Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3589/11.5TCLRS.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
INTERESSE PROTEGIDO
CÔNJUGE CULPADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A providência de atribuição da casa de morada da família tem a natureza de processo de jurisdição voluntária, podendo o tribunal investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes: pode ainda o tribunal decidir o mérito por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita.
II) É característica dos processos de jurisdição voluntária a inexistência de um conflito de interesses a compor e a existência de um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse.
III) Os critérios legais para a atribuição da casa de morada de família são a necessidade de cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges, o interesse dos filhos do casal e outros factores relevantes; em caso de dúvida devem tomar-se em consideração outras circunstâncias secundárias respeitantes à culpa no divórcio ou à ocupação da casa de morada de família.
IV) Tendo a cônjuge mulher sido declarada única culpada do divórcio, vivendo os ex-cônjuges com um filho de maior idade, invisual, habituado a locomover-se na casa de morada de família sem auxílio, por a conhecer desde o nascimento, e estando provado que a mãe esteve ausente da vida do filho desde o nascimento até ao divórcio, deve a casa de morada de família ser atribuída ao cônjuge homem.(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO

O…, divorciado, residente na Rua …., concelho de …, instaurou na competente Conservatória do Registo Civil contra M…, divorciada, residente na Rua …, concelho de …, procedimento requerendo a atribuição da casa de morada de família, alegando, em síntese, que está divorciado da requerida, que é arrendatário do imóvel em causa, o qual corresponde à morada onde já residia 10 anos antes de conhecer a requerida e continua a residir, necessita de habitar a referida casa por não ter outro local para morar, assim como por nela residir um filho maior de ambos, que é invisual, dependendo da ajuda de terceiros, nomeadamente do requerente que o apoia, sustenta e orienta. A requerida tem outros dois filhos, maiores e outros familiares, que a podem ajudar e acolher, tal não sucedendo com o requerente. 

A requerida deduziu oposição alegando, em síntese, não ser verdade não necessitar de habitar na casa de morada de família, é doente cancerígena, sendo ela que apoia e cuida do filho invisual de ambos e os seus parcos rendimentos não lhe permitem arranjar outra casa para viver, sendo ajudada monetariamente por uma tia. O requerente gera conflitos e mau ambiente em casa e tem rendimentos provenientes da sua reforma que lhe permitem arranjar outra casa para viver.

Pugnou pela improcedência do pedido formulado pelo requerente, pedindo que a casa lhe seja atribuída a si, com a transferência do direito ao arrendamento a seu favor.

Foi proferida SENTENÇA que julgou procedente o pedido formulado pelo requerente e improcedente o pedido formulado pela requerida contra aquele, tendo decidido atribuir o direito de uso e habitação da casa de morada de família sita no r/c esquerdo do prédio urbano …, em exclusivo, ao requerente.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu a requerida, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - É doutrina e jurisprudência pacíficas, conforme ao disposto nos artigos 1105º nº 2 e 1793º do Código Civil que os elementos essenciais para a decisão sobre a atribuição da casa de morada de família são: a) - a necessidade de cada um dos cônjuges; b) - o interesse dos filhos; c) - a situação patrimonial dos cônjuges.

2ª – Tendo a requerida um rendimento mensal de € 246,36 e o requerente um rendimento mensal de 719,05, a que ele faz acrescer mais € 274,98 de todo o rendimento mensal do filho, e considerando o estado de doença cancerosa da requerida a precisar de sossego, resulta que ela tem maior necessidade do locado e está em pior situação patrimonial.

3ª – Ficou provado que o filho precisa da ajuda de ambos os pais, como todos os filhos e este mais por ser invisual.

4ª – O facto de a requerida ter sido considerada culpada no processo de divórcio que não contestou, não é elemento decisivo, tanto mais que o requerente permite que ela continue a usar o nome de casada e como tal a identifica nestes autos.

5º - Um pai que veste o filho – que é licenciado em filosofia – com roupa em segunda mão que lhe dão, que não confecciona refeições para o filho, não faz companhia ao filho durante o dia, que de vez em quando compra comida feita para o filho, que fica com todo o dinheiro que a Segurança Social atribui ao filho sem sequer lhe dar uma simples mesada de € 10,00, não é, seguramente um bom pai e não se comporta de molde a criar apego filial e emocional ao filho, antes faz o filho sentir-se triste e desgostoso; o filho é mais apoiado pela mãe;

6º - Valorizando mais o interesse do filho - que é invisual – e considerando que cada um dos três tem o seu quarto independente, a solução mais humana era a de tudo ficar como está e as despesas com a renda, água, electricidade, gás, produtos de limpeza e comida e roupa do filho ser suportada em proporção com ao respectivo rendimento de cada um dos três viventes, como aliás a requerida propôs e se tentou acordar nos autos; esta solução permitia que o filho ficasse com algum dinheiro para as suas despesas pessoais.

7º - Considerando que o requerente não aceita partilhar as despesas na proporção do rendimento de cada um, e tendo em conta a situação de saúde da requerida, os rendimentos e o interesse dela, e o modo como o pai trata o filho, então a solução justa deve ser a de atribuir a fracção locada identificada nos autos à requerida.

8º- Não se coloca em causa a fundamentação da douta sentença, aliás brilhante como é de uso e hábito, mas tão só a solução final que foi optada e seus fundamentos e que não sopesou, nem o interesse primordial do filho, nem o legitimo interesse da requerida, o seu estado de saúde e o facto, também determinante, dos rendimentos que ela tem em comparação com os do requerente, o que conduz nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil.

9º- Nestes termos e nos mais de direito e com o douto suprimento que se espera, deve ser dado provimento à presente apelação e em consequência, ser revogada a douta sentença aqui posta em crise e em sua substituição ser, doutamente, decidido:

- ficar a situação actual, cada um usufruindo de um quarto de dormir com suas coisas e usufruindo em comum da casa de banho, sala, e cozinha e acrescendo a obrigação de ser paga, em proporção com os rendimentos de cada um, incluindo os do filho, a renda, água, electricidade, gás, produtos de limpeza e higiene e alimentação do filho; ou, entendendo-se que não ser de considerar esta solução, o direito de uso e habitação da casa de morada de família ser atribuído em exclusivo requerida para que nela fique com o filho.

A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre decidir

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º - Requerente e requerida casaram em 12 de Junho de 1981, sem convenção antenupcial.

2º - Por decisão proferida em 02 e Julho de 2007, foi decretado o divórcio entre requerente e requerida, com culpa exclusiva desta.

3º - Em 14 de Agosto de 1969, J…, A… e o aqui requerente subscreveram e assinaram o contrato de arrendamento de fls. 134 e 135 no qual os primeiros deram de arrendamento ao segundo, para habitação deste, o prédio urbano sito no …, pela renda mensal de 1.400$00.

4º - O arrendamento referido no número anterior teve início em 01 de Setembro de 1969, pelo período de 12 meses, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos e nas mesmas condições nos termos da lei.

5º - J… nasceu em 14/01/1984 e é filho do requerente e requerida.

6º - J…. nasceu portador de cegueira por fibroplastia retrolental, a quem foi atribuída a incapacidade permanente global de 95%.

7º - J… frequentou e concluiu, em Fevereiro de 2011, o curso universitário de filosofia, tendo tido sempre apoio do pai durante o período em que estudou.

8º - Desde o nascimento do filho e até à altura do divórcio do requerente e da requerida, esta esteve ausente da vida do J…, não lhe prestando qualquer apoio ou assistência.

9º - O J… necessita de ajuda de terceira pessoa para se alimentar, fazer a sua higiene pessoal e realizar algumas tarefas diárias.

10º - A qualidade de vida do J… é, actualmente, assegurada e garantida por ambos os progenitores.

11º - A casa onde vive o J… com os pais é-lhe totalmente familiar, o que lhe permite mobilidade e independência no seu interior.

12º - O requerente suporta sozinho a renda de casa. As despesas de água e luz da habitação são suportadas ora pelo requerente ora pela requerida.

13º - Requerente e requerida contribuem para a alimentação do filho.

14º - O requerente e a requerida vivem em permanente conflito e discutem com frequência, transmitindo intranquilidade e instabilidade ao filho.

15º - O requerente manda lavar a sua roupa na lavandaria.

16º - O filho do requerente e da requerida usa, por norma, roupas em segunda mão, que lhe dão.

17º - A requerida, de vez em quando, compra roupa ao filho.

18º - O requerente apenas leva à lavandaria a roupa que ele mesmo dá ao filho, recusando levar a que a mãe oferece ao J….

19º - A requerida trata da restante roupa do filho.

20º - O filho do requerente e da requerida encontra-se desgostoso e desgastado com o conflito permanente em que vivem os pais.

21º - Requerente e requerida sustentam o filho de ambos.

22º - O requerente e o filho, à data do divórcio, já viviam na casa dos autos.

23º - O requerente, a requerida e o filho habitaram a casa sita na ….

24º - O filho do requerente e da requerida é portador de total cegueira.

25º - A requerida pagou o certificado de licenciatura de filosofia do filho.

26º - O filho do requerente e da requerida beneficiou de uma bolsa de estudos.

27º - O requerente aufere da Segurança Social as seguintes prestações sociais do filho: subsídio vitalício do filho, no valor de € 171,78; o subsídio por assistência a terceira pessoa, no valor mensal de € 85,88 e um complemento extra, no valor de € 17,3.

28º - O filho precisa da ajuda de ambos os pais.

29º - A requerida tem apresentado queixas-crime contra o requerente.

30º - À requerida foi diagnosticado um carcinoma mama extenso, com metástases axilares e pulmonares.

31º - Que veio a revelar-se serem lesões malignas invasoras – tipo histológico carcinoma ductal.

32º - Foi a requerida sujeita a mastectomia radical modificada do seio direito em 04/12/2008.

33º - Desde 2007 que a requerida tem acompanhamento médico, com permanências na maternidade Alfredo da Costa e sujeita a tratamentos desta doença, como quimioterapia.

34º - A requerida deve ter uma actividade laboral reduzida (não fazer esforços com o membro superior do lado operado), no sentido de prevenir o linfedema do membro superior.

35º - A requerida, algumas vezes, compra os bens alimentares e confecciona as refeições para si e para o filho.

36º - O requerente, de vez em quando, compra comida feita para o filho.

37º - Um ambiente calmo e sem stress é favorável à recuperação de doença cancerígena.

38º - O requerente sai de casa de manhã e regressa ao fim do dia.

39º - O requerente não confecciona refeições em casa.

40º - A requerida comprou máquina de lavar roupa, fogão, trem de cozinha, micro-ondas e gás, que utiliza em seu proveito e do filho.

41º - A requerida tem a sua residência e nela come, permanece, dorme e guarda as suas coisas na casa dos autos.

42º - O requerente sabia e conhecia o referido em 41º, à data da propositura da acção.

43º - O requerente utiliza um quarto da casa - que fecha à chave - a requerida utiliza outro quarto da casa e utilizam em comum, a cozinha, a sala e a casa de banho.

44º - A requerida recebe da Segurança Social um reforma mensal de € 246,36.

45º - É ajudada monetariamente por uma tia.

46º - A requerida confecciona refeições para um jovem que lhe entrega uma contraprestação monetária.

47º - O requerente não entrega ao filho qualquer quantia em dinheiro das prestações sociais que, por causa dele, aufere da Segurança social, alegando que o gasta na alimentação.

48º - O filho sente-se triste e desgostoso por não poder, sozinho, dispor de qualquer quantia em dinheiro, de uma simples mesada de € 10,00.

49º - A requerida, em 21 de Junho de 2010, compareceu na Maternidade Alfredo da Costa, apresentando várias lesões, entre elas equimose.

50º - No dia 15 de Março de 2009, a requerida esteve presente no serviço de urgência do Hospital Egas Moniz em Lisboa.

51º - O requerente reside na casa dos autos desde 01 de Setembro de 1969.

52º - O filho do requerente e da requerida vive na casa dos autos desde que nasceu.

53º - O requerente recebe uma reforma de € 719,05.

54º - A requerida continua a fazer tratamentos e está programada a operação ao seio esquerdo.

B) Fundamentação de direito


A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se existe a sentença é nula, nos termos do artigo 668º nº 1 alª c) do Código de Processo Civil e ainda a quem se deve atribuir a casa de morada de família.

NULIDADE DA SENTENÇA

A apelante coloca em causa a sentença recorrida, não pela sua fundamentação, mas tão só a solução final e que não sopesou, nem o interesse primordial do filho, nem o legitimo interesse da requerida, o seu estado de saúde e o facto, também determinante, dos rendimentos que ela tem em comparação com os do requerente, o que conduz nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil.

Cumpre decidir.

O artigo 659º do Código de Processo Civil (actual 607º) estabelece as regras formais a que deve obedecer uma sentença.

Começa pelo relatório (nº 1), seguindo-se a fundamentação e a decisão (nº 2). O nº 3 prescreve como deve o juiz fixar a matéria de facto.

O artigo 668º nº 1 alínea c) declara nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. O actual artigo 615º nº 1 alª c) que lhe corresponde, acrescenta que outra causa da nulidade da sentença é a ocorrência de “alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Esta nulidade ocorre quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente.

Esta nulidade remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.

Vem acontecendo com alguma frequência e mesmo vulgaridade a arguição da nulidade da decisão. A verdade é que por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão. Neste sentido já decidiu o Ac. do S.T.J. de 30.9.2010[1], quando refere “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”.

Porque assim é, as nulidades da decisão, previstas no artº 668º do C.P.C., são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito.[2]

Ora, a verdade é que a apelante invoca abusivamente esta nulidade a propósito da sua discordância quanto ao erro de julgamento. É que basta ler a sentença para concluir imediatamente que os fundamentos apontam no sentido da decisão proferida, pelo que não padece do apontado vício, sendo totalmente descabida tal afirmação, pois que o raciocínio lógico seguido na decisão teria de conduzir à procedência da pretensão do requerente, não existindo qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, pois o inverso é que conduziria a eventual nulidade.

Improcede, pois, esta argumentação.


A ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA

Requerente e requerida pretendem que lhe seja atribuída a casa de morada de família. A sentença recorrida decidiu atribuir ao requerente o direito de uso e habitação da casa de morada de família.
Cumpre decidir.
O artigo 1413º do Código de Processo Civil, que corresponde ao artigo 990º do actual CPC, inserido no capítulo relativo aos processos de jurisdição voluntária (que continua a aplicar-se às situações como a dos autos, mesmo após a entrada em vigor do DL nº 272/2001, de 13 de Outubro – cfr. artºs 5º, nº 2, e 21º), prevê, no âmbito das providências relativas aos filhos e aos cônjuges, o processo para atribuição da casa de morada de família, na sequência decretamento de divórcio.
O objecto deste incidente é a chamada “casa de morada de família”, conceito que é passível de ser integrado por elementos factuais, para poder ser concebido como tal, e que, na definição de Nuno Salter Cid[3], constitui residência permanente da mesma.

O artigo 1105º do Código Civil, aplicável ao caso concreto, prevê que na falta de acordo sobre o destino da casa de morada de família, mormente em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, “ cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um dos êx-cônjuges, os interesses dos filhos e outros factores relevantes.

Importa, portanto, saber para quem se vai transmitir o direito ao arrendamento nos termos daquele artigo 1105º do Código Civil.

Refere Nuno de Salter Cid,[4] que “a família precisa, naturalmente, de um espaço físico que lhe sirva de base, de sede, de um local onde possa viver e conviver, e é de algum modo essa exigência que tem em vista o artº 65º, nº 1, da C.R.P., ao reconhecer a todos, para si e para a sua família, o direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, que, a propósito do conceito de casa de morada de família, escreve que “a expressão «casa de morada de família» é, no sentido comum imediato das palavras que a compõem, o edifício destinado a habitação, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar, e que «residência da família» é o lugar onde esse conjunto de pessoas tem a sua morada habitual, a sua sede”.

A providência em apreço tem a natureza de processo de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (artºs 1409º nº 2 e 1413º do Código de Processo Civil, actuais artigos 986º e 990º), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.

Pode, além disso, o tribunal decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (artº 1410º do Código de Processo Civil, actual artigo 987º).

O predomínio, nos processos de jurisdição voluntária, dos princípios do inquisitório sobre o dispositivo e da equidade sobre a legalidade decorre dos mesmos se caracterizarem, em geral, pela inexistência de um conflito de interesses a compor e pela existência de um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse[5].

A questão suscitada pela apelante consiste em saber se a sentença recorrida não lhe deveria ter atribuído a casa de morada de família.

Na situação prevista no referido artigo 1105º nº 2 do Código Civil, os critérios legais para a atribuição da casa de morada de família são a necessidade de cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges, o interesse dos filhos do casal e outros factores relevantes.

No caso de haver dúvidas podem tomar-se em consideração outras circunstâncias secundárias tais como os factos respeitantes à culpa no divórcio ou os relativos à ocupação da casa de morada de família[6]. Não se tratando de castigar o cônjuge culpado, muito menos se há-de querer premiá-lo[7]

Segundo os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[8], o tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e que só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens.

A casa de morada de família, no caso dos autos, não é um bem comum das partes, nem próprio de uma delas; por isso, importa verificar se se mostram provados os pressupostos legais no âmbito da previsão do artigo 1105º do Código Civil.

Requerente e requerida formularam idêntica pretensão, competindo-lhes, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 342º do Código Civil, o ónus de provar a necessidade de habitar a casa de morada de família e, nomeadamente, que necessitam mais que o outro de habitar na referida casa.

Não se provando que qualquer deles possua outra casa onde possa habitar, ambos se encontram em idêntica situação no que concerne à necessidade de permanecer na casa. Ponderando os factos provados sob os nºs 12º, 13º, 21º, 27º, 35º, 36º, 44º e 53º referentes à situação económica de um e de outro, não se provam vantagens determinantes para qualquer uma das partes no que respeita à necessidade de habitar na casa de morada de família.

No que respeita ao interesse do filho, está provado que o filho de ambos, J…, tem 29 anos de idade, é licenciado em filosofia e é invisual, a quem foi atribuída a incapacidade permanente global de 95% e que, devido à sua cegueira, necessita diariamente de ajuda de terceira pessoa para se alimentar, fazer a sua higiene pessoal e realizar algumas tarefas diárias.

Está igualmente provado que vive na casa de morada de família desde que nasceu e que, derivado de tal, a mesma lhe é totalmente familiar permitindo-lhe mobilidade e independência no seu interior.

É, portanto, do interesse do J… permanecer e habitar na casa dos autos.

Apenas uma das partes deverá continuar a utilizar e habitar a referida casa, pois provou-se que requerente e requerida vivem permanentemente em conflito um com o outro, discutem frequentemente, provocando desgosto e desgaste no filho J…, que se sente, por isso, instável e intranquilo – (14º e 20º)

Nesta sede entendemos, tal como vem referido na douta sentença, que os factos assentes nos autos respeitantes ao quadro vivencial actual colocam as partes em situação de assinalável paridade.

A qualidade de vida do João é assegurada e garantida por ambos os progenitores, que ambos sustentam o filho e contribuem para a sua alimentação, que ambos zelam pela aquisição e tratamento da roupa do filho e que este precisa da ajuda do requerente e da requerida.

Está provado que requerente e requerida se encontram a habitar a casa de morada de família, que ambos utilizam um quarto da casa de forma privada e exclusiva, partilhando o uso da cozinha, sala e casa de banho, bem como que diariamente ambos pernoitam na casa em apreço, não confeccionando o requerente refeições em casa, enquanto a requerida por vezes o faz para si e para o filho J…. Assim, também nesta sede, cumpre reconhecer, considerando o cenário actual, equilíbrio no que tange à situação das partes.

Outro factor relevante para atribuição da casa de morada de família, diz respeito à culpa na produção do divórcio.

Efectivamente, ficou provado que o divórcio entre requerente e requerida foi decretado por sentença, transitada em julgado, em sede de divórcio litigioso, em 02 de Julho de 2007, com culpa exclusiva da requerida – (2º).

Por outro lado, a casa de morada de família foi objecto de arrendamento outorgado apenas pelo requerente, tendo o respectivo contrato começado a produzir efeitos em 01 de Setembro de 1969, residindo o requerente na casa desde essa data até ao presente, tendo este contraído matrimónio com a requerida apenas em 12 de Junho de 1981, altura em que ambos terão passado a habitar nela – (3º, 4ºe 51º).

Outro facto significativo respeita ao pagamento da renda da casa, que é suportado apenas pelo requerente. – (12º).

Finalmente, provou-se que, desde o nascimento do filho (14.01.2004) e até à altura do divórcio do requerente e da requerida (02.07.2007), esta esteve ausente da vida do J…, não lhe prestando qualquer apoio ou assistência – (5º, 2º e 8º).

No caso em apreço, atenta a factualidade provada, é manifesto que a sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo o direito de uso e habitação da casa de morada de família ser exercido em exclusivo pelo requerente, cuja necessidade é consideravelmente superior à da requerida.

EM CONCLUSÃO:

- A providência de atribuição da casa de morada da família tem a natureza de processo de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes.

- No caso de haver dúvidas podem tomar-se em consideração outras circunstâncias secundárias tais como os factos respeitantes à culpa no divórcio ou os relativos à ocupação da casa de morada de família. Não se tratando de castigar o cônjuge culpado, muito menos se há-de querer premiá-lo

- O tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e que só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens.

  III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa,

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Prazeres Pais

Isoleta de Almeida Costa


[1] www.dgsi.pt/stj- processo nº 341/08.9TCGMR.G1.S2.
[2] Ac. RC de 15.4.08, Proc.1351/05.3TBCBR.C1).
[3] A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, página 38.
[4] Ob cit, pág. 26.
[5] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 72.
[6] Neste sentido o Ac. RL de 19.02.2008, in CJ I/2008, pág. 111.
[7] Ac RP de 21.05.2002, Processo nº 0220648, in www.dgsi.pt.
[8] Curso de Direito da Família, Vol I, 3ª edição, pág. 721 e segs.