Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | AMÉLIA ALVES RIBEIRO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE LOCAÇÃO DE EQUIPAMENTO INCUMPRIMENTO RESOLUÇÃO POR ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS PRESSUPOSTOS SITUAÇÃO PANDÉMICA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/23/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | 1.–A convocação do instituto da alteração das circunstâncias previsto nos artigos 437º e seguintes, CC), implica a ponderação de que: - este instituto constitui uma exceção de relevo ao princípio de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (artigo 406º/1 CC) e que - reveste natureza tendencialmente subsidiária e importa, verificar os seus requisitos na prática; - à luz daquele preceito são relevantes as circunstâncias que constituam a base do negócio que, como conceito indeterminado, pode ser entendida como “a representação bilateral, comum às partes ou uma representação unilateral, conhecida e não contestada pela contraparte”; - a situação de normalidade em que as partes tiverem fundado a decisão de contratar, só pode ser inferida a partir dos elementos revelados pela matéria de facto, nomeadamente, dos termos do contrato e do seu contexto. 2.–A anormalidade e imprevisibilidade da atual situação pandémica e dos seus reflexos na atividade económica, nomeadamente no setor da restauração em que a R. se insere, sem possibilidade de laboração na modalidade de take away, o que acarretou a cessação da atividade da R., que fez cessar por acordo os contratos de trabalho com os seus trabalhadores, traduz um quadro que se inscreve nas “grandes modificações estruturais que [bolem] com a generalidade das variáveis sócio-económicas”, passível de integrar o instituto de alteração das circunstâncias. 3.–Verificado aquele requisito, importa aferir se “as exigências das obrigações assumidas afetam gravemente os princípios da boa fé”. 4.–Neste âmbito, se do balancear das posições das partes se verificar que: o contrato estava numa fase de execução inicial e houve pagamento do valor das rendas devidas, na vigência do contrato; não se coloca a questão da entrega do bem, por se supor ter ocorrido ou por, pelo menos, não ser problemática. Se, além disso, a matéria de facto aludir à ausência de recursos, por parte da R. e se não se detetar maior prejuízo para a A. decorrente da cessação do contrato, é de concluir que a exigência do cumprimento do contrato, por parte da R., seria gravemente atentatória do princípio da boa-fé, à luz do artigo 762º CC. 5.–Ainda assim, o mesmo instituto implica verificar se as exigências do contrato estão cobertas pelos seus riscos próprios. 6.–Neste âmbito, tendo-se provado que a A. e a R. firmaram uma cedência temporária e onerosa do gozo de um bem, sem transferência de propriedade para a R. e que as partes submeteram a disciplina do contrato aos artigos 1022º e seguintes do CC, os quais regulam a locação, é de concluir, no assinalado contexto, pela inexigibilidade de cumprimento por parte da R. quer se atenda ao princípio ínsito no artigo 1040º CC quer no artigo 796º/1 CC em virtude de, face a tais preceitos, o risco correr por conta da A./proprietária do bem. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Relação de Lisboa I.–Relatório 1.1.–Pretensão sob recurso: revogação da sentença recorrida e sua substituição por Acórdão que condene a R. integralmente nos pedidos. 1.1.1.-Pedido: condenação da R. no pagamento da quantia € 8.410,08 a título de capital, acrescida dos juros de mora no valor de € 29,98, € 1.085,85 a título de outras quantias e de €153,00 relativos à taxa de justiça paga. Alega, para tanto, celebrou com a R. um contrato de locação, pelo qual se obrigou a adquirir e proporcionar à ré o gozo de um equipamento e, por seu turno, a ré obrigou-se a proceder ao pagamento de 60 prestações mensais, no valor mensal de €110,00 cada uma. A R. deduziu oposição, na qual se defendeu por exceção, invocando a resolução do contrato por ocorrência de um caso de força maior e por impossibilidade objetiva de cumprimento da sua obrigação. Foi proferida decisão, do seguinte teor: “Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: 1.- Condeno a ré MF, Lda a pagar à autora Liqui.do, S.A. a quantia de € 133,70, a título de pagamento pelo aluguer do bem, referente ao mês de abril de 2020, acrescido de IVA à taxa legal em vigor e dos juros de mora que se vencerem, desde a data de vencimento da prestação até efetivo e integral pagamento. 2.- Absolvo a ré do demais peticionado. Custas a cargo da autora e da ré, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 99% para a autora e 1% para a ré - cf. artigo 527°, n°s 1 e 2, do Código de Processo Civil. Fixa-se o valor da causa em € 9.525,91 - cfr. artigo 306°, do Código de Processo Civil Registe e notifique.” 1.2.-Inconformada com aquela decisão, a A. apelou, tendo formulado as seguintes conclusões: 1.a)-A ora Recorrente, na qualidade de Autora, instaurou, em 17/09/2020, contra a Ré, um procedimento de injunção, no qual peticionava o pagamento da quantia global de 9.678,91 €, e fê-lo atento o reiterado incumprimento do contrato de locação n.º AP-1...20 celebrado entre as partes, o qual foi por si validamente resolvido. 2.a)-A Ré, regularmente notificada, deduziu oposição, pugnando pela resolução do contrato de locação n.º AP-… por ocorrência de um caso de força maior, e se assim não se entendesse, por impossibilidade objetiva de cumprimento das suas obrigações para com a Autora. 3.a)-Contudo, apesar da factualidade dada como provada, dos diversos documentos juntos pela Autora e do depoimento escrito da testemunha indicada pela aqui Recorrente, a fundamentação de direito do Tribunal a quo foi contraditória com a prova documental junta pela Autora e com a factualidade dada como provada. 4.a)-O Tribunal a quo, quanto à factualidade provada nos pontos n.º 9. e 10., fundou a sua interpretação e a sua fundamentação com base no exposto no documento n.º 1, junto pela Ré. 5.a)-Contudo, desconsiderou por completo o depoimento escrito da testemunha RV..., no qual o mesmo declara expressamente o seguinte: “(...) a Locatária solicitou a cessação antecipada do contrato, pedindo a sua anulação, tendo a L., S.A. informado por e-mail de 19/10/2020 que caso a mesma tivesse interesse na reativação do contrato deveria pagar a quantia de 1.286,86 € no imediato, devendo os alugueres posteriores ser pagos nos termos contratuais e/ou, caso o interesse fosse o de ajustar um acordo de pagamento, o pagamento deveria ser sobre a quantia global de 9.678,91 €, sendo o acordo ajustado pela empresa S. (a qual também é contratada para proceder à interpelação das Locatárias com atrasos no pagamentos dos alugueres). Na mesma data, e em função da resposta da Locatária, a L, S.A. informou que caso o interesse fosse terminar antecipadamente o contrato, seria necessário o pagamento de todos os valores devidos até ao termo do contrato em 31/03/2025, o que até ao presente não se verificou, pois, o único pagamento recebido pela Liqui.do, S.A. foi de 378,45 €, em 27/02/2020. " 6.a)-E ainda, o teor dos documentos n.os 30 e 31, juntos pela Autora em 03/12/2020 com a resposta às exceções (ref.a citius n.º 37361131), no qual o departamento legal informou expressamente que a solução para o problema poderia passar pelo pagamento de uma quantia e consequentemente pela reativação do contrato, celebração de um acordo para pagamento em prestações e/ou o pagamento antecipado do valor global do contrato. 7.a)-Ou seja, o Tribunal a quo fundou a sua convicção, para determinar como válida a resolução do contrato por parte da Ré, com fundamento no instituto da resolução do contrato por alteração das circunstâncias, com base na resposta de uma assistente de atendimento ao cliente da aqui Recorrente, em detrimento do plasmado no depoimento escrito e nos documentos n.os 30 e 31, juntos pela Autora, com a resposta do departamento legal da Liqui.do, S.A.. 8.a)-Sucede que, questionada a Fornecedora, a mesma concluiu que o equipamento alugado, uma vez instalado e usado pela Locatária, e aliado ao hiato temporal desde a celebração do contrato de locação (07/02/2020) e a solicitação de anulação da Ré (13/04/2020) seria impossível de o retomar, por não existir procura por aquele género de equipamentos no estado de usados. 9.a)-Provas que foram completamente ignoradas pelo Tribunal a quo, e que certamente teriam influência na decisão final, pois a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias que levaram a contratar não poderia ser admitida, o que desde já se requer ao Tribunal ad quem! 10.a)-Mais, para uma legítima aplicação do instituto plasmado nos artigos 437.º e 438.º do Código Civil, não seria bastante a prova de uma quebra de rendimentos da Ré causada pela pandemia que nos assola, pelo que o Tribunal a quo volta a contradizer-se atenta a factualidade provada nos pontos n.os 19., 21., 23. e 24., vejamos: 11.a)-No caso em concreto não deverá considerar-se como provado o plasmado no ponto 19., pois tal afirmação é falaciosa, porquanto a Ré - e apesar da quebra de faturação - auferiu rendimentos de quase 70.000,00 €, conforme consta do doc. n.º 2, junto pela Ré no requerimento de 08/03/2021 (ref.a citius 38229834). 12.a)-Uma vez mais, a decisão do Tribunal a quo não é coincidente com a factualidade dada como provada, pelo que se impunha uma decisão diferente, nomeadamente a de condenação da Ré no pagamento da quantia peticionada pela Autora, atento o incumprimento contratual e a resolução operada pela Liqui.do, S.A. (Cfr. Doc. n.º 29, junto pela Autora em 03/12/2020, ref.a citius 37361131). Ou se assim não se entender, à modificação do contrato com base em juízos de equidade, pois a decisão do Tribunal ad quo é uma clara violação do principio da boa-fé, como disse Manuel Carneiro da Frada, “Os contratos não podem converter-se em casos de windfall profit de uns à custa de outros, pois tal contraria os ditames da justiça.” Mais, 13.a)-O artigo 437.º estabelece as condições de admissibilidade de modificação ou resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias, os quais se dividem em elementos de cariz positivo e negativo. De cariz positivo, existem três, a saber, (i) as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, (ii) o facto de terem sofrido uma alteração anormal (excecional/imprevisível) e a (iii) exigência de que sejam afetados de forma grave os princípios da boa-fé. De cariz negativo, existem dois, a saber, (i) que a alteração não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato e o plasmado no artigo 438.º do Código Civil (ii) que impede a parte que se encontre em mora no momento da alteração das circunstâncias de recorrer ao instituto. Requisitos que são de aplicação cumulativa! 14.a)-No caso em apreço o Tribunal ad quo andou mal, materializando a sua decisão num erro de julgamento, por incorreta interpretação e aplicação da lei, num verdadeiro error iuris. 15.a)-Por um lado - e olvidando a incorreta valoração e/ou desvalorização das provas produzidas pelas partes - andou mal ao desconsiderar o elemento negativo plasmado no artigo 438.º do Código Civil, pois a Ré não poderia resolver o contrato com fundamento na alteração das circunstâncias que levaram a contratar, quando a mesma se encontrava em mora no pagamento! 16 a) Conforme afirma o Tribunal ad quo, a comunicação da Ré data de 13/04/2020, data em que já se encontravam vencido o aluguer trimestral de abril a junho de 2020, bem como a fatura n.º …, respeitante aos custos do 1.º aviso/interpelação - previstos no clausulado do contrato - vencida desde 11/04/2020 (cfr. Doc.s n.os 6 e 7, juntos em 03/12/2020, por requerimento com a ref.a citius 37361131). 17.a)-Encontrando-se a Ré em mora no cumprimento das obrigações, não poderia ter o Tribunal a quo considerado o contrato de locação resolvido, por aplicação do instituto da alteração das circunstâncias que levaram a contratar (veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/05/2016, processo n.º 401/07.3TBSCD-C.C1, disponível em www.dgsi.pt). 18.a)- Na alteração das circunstâncias tem de existir sempre uma ponderação entre, por um lado, a estabilidade e segurança jurídica e a justiça comutativa por outro, ou seja deverá existir sempre um campo cinzento que abrange por um lado a autonomia privada e por outro, a boa-fé. Assim, andou mal o Tribunal a quo, pois conforme já se referiu supra, desconsiderou por completo o prejuízo causado à Autora, Locadora no contrato em juízo! 19.a)-Pelo que será uma clara violação do principio da boa-fé a resolução do contrato de locação por parte da locatária, com fundamento na alteração das circunstâncias que levaram a contratar, pois causa prejuízos claramente superiores à Liqui.do, S.A. do que à Ré, pois a mesma pagou o preço do equipamento em novo e até ao presente apenas recebeu 378,45 €! 20.a)-Pelo que, e à semelhança do que já se disse anteriormente, em face do alegado, considerando a errada interpretação das normas em apreço para boa decisão da causa (437.° e 438.° do Código Civil) e bem assim dos seus princípios orientadores, levada a cabo pelo Tribunal a quo, em clara violação do principio da livre apreciação da prova, deverá o Tribunal ad quem alterar a decisão recorrida, devendo ser proferido acórdão que condene a Ré nos pedidos formulados pela Autora, deduzida a quantia de 1.085,85 € (conforme redução do pedido). Para tal, deverá considerar válida a resolução operada pela Locadora, aqui Recorrente, em 29/06/2020, nos termos do artigo 1048.º do Código Civil, atento o reiterado incumprimento no pagamentos dos alugueres por parte da Ré. A R. contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões: 1.–O fundamento da Recorrida quanto à matéria de facto com fundamento na “notória contraditoriedade da factualidade provada em função da prova documental produzida”, improcede manifestamente, 2.–Quer porque a prova documental não atesta o que a Recorrente alega, 3.–Quer porque a prova gravada, certifica que os factos dados como provados são os corretos. 4.–Quanto ao fundamento jurídico em a Recorrente fundou num “erro de julgamento, por incorreta interpretação e consequentemente aplicação das normas constantes do Código Civil, a saber artigos 437.º e 438.º, em função da factualidade provada”, 5.–Improcede também por que a Recorrente faz uma incorreta subsunção dos factos no direito, uma vez que releva a data da resolução como referência temporal da mora, quando esta ocorreu por causa da pandemia, e determinação legislativa do Estado. 1.3.-Como é sabido, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, excetuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos arts. º 608.º, 635.º/4 e 639.º/1, do CPC. Assim, considerando as conclusões da apelante, as questões essenciais a decidir no âmbito do presente recurso, consistem em saber se: (i) é de alterar o facto nº 19 e se (ii) é devida a quantia reclamada. II.–Fundamentação II.1.- Dos factos Em primeira instância, foram dados como provados os seguintes factos: 1.–A autora é uma sociedade comercial cujo objeto consiste em aluguer de bens móveis nomeadamente de bens de escritório, de máquinas e de bens informáticos, incluindo softwares e hardwares, e de bens industriais. 2.–No dia 7/02/2020, no âmbito da sua atividade celebrou com a ré MF, Lda o contrato n.º AP-1...20, por força do qual se comprometeu a adquirir e a proporcionar à ré o gozo, temporário e oneroso, da máquina purificadora de água "kmzerolHF45eTOP". 3.–Em cumprimento desse contrato por indicação e sob proposta da ré, a autora adquiriu o mencionado bem ao Fornecedor "G…, Unipessoal, Lda", pelo valor de € 6.738,99 (IVA incluído). 4.–No dia 7/02/2020, a autora, por intermédio do fornecedor, entregou os bens supra identificados, pelo prazo de 60 meses, mediante o pagamento de prestações devidas a título de aluguer, mensais e sucessivas, no montante de €110.00 cada, ao qual acresce o IVA à respetiva taxa legal à data. 5.–Estas prestações deveriam ser pagas trimestralmente, por débito direto. 6.–A ré não pagou a prestação respeitante ao mês de abril 2020, nem as prestações respeitantes aos meses subsequentes. 7.–No âmbito deste contrato, a autora emitiu em nome da ré e remeteu-lhe através do correio eletrónico, as seguintes faturas: a.- FT n° …, de € 477.00, vencida em 2020-04-01. b.- FT n° …, de € 34.13, vencida em 2020-04-11. c.- FT n° …, de € 114.08, vencida em 2020-04-27. d.- FT n° …, de € 14.09, vencida em 2020-05-18. e.- FT n° …, de € 8.78, vencida em 2020-06-08. f.- FT n° …, de € 8.78, vencida em 2020-06-29. g.- FT n° …, de € 477.00, vencida em 2020-07-02. 8.–Estas faturas não foram pagas nas respetivas datas de vencimento, nem posteriormente. 9.–No dia 13/04/2020, por comunicação efetuada no portal da autora, a ré transmitiu à autora que por motivo de encerramento por implementação das medidas de prevenção da DGS e sem previsão de abertura, pretendia anulação do contrato e das faturas emitidas. 10.–Em resposta, no próprio dia, a autora declarou que não se iria opor à anulação, afirmando que existe um procedimento a ser seguido pelo fornecedor, que deverá contactar a autora para que sejam esclarecidos os próximos passos. 11.–Nesta sequência, a ré abordou a G., com a qual trocou correspondência, na qual esta informou não ter legitimidade para proceder à resolução do contrato pedida, sugerindo que a ré abordasse a autora para celebrar um acordo de pagamento. 12.–No dia 22/06/2020, a ré dirigiu à autora uma missiva a declarar a extinção do contrato com fundamento na impossibilidade de realizar as prestações a que estava obrigada pelo contrato como consequência direta da causa adequada ao mesmo: pandemia derivada da Covid-19. 13.–No dia 29/06/2020, a autora comunicou à ré a resolução do contrato AP-1...20, com fundamento no incumprimento definitivo por parte da ré. 14.–A ré dedica-se à atividade de exploração do restaurante e de um estabelecimento comercial sito numa esplanada, onde serve bebidas e tostas. 15.–Em março de 2020, por força da situação pandémica que assolou Portugal, por decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 de 18 de março, foi declarado o Estado de Emergência. 16.–Na sequência disso, o Decreto n.º 2-A/2020 de 20 de março, determinou obrigatoriedade de encerramento dos restaurantes. 17.–Por força da situação pandémica, a atividade da ré cessou, não tendo o restaurante continuado a funcionar no sistema designado por "take away", por não conseguir servir os pratos da sua ementa dessa forma. 18.–Desde então e até à presente data, a ré nunca mais reabriu o restaurante que explorava. 19.–Por força da cessação da sua atividade, a ré deixou de auferir quaisquer rendimentos. 20.–Em face da ausência de rendimentos, por acordo com todos os seus trabalhadores, a ré fez cessar todos os contratos de trabalho. 21.–A partir de maio de 2020, a ré exerceu a sua atividade de exploração da esplanada, sempre que as condições meteorológicas o permitiram, designadamente, nos meses de verão. 22.–Para esse efeito, recorreu a empresas de trabalho temporário. 23.–Por força dessa atividade, no período compreendido entre maio e dezembro de 2020, a ré teve um volume de faturação de aproximadamente 18 mil euros. 24.–Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2020, teve um volume de faturação de, respetivamente, 26 mil euros, 14 mil e 800 euros e 10 mil euros. 25.–No ano de 2019, a ré teve um volume de faturação de aproximadamente 442 mil euros. II.2.–Apreciação jurídica Quanto à questão de saber se é de alterar o facto nº 19 O facto nº 19 tem o seguinte teor: “Por força da cessação da sua atividade, a ré deixou de auferir quaisquer rendimentos”. A A. sustenta que este facto deve considerar-se como não provado, com fundamento basicamente em que tal afirmação é falaciosa, porquanto a Ré - e apesar da quebra de faturação - auferiu rendimentos de quase 70.000,00 €, conforme consta do doc. n.º 2, junto [por ela] no requerimento de 08/03/2021 (ref.a citius 38229834). Da motivação da decisão de facto consta nomeadamente que a celebração do contrato, respetivas condições, a falta de pagamento das prestações e faturas e as comunicações trocadas entre as partes resultou assente, desde logo, em face da posição assumida pelas partes nos respetivos articulados. Neste segmento, foi ainda valorada a prova documental junta aos autos e o depoimento por escrito apresentado pela testemunha indicada pela autora. No que tange à atividade da ré e à sua cessação por força da pandemia, a convicção do Tribunal estribou-se no depoimento das testemunhas arroladas pela R., JPDP, socio da ré e SCFFLL, assistente de contabilidade, que presta serviços, nessa área à ré, as quais corroboraram que a ré encerrou o restaurante que explorava e que, desde março, de 2020, este nunca mais reabriu, não auferindo a ré, desde então, qualquer rendimento proveniente do restaurante, corroborando, assim, as declarações prestadas pela legal representante da ré, MSAR. Estas duas testemunhas prestaram um depoimento sério, seguro e idóneo, revelando muita espontaneidade pela forma como responderam ao tribunal e um conhecimento profundo dos factos em apreço, atentas as funções que exercem. JPDP concretizou que foram cessados todos os contratos de trabalho, face à ausência de rendimentos e de perspetivas de reabertura do restaurante. Explicou que, atenta a localização do restaurante, bem como, ao facto da maioria da clientela do restaurante serem turistas, não se tornou viável a reabertura do restaurante, nem o funcionamento do restaurante apenas para serviço de "take away", confirmando também neste segmento as declarações de MR que também referiu que o menu servido no restaurante não é compatível com "take away". Aquela testemunha admitiu que, a ré tem exercido a sua atividade, na exploração da esplanada de forma pontual, concretizando as limitações dessa atividade. O depoimento de SL foi ainda determinante para estribar a convicção do tribunal quanto ao volume de faturação da ré. Ao que tudo indica, o requerimento em que a apelante se baseia deu entrada em 09.03.2021 e não, como por lapso indica, em 08.03.2021, data em que, aliás, não foi junto qualquer documento. Ora, o documento n.º 2 junto com o requerimento de 09.03.2021, apesar de datado de 2020, reporta-se a 2019 e não a 2020, ano em que teve início a presente pandemia. Nenhuma conexão é, pois, possível estabelecer entre o conteúdo do indicado documento e o presente quadro pandémico. Assim, a prova trazida pela apelante não é passível de alterar o juízo de facto da primeira instância quanto à parte recorrida e que, de resto, está em consonância com a matéria provada nomeadamente sob os pontos 20, 21, 22 e 23. Apreciando: Quanto à questão de saber se é devida a quantia reclamada. Tendo soçobrado o recurso de facto em que a A. baseava, em boa medida, a procedência do recurso, naturalmente não pode deixar de improceder também o recurso de direito. Cumpre, todavia, explicitar que: a A. comprometeu-se a proporcionar à R. o gozo temporário e oneroso de uma máquina purificadora de água "kmzerolHF45eTOP". Ambas as partes são empresas comerciais dedicando-se, a A., ao aluguer de bens móveis nomeadamente de bens de escritório, de máquinas e de bens informáticos, incluindo softwares e hardwares, e de bens industriais e, a R., à indústria da restauração. Para fundamentar o recurso a A. sustenta que não se verificam os pressupostos do instituto da alteração de circunstâncias nos termos e para os efeitos dos artigos 437º e seguintes, CC. Defende que “na alteração das circunstâncias tem de existir sempre uma ponderação entre, por um lado, a estabilidade e segurança jurídica e a justiça comutativa por outro, ou seja deverá existir sempre um campo cinzento que abrange por um lado a autonomia privada e por outro, a boa-fé. Assim, andou mal o Tribunal a quo, pois conforme já se referiu supra, desconsiderou por completo o prejuízo causado à Autora, Locadora no contrato em juízo”, havendo “uma clara violação do principio da boa-fé a resolução do contrato de locação por parte da locatária, com fundamento na alteração das circunstâncias que levaram a contratar, pois causa prejuízos claramente superiores à Liqui.do, S.A. do que à Ré, pois a mesma pagou o preço do equipamento em novo e até ao presente apenas recebeu 378,45 €”. Conclui que deve ser alterada a decisão recorrida, devendo ser proferido acórdão que condene a Ré nos pedidos formulados pela Autora, deduzida a quantia de 1.085,85 € (conforme redução do pedido). Para tal, deverá considerar válida a resolução operada pela Locadora, aqui Recorrente, em 29/06/2020, nos termos do artigo 1048.º do Código Civil, atento o reiterado incumprimento no pagamentos dos alugueres por parte da Ré. Vejamos. O invocado instituto da alteração das circunstâncias tem natureza tendencialmente subsidiária, importando verificar os seus requisitos na prática. É sabido que a ratio legis deste instituto radica em razões de justiça comutativa, associadas ao princípio da boa-fé. Neste campo, o artigo 437º/ 1, do C.C. prevê a resolução ou a modificação do conteúdo do contrato, segundo juízos de equidade, quando se verifique uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, “desde que as exigências das obrigações […] assumidas afete[m] gravemente os princípios da boa fé e não esteja[m] coberta[s] pelos riscos próprios do contrato”. Assim, cumpre aferir, desde logo, se ocorreu uma alteração anormal das circunstâncias integrantes da base do negócio e se o seu cumprimento afeta gravemente os princípios da boa fé e se, perante a alteração verificada, as exigências das obrigações assumidas não estão cobertas pelos riscos próprios do contrato[1]. Como ensina o Professor Menezes Cordeiro, a alteração anormal das circunstâncias prende-se com as grandes modificações estruturais que venham bulir com a generalidade das variáveis sócio-económicas que caraterizam uma sociedade[2]. O mesmo ilustre Professor salienta o quadro das grandes calamidades, como é o que caso daquela que se tem vindo a desenrolar ao longo da pandemia. Mais recentemente, Mariana Fontes da Costa diz-nos que: “Estamos a viver hoje a materialização de um dos mais nefastos exemplos de escola em matéria de perturbações da grande base do negócio, para usar a designação tradicional de G. Kegel”[3]. Também Nuno Pinto de Oliveira sustenta que a alteração das circunstâncias tem de ser anormal, imprevista e imprevisível e exterior à parte prejudicada[4]. Afigura-se-nos, assim, incontornável que o contexto pandémico é de molde a convocar o instituto previsto no artigo 437º e seguintes que, como é sabido, constitui uma exceção de relevo ao princípio de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (artigo 406º/1 CC). Sucede que este dispositivo torna relevantes apenas as circunstâncias que constituam a base do negócio que, como se tem dito, constitui um conceito indeterminado: pode entender-se que se trata da representação bilateral, comum às partes ou uma representação unilateral, conhecida e não contestada pela contraparte. Parece claro que o contexto em que a encomenda da máquina em causa foi efetuada pela R. à A., supunha uma situação de normalidade que contextualizava a atividade de um restaurante que não pôde continuar a laborar em take away, tendo a R. cessado a atividade, o que se manteve ao longo de meses. Foi numa situação de normalidade que as partes fundaram a decisão de contratar, circunstâncias essas que só podem ser inferidas a partir dos elementos revelados pela matéria de facto, nomeadamente os termos do contrato e o seu contexto. Neste âmbito, importa, assim, a nosso ver, aferir se as partes teriam celebrado o negócio ainda que tivessem previsto o quadro endémico acima referenciado. Da matéria provada salienta-se que: 2.–No dia 7/02/2020, no âmbito da sua atividade celebrou com a ré MF, Lda o contrato n.º AP-1...20, por força do qual se comprometeu a adquirir e a proporcionar à ré o gozo, temporário e oneroso, da máquina purificadora de água "kmzerolHF45eTOP". (…) 4.–No dia 7/02/2020, a autora, por intermédio do fornecedor, entregou os bens supra identificados, pelo prazo de 60 meses, mediante o pagamento de prestações devidas a título de aluguer, mensais e sucessivas, no montante de €110.00 cada, ao qual acresce o IVA à respetiva taxa legal à data. (…) 9.–No dia 13/04/2020, por comunicação efetuada no portal da autora, a ré transmitiu à autora que por motivo de encerramento por implementação das medidas de prevenção da DGS e sem previsão de abertura, pretendia anulação do contrato e das faturas emitidas. 10.–Em resposta, no próprio dia, a autora declarou que não se iria opor à anulação, afirmando que existe um procedimento a ser seguido pelo fornecedor, que deverá contactar a autora para que sejam esclarecidos os próximos passos. 11.–Nesta sequência, a ré abordou a G., com a qual trocou correspondência, na qual esta informou não ter legitimidade para proceder à resolução do contrato pedida, sugerindo que a ré abordasse a autora para celebrar um acordo de pagamento. 12.–No dia 22/06/2020, a ré dirigiu à autora uma missiva a declarar a extinção do contrato com fundamento na impossibilidade de realizar as prestações a que estava obrigada pelo contrato como consequência direta da causa adequada ao mesmo: pandemia derivada da Covid-19. 13.–No dia 29/06/2020, a autora comunicou à ré a resolução do contrato AP-1...20, com fundamento no incumprimento definitivo por parte da ré. 14.–A ré dedica-se à atividade de exploração do restaurante e de um estabelecimento comercial sito numa esplanada, onde serve bebidas e tostas. 15.–Em março de 2020, por força da situação pandémica que assolou Portugal, por decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 de 18 de março, foi declarado o Estado de Emergência. 16.–Na sequência disso, o Decreto n.º 2-A/2020 de 20 de março, determinou obrigatoriedade de encerramento dos restaurantes. 17.–Por força da situação pandémica, a atividade da ré cessou, não tendo o restaurante continuado a funcionar no sistema designado por "take away", por não conseguir servir os pratos da sua ementa dessa forma. 18.–Desde então e até à presente data, a ré nunca mais reabriu o restaurante que explorava. 19.–Por força da cessação da sua atividade, a ré deixou de auferir quaisquer rendimentos. 20.–Em face da ausência de rendimentos, por acordo com todos os seus trabalhadores, a ré fez cessar todos os contratos de trabalho. 21.–A partir de maio de 2020, a ré exerceu a sua atividade de exploração da esplanada, sempre que as condições meteorológicas o permitiram, designadamente, nos meses de verão. 22.–Para esse efeito, recorreu a empresas de trabalho temporário. 23.–Por força dessa atividade, no período compreendido entre maio e dezembro de 2020, a ré teve um volume de faturação de aproximadamente 18 mil euros. 24.–Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2020, teve um volume de faturação de, respetivamente, 26 mil euros, 14 mil e 800 euros e 10 mil euros. 25.–No ano de 2019, a ré teve um volume de faturação de aproximadamente 442 mil euros. A matéria acabada de descrever mostra que a R., por força da cessação da sua atividade deixou de ter quaisquer rendimentos e, nesse contexto, cessou os contratos de trabalho que a vinculavam aos seus trabalhadores. Acresce que a cessação do cumprimento do contrato que a vinculava à A. não lhe pode ser imputável: tinha um volume de faturação que ascendia aos 442 mil euros mas, com o quadro pandémico, mercê da ausência de rendimentos, cessou a atividade; de comum acordo com os seus trabalhadores, fez cessar os contratos de trabalho; apesar de ter retomado a atividade meses mais tarde, fê-lo de forma completamente diferente, e referente a valores de faturação consideravelmente inferiores (pontos 20, 23 a 25 dos factos). Avançando no exercício de aferir se no caso concreto foram afetadas as representações das partes sobre as bases do negócio, sempre se dirá que a resposta não pode deixar de ser positiva. Com efeito, é intuitivo afirmar que a base do negócio é constituída pelas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Naturalmente que, de um modo geral, essas circunstâncias poderão não resultar evidentes do texto contratual e das circunstâncias dadas como provadas. Portanto, como acima dito, essa é uma dedução que tem de ser feita pelo intérprete, ao procurar determinar se as partes, ao contratarem, tivessem tido conhecimento dessas circunstâncias, ainda assim, o teriam feito e nos mesmos termos. No presente caso, afigura-se-nos que não há margem para dúvida razoável: caso a R. tivesse previsto o desenvolvimento da crise pandémica não teria adquirido um novo equipamento que supunha a manutenção ou mesmo aumento da clientela, no domínio da sua laboração (restauração), área diretamente ligada ao setor do turismo de que depende, em boa medida, também a restauração e que foi um dos setores mais causticados com a pandemia e as consequentes restrições determinadas por via institucional. Nesse âmbito, afigura-se-nos que a A. não podia razoavelmente ignorar estas circunstâncias. Com efeito, os dados relativos à R. foram-lhe fornecidos aquando do contrato, de outro modo não se teria consignado ser a A. responsável pelo seu tratamento (fls. 46). Como se disse, no contexto assinalado, a R. cessou a atividade, chegando ao ponto de fazer cessar consensualmente os contratos de trabalho com os seus trabalhadores, não lhe tendo sido possível aceder à modalidade de take away (factos n.ºs 17 e 20), nunca mais tendo reaberto o restaurante (facto 18). Deste modo, pensamos poder responder negativamente à questão de saber se as partes tivessem tido conhecimento das circunstâncias que vieram perturbar o contexto que determinou a aquisição da máquina teriam celebrado o negócio. Perante a ocorrência de tal modificação anormal de circunstâncias, de modo algum podendo ser imputadas à R., passíveis, como se viu, de atingirem a base do negócio, importa agora verificar se se verificam os demais requisitos que a lei exige no plano normativo. Antes de mais, o citado dispositivo aponta no sentido de que “as exigências das obrigações assumidas pela R. afetam gravemente o princípio da boa fé”. E isso ocorre no presente caso em que a gravidade não pode ser quantitativamente aferível mas em função de todas as circunstâncias provadas. A A. sustenta que o não cumprimento do contrato em causa (de execução continuada – com pagamento a prestações mensais, ao longo de 60 meses) lhe acarreta prejuízos superiores àqueles que seriam suportados pela R. no caso de cumprimento. Sucede que a A., por um lado, já obteve o pagamento do valor das rendas devidas, na vigência do contrato (embora diminuta em função da duração prevista), sendo ainda devido o valor em que a R. foi condenada na decisão recorrida na parte em que, por não ter sido objeto de recurso já transitou em julgado. Acontece que lhe é devida a entrega do bem, se é que ainda não ocorreu. De facto, nenhuma prova se fez de que a A. não possa aceder à sua máquina. Acresce que as exigências das obrigações assumidas pela R. afetam gravemente o princípio da boa fé, na medida em que esta, por ausência de recursos, fez cessar os contratos de trabalho que tinha com os seus trabalhadores e cessou mesmo atividade, não tendo o restaurante continuado a funcionar no sistema designado por "take away", por não conseguir servir os pratos da sua ementa dessa forma. Verificamos assim, que a situação da R. era de tal ordem que, na prática, o cumprimento das suas obrigações sofreu drásticas mudanças devido à situação económica acima descrita. Sintetizando: ao balancear as posições das partes, dir-se-á que, à luz da matéria de facto provada, não se vislumbra o alegado maior prejuízo para a A. decorrente da cessação das exigências do contrato. Neste âmbito, a A., além de ter recebido as rendas relativas ao período de vigência do contrato incluindo o valor que lhe foi reconhecida pela primeira instância, pode obter a entrega da máquina, se é que o não fez já. Por isso, é patente que as exigências do cumprimento do contrato - no quadro descrito da perturbação do programa do contrato, nomeadamente em termos das drásticas consequências devido à pandemia -, trariam para a R. consequências muito mais gravosas do que as que resultariam para a A.. A questão que se pode colocar e que a A. coloca a este mesmo propósito é a da dificuldade do aluguer da máquina. Porém, essa é uma questão que assume pertinência, mas a nosso ver, apenas no contexto dos riscos do contrato de que mais adiante nos ocuparemos. Com efeito, saber se a máquina é fácil ou difícil de alugar é questão que tem fundamentalmente cabimento na questão dos riscos do negócio da própria A. que não pode entrar em linha de conta na ponderação do desequilíbrio das prestações entre as partes no contrato discutido. Cotejando os pontos n.ºs 25 e 19 e seguintes dos factos, verifica-se que a modificação do quadro de laboração da R. em cujo contexto foi adquirida a máquina em causa e a ausência de sentido da aquisição do mesmo bem perante a cessação de atividade, aquando da declaração do Estado de Emergência, ou mesmo depois do seu levantamento, quando a R. retomou a atividade mas de forma incomparável, se tivermos em consideração o volume de faturação que resulta dos pontos 24 e 25, por um lado e o ponto 23, por outro. Flui com meridiana clareza que a decisão de contratar por parte da R. se baseou numa capacidade financeira que decaiu a pique, com paralelo na diminuição drástica do número de turistas, a que a sua área de laboração, a restauração, foi/é extremamente vulnerável. Portanto, o “sentido e o resultado” da decisão de contratar foi profundamente alterado (número de clientes e potenciais clientes, medidas restritivas em consequência da Declaração do Estado de Emergência; reflexos na laboração e no quadro de pessoal da R. e, naturalmente, na quebra acentuada no volume da faturação)[5]. Ora, exigir à R. o pagamento da quantia reclamada, seria partir de um princípio de que nada se tinha passado de profundamente perturbador no funcionamento das estruturas económicas e sócio jurídicas da sociedade. Corresponderia a uma espécie de imunidade das partes ao desequilíbrio geral sofrido por toda a sociedade face à pandemia e às medidas restritivas, nomeadamente em sede de circulação de pessoas que a mesma provocou. Exigir, em pleno, o cumprimento do contrato, à R., que sofreu as consequências devastadoras acima relatadas, do nosso ponto de vista, seria totalmente inaceitável face ao princípio da boa fé, plasmado entre outros no artigo 762º do CC[6]. Portanto, fazer cessar a exigência do cumprimento do contrato por acionamento do artigo 437/1 CC, integra-se perfeitamente no desígnio legal de equilíbrio das prestações acordadas, na perspetiva do princípio da boa boa-fé, à luz do mesmo preceito. Cumpre agora aferir se as exigências de cumprimento do contrato no assinalado quadro tão alterado das circunstâncias, não estão cobertas pelos riscos do contrato na perspetiva da R.. A A. e a R. firmaram uma cedência temporária e onerosa do gozo de um bem. A R., à luz do contrato dos autos tem a qualidade de mera locadora e não de adquirente do bem à fornecedora, face ao contrato de aluguer referenciado no ponto 2 da matéria de facto, junto a fls. 46. Isso mesmo resulta da matéria de facto, em consonância, aliás com os termos contratuais que expressamente preveem que a R. não adquiriu a qualidade de proprietária da máquina em causa (cláusula 4.5 do contrato). Resulta também do contrato dos autos que as partes submeteram a disciplina do contrato aos artigos 1022º e seguintes do CC, os quais regulam a locação. Portanto, a R. era uma mera possuidora em nome alheio e, enquanto teve ao seu dispor a máquina com utilização prática num quadro de normalidade, naturalmente que teria de responder pela sua utilização pela qual entregava as rendas como contrapartida. Sucede que a situação de perturbação contratual só ocorreu no contexto da situação pandémica (nº 9 dos factos).Nesta conformidade não nos parece fazer qualquer sentido a alegação de que a R. estava em mora (artigo 807/1 CC) e como tal não poderia beneficiar do regime da invocada alteração das circunstâncias, face ao mecanismo da inversão do risco. Com efeito, estando a inexigibilidade de cumprimento associada à pandemia, naturalmente que não se pode configurar uma situação de inversão do risco, visto que a razão da perturbação do contrato coincidiu justamente com as implicações da crise pandémica. Valendo-nos da disciplina legal do contrato de locação, está expressamente previsto um ajuste ao clausulado, mediante as condições previstas no artigo 1040º do CC, sob a epígrafe redução da renda ou aluguer. Portanto, a própria lei prevê uma incidência de risco diminuída sobre o locador, verificadas determinadas circunstâncias. No entanto, mercê das concretas circunstâncias descritas não se nos coloca a questão da modificabilidade do contrato: trata-se de um contrato de aluguer, com pagamento mensal de rendas e em relação ao qual estava expressamente afastada a aquisição da propriedade pela locatária e o contrato estava ainda numa fase inicial do seu cumprimento, não se divisando qualquer facto que justificasse uma modificação com base na equidade. Sucede que, no presente caso, temos ainda uma razão acrescida para constatar que se trata de um caso em que o risco do contrato incidia sobre a A., face ao princípio de que o risco de danos nas coisas corpóreas corre por conta dos titulares de direitos reais sobre elas (artigo 796/ºCC)[7]. Deste modo, deve entender-se que o risco corre por conta da A., proprietária da máquina. Por todo o exposto, não resta senão confirmar, pelas razões expostas, a decisão recorrida. III.–Decisão Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela apelante. LISBOA,23/11/2021 AMÉLIA ALVES RIBEIRO ANA RESENDE DINA MONTEIRO [1]Ac TRC de 31-01-2006, relatado pelo Exmº Desembargador Cura Mariano. [2]MENEZES CORDEIRO, António, da Alteração das Circunstâncias: a caraterização do artigo 437º do Código Civil, à luz da Jurisprudência posterior a 1974, Separata dos Estudos em memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lisboa, AAFDL, 1987, p. 71. [3]Fontes da Costa, Mariana, Covid-19 e alteração superveniente das circunstâncias file:///D:/Artigo%20Covid%2019%20e%20altera%C3%A7%C3%A3o%20das%20circunst%C3%A2ncias%20ROA%20(1).pdf (consultado em 12.11.2021). [4]Pinto de Oliveira, Nuno, “Alteração das circunstâncias, 55 anos depois”, Revista Julgar, nº 44 , 2021, p. 165. [5]VAZ SERRA, em anotação ao Ac. do S.T.J. de 10-1-1980, na R.L.J., Ano 113, pág. 378, ALMEIDA COSTA, em “Direito das obrigações”, pág. 298, da 8ª ed., da Livraria Almedina, MENEZES CORDEIRO, em “Da boa fé no direito civil”, vol. II, pág. 1106, da ed. de 1984, da Livraria Almedina, MENEZES LEITÃO, em “Direito das obrigações”, vol. II, pág. 131, da ed. de 2002, da Livraria Almedina, GALVÃO TELLES, em “Manual dos contratos em geral”, pág. 344, da 4ª ed., da Livraria Almedina, ANTUNES VARELA e HENRIQUE MESQUITA, em parecer publicado na C.J., Ano VII, tomo 2, pág. 10, PAIS DE VASCONCELOS, em “Teoria geral do direito civil”, vol. II, pág. 246-247, da ed. de 2002, da Livraria Almedina, DURVAL FERREIRA, em “Erro negocial…e alteração de circunstâncias”, pág. 93-94, da 2ª ed., da Livraria Almedina, e os seguintes Acórdãos: Ac. do S.T.J., de 18-5-1993, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano I, tomo 2, pág. 109, relatado por PAIS DE SOUSA. Ac. do S.T.J., de 11-3-1997, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano V, tomo 1, pág. 150, relatado por SILVA PAIXÃO), apud Ac. TRC indicado. [6]MENEZES CORDEIRO, em Da boa fé no direito civil, vol. II, Coimbra, Almedina, 1984, pág. 1113-1114. Vd. Ac. RÉ. 28-5-1986, na C.J., Ano XI, tomo 3, pág. 253, relatado pelo Exmº Desembargador Gusmão de Medeiros. [7]MENEZES CORDEIRO, António, da Alteração de Circunstâncias, Separata dos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha, Lisboa, A.A.F.D.L., 1987, p. 40. |