………..no Bairro da Cova da Moura, Amadora, pedindo-lhe boleia tendo o ofendido acedido”, ou que o arguido fosse um dos três ou quatro indivíduos que posteriormente abordaram BB, que o agrediram e que lhe subtraíram o veículo. III. - 16-6-2020 - 3.1. Que “no dia 16-06-2020, no período da manhã, o arguido, ao aperceber-se que a ofendida CC saía de casa, disse à mesma, em tom sério “eu sei que hoje vais fazer alguma coisa, mas se fizeres limpo-te o sebo”. 2.3. Motivação da decisão de facto I. - 4-9-2019 - Assentou o Tribunal no depoimento de BB, vítima dos factos, que os descreveu, em versão que se teve por genericamente merecedora de credibilidade, da qual decorreu a falta de prova da intervenção do arguido nesses factos, intervenção que este também negou. A recuperação do veículo encontra-se documentada no auto de apreensão de fls. 48, veículo cujo estado aquando da apreensão se mostra melhor documentado nas fotografias de fls. 42 a 46. A sua restituição ao dono, além do depoimento deste, decorre do termo de entrega de fls. 55. Do exame do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária de fls. 104 a 118 resulta que no veículo apreendido foram identificados dois vestígios digitais do arguido, na porta da bagageira e no pilar da porta frontal direita, existência desses vestígios nesses locais para a qual o arguido apresentou versão que se teve por razoavelmente plausível e de que não decorre que tivesse tido intervenção no acto de desapropriação do veículo ao dono. II. - 8-5-2020 - Assentou o Tribunal no depoimento de DD, que se referiu às circunstâncias em que o arguido apareceu nesse local e o desapropriou das chaves das três fechaduras que tinha acabado de mudar, conjugado com a versão do arguido acerca desse acto que cometeu e com o depoimento da dona do imóvel, CC, depoimentos dessas testemunhas e declarações do arguido de que resulta que CC mudou as fechaduras em virtude de a ex-companheira do arguido não proceder ao pagamento da respectiva renda há mais de um ano e que este recorreu à acção em questão meramente para obtenção dessas chaves, a fim de que a sua ex-companheira e as suas filhas pudessem continuar a aceder à respectiva residência, bem assim que entregou exemplares das chaves à dona do imóvel, atento a que esta não teve necessidade de voltar mudar essas fechaduras, sendo que pelo menos a fechadura de acesso à via pública é de uso comum dos residentes de cada um dos pisos do imóvel. Sem prejuízo do direito que assistia aos inquilinos de não verem impedida a acessibilidade à sua habitação e de o arguido ter agido com vista à salvaguarda desse interesse, não poderia deixar de saber que lhe estava vedado o recurso à força física contra DD para o fazer valer, conforme procedeu e que essa sua conduta era proibida e criminalmente punível. III. - 16-6-2020 - Não se teve provada a respectiva factualidade, atento a que o arguido a negou, do depoimento de CC não decorreu que o arguido tivesse proferido as palavras em questão e outro meio de prova não foi produzido a esse respeito. (...)”. * Sendo esta a decisão recorrida em termos de matéria de facto, à luz da mesma sustentou o tribunal “a quo” a absolvição do arguido relativamente ao crime de “roubo”, perpetrado na pessoa de DD, única parte da mesma decisão que aqui é posta em causa pelo recorrente Ministério Público, adiantando-se, desde já, que com inteira razão. Vejamos: Na parte que para aqui releva, foi dado como provado que: “(...) 2.4. Porque o pagamento da respectiva renda não era efectuado há cerca de um ano, a fim de impedir que os inquilinos continuassem no locado, CC decidiu mudar as fechaduras da porta de entrada do piso térreo do prédio, da grade de protecção da porta e do portão de acesso à via pública, trabalho que contratou com DD. 2.5. Concluída a mudança dessas três fechaduras, em 8-5-2020, cerca das 16H45, DD preparava-se para entregar as chaves das novas fechaduras a CC, quando chegou ao local o arguido, que tinha sido avisado da mudança das fechaduras que estava a ocorrer e que ali se deslocou para evitar que fosse vedado o acesso à habitação da sua ex-companheira e das suas filhas. 2.6. DD tinha então as chaves na mão, tendo-se o arguido abeirado dele, colocado um braço à volta do seu pescoço e apertado, desse modo causando dores a DD, e lhe retirado as chaves, tendo seguidamente, na posse das chaves, entrado no piso térreo do prédio de CC. 2.7. Posteriormente, o arguido, ou a sua ex-companheira, entregou as chaves a CC, ficando com um exemplar para si, sendo que a ex-companheira do arguido e as suas filhas ainda continuam a habitar nesse imóvel de CC. 2.8. Ao actuar da forma acima descrita, o arguido quis apoderar-se das chaves da residência, com recurso à força física contra DD. 2.9. O arguido actuou de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que essa sua conduta era proibida e criminalmente punível. (...)”. Ora, vindo o arguido, por estes factos, acusado da prática de um crime de “roubo”, previsto no art.º 210.º, n.º 1 do Cód. Penal, dispõe este preceito que, “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. O tribunal “a quo”, porém, pese embora a factualidade dada como comprovada, considerou, em sede de fundamentação de direito, que não houve “ilegitimidade” da intenção de apropriação, pois que tudo aquilo que o arguido fez foi, tão só, o necessário para garantir a continuação do acesso ao locado das suas filhas e da mãe destas, comportamento este tido como “próximo da figura da acção directa”, do mesmo modo que considerou ter sido ilegítima a mudança das fechaduras por parte da proprietária do imóvel. Todavia, como bem o demonstra o Ministério Público na sua motivação de recurso, a qual se sufraga e aqui se dá por reproduzida para os necessários efeitos, é totalmente descabida a conclusão extraída pelo tribunal “a quo”, a qual sustenta, veja-se bem (!), em algo “próximo da figura da acção directa”, o que, para além de não se saber que figura jurídica seja esta, se traduz numa decisão aligeirada, que secundarizou e votou à indiferença o respeito pelos superiores valores tutelados no tipo de crime aqui em causa, clara e inequivocamente violado pelo arguido. Desde logo, falando-se daquilo que efectivamente existe, que é a figura da “acção directa”, enquanto causa de exclusão da ilicitude, dispõe o art.º 336.º, n.º 1 do Cód. Civil que, “É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo” – (sublinhado nosso). Porém, conforme o disposto no n.º 3 do mesmo preceito, “a acção directa não é lícita quando se sacrifiquem interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar”. Ora, ponderando-se a factualidade dada como comprovada, não permite a mesma, em nada, fazer reflectir nela qualquer um dos pressupostos que integram a referida figura da “acção directa”. O “direito”, a existir, não era do arguido, mas, sim, da sua ex-companheira, à guarda da qual estavam confiadas as filhas de ambos; Depois, para a defesa do suposto direito não era “indispensável” o recurso ao chamado golpe de “mata leão”, pois que se está perante um cidadão com oitenta anos de idade, em pose descontraída e serena, que foi surpreendido pela conduta agressiva do arguido; Por outro lado, não estavam, quer o arguido, quer a sua ex-companheira, “impossibilitados” de recorrer, “em tempo útil”, aos meios coercivos normais, solicitando, designadamente, a intervenção das autoridades policiais. Às 16,45 horas de um qualquer dia do mês de Maio ainda se tem muito “dia” pela frente, permitindo a adopção de medidas várias e a utilização de recursos diferentes tendentes à defesa de interesses que pudessem estar a ser violados; A “inutilização prática” do suposto direito também nunca existiria, pois que se discutia, apenas, a possibilidade da continuação da utilização, ou não, do respectivo arrendado, o que tudo ficaria serenado, por certo, se a ex-companheira do arguido pagasse, no momento, as rendas que se encontravam em dívida; Finalmente, porque na “acção directa” nunca se poderão sacrificar interesses superiores aos que se visam realizar ou assegurar, estando em causa, no caso, a simples disponibilidade de umas chaves, é por demais evidente que, para se obter a sua posse, é desnecessário e desproporcional, de todo, o recurso ao acto de violência aqui exercido pelo arguido sobre o DD, a quem causou dores e fez viver um momento de inequívoco e justificado pânico. Depois, tornando mais incompreensível a decisão recorrida, ferindo-a do vício da “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão”, previsto no art.º 410.º, n.º 2 do C.P.P., o próprio tribunal “a quo” reconhece o sacrifico de interesses superiores aos que o arguido visou assegurar, mas, ainda assim, “branqueia” a conduta deste, considerando-a “próxima da figura da acção directa” e, deste modo, afasta a ilegítima intenção de apropriação. Porém, como resulta por demais evidente da factualidade dada como comprovada, os elementos típicos do imputado crime de “roubo” mostram-se preenchidos na sua plenitude, tal como estes se descrevem no art.º 210.º, n.º 1 do Cód. Penal, razão por que, pela sua prática, não podia o arguido deixar de ter sido punido. Todavia, também aqui, não fez o tribunal “a quo” tudo aquilo que se lhe impunha, isto é, não ordenou a produção de prova tendente ao apuramento de todos os factos que permitissem, em sede de eventual recurso, como veio a acontecer, proferir a decisão ajustada à fixação da medida da pena, designadamente aferindo das condições pessoais, familiares, profissionais, económicas do arguido, do mesmo modo que nada se fez constar da decisão recorrida relativamente ao seu comportamento anterior e posterior aos factos com relevância criminal, razão por que se considera enfermar a mesma do vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) do C.P.P.. Impõe-se, pois, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, visando-se neste, tão só, o apuramento dos factos tendentes à ajustada determinação da medida da pena, que o tribunal “a quo” haverá de fixar pela prática de um crime de “roubo”, p.p. nos termos do art.º 210.º, n.º 1 do Cód. Penal, o que se determina à luz do disposto no art.º 426.º, n.º 1 do C.P.P.. 3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de “roubo”, pelo qual haverá de ser condenado e ordenando o reenvio do processo para novo julgamento relativamente às questões agora identificadas. Sem custas. Notifique. Lisboa, 27/01/2022 Almeida Cabral Guilherme Castanheira |