Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13157/14.4T2SNT.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RESIDÊNCIA
LOCAL DE TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENENÇA
Sumário: I–Em matéria de acidentes in itinere, o legislador vem entendendo por pertinente o aumento do alcance da tutela de protecção do trabalhador, ciente das múltiplas e complexas vicissitudes que pontuam o percurso entre a residência e o local de trabalho, e que podem envolver escadas, pátios, logradouros, passeios, sejam eles integrados na via pública, em espaços comuns ou próprios do trabalhador.
II–A actual norma que resulta do artigo 9º nº2 b) da Lei 98/2009 de 4 de Setembro (LAT) deve ser interpretada no sentido de abranger os acidentes ocorridos entre a porta da residência do trabalhador, que dá para o pátio da mesma, e o portão de acesso à via pública, seja aquela residência um prédio ou uma moradia unifamiliar.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


AAA instaurou a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma de processo especial emergente de acidente de trabalho, contra a BBB, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
a)-Os períodos de ITA, descontado o valor recebido pela Segurança Social, que à data da propositura da acção ascendia a 5.424,88€;
b)-A quantia de €1.058,25, a título de despesas medicamentosas, consultas, exames de diagnóstico e tratamento;
c)-A pensão devida pela IPP e eventual IPATH, a definir em sede de apenso de verificação e incapacidade.

Alega para tanto que, no dia 26 de Abril de 2016, pelas 7h30, preparava-se para se deslocar para o seu local de trabalho, quando, após fechar a porta da entrada da sua residência e descer os degraus de acesso ao logradouro, para se dirigir ao seu veículo, escorregou nos mesmos, tombando no logradouro, tendo de imediato sentido fortes dores na zona lombar.
Após se ter deslocado ao seu local de trabalho, e porque não conseguiu exercer a sua actividade profissional, dirigiu-se ao hospital da área, onde foi assistida.
Até 30-05-2014 foi assistida nos serviços da Ré.
A partir dessa data a Ré não mais se responsabilizou pela assistência médica à Autora por entender que o evento participado não é de caracterizar como acidente de trabalho.
Como consequência directa e necessária do acidente sofreu lesões que a incapacitaram temporária e permanentemente para o exercício da sua actividade profissional e teve despesas médicas e medicamentosas.
A Ré não pagou qualquer montante relativo a tais incapacidades nem com as despesas médicas e medicamentosas suportadas.
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Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando parcialmente os factos alegados pela Autora, e declarando, no essencial, não aceitar a caracterização do acidente como de trabalho.
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Foi proferido despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
Foram fixados os factos assentes e os que constituíram a base instrutória.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença julgou[1]a ação parcialmente procedente e, consequentemente:
ICondena-se a ré BBBB, S.A., a pagar à autora:
- a quantia de €1.620.81 (mil seiscentos e vinte euros e oitenta e um cêntimos) correspondente à indemnização por ITP;
- a quantia de €993,55 (novecentos e noventa e três euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de despesas médicas e medicamentosas;
-o capital de remição da pensão anual e vitalícia de €1.188,71 (mil cento e oitenta e oito euros e setenta e um cêntimos), devido desde 15-03-2015;
- a quantia de €8.637,42 (oito mil seiscentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos), correspondente à indemnização por ITA;
quantias estas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, até integral pagamento.
IIAbsolve-se a ré do demais contra si peticionado.
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Custas a cargo de autora e ré na proporção do respectivo decaimento, fixando-se 1/5 a cargo da autora e 4/5 a cargo da ré.
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A Ré, inconformada, interpôs recurso, concluindo, nas suas alegações, que
1.A douta Sentença proferida pela MM.ª Juiza do Tribunal “a quo”, ao concluir que o evento dos presentes autos deve ser considerado acidente de trabalho in itinere, viola o disposto no artigo 9º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
2.O evento ocorreu quando a Sinistrada se dirigia ao seu veículo e escorregou nos degraus de acesso ao logradouro.
3.A Sinistrada reside no r/c de uma moradia bi-familiar, enquanto no primeiro andar reside a sua irmã.
4.Os andares da moradia são totalmente independentes e têm acessos distintos, sendo o logradouro comum a ambas as residências.
5.O evento ocorreu em propriedade privada da Sinistrada, pelo que não pode ser considerado acidente de trabalho in intinere.
6.Dispunha o artigo 6º, n.º 2, alínea a) Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, que se considerava acidente de trabalho “o acidente ocorrido no trajecto de ida e regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior”.
7.Remetia aquela disposição legal para o disposto no artigo 6º, n.º 2 do Decreto-lei n.º 143/99, de 30 de Abril, onde podia ler-se que “Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º da lei estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho;”
8.No caso do trabalhador que reside numa moradia, o percurso apenas se inicia após ser transposta a porta de acesso à via pública.
9.A Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, no artigo 9º, n.º 2, veio alterar a extensão do conceito de acidente de trabalho, suprimindo a expressão “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública”.
10.O legislador não afastou, com esta alteração, a razão de ser da limitação patente no anterior artigo 6º, pelo que deve entender-se que o trajecto se inicia numa zona já fora do controle directo do trabalhador, por contraposição ao domínio exclusivo do proprietário, mantendo-se no todo o que se contemplava no referido artigo 6º da Lei n.º 100/97.
11.Dispõe a Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal n.º 1/2009-R, publicada em DR, 2ª série, n.º 16, 23.01.2009, que aprova a Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem, bem como as respectivas Condições Especiais, a adoptar pelos Seguradores, na sua cláusula 2ª, alínea b) ii) que é considerado acidente de trabalho “o acidente ocorrido normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador de ida e de regresso para e do local de trabalho, entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.”
12.Caso assim não se entenda, sem conceder, o conceito de acidente trabalho, tal como previsto no artigo 9º da Lei n.º 98/2009, comporta uma extensão altamente injusta, desvantajosa e desproporcionada para o empregador, pois, reduzindo ao absurdo o conceito, atendendo apenas ao critério temporal [“durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”] do trajecto [“entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho”], qualquer acidente ocorrido desde que o trabalhador acorde, independentemente do local, será considerado acidente de trabalho.
13.É, por conseguinte, impreterível atender aos critérios da ligação ao trabalho e da autoridade do empregador.
14.A Sinistrada ainda não se encontrava “ligada ao serviço que prestava ao empregador, nem aos actos subsequentes ligados à prestação laboral”.
15.A Sinistrada tão pouco se encontrava “sujeita à autoridade patronal, elemento essencial para se exigir a responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos ao seu serviço”.
16.O evento em causa nos presentes autos, por ter ocorrido em propriedade privada da Sinistrada, não deve ser considerado como acidente de trabalho in itinere, nos termos do artigo 9º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, e, por conseguinte, o mesmo não se afigura indemnizável.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida, e consequentemente absolvendo-se a Recorrente do pedido formulado pela Autora, fazendo-se assim
A COSTUMADA JUSTIÇA
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A Autora não contra alegou.[2]
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O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos visto às Exmas Desembargadoras Adjuntas.

Cumpre apreciar e decidir
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IIObjecto
A única questão a decidir consiste em determinar se o acidente de que a Autora foi vítima é ou não um acidente de trabalho.
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IIIFundamentação de Facto.

São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância:
1.No dia 26 de Abril de 2014, a Autora trabalhava por conta e sob a direcção da (…) com o NIPC 500 745 471, no Hospital  (…), Parede.
2.Exercendo neste Hospital a função de Enfermeira Especialista em Reabilitação.
3.E auferindo, como compensação pelo seu trabalho, a retribuição anual de €24.610,92.
4.Após participação feita pela entidade empregadora da Autora à Ré, aquela iniciou consultas na clínica médica  (…)., por conta da Ré.
5.Tendo sido sujeita a exames complementares de diagnóstico, nomeadamente Ressonância Magnética Nuclear onde se observava uma Hérnia Discal entre a L4 e L5, e uma pequena hérnia discal foraminal direita entre a L3 e L4.
6.Na sequência do resultado do supra mencionado exame médico, em 30-05-2014, considerou o médico assistente indicado pela Ré que a Autora sofria de Sacro-Ileite, uma lesão inflamatória das articulações sacroilíacas, que correspondem à ligação da parte inferior da coluna com a bacia.
7.Tendo-lhe prescrito 20 sessões de Hidroterapia, 5 vezes por semana.
8.Não obstante, as sessões de hidroterapia não chegaram a ser agendadas pela Ré.
9.Por carta data de 12 de Junho de 2014, a Ré informou a Autora que não considerava que o evento participado se pudesse caracterizar como um acidente de trabalho.
10.Ré não pagou à Autora qualquer quantia a título de ITA e ITP.
11.No dia 26 de Abril de 2014, pelas 7h30, a sinistrada preparava-se para se deslocar para o seu local de trabalho quando, ao sair da sua residência para se dirigir ao seu veículo no qual para aí se fazia transportar, escorregou nos degraus de acesso ao logradouro, ficando tombada no logradouro.
12.Tendo a sinistrada sentido de imediato fortes dores na zona lombar.
13.Não obstante as dores que sentia, a Autora dirigiu-se ao seu local de trabalho, Hospital de Sant’Ana, não tendo, contudo conseguido exercer a sua actividade profissional.
14.E porque o Hospital  (…) não tem serviço de urgência, dirigiu-se a Autora ao Hospital  (…) onde foi assistida.
15.Naquele Hospital a Autora realizou Raio-X, tendo-lhe sido recomendado repouso e recurso à companhia de Seguros.
16.A Autora reside no r/c de uma moradia bi-familiar, sendo que no 1.º andar da mesma reside a sua irmã e respectivo agregado familiar.
17.Os andares da moradia são totalmente independentes, sendo que a entrada para o r/c é feita por uma porta servida de dois degraus, e a entrada para o primeiro andar faz-se por escadas exteriores ao edifício.
18.Quanto ao logradouro, o mesmo é comum a ambas as residências.
19.Dada a falta de assistência da Ré à Autora esta viu-se forçada a recorrer ao serviço nacional de saúde, tendo assim passado a ser seguida no centro de saúde da sua área de residência, bem como no Hospital  (…), em consulta de cirurgia..
20.Como consequência directa e necessária do acidente sofrido a autora ficou afectada das seguintes incapacidades temporárias:
- ITA entre 27-04-2014 e 26-10-2014;
- ITP com desvalorização de 30% entre 27-10-2014 e 26-01-2015;
- ITP com desvalorização de 20% entre 27-01-2015 e 13-03-2015.
21.Como consequência directa e necessária das lesões sofridas por força do ocorrido em 11), e descritas no auto de exame por junta médica constante de fls. 30-32 do apenso, e cujo teor se dá integralmente por reproduzido, a autora, por indicação médica, realizou a expensas suas, as seguintes consultas, exames, fisioterapia, tendo ainda incorrido, pelo menos nas seguintes despesas:
Data                            Descrição                                           Valor
26-04-2014 urgência e exame radiológico Hospital  (…) € 19,45
26-04-2014     medicamentos Farmácia                               € 5,48
09-06-2014     Hidroterapia Complexo desportivo  (…)     €150,00
09-06-2014     Hidroterapia Complexo desportivo  (…)     €29,50
18-06-2014     Hidroterapia Complexo desportivo  (…)     €280,00
26-06-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
07-07-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
18-07-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
18-07-2014     medicamentos Farmácia                               € 12,77
18-08-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
19-08-2014 consulta neurocirurgia Hospital (…) – taxa moderadora € 7,75
27-08-2014     exame de diagnóstico Diamétrica                € 14,00
27-08-2014     exame de diagnóstico Diamétrica                € 1,30
15-09-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
07-10-2014 consulta neurocirurgia Hospital (…) – taxa moderadora € 7,75
27-10-2014 Consulta fisiatria  (…)                          € 30,00
14-10-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
05-11-2014     medicamentos Farmácia                               € 4,49
14-11-2014 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
14-11-2014     medicamentos Farmácia                               € 5,74
15-12-2014 taxa moderadora _consulta médico família Farmácia € 5,00
13-01-2015 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
13-02-2015 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
17-02-2015 consulta neurocirurgia Hospital  (…) –taxa moderadora € 7,75
08-03-2016     fisioterapia  (…)                                € 290,00
31-03-2015 consulta reumatologia  (…)                    € 35,00
06-03-2015 medicamentos Farmácia                         € 32,09
13-03-2015 taxa moderadora _consulta médico família Centro de saúde € 5,00
26-04-2014     medicamentos Farmácia                               € 5,48
22.No dia 24-11-2015, a sinistrada foi submetida a exame médico, no Tribunal, no âmbito da qual o Sr. Perito lhe fixou uma incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 27-04-2014 e 26-10-2014, e períodos de incapacidade temporária parcial (ITP) de 30% entre 27-10-2014 e 26-01-2015 e de 20% entre 27-01-2015 a 13-03-2015. Mais lhe atribuiu alta definitiva em 14-03-2015 e uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 6% a partir de 16-03-2015.
23.Em 26-11-2014, a  (…) tinha a sua responsabilidade sinistral transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 10.0037.1541, com base na retribuição anual de €24.610,92, correspondente a €1.386,92x14 (salário base)+ €4,27x22x11 (subsídio de alimentação) + €346,73 x 12 (subsídio de Turno).
24.Na tentativa de conciliação que teve lugar em 02-03-2016, a Autora não aceitou conciliar-se, não tendo concordado com o resultado da perícia.
25.No decurso da referida tentativa de conciliação, a Ré não aceitou a existência e caracterização do acidente como de trabalho, nem o nexo causal entre o mesmo e as lesões sofridas pela Autora, nem concordou com o resultado do exame médico. Concordou com a responsabilidade com base no vencimento de €24.610,92, correspondente a €1.386,92x14 (salário base)+ €4,27x22x11 (subsídio de alimentação) + €346,73 x 12 (subsídio de Turno).
26.Em sede de incidente de fixação de incapacidade foi proferida decisão considerando-se a Autora afectada de uma IPP de 6,9%, com data da alta reportada a 14-03-2015, como consequência das lesões sofridas por força do evento referido em 11, melhor descritas no auto de exame por junta médica de fls. 30-32, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
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IV–Apreciação do Recurso.
Cumpre apreciar e decidir se o acidente que vitimou a Autora é ou não um acidente de trabalho, na vertente de acidente in itinere.
O acidente ocorreu no dia 26 de Abril de 2014, pelo que tem aplicação ao caso a Lei 98/2009 de 4 de Setembro (LAT).
De acordo com o disposto no artigo 8º nº1 desse diploma legal, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
O artigo 9º prevê uma extensão do conceito a determinadas situações, considerando-se também acidente de trabalho, entre o demais, o ocorrido “No trajecto de ida para o local de trabalho ou no regresso deste, nos termos referidos no número seguinte” (cfr. alínea a) do nº1), concretizando o nº2 que “A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: (…)b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.”
Prevê-se nestes preceitos legais o denominado acidente in itinere.
Os diplomas legais – LAT e respectivo regulamento – que a Lei 98/2009 revogou (cfr. art. 186º a) e b), continham uma redacção diferente da actual.

Assim, nos termos da Lei 100/97, “2 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a)-No trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior;” (cfr. art. 6º).

E de acordo com o que dispunha o artigo 6º nº2 a) do referido Dec. Lei 143/99, “2 - Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da lei estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:
a)-Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho;”

Como resulta da análise comparativa destes preceitos legais e da actual norma, o Decreto Lei 143/99 situava o início da tutela do trabalhador, para efeitos de acidente de trabalho, na residência habitual ou ocasional “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública”. A actual norma não faz esta especificação, limitando-se a determinar que a protecção ocorre “entre a residência habitual ou ocasional”.

Face à revogação da norma do artigo 6º nº2 a) do referido Dec. Lei 143/99, assumiu foros de vexata quaestio a determinação do local que a lei protege como o início do trajecto para efeitos do disposto no artigo 9º nº1 a) e 2 b) da actual LAT.

Trata-se de questão sensível por importar uma deslocação da responsabilidade do empregador, com consequências económicas na sua esfera jurídica, para um patamar que, aceitando-se embora que a execução do contrato, com a inerente relação de subordinação jurídica, não se limita à realização da prestação pelo trabalhador[3], coloca o risco a cargo do empregador a montante dessa prestação, conferindo uma latitude considerável a essa tutela, numa fronteira ténue entre o que constitui o risco “privado” do trabalhador, por os factos ocorrerem na sua esfera de intimidade, num espaço por si controlado, onde não está sujeito a riscos diferentes ou acrescidos, e o risco do empregador, justificado pela existência de um presumível nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral, justificado pela contratação de alguém residente em determinado local, que pressupõe  que  percorra determinado percurso até ao local onde deve prestar a sua actividade laboral.

Quid Juris se o acidente ocorre quando o trabalhador sai da sua residência, constituindo esta um prédio ou uma moradia unifamiliar e sofre um acidente entre a porta da moradia, que dá para o pátio da mesma, e o portão de acesso à via pública?
Júlio Vieira Gomes pronunciou-se sobre esta questão[4] defendendo que “Em certos casos pode ser delicado saber em que local exato é que principia o trajeto protegido e, mesmo, quando é que deve considerar-se findo.
O problema tem-se colocado, sobretudo, quando o trabalhador reside em uma fração de um prédio em regime de condomínio ou propriedade horizontal. Em tal hipótese deverá considerar-se que a tutela dos acidentes de trabalho só se inicia quando o trabalhador acede à via pública ou, mesmo antes, quando abandona a sua fração e entra nas áreas comuns (pondo-se, é claro, o mesmo problema também quanto ao término do trajeto)? A questão é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis - compare-se a solução alemã que, em princípio, considera que o trajeto tutelado relativamente a acidentes de trabalho, só tem início quando se acede à via pública[5]com a francesa que opta por considerar que o condómino inicia o trajeto protegido já quando sai da sua fração, para se deslocar nas áreas comuns do prédio[6]-mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada[7], sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão. Em primeiro lugar, parece-nos poder dizer-se que da revogação da norma não se pode inferir, sem mais, o abandono da solução preexistente. Além da hipótese de lapso, a revogação pode ficar a dever-se, ao invés, à convicção de que a solução resultaria das regras gerais e da ratio da tutela dos acidentes in itinere e da exclusão, em princípio, dos acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador. Os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador não são tutelados, provavelmente, por se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por este controlado e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem o trabalho[8] Parece-nos forçado dizer que as áreas comuns do edifício são áreas sobre as quais o trabalhador enquanto condómino detém ainda algum poder, sendo titular de um direito sobre as mesmas. Com efeito, não só nada garante que o trabalhador que reside numa fração autónoma seja condómino (pode tratar-se, por exemplo, de um arrendatário, de um hóspede ou de um comodatário), como nos parece que, ainda que o seja, esse poder mais ou menos difuso sobre as áreas comuns pode ser insuficiente para que consiga fazer valer os seus pontos de vista sobre a segurança das mesmas.”

A jurisprudência tem divergido quanto à resposta a dar a esta questão, defendendo alguns arestos uma concepção mais restrita do acidente in itinere, no sentido de considerarem que a tutela inicia-se apenas com o acesso do trabalhador à via pública ou a partes comuns do condomínio, considerando outros que logo que o trabalhador se afasta do domínio privado da sua casa, ainda que para o respectivo logradouro, beneficia da tutela legal.

Expressando aqueles que são, no essencial, os argumentos no sentido de uma interpretação restrita da norma, recentemente, o acórdão desta Secção de 07-10-2015[9], tomou posição sobre esta questão, sumariando-a do seguinte modo “I A tónica delimitadora do que é acidente in itinere ou não passa necessariamente pela perda de controlo, ainda que meramente parcial, das condições e circunstâncias que afetam o espaço onde o trabalhador circula, quando se desloca de casa para o trabalho ou vice-versa, sujeitando-se assim aos perigos a que os locais públicos ou explorados pelo empregador ou clientes deste último estão expostos e que escapam, no todo ou em parte, ao seu domínio, vigilância e capacidade de modificação e reação.
II – Nessa medida, não é acidente de trajeto aquele evento que se traduz na queda do trabalhador no logradouro privado da sua habitação, quando aí se deslocava, provindo do seu local de trabalho, com vista a tomar a refeição do almoço.”
Fundamenta-se do seguinte modo:não obstante o aparente alargamento do conceito jurídico de acidente in itinere, por força da eliminação (melhor dizendo, da não transposição) da regra contida na alínea a) do número 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4 para o atual texto da LAT, não nos parece, ainda assim, que tenha sido efetivamente esse o propósito do legislador laboral e que seja esse o sentido e alcance que pretendeu imprimir ao disposto no número 2 do artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4/09.
Nesta matéria, como em muitas outras de particular sensibilidade social e jurídica, é necessário traçar limites ou fronteiras muito precisas e objetivas e, em caso de modificações qualitativas como as aqui propugnadas pelos tribunais da 2.ª instância do Norte do país, encontrar uma base normativa visível e suficientemente sólida, assim como uma justificação de política legislativa suportada em razões de cariz social ou económico que se evidencie como minimamente sustentável e convincente.
Ora, não somente não se nos afigura constituir, só por si e em si, fundamento razoável e plausível para modificar a já consolidada noção jurídica do acidente de trajeto a mera circunstância da Lei que acolhe o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais não ter importado o texto do citado número 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, como somos da opinião que essa ampliação de tal conceito nos moldes propugnados é manifestamente excessiva, dado abrir uma pequena «Caixa de Pandora» no quadro da problemática que nos ocupa, ao fazer entrar, sem grandes baias ou restrições, pelo espaço privado, particular, pessoal dos trabalhadores, a proteção do regime infortunístico laboral.
Não se ignora que os Arestos que são objeto da nossa atenção situam a extensão de tal regime apenas ao logradouro exterior das habitações dos sinistrados, mas não vemos por que, tendo sido dado esse primeiro passo para dentro de uma área ou local que já não são públicos - e que, nessa medida, não estão, em regra ou, pelo menos, sem a prévia autorização ou consentimento e intervenção posteriores dos seus donos ou legítimos utilizadores, sujeitos a vicissitudes, ocorrências e interferências de terceiros alheios aos mesmos -, não se possa ir mais longe e entrar para dentro das casas dos trabalhadores e aí, desde que acordam e se levantam até alcançarem a via pública ou os espaços comuns, equacionar a possibilidade de verificação de um acidente de trajeto.
Podem conceber-se, assim, variegados acidentes de trajeto em que o trabalhador, logo de manhã, caia no chão da sua casa, quando ainda de pijama, acabadinho de sair da cama e disposto a arranjar-se para ir para o seu emprego, tropece num objeto que um seu filho pequeno deixou abandonado no chão do corredor, ou bata com o joelho na ombreira da porta do quarto, ou escorregue na banheira ou se queime com a cafeteira do café e assim sucessivamente, até abandonar a sua zona de conforto íntimo e privado, onde, em geral, tem o controlo direto e imediato sobre a forma da sua estrutura, organização e funcionamento.                                 
Permitir uma tal abrangência ao regime jurídico dos acidentes in itinere é, no fundo, transferir para a esfera económica das entidades empregadoras – e, por força do contrato de seguro válido, das seguradoras – a obrigatoriedade de reparação de muitos acidentes domésticos, da pura e exclusiva responsabilidade das pessoas neles envolvidas, por só elas poderem, em princípio, prevenir, fiscalizar e atuar no seio das suas vivendas, andares, apartamentos ou quartos, de maneira a diminuírem os riscos existentes em qualquer ambiente interior, pessoal, privado, particular, caseiro.  (sic)

Não seguimos esta tomada de posição.

Face à alteração legislativa, impõe-se ao intérprete uma tarefa de interpretação do sentido da norma aplicável.

Em matéria de interpretação das leis, cumpre atender ao disposto no artigo 9º do C. Civil, que consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa.

Nos termos deste preceito legal, e como primeiro princípio, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (cfr. nº 1). Ou seja, parte-se do elemento literal de interpretação, o qual exerce ao mesmo tempo uma função limitadora, não podendo “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr. nº 2).
Acresce que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cfr. nº 3).
No que respeita à norma que emerge do artigo 9º nº2 b) da Lei 98/2009, é desde logo possível retirar do seu elemento literal que o mesmo exclui do respectivo âmbito de aplicação os acidentes verificados no interior da residência do trabalhador, ao referir-se ao trajecto entre a residência habitual ou ocasional e o local de trabalho.
Mas o elemento literal da norma já não permite excluir que a zona exterior da residência, ainda que logradouro desta, esteja excluída desse âmbito de protecção. De facto, a lei não distingue entre espaço público e espaço privado. E opera uma importante alteração em relação à norma revogada, deixando de delimitar a tutela do risco pela exclusão da restrição assente no percurso “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho”.
Na verdade, já no âmbito da norma revogada, o STJ, em acórdão de 25-03-2010[10], considerou “II. - Na situação prevista estão expressamente contempladas duas situações: a de condomínios ou de compropriedade (em que se haja de se passar por áreas comuns para a via pública) ou a de habitações com acesso directo à via pública.
III. Há no entanto lacuna legal relativamente às situações em que a porta de acesso da habitação dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, ou o local de trabalho se situe nessa mesma área adjacente à habitação, e que deve ser resolvida lançando mão da analogia.
IV. Considera-se assim acidente “ in itinere”, sob pena de violação do princípio de “não discriminação”, o ocorrido nas escadas exteriores de uma habitação quando o sinistrado se desloque para o seu local de trabalho, onde recebe clientes, e este se situe em anexo à sua residência, ainda dentro de propriedade própria.” (sic). E em sede de fundamentação “Nem por isso, no entanto, se pode concluir que o legislador quis estabelecer diferenciação de protecção entre os segurados que vivam em condomínios ou em compropriedade, com aqueles que vivem em moradias unifalimiares, ora protegendo uns (condóminos ou comproprietários), ora desprotegendo outros (proprietários singulares), quando, em igualdade de circunstâncias saiam da sua habitação a caminho do emprego)”.(sic)
Entendemos que a alteração legislativa não constituiu lapso e não se revela inconsequente, o que releva desde logo da evolução legislativa nesta matéria, no sentido de um paulatino alargamento do conceito de acidente in itinere.
A propósito, transcreve-se aqui o acórdão do STJ de 26-10-2011[11], que traça a evolução legislativa e jurisprudencial nesta matéria, e que tem interesse para a compreensão do instituto, mormente da interpretação do artigo 9º em análise: “ (…) no entanto, no âmbito da lei 1942, de 27/7/36, e que foi a antecessora da Lei 2 127, a figura do acidente in itinere não constava do elenco dos acidentes de trabalho ressarcíveis.
Entendia-se então que pelo facto de se dirigir para trabalhar ou de regressar a casa vindo do trabalho, o trabalhador ainda não estava ligado ao serviço que prestava ao empregador, nem aos actos subsequentes ligados à prestação laboral.
Por outro lado, também não se encontrava sujeito à autoridade patronal, elemento essencial para se exigir a responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos ao seu serviço, conforme doutrina que se colhe dos acórdãos do STA de 10/7/58 e 18/6/59, colecção de acórdãos, volume V, pgª 222 e volume XI, pgª 231.
De qualquer forma, foi-se evoluindo, pois quando o meio de transporte usado pelo trabalhador para se deslocar para o trabalho, ou para regressar dele, era fornecido pelo empregador, já se considerava o acidente indemnizável, entendendo-se que nesta situação já estava sujeito à autoridade patronal, conforme também se pronunciava neste sentido o STA, nomeadamente nos acórdãos de 13/2/62, 26/6/62, 18/12/62 e 30/X/73 in acórdãos doutrinais nº 5 pgª 687; 10 pgª 1315; 15 pgª 387; e nº 46 pgª 248; e ainda o acórdão do Tribunal Pleno de 13/4/67, AD nº 67 pgª 1235.
Fora destes casos, mas ainda na vigência da lei 1942 e apesar do silêncio da lei, começou ainda a firmar-se jurisprudência no sentido de se caracterizar o acidente “in itinere” como acidente de trabalho, quando o trabalhador estava sujeito, no trajecto, a um risco particular e específico, não comum à generalidade das pessoas, conforme doutrina que se retira do acórdão do Pleno do STA de 26/2/70, AD nº 101 pgª 783; STA, acórdãos de 3/3/70 e 9/2/71, AD nº 101 pgª 738 e 112 pgª 604.
Mais tarde a jurisprudência veio a evoluir, admitindo que também se caracterizavam como acidentes de trabalho, os acidentes “in itinere” que tivessem resultado de circunstâncias que agravassem o risco do percurso e que o trabalhador era obrigado a suportar precisamente pela sua qualidade de trabalhador e a que a generalidade das pessoas se poderia eximir.
É já a vigência da teoria do risco genérico agravado e que algumas decisões jurisprudenciais já admitiam, conforme advogava Manuela Aguiar, Estudos Sociais e Corporativos nº 25, pgª 76 e 77.
A Lei 2127 veio depois consagrar expressamente a figura do acidente in itinere como acidente de trabalho indemnizável, nos casos em que o meio de transporte é fornecido pela entidade patronal e quando o acidente é consequência de particular perigo do percurso normal, ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco desse percurso, conforme resultava da base V, nº 2, alínea b).
Constata-se assim que esta lei considerava indemnizáveis os acidentes in itinere, resultantes de particular perigo do percurso normal e ainda os que resultassem de quaisquer circunstâncias que tenham agravado o risco genérico, conforme concluía Melo Franco, BMJ, suplemento de 1979, pgª 67.
Quanto à Lei 100/97, ocorreu um salto qualitativo de altíssima importância, na medida em que o acidente “in itinere” passou a ser sempre indemnizável, desde que o trabalhador se encontrasse no trajecto de ida para o local de trabalho ou no trajecto de regresso do seu local de trabalho, conforme resultava do artigo 6º, nº 2, alínea a), da Lei 100/97[3].
E assim sendo, para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.
Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.
Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidente ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2 do DL nº 143/99 de 30/4. (sic)

Daqui resulta que o legislador vem entendendo por pertinente o aumento do alcance da tutela de protecção do trabalhador, ciente das múltiplas e complexas vicissitudes que pontuam o percurso entre a residência e o local de trabalho, que podem envolver escadas, pátios, logradouros, passeios, sejam eles integrados na via pública, em espaços comuns ou próprios do trabalhador.

Daí o alargamento do conceito de acidente in itinere, que actualmente permite que outras realidades integrem a norma protectora, desde que ocorridas entre a residência do sinistrado e o seu local de trabalho.

Como se afirma no acórdão do STJ de 18-02-2016[12], também mencionado na sentença, o legislador, ao eliminar da actual norma, o  segmento: “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações do local de trabalho”, “permite que se integre no conceito não apenas essas partes comuns, anteriormente já incluídas, mas outras que se situem, de acordo com os normativos em vigor, entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho, sejam partes comuns de prédios em condomínio, sejam logradouros de uma habitação/vivenda unifamiliar.
Defender o contrário seria enveredar por uma interpretação restritiva do conceito de acidente in itinere, com tendência para abarcar os acidentes ocorridos na via pública ou em áreas comuns e já não os que tivessem lugar em logradouro pertencente apenas ao trabalhador.
Ora, se fosse essa a intenção do legislador, por certo teria mantido a redacção anterior.
E se a suprimiu, só pode ter sido com um duplo objectivo: o de, por um lado, pôr fim à referida distinção e, por outro, dar oportunidade à Jurisprudência de, in concreto, definir e delimitar a sua aplicação.
Interpretação de outra natureza poderia atentar contra a própria filosofia que esteve subjacente à aprovação do regime actual dos acidentes de trabalho, sobre a qual se pronunciou o Acórdão desta Secção, do STJ, datado de 30/3/2011, onde se fez a análise e a evolução histórica do conceito, podendo ler-se, a este propósito, que:
“Daí adveio a necessidade da adaptação do seu regime à evolução da realidade sócio-laboral e ao desenvolvimento da legislação complementar no âmbito das relações de trabalho, da Jurisprudência e das Convenções Internacionais.
Por isso, a filosofia que esteve subjacente à nova lei, foi a da concretização duma melhoria do sistema de protecção dos trabalhadores e das prestações conferidas às vítimas de acidentes de trabalho e de doenças contraídas no trabalho e por causa dele.
Uma das melhorias trazidas pela nova lei foi em matéria de acidentes de trabalho in “itinere” (…)”.

Em face do exposto, sufragamos o entendimento assumido pela primeira instância, confirmando a sentença recorrida.
***

V–Decisão.
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Registe
Notifique.



Lisboa, 11-10-2017



(Relatora – Paula de Jesus Jorge dos Santos)
(1ª Adjunta – Maria João Romba)
(2ª Adjunta – Paula Sá Fernandes)
***


[1]Já após a rectificação levada a efeito.
[2]A Autora recorreu mas desistiu do recurso.
[3]Cfr Júlio Vieira Gomes – O Acidente de Trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização – pág. 97 – “Parece-nos claro que o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho.” E em nota de rodapé, cita o Ac.do STJ de 17 de Dezembro de 2009 (in CJ  de 2010, tomo III, págs. 267 e segs.), em cujo sumário se lê “a responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores não assenta no chamado risco profissional, mas sim no risco económico ou de autoridade que está subjacente ao conceito de acidente de trabalho contido no artigo 6º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.” E ainda que “Acrescenta-se no mesmo sumário qie “para que se considere existir um acidente de trabalho (…) não se exige a existência de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação de trabalho propriamente dita; apenas se exige um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
[4]In O Acidente de Trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização – Júlio Vieira Gomes, pág. 179 a 183.
[5]Segundo informa GREGOR THUSING, Die Versicherung des Wegeunfalls gemass § 8 Abs. 2 SGB VII, Die Sozialgerichtsbarkeit 2000, págs. 595 e segs., pág. 596, na Alemanha no início do percurso relevante para efeitos de tutela dos acidentes in itinere considera-se estar a porta que dá acesso ao exterior do prédio e isto mesmo que se trate de moradias plurifamiliares e de situações de condomínio. Este entendimento pode conduzir a soluções aparentemente bizarras: se a garagem tem uma ligação interna com a zona de habitação, só ao abrir a porta da garagem e aceder à via pública é que o percurso começa em termos de tutela dos acidentes de trabalho. Se a garagem não tem qualquer ligação exterior com a moradia de habitação e o trabalhador tem que aceder à via pública para abrir a porta da garagem e retirar a viatura, então o percurso tutelado inicia-se quando o trabalhador abre a porta da casa de habitação que dá acesso ao exterior. O autor sublinha que a distinção pode ser arbitrária, mas tem a seu favor a segurança jurídica.” - Nota de rodapé do texto transcrito.
[6]Em Itália a questão é muito controversa. Alguma jurisprudência italiana e designadamente um Acórdão da Cassazione de 9 de Junho de 2003, n. 9211, considerou que o percurso termina, para efeitos de proteção na entrada para a via pública do prédio em regime de condomínio, com o argumento de que o condómino detém algum controlo sobre as partes comuns. VINCENZO FERRARI, Infortunio "in itinere": forza espansiva della norma e interpretazione restrittiva del giudice, II Foro Italiano 2003, parte I, cols. 2360 e segs., que comenta desfavoravelmente o referido Acórdão, entende que a decisão é infeliz e contrasta com a tendência expansiva do conceito de acidente de trajeto. Para ANTONIO FONTANA, Dove comincia la tutela dell'infortunio in itinere?, Massimario di Giurisprudenza di Lavoro 2007, págs. 825 e segs., pág. 827, apenas deveriam ficar excluídos da tutela os locais de habitação e já não as escadas, os portões, os corredores, que são locais "não já de habitação, mas simplesmente de trânsito porque a sua função é apenas a de consentir a entrada e a saída na e da unidade imobiliária propriamente dita, enquanto independente e separada do resto do edifício que é a única verdadeira sede da vida doméstica". O autor dá o exemplo do porteiro que frequentemente habita num apartamento do prédio em que exerce as suas funções ou do médico que pode ter no mesmo prédio uma fração para habitação e outra como consultório e cujo percurso de e para o trabalho ocorre nas partes comuns do condomínio. - Nota de rodapé do texto transcrito.
[7]Referimo-nos, claro está, ao artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, que se verificassem "(e)ntre a sua residência habitual ou ocasio­nal, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho". - Nota de rodapé do texto transcrito.
[8]“Importa, contudo, ter presente o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/04/2013 (FERREIRA DA COSTA), disponível em www.dgsi.pt, que vai substancialmente mais longe do que a nossa própria proposta ao considerar que é acidente de trabalho o ocorrido no logradouro propriedade privada do trabalhador. Estaria, pois, já incluído no trajeto protegido o percurso entre a porta da moradia do trabalhador e o portão de acesso à via pública. No seu Sumário pode ler-se que "com a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, o conceito de acidente de trabalho in itinere passou a incluir também o acidente de trajeto ocorrido no logradouro das habitações unifamiliares", acrescentando-se que "comparada a redação das disposições da LAT/97 e da LAT/2009 constatamos que atualmente o acidente, para ser qualificado como de trabalho in itinere, não tem de ocorrer na via pública, bastando que ocorra em qualquer ponto do trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho, seja a via pública, sejam as partes comuns do edifício se o sinistrado habitar numa das suas frações, seja no logradouro se a habitação for numa moradia, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: "trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador". No texto do Acórdão, o Tribunal explica a solução adotada: "Cremos que a posição (outrora defendida pelo legislador) e aqui subscrita pela recorrente, diferenciando a qualificação de acidente de trabalho in itinere em função deste ter ocorrido num local privado ou público é manifestamente redutora e profundamente injusta porquanto no momento em que sai de casa para se deslocar para o local de trabalho muitos trabalhadores têm de percorrer espaços próprios do exterior das suas residências não se concebendo, por exemplo, que no trajeto até ao local de trabalho, uma queda nas escadas do pátio afaste a classificação de acidente de trabalho in itinere, mas uma escorregadela no passeio público imediatamente contíguo àquele pátio permita tal consideração". O Tribunal acrescenta: "cremos que foi intenção do legislador abandonar do conceito de acidente de trabalho in itinere o pressuposto do "controlo do espaço/solo" em que o trabalhador se encontra no momento em que o sinistro acontece, cingindo mesmo apenas e tão só a um conceito amplo de trajeto normal percorrido pelo trabalhador até ao local de trabalho e no tempo habitualmente gasto para o efeito". O Acórdão diverge, expressamente, do Acórdão da Relação de Évora de 24/05/2011 (JOÃO Luís NUNES) que distinguia os espaços comuns de um edifício em propriedade horizontal e os caminhos privados de acesso a uma residência ou moradia unifamiliar. Afirma-se que "esta era uma visão que (...) nos parecia demasiado fragmentária da realidade e que se centrava num preciosismo cuja bondade, além de duvidosa, era geradora de tratamentos desiguais entre situações materialmente idênticas". Com todo o respeito, temos dúvidas em seguir esta decisão do TRP e não nos parece que a decisão do TRE assente num "pre­ciosismo". Em primeiro lugar, impressiona-nos pouco a circunstância de uma queda no pátio, propriedade privada do trabalhador, não ser acidente in itinere e já o ser no passeio público contíguo porque é sempre em alguma medida arbitrário o ponto em que começa e finda o trajeto protegido. Aliás, mesmo na posição assumida pelo TRP se poderia questionar por que é que há-de ser diferente o tratamento do logradouro e do percurso no próprio interior da moradia: se o trabalhador se magoar ao abrir a porta da moradia, carregado com a pasta e outros instrumentos de trabalho, não haveria acidente in itinere, mas já haveria se caísse no logradouro contíguo. Mas não nos parece, sobretudo, que seja um "preciosismo" distinguir entre espaços diretamente controlados pelo trabalhador (em que este é diretamente responsável pelo seu estado, limpeza e conservação) e espaços, como as partes comuns de um prédio em propriedade horizontal.» - Nota de Rodapé do texto transcrito.
[9]Processo 408/13.1TBV.L1.
[10] Processo 43/09.9T2AND.C1.S1.
[11]Proferido no processo 154/06.2TTCTB.C1.S1.
[12]Processo 375/12.9TTLRA.C1.S1.