Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
150/23.5PFAMD.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO
CONSUMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - Se o Arguido iria consumir parte da cocaína apreendida mas, não a destinava toda para esse efeito, daqui se retira que detinha a restante parte para efeito diverso.
Não estamos perante um facto novo, diverso, distinto do imputado.
II - Chegando o Tribunal à conclusão que parte da droga se destinava ao consumo do Arguido, mas não a totalidade, o facto provado deverá ser formulado pela positiva.
III - Os factos provados não incluem qualquer acto de venda da droga nem aludem a qualquer actividade que propicie o ganho dos €60,00 apreendidos. Sem relacionar o dinheiro com a prática criminosa, não há fundamento para a declaração de perda a favor do Estado.
IV - O acondicionamento da droga é um indicativo óbvio do seu destino Quanto menor for a quantidade de droga por embalagem, mais próximo da base da cadeia de traficância se encontrará o traficante
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal da Amadora – J3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«De todo o exposto, o Tribunal julga a acusação totalmente procedente, por provada, e consequentemente, decide:
i. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), por referência ao artigo 21º, nº 1, ambos do DecretoLei 15/93, de 22 de janeiro, considerando a tabela I-C anexa, na pena de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão;
ii. Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (artigos 374º, nº 5, 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do CPP e 3º e 8º, nº 7 do RCP);
iii. Declarar perdido a favor do Estado todo o produto estupefaciente apreendido (artigo 35º, nº 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro);
iv. Ordenar, após trânsito em julgado, a destruição do produto estupefaciente apreendido (artigo 62º, nº 6, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro);
v. Declarar perdido a favor do Estado o dinheiro apreendido (artigos 109º e 110º, do CP). * (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões:
« I. Desde logo, por, no seu modesto entender, considerar que a sentença recorrida é nula, nos termos da al. b) do nº 1 do artº 379º do C.P.P., por haver condenado o recorrente por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e condições previstas no artº 358º do mesmo diploma legal, relativamente à matéria constante do facto provado na sentença em crise sob o nº 2.
II. Verifica-se também insuficiência da matéria de facto provada para a decisão [artº 410º, nº 2, al. a) do C.P.P.] de declarar perdida a favor do Estado a importância de € 60,00 que foi apreendido ao recorrente no momento da sua detenção;
III. Por último, sem prescindir do que deixou dito, por entender que o tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência, mostrando-se erradamente jugado o facto provado sob o nº 2;
a) Com efeito, a sentença é nula, nos termos da al. b) do nº 1 do artº 379º do C.P.P.., por haver condenado a recorrente por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições previstas no artº 358º do mesmo diploma legal;
b) assim sucedeu relativamente à matéria dada como assente sob o nº 2, mormente quanto à circunstância aí fixada do estupefaciente detido nãos ser para consumo exclusivo do recorrente;
c) Tais factos não constavam da acusação, não tendo o recorrente tido qualquer oportunidade de se defender dos mesmos, pois nem eles lhe foram comunicados a coberto do disposto no artº 358º ou 359º do C.P.P.
d) Circunstância que é geradora de nulidade da sentença nos termos da al. b) do nº 1 do artº 379º do mesmo diploma legal, o que aqui se argui, para os devidos e legais efeitos.
e) Por outro lado, há insuficiência da matéria de facto provada para a decisão [artº 410º, nº 2, al. a) do C.P.P.] de declarar perdida a favor do Estado a importância de € 60,00 que foi apreendido ao recorrente no momento da sua detenção;
f) A verdade é que da matéria de facto dada como provada não resulta de nenhuma forma assente qualquer facto que possa ser subsumido ao estatuído nas nos artigos 109º e 110º do C.P.;
g) Em face disso, impunha-se que o tribunal a quo ordenasse a devolução da quantia em questão ao recorrente, justamente por não ter sido possível apurar qualquer proveniência ilícita da mesma;
h) Por último, sem prescindir do que deixou dito, o recorrente entende que o tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência, mostrando-se erradamente jugado o facto provado sob o nº 2.
i) Com efeito, o arguido vinha acusado de destinar o produto que detinha à venda a consumidores;
j) Julgada a causa o tribunal a quo, considerou tal facto Não Provado;
k) Outrossim, deu como assente a matéria de facto constante dos pontos 12, 13 e, bem assim, 1 e 2.
l) Independentemente da nulidade da sentença supra invocada a propósito do facto provado em 2, e sem prejuízo dela, impõe-se referir que da prova constante dos autos e da que foi produzida oralmente em julgamento, designadamente dos segmentos transcritos no corpo da presente motivação e do anexo à mesma, impõe alteração da resposta dada ao facto provado sob o nº 2;
m) Devendo, no seu lugar, dar-se como assente que
- o estupefaciente referido em 1 dos factos provados pertencia, em partes iguais ainda por dividir, ao arguido e aos quatro ocupantes da viatura que o acompanhavam; e
- o arguido destinava a sua quota parte ainda indivisa exclusivamente ao seu consumo próprio.
n) Com a consequente absolvição do arguido e o seu encaminhamento para a comissão para a dissuasão da toxicodependência, como bem resulta do disposto no nº 4 do artº 40º da Lei 15/23, de 22.01., na redacção dada pela Lei 55/2023, de 8 de Setembro.
Com efeito, assim deve ser porquanto a melhor apreciação da prova dos autos e da produzida oralmente em audiência vai no sentido de que:
o) todos os ocupantes da viatura em que o arguido se fazia transportar no dia em que foi detido se deslocaram juntos, minutos antes da detenção deste por isso mesmo, para obterem o estupefaciente encontrado na posse dele;
p) o trajecto entre o local onde adquiriram o estupefaciente e o local da detenção do arguido foi feito sem paragens;
q) o estupefaciente apreendido ao arguido acabara de ser adquirido por todos os ocupantes da viatura em que o recorrente se fazia transportar e que se destinava ao consumo de cada um deles;
r) o arguido informou logo os elementos da P.S.P. que o detiveram de que aquele estupefaciente pertencia a todos, concretamente aos ocupantes da viatura donde acabara de sair para efectuar o pré-pagamento do combustível a abastecer na mesma;
s) apesar dos demais ocupantes da viatura se encontrarem ali mesmo, sob a alçada dos elementos da P.S.P. fardados que deram apoio à acção dos elementos à civil que detiveram o arguido, nada mais foi feito relativamente a eles além de uma revista sumária, não tendo sido identificados, levados para a esquadra, ou confrontados com o relato do arguido;
t) que a cocaína encontrada na posse do arguido se encontrava em pó e era formada por uma bola indivisa;
u) A verdade é que o produto estupefaciente aprendido na posse do recorrente, transportado fugazmente por ele em formato de bola, indiviso, pertencente a todos os que o acompanhavam e que todos destinavam ao respectivo consumo, permite concluir que o arguido não pretendeu possuir qualquer quantidade de estupefaciente que não fosse exclusivamente para o seu consumo, no entanto a posse da totalidade do estupefaciente apreendido tornou-se uma inevitabilidade em face das circunstâncias, do que não se pode eximir pelas as razões apontadas.
v) Por isso mesmo a posse dessa quota parte indivisa destinada ao consumo dos outros quatro ocupantes da viatura que o acompanhavam não deve relevar do ponto de vista penal para concluir pela ilicitude da posse da mesma por parte do recorrente;
w) Vista a excepcionalidade das circunstâncias, a posse dessa parte indivisa não destinada ao consumo pessoal do arguido deve ser desconsiderada na formação da convicção íntima;
x) Devendo, como deixou dito, ser alterada a resposta dada ao facto provado sob o nº 2 e em seu lugar fixar-se como assente os factos referidos na conclusão m) supra.
y) Tal é o que resulta de uma correcta apreciação dos elementos dos autos, da prova oralmente produzida em audiência a que se faz referência no corpo da presente motivação e que se encontra transcrita no anexo que segue junto, e, bem assim, da melhor interpretação dos artºs. 25º e 40º do D.L. 15/93, de 22.01, coisa que o douto Tribunal a quo não fez.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
« 1. Alega o recorrente que a sentença é nula por ter sido condenado por factos diversos dos constantes da acusação, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal, em violação do artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal;
2. Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o “thema decidendum”, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento;
3. A alteração não substancial dos factos, representando embora uma modificação dos “factos” que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
4. Salvo o devido respeito por opinião contrária, existe identidade naturalística entre os factos que constavam da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida;
5. A diferença de factualidade na sentença recorrida, relativamente à acusação está apenas numa melhor explicitação ou pormenorização dos factos que, tendo por base o que constava da acusação, foram dados como provados da comparação entre os supra referidos factos da acusação com os factos dados como provados, constata-se que:
- o facto dado como provado representa um “minus” em relação aos da acusação (caso do acusado facto 2º e o dado como provado facto 2); e
- o facto dado como provado comparado com o acusado facto 2 apenas deve ser visto, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que resultou da prova produzida em julgamento e que apontam no sentido que o arguido não destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido exclusivamente para o seu consumo;
6. Quanto a esta questão tem interesse trazer à colação o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23.05.2012 (in www.dgsi.pt, relator Jorge Jacob) quando a dado passo refere: “ Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. A bitola para se aferir da relevância da alteração fáctica será sempre a identidade do objecto do processo e o fair trial pressuposto por um processo penal justo, que não são afectados quando nada de novo se acrescenta à descrição da acção típica.”;
7. Considerou o Acórdão da Relação do Porto, de 23.11.2022, disponível em www.dgsi.pt que: “I - Não constitui alteração, substancial ou não substancial, dos factos descritos na acusação, para o efeito da aplicação dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal a melhor concretização ou explicitação desses factos. II - Não constitui alteração, substancial ou não substancial, dos factos descritos na acusação, para o efeito da aplicação dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal a descrição que representa um minus em relação a esses factos”:
8. Porque nenhuma das divergências assinaladas pelo recorrente se enquadra no âmbito no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, não era exigível, nem se justificaria por parte do Tribunal recorrido qualquer comunicação de tal alteração pretendida pelo arguido, aqui recorrente;
9. Na verdade, para além de as alterações terem resultado, em parte, das declarações do próprio arguido em audiência de julgamento, com os depoimentos valorados e considerados na formação da convicção do tribunal, e bem assim com a prova documental e pericial constante dos autos, o que desde logo dispensava a pretendida comunicação, conforme resulta expressamente do n.º 2 do artigo 358º do CPP, elas não modificaram a posição processual do recorrente quanto à essência dos factos que lhes eram imputados na acusação, salvo na medida em que se traduziram num claro benefício para o mesmo, sem postergação das respetivas garantias de defesa;
10. Não havendo, in casu, factualidade nova relevante capaz de surpreender a defesa, não haveria, pois, o Tribunal de primeira instância de fazer qualquer comunicação ínsita no artigo 358º do CPP, devendo, assim, improceder a arguição de nulidade nos termos expostos;
11. Alega o recorrente que a matéria de facto provada é absolutamente insuficiente para a decisão de declarar perdida a favor do Estado a importância de €60,00, que lhe foi apreendida no momento da sua detenção porquanto não resultou “de nenhuma forma assente qualquer facto que possa ser subsumido ao estatuído nos artigos 109.º e 110.º do CP”;
12. Afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente na medida em que da matéria de facto provada não resulta qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, resultante do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum;
13. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P., significa que “… os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.” (Ac. do STJ de 9/02/2005, disponível in www.dgsi.pt);
14. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P., não se confunde com a insuficiência da prova. Só existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto Esta constitui a posição uniformemente tomada pelo S.T.J. em múltiplos acórdãos, de entre os quais, pela sua pertinência, citamos o seguinte: “Se o Recorrente pretende contrapor a convicção que alcançou sobre os factos com aqueloutra que o Colectivo teve sobre os mesmos livremente e segundo as regras da experiência No caso em apreciação, salvo o devido respeito, não se vislumbra, de uma leitura integral do texto da decisão recorrida, a carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de Direito, sobre a mesma.
15. Cremos que do texto da decisão recorrida flui, com evidente clareza, que o Tribunal a quo deu como provados os factos relevantes para a decisão justa da causa, constando da mesma, expressamente, todos os factos relevantes à prolação de uma decisão justa;
16. Conforme decorre da sentença recorrida foi encontrado na posse do arguido dinheiro, o qual se encontrava escondido dentro da roupa interior, sendo revelador que o queria ocultar;
17. Por outro lado, considerando que foi dado como provado que o arguido não destinava a substância estupefaciente apreendida ao seu consumo exclusivo, o valor das notas apreendidas é compatível com o valor de mercado daquela e demonstrativo que é produto de actos de venda a terceiros;
18. Em face do exposto, entendemos que do texto da decisão recorrida não resulta o invocado vício da previsão do artigo 410.º2, al. a), do Código de Processo Penal, não nos merecendo, por isso, censura;
19. Alega o arguido, aqui recorrente que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência de julgamento, mostrando-se erradamente julgado o facto provado sob o ponto 2;
20. Considera que face à prova produzida devia o Tribunal recorrido dar como assente que o estupefaciente referido em 1 dos factos provados pertencia, em partes iguais ainda por dividir, ao arguido e aos quatro ocupantes da viatura que o acompanhavam e que o arguido destinava a sua quota parte ainda indivisa exclusivamente ao seu consumo próprio;
21. O erro na apreciação da prova é aquele que se mostra ostensivo, de tal modo chocante que não passa desapercebido ao comum dos observadores, ou seja, aquele erro de que o cidadão médio dele facilmente se dá conta. Existe esse erro notório quando se dá como provado um facto que claramente não pode ter existido e que é perceptível a qualquer cidadão,
22. Da leitura de toda a matéria de facto provada e da sua fundamentação, não conseguimos vislumbrar a existência de qualquer erro, tendo os factos considerados provados pelo Tribunal a quo resultado de uma correcta apreciação e valoração crítica do conjunto da prova, designadamente a produzida em audiência, concatenada com a prova documental constante dos autos;
23. Não existe qualquer contradição entre os factos dados como assentes e estes mostram-se devidamente fundamentados, não se vislumbrando qualquer vício na formação da convicção do julgador;
24. Afigura-se-nos, ainda, que a matéria de facto dada como provada na sentença reproduz, com fidelidade, o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento –prova testemunha e documental - estando devidamente fundamentada a convicção do julgador, em termos que subscrevemos inteiramente;
25. Na verdade, o que é preponderante, na nossa perspectiva, é que tendo em consideração que na apreciação da prova, o Tribunal partindo das regras de experiência é livre de formar a sua convicção, de acordo com a regra consagrada no art. 127º do Código de Processo Penal;
26. Numa leitura, minimamente atenta da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação de facto e a indicação das provas, não se vislumbra que ao assentar os factos provados (e os não provados) o julgador tivesse cometido qualquer erro de julgamento;
27. Pelo contrário, verifica-se ter a sentença seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas;
28. Tendo a Mma. Juíz a quo, na Motivação da Decisão de Facto, feito alusão aos depoimentos, de forma bem fundamentada, sustentando a razão da sua valoração dos pontos da matéria de facto colocada em causa pelo recorrente, bem como relativamente à não valoração, cumprindo integralmente o dever de fundamentação que se impõe;
29. Com efeito, andou bem a Mma. Juiz a quo, “lendo” a prova de forma perspicaz e atenta, explicitando de forma bem clara as razões de ter ou não ter atribuído credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento; e
30. Encontra-se perfeitamente justificada a formação da convicção do julgador sobre os elementos da prova em apreço, em termos lógicos e de razoabilidade, em plena consagração do Princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, bem como do princípio da imediação, que encontram a sua plena aplicação aquando da apreciação da prova testemunhal. »
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer aderindo à resposta ao recurso apresentada na 1.ª instância, acrescentando, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativa ao facto provado 2, que a decisão do Tribunal a quo, fundada na sua livre convicção, conformada pelas regras da experiência, que mais não são do que o normal suceder, se configura como uma solução plausível.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- eventual nulidade da sentença (artigo 379.º/1 al. b) do Código de Processo Penal);
- eventual insuficiência para a decisão da matéria de facto provada para declarar perdida a favor do Estado a quantia monetária apreendida (artigo 410.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal);
- eventual erro na apreciação da prova e impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
« 1. No dia 28-01-2023, cerca das 17:00 horas, na ... o arguido detinha na sua posse um pacote contendo, no seu interior, cocaína, com o peso líquido de 24,756 gramas, com um grau de pureza de 73,6%, a que correspondem 91 doses individuais, bem como a quantia de € 60,00.
2. O arguido não destinava tal produto ao seu consumo exclusivo.
3. Com a conduta descrita, atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a detenção de tais produtos nas circunstâncias relatadas é proibida por lei e criminalmente punida.
4. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
5. Oriundo de ..., AA fixou-se, pela primeira vez, em ..., em 2009 (com 22 anos de idade).
6. Regressou a ... em 2014, na sequência de processo de expulsão do território português.
7. Possui o 6º ano de escolaridade.
8. Retornou a ... em 2019, iniciando as diligências necessárias para regularizar a sua situação no território português, renovando o passaporte.
9. Até outubro de 2020, em momento anterior a cumprimento de medida de coação de OPHVE, o arguido trabalhava na área da ….
10. A 18 de março de 2022, retomou o seu trabalho, vindo a firmar um contrato de trabalho com a empresa ..., na categoria de servente, na qual auferia €822,42, quantia paga faseadamente a cada fim de semana.
11. Obteve autorização de residência, em fevereiro de 2023, perspetivando a continuidade do projeto de vida familiar em ....
12. Iniciou o consumo aditivo, mormente, de cocaína, já na idade adulta, na sua terra natal, em contexto de festas com amigos, que envolviam álcool.
13. Fundamenta a manutenção desses hábitos, enquanto prática socialmente aceite pelo seu contexto sociocomunitário e cultural.
14. Foi despedido em julho de 2023, encontrando-se, desde aí, inscrito no ..., recebendo €552,00 de subsídio de desemprego.
15. Além disso, realiza alguns trabalhos irregulares, pelos quais aufere a quantia de €35,00 diários.
16. Atualmente, vive com a sua mãe, a sua companheira e dois filhos, com três e sete anos, em casa arrendada, sendo a renda de €106,00.
17. À data dos factos, o arguido trabalhava na empresa mencionada em 10.
18. O arguido tem averbado ao seu CRC as seguintes condenações:
i. No âmbito do proc. nº 13/14.5PESTB, por decisão transitada em julgado em 21.02.2020, pela prática em 05.03.2014, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-A e I-B anexas a tal diploma, na pena de 1 ano e 6 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período, já declarada extinta.
ii. No âmbito do proc. nº 5/20.5PESTB, por decisão transitada em julgado em 16.09.2021, pela prática em 29.01.2020, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-A e I-B anexas a tal diploma, na pena de 3 anos e 6 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período. »
Como facto não provado apenas se consta da sentença que «Não se provou que o arguido destinasse o produto referido em 1 à venda a consumidores.»
FUNDAMENTAÇÃO
- da nulidade da sentença (artigo 379.º/1 al. b) do Código de Processo Penal);
Nos termos do art.º 379.º/1 al. b) do Código de Processo Penal, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, excepto nos casos em que tenha ocorrido uma alteração substancial ou não substancial dos factos, nos termos do mesmo código.
Entende o Recorrente que a sentença recorrida o condenou por factos diversos dos descritos na acusação apontando a matéria constante do facto provado nº 2, ou seja que «O arguido não destinava tal produto ao seu consumo exclusivo».
Para cabal compreensão do vício sugerido, impõe-se olhar para os termos da acusação deduzida pelo Ministério Público. Da mesma resultam imputados ao Arguido os seguintes factos:
«1º - No dia 28-01-2023, cerca das 17:00 horas, na ... o arguido detinha na sua posse um pacote contendo no seu interior cocaína, com o peso líquido de 24,756 gramas, com um grau de pureza de 73,6%, a que correspondem 91 doses individuais, bem como a quantia de € 60,00.
2º - O arguido destinava tais produtos à venda a consumidores.
3º - Com a conduta descrita, actuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a detenção ou a venda de tais produtos nas circunstâncias relatadas é proibida por lei e criminalmente punida.
4º - Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
Confrontado o teor da acusação com o resultado do julgamento expresso na sentença, importa saber se a realidade factual é divergente entre uma e outra de forma a poder justificar que ocorreu uma condenação por factos distintos dos imputados.
O que implica a afirmação do artigo segundo da acusação? Que o Arguido iria entregar a cocaína a terceiros, recebendo dinheiro em troca.
O que implica o facto provado número 2? Que o Arguido iria consumir parte da cocaína apreendida mas, não a destinava toda para esse efeito.
Consequentemente, retira-se daqui, detinha a restante parte sem ser para efeitos de a consumir.
Não é, por isso, um facto novo, diverso, distinto do imputado. Caiu a prova da actividade de venda. Manteve-se a posse, desde logo imputada no artigo primeiro e provada no facto 1. O que consta do facto provado 2 é que parte da cocaína apreendida destinar-se-ia ao seu consumo.
Apenas um reparo se faz, quanto à redação deste facto, e que se reporta à sua formulação pela negativa. Repete-se a evidência de que ficou demonstrada a posse da cocaína pelo Arguido.
Não se provando o destino “venda”, conforme vinha na acusação, é correcta a colocação desse facto no capítulo dos “factos não provados”.
Chegando o Tribunal à conclusão que parte da droga se destinava ao consumo do Arguido, mas não a totalidade, conforme fundamentou na competente parte da sentença, o facto provado deveria ser formulado pela positiva, e não pela negativa. O teor negativo daquela afirmação passará a ser uma conclusão óbvia da primeira premissa. Ou seja, o Arguido destina parte da droga para seu consumo. Logo, a outra parte não terá esse destino. Qual a intenção do Arguido quanto a essa parte da cocaína? Não se provou, não foi apurado, apenas ficando claro que não seria o fim imputado na acusação, a venda.
Não estamos, por isso, no âmbito de um «crime diverso», nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1.º, n.º 1, al. f), e 359.º, ambos do Código de Processo Penal, porque não se passou a ter uma realidade diversa, alterando-se algum dos elementos essenciais do tipo, mas mantendo a qualificação jurídica. O facto provado que determina o preenchimento do tipo já constava da acusação, apenas merecendo uma diminuição da intensidade, fruto da circunstância de não se provar a intenção de venda e de se provar que parte da droga seria destinada ao consumo do Arguido.
De igual modo, encontra-se afastada a figura da alteração não substancial de factos, posto que o destino de “consumo” emergiu das declarações do Arguido, ou seja, foi trazido à discussão pela própria defesa (art.º 358.º/2 do Código de Processo Penal).
Nessa medida, face ao exposto, e por entendermos responder com maior clareza à factualidade demonstrada em julgamento, decide-se alterar a redação do facto n.º 2 do elenco dos factos provados, passando o mesmo a ter a seguinte redação:
«2.O arguido destinava parte de tal produto ao seu consumo.»
- da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal);
Aponta o recorrente a inexistência de fundamento que justifique a declaração de perda a favor do Estado dos € 60,00 apreendidos. Nesta parte, fundamentou o Tribunal a decisão com os seguintes argumentos:
« Nos termos do artigo 35º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, (…).
Por sua vez, o artigo 36º, nº 1 do mesmo diploma refere (…).
Nestes autos, foram apreendidos o produto estupefaciente e a quantia monetária de €60,00 na posse do arguido.
Declara-se o produto estupefaciente, bem como a quantia monetária, perdidos a favor do Estado.»
Afigura-se ter razão o Recorrente. Por um lado, este trecho da decisão carece em absoluto de fundamentação, pois que o Tribunal se limita a referir os preceitos legais, sem com os mesmos fazer qualquer relação a partir dos factos provados.
Mas, ainda que se pretendesse colmatar tal falta de relação, depara-se o Tribunal com a absoluta falta de matéria de facto relevante para esse juízo. Os factos provados não incluem qualquer acto de venda da droga. Não aludem a qualquer actividade que propicie o ganho, pelo Recorrente dos €60,00. Aliás, na fundamentação da sentença encontramos mesmo uma referência ao dinheiro para concluir que não permite alcançar, pela da sua posse, uma actividade de venda de droga [«Além do mais, o valor facial das notas que foram apreendidas ao arguido é compatível com o valor de mercado do produto estupefaciente, o que indicia que poderá resultar de atos de venda de tal substância.
Porém, tais circunstâncias, ainda que conjugadas, não são aptas a criar no Tribunal uma certeza plena de que o arguido destinava aquele produto à sua venda a consumidores, pois tal não passaria de uma mera especulação. Com efeito, nenhum ato de venda ou cedência foi observado, por banda dos agentes da PSP, nem tampouco o arguido foi encontrado com algo que indiciasse essa destinação, mormente, objetos usualmente utilizados para a divisão do produto.»]
Assim, impõe-se julgar o recurso procedente nesta parte e, consequentemente, alterar a decisão em conformidade, revogando a declaração de perda a favor do Estado dos €60,00 apreendidos.
- da erro na apreciação da prova e impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
Pretende o Recorrente que se reconheça ter ocorrido um erro de julgamento de facto. No seu entender, o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência, mostrando-se erradamente julgado o facto provado sob o n.º 2. Com a nova redacção, agora firmada, tal facto assume a seguinte redacção: «O arguido destinava parte de tal produto ao seu consumo».
Vejamos, então.
Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de ........2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
- As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas e nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento.
- Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade pelo que só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
- Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»]
Por tudo isto, perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B].
Consequentemente, o recurso de impugnação ampla merece especiais imposições fixadas na lei, a saber, no art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Impõe-se, então, ao Recorrente que indique os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados bem como os meios de prova e respectiva interpretação, avaliação, que imponham decisão diversa daquela produzida em primeira instância.
Caso o Recorrente entenda existirem provas que devam ser renovadas terá que os indicar especificadamente e expor as razões que justifiquem que a dita renovação evitará o reenvio do processo tal como resulta do art.º 430.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio da indicação da prova produzida, caso tenha sido sujeita a gravação, exige-se ao Recorrente a referência ao que tiver sido consignado na acta, devendo o recorrente apontar as passagens das gravações em que fundamenta a sua pretensão recursiva. Não lhe bastará remeter para a totalidade de um ou de vários depoimentos, mas sim indicar as concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas no Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 412.º/4 e 6 do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012, in DR, 1.ª de 18.04 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Aqui chegados, cumpre expressar a conclusão que se impõe no que toca à impugnação ampla e sua apreciação. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção do julgador, desde que logre justifica-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. Alcançamos, então, a evidente conclusão de que o Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
Fundamentou o Tribunal a quo a sua decisão sobre a matéria de facto, com a seguinte argumentação:
«As circunstâncias de tempo e lugar, resultaram provadas dos depoimentos das testemunhas BB e CC, agentes da PSP que intercetaram o arguido, que se mostraram consentâneos com o teor do auto de notícia por detenção (fls. 3-4).
O relato feito pelos agentes demonstrou-se credível, porquanto estes depuseram de forma
isenta, escorreita e explicativa.
Note-se que a testemunha BB referiu que vislumbrou o arguido a atirar algo que tinha na sua mão – que posteriormente se veio a apurar ser uma embalagem de plástico contendo produto estupefaciente – para um canteiro que se encontrava perto de si, quando se apercebeu da presença policial.
A qualidade e a quantidade do produto estupefaciente resultam da prova pericial (fls. 60).
Mais resultou do depoimento da testemunha CC, que o dinheiro que foi apreendido ao arguido se encontrava na roupa interior do mesmo (pese embora não se recorde se foi este ou o seu outro colega que procedeu à revista do arguido nas instalações da PSP, mas afirma com toda a certeza a sua perceção sobre onde se encontrava a quantia monetária).
O arguido optou por prestar declarações em sede de julgamento, e, não obstante as mesmas se tenham revelado em alguns aspetos convergentes com o relatado pelas testemunhas, mormente no que toca ao circunstancialismo dos factos, apresentou uma versão alternativa à constante da acusação, explicando que um amigo lhe ofereceu a substância estupefaciente, e que tal não se destinava à venda, mas sim ao seu consumo e duns amigos que o acompanhavam, numa festa a que ia nesse dia.
Alega ainda que a quantia monetária com que foi encontrado era produto do seu trabalho, que lhe era pago à sexta-feira.
Apesar de a versão trazida pelo arguido ter sido, em parte, corroborada pelas testemunhas DD e EE, dois dos amigos com os quais se encontrava naquele dia, a mesma não resiste, quando confrontada com as regras da experiência comum.
Que o arguido será consumidor, considerando desde logo o teor do relatório social bem como as suas declarações, não suscita quaisquer dúvidas, mas daqui não resulta que o produto estupefaciente que lhe foi apreendido se destinasse, pelo menos exclusivamente, ao seu consumo.
De facto, em primeiro lugar, refira-se que só um esforço de ingenuidade, que contraria todas as regras da experiência comum nos faria aderir à tese do arguido, de que aquele produto lhe foi “oferecido” por um amigo, que, diga-se, por ele era conhecido como a pessoa que fornecia tal produto.
Ora, é do conhecimento geral que a cocaína é uma droga cara, pelo que seria de estranhar que alguém disponibilizasse tal quantidade daquele produto, sem ser a troco de uma contrapartida.
Aliás, se considerarmos o preço médio do grama de cocaína, que ronda os €60,00, rápido percebemos que isso implicaria que esta pessoa deixasse de obter um lucro de cerca de €1500.00. Não foi o que sucedeu, certamente.
Assim sendo, temos de concluir que o arguido, que à data dos factos auferia €822,42, não possuía uma fonte de rendimento que lhe permitisse adquirir tal quantidade de produto estupefaciente, para o seu consumo (desde logo, porque o preço que teria gasto naquela quantidade de produto é muito superior às quantias monetárias que dispõe mensalmente).
E, note-se, o seu ordenado era pago faseadamente a cada fim de semana e, se confrontarmos tal facto com as regras de experiência comum, rápido concluímos que o mesmo se destinava a acorrer a despesas imediatas, como contas, alimentação, até porque o arguido tem dois filhos, pelo que não se afigura possível que o mesmo guardasse o valor recebido a cada semana, de forma a chegar ao final do mês e ter para comprar aquela quantidade de droga, só para ir consumir numa festa.
Ponderando a tese do consumo partilhado aventada, tampouco se mostra compatível com as mais elementares regras da lógica que alguém (ainda que fossem amigos de longa data) confiasse em outrem ao ponto de permitir que o mesmo fosse buscar e ficasse na posse de produto estupefaciente, que nem sequer se encontrava dividido, para consumo de todos.
Como é que saberiam a que parte teriam direito? E quanto é que pagariam por tal produto? Até porque só conseguiriam perceber a quantidade precisa com recurso a uma balança de precisão.
Concede-se que parte do produto pudesse servir para essa finalidade, mas não se afigura plausível que aquela quantidade (correspondente a 91 doses diárias) se destinasse exclusivamente a tal, desde logo porque tal implicaria que cada um (sendo no total 5 amigos) consumisse numa festa – que duraria desde as 17h até à 0hh – cerca de 5 gramas de cocaína.
Acresce que as testemunhas DD e EE, amigos que acompanhavam o arguido e confirmam a existência da festa, não se mostraram credíveis, porquanto os seus depoimentos foram prestados de forma ambígua e imprecisa.
Realce-se o depoimento de EE, que adiantou que a droga que o amigo foi buscar era para o consumo de todos, mas questionado não soube responder quer o preço que pagaria por isso, nem se consumiria em média aquela quantidade, limitando-se a responder “depende”.
Ora, de acordo com a nova redação do artigo 40º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, operada pela Lei 55/2023, de 8 de setembro, no seu nº 3 estabelece uma presunção: «A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo».
Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de março.
Nos termos do mapa a que se refere esta norma, o limite quantitativo máximo da cocaína corresponde a 0,2gramas. Ora, a quantidade detida pelo arguido é muito superior ao limite diário legal.
Foi igualmente encontrado dinheiro, na posse do arguido – cfr. auto de apreensão (fls. 7), sendo certo que o facto de o ter escondido dentro da sua roupa interior é demonstrativo de que o queria ocultar.
Além do mais, o valor facial das notas que foram apreendidas ao arguido é compatível com o valor de mercado do produto estupefaciente, o que indicia que poderá resultar de atos de venda de tal substância.
Porém, tais circunstâncias, ainda que conjugadas, não são aptas a criar no Tribunal uma certeza plena de que o arguido destinava aquele produto à sua venda a consumidores, pois tal não passaria de uma mera especulação. Com efeito, nenhum ato de venda ou cedência foi observado, por banda dos agentes da PSP, nem tampouco o arguido foi encontrado com algo que indiciasse essa destinação, mormente, objetos usualmente utilizados para a divisão do produto.
De todo o modo, pelas razões supra indicadas, o Tribunal concluiu que o produto não se destinava exclusivamente ao consumo do arguido, assim se dando como provado o facto 2 e como não provado a destinação de venda.
A prova dos factos atinentes ao elemento subjetivo e à culpa resulta por dedução daqueles que ficaram demonstrados quanto ao elemento objetivo.
Considerando estes, facilmente se conclui que o arguido conhecia a natureza estupefaciente do produto que detinha, bem como a ilicitude da sua conduta, o que se indicia, desde logo, pela circunstância de o ter atirado para um canteiro, quando se apercebeu da presença de elementos policiais.
Por outro lado, o arguido não ignorava que a detenção de tal produto era proibida e punida por lei, pois tal é do conhecimento de qualquer pessoa medianamente formada.
Não obstante, decidiu agir do modo descrito.
Neste contexto, apenas se compreende a atuação do arguido como a exteriorização de uma vontade finalisticamente orientada à produção do consequente resultado delituoso.
Nada nos autos nos leva a concluir que, no momento da prática dos factos, o arguido era portador de qualquer incapacidade, que o impedisse de avaliar a ilicitude dos mesmos ou de se determinar de acordo com essa avaliação, tendo-se assim provado que agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Os factos relativos à sua situação socioeconómica, resultam da conjugação do teor do relatório social e das suas declarações.
O CRC, junto aos autos, permitiu uma análise aos antecedentes criminais do arguido.»
Como acima já mencionámos, foi o próprio Arguido a trazer aos autos a explicação de que parte da droga se destinava ao seu consumo. Apesar de não ter aderido à versão do Arguido quanto aos factos, o Tribunal decidiu conceder que parte do produto pudesse servir para consumo próprio, e até para partilha. Mas não que toda a droga se destinasse a esse fim.
Encontra-se este Tribunal limitado nos seus poderes de cognição aos termos do recurso e à fixação do seu objecto. Contudo, sem extravasar tal limite, sempre se dirá que o acondicionamento da droga é um indicativo óbvio do seu destino.
Ensina-nos a experiência que a cocaína se vende directamente ao consumidor em doses individuais (actualmente uma opção muito rara), em “quartas”, correspondendo sensivelmente a ¼ de grama, ou em embalagens de 1 grama.
Quanto maior for a quantidade, maior a probabilidade de ser melhor a qualidade, pois a cada operação de divisão é possível introduzir material de corte, reduzindo a qualidade do produto final. A cada operação de divisão corresponde, habitualmente, um degrau na cadeia de traficância. Quanto menor for a quantidade de droga por embalagem, mais próximo da base da cadeia de traficância se encontrará o traficante, sendo o elemento mais abaixo aquele que se expõe na rua vendendo directamente ao consumidor.
No tráfico de cocaína, o vendedor de rua não tem, usualmente, meios financeiros para adquirir grandes quantidades e proceder à sua divisão, antes se dedicando à actividade com a droga de outrem ou com quantidades pequenas.
Nos graus acima da cadeia de traficância encontram-se aqueles que, no recato das casas de recuo, dividem a droga em doses individuais ou “quartas”, sujeitos a menor exposição e risco; aqueles que transportam a droga dividida para a entregar aos vendedores; ou os que a transportam do degrau acima para a entregar aos “cortadores”, ou seja, àqueles que fazem a já mencionada divisão e subsequente acondicionamento.
Estamos, pois, perante uma criminalidade organizada, na qual cada peça tem a sua função e raramente há sobreposição de tarefas.
Por isso, na rua, não se vendem embalagens com quase 25 gramas de cocaína.
Por isso, dificilmente se admite que alguém comprou uma quantidade destas para ir consumir com amigos.
Bem sabemos que a cocaína, a “gulosa”, permite consumos elevados esporádicos, em contextos festivos. Mas, para isso, tem o consumidor que apresentar um cabedal financeiro evidente para suportar o encargo da compra de droga em grandes quantidades. A cocaína também é conhecida como a “droga dos ricos”, pois estes podem abrir os cordões à bolsa e desembolsar mais do que um ordenado médio para pagar droga que seja consumida numa única noite. Ora, quando o fazem, obviamente, não vão comprar a droga ao vendedor de rua, antes a adquirindo através de um fornecedor mais reservado e discreto que entregará quantidades maiores e não divididas individualmente.
Navegamos aí num nível distinto da cadeia de traficância, com maiores margens de lucro e menor risco, longe da exposição do vendedor de rua, que se arrisca por magras compensações que apenas lhe permitem ir sobrevivendo.
Serve isto para explicar que, tal como o Tribunal a quo, não se dá crédito à versão do Arguido, ainda que não se afaste a premissa, baseada nas suas declarações, de que alguma daquela cocaína se destinaria ao seu consumo. Mas o Arguido não tem suporte financeiro para sustentar uma noite de vício que se traduza no consumo, ainda que partilhado, de 25 gramas de cocaína.
É por isso que há prova dos factos, tal como descritos e devidamente fundamentado na decisão recorrida, e não se vislumbra a existência de qualquer erro na apreciação da prova no sentido pretendido pelo Arguido. A realidade apresentada permitiria mesmo concluir por uma conduta mais censurável do Arguido. Contudo, por não ser esse o objecto do recurso que temos entre mãos, nada há a decidir em conformidade com tal raciocínio.
Resta-nos, isso sim, validar a decisão de facto e, em conformidade, confirmar a condenação que se mostra bastante favorável ao Recorrente.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso parcialmente procedente por provado e, consequentemente:
a) alterar a redação do facto n.º 2 do elenco dos factos provados, passando o mesmo a ter a seguinte redação:
«2.O arguido destinava parte de tal produto ao seu consumo.»
b) revogar a declaração de perda a favor do Estado dos €60,00 apreendidos;
c) manter tudo o demais decidido.
Sem custas.

Lisboa, 21.05.2024
Rui Coelho
Sandra Oliveira Pinto
Ester Pacheco dos Santos