Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | LAURINDA GEMAS | ||
| Descritores: | NULIDADE DE SENTENÇA ACÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA POSSE PRESUNÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/11/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I - Na ação de petição da herança relativa a uma casa com quintal implantados numa parte de dois prédios que (alegadamente) fazem parte da herança, em que a ré excecionou invocando (de forma implícita) a sua aquisição por usucapião (exceção que foi julgada improcedente na sentença), estando provado que ela, bem como antes a sua mãe e o seu avô, praticaram ao longo do tempo um conjunto de atos materiais (discriminados no elenco dos factos provados) passíveis de fazerem operar, no caso dos autos, alguma das presunções legais, atinentes à posse invocada, em particular a consagrada no art. 1252.º, n.º 2, do CC (nos termos do qual, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto), não pode ser atendida a impugnação da decisão da matéria de facto, no sentido de ser dado como provado que isso aconteceu porque aqueles “se aproveitaram da tolerância dos donos do terreno”, pois tal corresponde a uma conclusão que, no caso, haveria de ser retirada de um conjunto de factos que foram alegados pelo Autor-Apelante e dados como não provados, mas que este não cuidou impugnar. II - Ao analisar se a sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, conjugado com o art. 608.º, n.º 2, do CPC, importa identificar quais as “questões que as partes tenham submetido à sua (do juiz) apreciação”, as quais não são necessariamente coincidentes com o conteúdo do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, muito embora, em tese, se o despacho de identificação do objeto do litígio tiver sido corretamente elaborado, até possa existir coincidência, na medida em que naquele despacho deverão ser sucintamente identificados os pedidos e respetivas causas de pedir, bem como as exceções perentórias deduzidas. III - Ao assumir, na fundamentação de direito da sentença, a (suposta) ocorrência de factos não alegados pela Ré na sua Contestação, designadamente a existência de uma herança indivisa aberta por óbito de sua mãe e uma sucessão na posse em benefício de todos os (supostos) sucessores da mãe da Ré, dando prevalência à presunção fundada nessa posse (e não na posse pela Ré), em detrimento da presunção fundada no registo (invocada pelo Autor), não deixou o Tribunal recorrido de conhecer de questão de que podia conhecer, nos termos do art. 608.º, n.º 2, do CPC, apreciando se, com base naquela presunção registal, os prédios peticionados faziam parte da herança da mãe deste. Porém, ao fazer uma diferente qualificação jurídica dos factos em termos que não poderiam ter sido perspetivados pelas partes, suscitou uma nova questão jurídica da qual não podia ter conhecido sem que tivesse sido precedida da audição das partes, o que não deixa de conduzir à nulidade da sentença, por violação do princípio do contraditório. IV - Para que alguém beneficie da presunção fundada na posse (que, no caso, seria de convocar ante a alegação fáctica feita pela Ré na sua Contestação) terá que demonstrar os elementos essenciais que caracterizam a posse à luz do disposto no art. 1251.º do CC, a saber o corpus e o animus, consistindo o primeiro na atuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor, e o segundo na intenção de exercer como seu titular um direito real sobre a coisa. V - Provando-se que tanto o avô da Ré, como a mãe desta, sabiam que o imóvel não lhes pertencia e que os donos não lhes tinham conferido autorização para o respetivo uso, nem feito acordo de onde resultasse a transmissão para a mãe da Ré, que o avô da Ré construiu no prédio uma barraca, a mãe da Ré delimitou uma área de quintal e aí ficou a residir até 1991, quando morreu, fazendo alguns melhoramentos e ampliação, e que a Ré aí residiu durante a infância e a adolescência, sem a intenção de agirem como donos do terreno (onde está a casa e o quintal), é inaplicável a presunção legal consagrada no art. 1252.º, n.º 2, do CC. VI - Não estando, pois, demonstrado (diretamente ou por via de presunção legal) que o avô e a mãe da Ré, sem embargo do poder de facto exercido sobre as partes do prédio ocupadas, alguma vez tenham atuado com a intenção de exercerem, como seus titulares, um qualquer direito real sobre tais coisas, em particular o seu animus domini, a única situação possessória que emerge dos factos provados é superveniente à morte da mãe da Ré, em 1991 (já que, conforme estabelece o art. 1254.º, n.º 2, do CC, uma posse atual não faz presumir a posse anterior, salvo quando seja titulada), pelo que sempre uma presunção baseada nessa posse, em benefício da Ré, haveria de ceder perante a presunção fundada no registo, datado de 1990, anterior ao início dessa (suposta) posse – cf. art. 1268.º, n.º 1, do CC. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados I - RELATÓRIO RP, Autor na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra RS, interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação improcedente. Na Petição Inicial, apresentada em 21-06-2021, o Autor peticionou que a Ré fosse condenada: a) a reconhecer no Autor a qualidade de herdeiro de HP; e b) a restituir ao Autor os bens da herança que vem usando e que correspondem a parte do prédio urbano sito na Estrada …, n.º …, na ..., Venda Nova, e a parcela com a área aproximada de 80 m2 do prédio rústico sito na ..., denominado “...”. Para tanto e em síntese, alegou o Autor que: - O Autor é herdeiro e cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe, HP, falecida em 21-01-1989, herança da qual fazem parte o prédio urbano sito na Estrada da ..., n.º …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia, e o prédio rústico sito em ..., denominado “...”, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, Secção A, da mesma freguesia; - Está inscrita no registo predial a aquisição do direito de propriedade sobre esses prédios a favor dos herdeiros de HP, os quais, desde 1989, sempre atuaram de forma correspondente ao exercício de propriedade sobre os mesmos, tendo sucedido na posse dos seus antecessores; - A Ré vive e ocupa ilicitamente uma casa que constitui parte do referido prédio urbano, tendo implantado uma vedação demarcando uma parcela com cerca de 80 m2 do aludido prédio rústico. A Ré foi citada em 24-06-2021 e apresentou Contestação (aperfeiçoada depois conforme requerimento apresentado a 02-12-2022) em que pugnou pela improcedência da ação, defendendo-se por impugnação e por exceção (embora sem especificar separadamente os factos respetivos), contendo, além da impugnação de factos alegados na PI e documentos juntos com a mesmas, as seguintes alegações de facto (e nenhumas alegações de direito): - O imóvel onde a Ré reside desde que nasceu fica situado no Pátio .., n.º… , Amadora, fazendo parte do núcleo urbano de génese muito antiga, “fora dos limites da propriedade do Autor”, não está implantado no prédio rústico identificado na PI e não faz parte do prédio urbano aí identificado, estando inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia da ...; - Trata-se da casa que foi construída de raiz pela mãe da Ré há mais de 60 anos, tendo a Ré, tal como a sua mãe já antes tinha, a posse do imóvel de forma pública, pacífica e de boa-fé; - O quintal encontra-se vedado com uma rede com a altura de cerca de 1,20m, há cerca de 25 anos, a qual é visível da rua, existindo antes disso uma vedação em chapa; - A Ré sempre residiu no imóvel, bem como a sua mãe já residia, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, vindo a fazer, ao longo dos anos, obras estruturais e de conservação, designadamente a barraca que existia - construída com chapas de metal e madeira - foi melhorada pela Ré, que substituiu as chapas exteriores por tijolo e reboco, substituiu o telhado, fez a pintura exterior e nova vedação do quintal, à vista de todos e sem qualquer oposição do Autor ou de que quem quer que seja, sempre com a convicção de o imóvel ser seu; - A Ré paga IMI do imóvel e tudo o que diz respeito ao mesmo, tratando-o, ao longo dos anos em que aí vive, como se fosse seu; - Nunca à Ré foi pedida qualquer renda, sabendo o Autor, desde há mais de 60 anos, que a Ré reside no imóvel e que o trata como se fosse seu, nunca se opondo a tanto, nem a tendo interpelado para o que quer que fosse, ao contrário do que sucede nos imóveis que são seus, em que o Autor cobra rendas e faz obras de conservação; - Uma vez que a Ré tem a posse pública (à vista de toda a gente e sem qualquer oposição), pacífica (não esbulhou ninguém, o imóvel foi construído pela sua mãe e ela tem feito obras ao longo dos anos sem qualquer oposição verbal ou física de quem quer que seja) e de boa-fé (sempre com a convicção que o imóvel é seu e sem estar a lesar o direito de quem quer que seja, por jamais ter havido qualquer oposição) do prédio objeto dos presentes autos e que habita há mais de 60 anos, não “pode ser reconhecida ao A. a propriedade do prédio da R.”. O Autor, notificado para se pronunciar sobre a matéria de exceção (cf. despacho de 18-05-2022), apresentou articulado de Resposta em 02-06-2022, em que pugnou pela improcedência da exceção, alegando designadamente que: - Tanto a Ré como a sua mãe sempre souberam que o terreno onde fora erguida a casa por elas habitada pertencia a HP, que o herdara dos seus ascendentes, integrando, após o seu falecimento, a respetiva herança; - Tanto a Ré como todas as demais pessoas que residem e residiam no local sempre tiveram consciência de que todo o terreno circundante das edificações em causa fazia parte da exploração agrícola pertencente à família do Autor; - A Ré e a sua mãe sempre souberam que o terreno em que a casa estava implantada não lhes pertencia e nunca agiram com a intenção de procederem e serem reconhecidas como donas do terreno ou da casa; - O facto de a mãe da Ré e, posteriormente, a própria Ré, terem permanecido no local deveu-se exclusivamente à sua qualidade de descendentes de antigos trabalhadores da casa agrícola da família do Autor e à tolerância decorrente dessa qualidade e da cessação da atividade de tal casa, determinada pelas alterações sociais e económicas ocorridas na zona, ou seja, devido a uma permissão benevolente dos donos do terreno; - Nunca a Ré nem a sua mãe exerceram sobre o imóvel uma posse em nome próprio, nem o fizeram com a intenção de agir como donas do mesmo, visto saberem que o mesmo não lhes pertencia; - A Ré nunca teve a posse do imóvel e, ainda que a sua detenção fosse configurável como posse, nunca teria sido titulada, nem pública, mas oculta e de má fé, não podendo ter adquirido por usucapião o imóvel dos autos. Realizou-se audiência prévia, na qual foi, no que ora importa, proferido despacho convidando a Ré a “Concretizar os atos de posse sobre a casa e parcela de terreno reivindicadas”, bem como proferido despacho de identificação do objeto do litígio (com o seguinte teor: 1 – Se os bens revindicados pertenciam à herança deixada por HP e a Ré os ocupa sem título justificativo; 2 – Se se verifica a aquisição por usucapião daqueles bens pela Ré) e enunciação dos temas da prova (com o seguinte teor: A – Se a edificação e parcela de terreno revindicadas integram os prédios identificados no art.º 3º da PI; B – Se a Ré atua como proprietária fosse, há mais de 60 anos, na casa e parcelas de terreno revindicadas, à vista de todos, sem oposição e na convicção de não estar a lesar o direito de terceiros). Foi realizada audiência de discussão e julgamento, com a prestação de depoimento de parte pela Ré e a audição das testemunhas arroladas pelas partes. Em 27-04-2023 foi proferida a sentença (recorrida) cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência: A) Absolvo a R., RS, do pedido. Custas pelo A. (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Registe e notifique.” É com esta decisão que o Autor não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: 1.ª Por força dos depoimentos das testemunhas FA, CM e NN, nas passagens indicadas na Secção II das presentes alegações, deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, aditando-se um número 33 à relação dos factos provados, com o seguinte conteúdo: Os factos descritos nos n.ºs 7, 9, 11, 12, 13, 15 e 17 ocorreram sem que a R., a sua Mãe e o seu Avô praticassem tais actos com a intenção de agir como donos do terreno, mas antes aproveitando-se da tolerância dos donos do mesmo terreno. 2.ª A procedência da conclusão anterior determina que a R. e os seus antecessores sejam considerados meros detentores ou possuidores precários da parte dos imóveis que a R. vem usando, nos termos do art. 1253.º a) e b) do Código Civil, pelo que, não tendo sido provados factos que integrem a inversão do título da posse, prevista no art. 1265.º do mesmo Código, deve a douta sentença recorrida ser revogada e proferida decisão que, concedendo provimento à apelação, julgue a acção procedente por provada. 3.ª A douta sentença recorrida conheceu de uma questão não compreendida nem no objecto do litígio nem nos temas da prova, pelo que violou o disposto nos arts. 5.º e 573.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o que determina a sua nulidade, nos termos do art. 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil. 4.ª A procedência da conclusão antecedente e a declaração de nulidade da sentença determinam que o Tribunal de recurso conheça do objecto da apelação, nos termos do art. 665.º n.º 1 do Código de Processo Civil, julgando a acção procedente, por provada. 5.ª Para obstar à procedência da acção não pode ser atendido um direito que não foi exercido no processo pelo respectivo titular, nem em nome deste, acrescendo que a defesa deduzida no processo é incompatível com a existência desse direito, porque consiste em invocar a sua titularidade em pessoa diversa, pelo que, ao fazer prevalecer a posse da herança aberta por óbito de Mãe da R. sobre o direito do A., a douta sentença recorrida violou o disposto no art. 2075.º do Código Civil. 6.ª Não pode ser considerada para efeitos da aplicação do disposto no art. 1268.º do Código Civil, para prevalecer contra registo anterior ao início da posse, aquela que já incorpora o pressuposto do decurso do prazo para a verificação da usucapião, pelo que a douta sentença recorrida, ao julgar a acção improcedente, por prevalência da posse da herança aberta por óbito da Mãe da R. sobre o direito do A., violou o preceito legal acima citado e ainda o disposto nos arts. 1292.º e 303.º do mesmo Código. 7.ª Ainda que não procedam as conclusões anteriores, os factos dados como provados sob os n.ºs 5, 6, 11, 19 e 31, quando correctamente interpretados e conjugados com a respectiva fundamentação, designadamente a relativa ao n.º 31, impõem a conclusão de que o Avô da R. não construiu a casa a que se refere o n.º 7 com a intenção de agir como dono do imóvel, e a Mãe da R., bem como esta última, nunca fizeram uso do mesmo com essa intenção, antes se aproveitaram da tolerância dos donos. 8.ª A procedência da conclusão antecedente determina que a R. e os seus antecessores sejam considerados meros detentores ou possuidores precários da parte dos imóveis que a R. vem usando, nos termos do art. 1253.º a) e b) do Código Civil, pelo que, não tendo sido provados factos que integrem a inversão do título da posse, prevista no art. 1265.º do mesmo Código, não existe posse que possa prevalecer sobre o direito do A., devendo a douta sentença recorrida ser revogada e proferida decisão que, concedendo provimento à apelação, julgue a acção procedente por provada. 9.ª Por conseguinte, a douta sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação dos preceitos legais indicados nas conclusões anteriores, pelo que deve ser concedido provimento à apelação, revogando-se a douta sentença recorrida e julgando-se a acção procedente por provada. Foi apresentada alegação de resposta pela Ré, defendendo, em síntese, que não assiste qualquer razão ao Apelante, pelo que deve manter-se a sentença recorrida. No despacho que admitiu o recurso, consta designadamente “Entendo que os vícios invocados pela recorrente não se verificam”. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II - FUNDAMENTAÇÃO Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC). Identificamos, assim, as seguintes questões a decidir: 1.ª) Se deve ser aditado ao elenco dos factos provados o facto indicado pelo Apelante (novo ponto 33); 2.ª) Se a sentença é nula por o Tribunal recorrido ter conhecido de questão de que não podia conhecer, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC; 3.ª) Se os prédios “peticionados” fazem parte da herança (de que o Autor é herdeiro) e se a Ré deve restitui-los ao Autor (por não ter sido ilidida a presunção fundada no registo predial). Dos Factos Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos, para melhor compreensão e por se tratarem de factos plenamente provados por documento, o que consta entre parenteses retos nos pontos 3, 4 e 32): 1. HP faleceu em 21-01-1989. 2. O Autor, RP, é filho de HP. 3. A propriedade do prédio urbano sito na Estrada …, n.º …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia [anterior artigo 254 - caderneta predial junta com o requerimento de 15-02-2022], encontra-se atualmente registada, pela Ap. … de 1990/08/13 e averbamentos [relativos a transmissão de posição - doc. 4 junto com a PI] das Ap. 30 de 2001/05/23 e Ap. 1253 de 2012/12/13, tendo como causa a sucessão, em comum e sem determinação de parte, a favor de RP, HO, MF e … – Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda.. 4. A propriedade do prédio rústico sito em ..., denominado “...”, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, Secção A da mesma freguesia, encontra-se atualmente registada, Ap. … de 1990/08/13 e averbamentos [relativos a transmissão de posição - doc. 5 junto com a PI] das Ap. 17 de 2001/05/29 e Ap. … de 2012/12/13, tendo como causa a sucessão, em comum e sem determinação de parte, a favor de RP, HO, MF e … – Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda.. 5. Os prédios indicados em 3. e 4. integram um conjunto mais vasto que correspondia, ao tempo dos pais e avós do Autor, a uma exploração agrícola, em que algumas pessoas nela empregadas com caráter de permanência viviam em casas existentes na propriedade. 6. No local onde está implantado o prédio urbano indicado em 3., existe um conjunto de edificações que constituía o apoio de tal exploração agrícola, composto por casas de habitação de pessoal agrícola e abegoaria, currais, armazéns e outras edificações afetas à dita exploração agrícola. 7. A Ré vive atualmente numa casa que ocupa uma parcela do prédio urbano indicado em 3.. 8. Tal casa também tem a morada de Estrada da ..., Pátio …, n.º …, Amadora. 9. Nas traseiras dessa casa, a mãe da Ré, MC, implantou uma vedação demarcando uma parcela de terreno com área aproximada de 80 m2, de que fazia uso, no prédio rústico indicado em 4., desde data não concretamente apurada, mas anterior a 1978. 10. Os avós maternos da Ré viviam numa casa próxima daquela em que a Ré atualmente reside. 11. Foi o avô da Ré quem construiu a casa referida em 7.. 12. Em data não concretamente apurada, mas há pelo menos 60 anos, a mãe da Ré, MC, passou a residir em tal casa, o que fez até ao seu falecimento, em 1991. 13. Tendo realizado obras de melhoramento e ampliação. 14. Tudo à vista de todos e sem qualquer oposição de terceiros. 15. A Ré, enquanto criança e adolescente, viveu com a sua mãe e irmãos nessa casa, 16. Que deixou no período entre 1973 e 1979, data em que voltou a habitá-la. 17. Após o falecimento da mãe, em 1991, a Ré continuou a habitar a mesma casa, com os filhos e uma irmã, 18. Sem pagamento de qualquer contrapartida monetária e à vista de todos. 19. A Ré nunca ajustou com o Autor ou com qualquer membro da família deste algum negócio que tivesse por objeto a propriedade ou o mero uso da casa e do terreno onde habita. 20. Nem se opôs ao exercício dos direitos do Autor ou outros herdeiros sobre as demais edificações nos prédios indicados em 3. e 4. dos factos provados. 21. A Ré nunca foi interpelada por ninguém com a alegação de que a sua casa estava implantada em terreno alheio. 22. O Autor nunca interpelou a Ré para o pagamento de qualquer renda. 23. Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2017, a Ré foi abordada pelo Autor na sua casa, 24. tendo remetido ao mesmo, através da sua advogada, a certidão matricial respeitante ao prédio urbano, inscrito sob a matriz com n.º ..., da freguesia da ... – Venda Nova. 25. Após tal envio, nunca mais foi contactada por quem quer que fosse. 26. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 1991, a Ré realizou obras na casa, nomeadamente substituição do telhado, pintura exterior e substituição das chapas exteriores por tijolo e reboco, sem que o Autor ou qualquer outra pessoa a tal se opusesse. 27. Mais procedeu à substituição da vedação do quintal, há cerca de 25 anos, a qual é visível da rua. 28. Nunca lhe foi dito que não podia vedar o seu quintal, por não ser seu. 29. Nos outros imóveis implantados no prédio urbano descrito em 3., o Autor, tal como os demais herdeiros e anteriormente a sua mãe, cobra rendas e faz obras de conservação, mais pagando os impostos incidentes sobre os ditos imóveis. 30. Tudo com o conhecimento da generalidade das pessoas e sem que alguém lhes contrariasse o dito uso. 31. Tanto o avô da Ré, como a mãe desta, sabiam que o imóvel em questão não lhes pertencia e que os donos não lhes tinham conferido autorização para o respetivo uso, nem feito acordo de onde resultasse a transmissão para a mãe da Ré de tal imóvel ou da sua utilização. 32. A Ré paga IMI do imóvel indicado em 7. [mais precisamente, a Ré figura como titular do rendimento do prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., com origem no artigo 2967, localizado na Estrada da ..., nº…, na ..., descrito como prédio urbano de um só piso de rés-do-chão, com duas divisões e cozinha, com a superfície coberta de 21 m2, cuja afetação é “Prédios não licenciados, em condições muito deficientes de habitabilidade”, com a área total do terreno de 21 m2, a área de implantação de 21 m2 e a área bruta de construção, bem como a área bruta privativa de 21 m2, inscrito na matriz em 1992 – caderneta predial junta aos autos pelo Autor como doc. 7 da PI e pela Ré no requerimento de 11-01-2022]. Na sentença foram considerados não provados os seguintes factos: 1. Os avós maternos da Ré trabalhavam na exploração agrícola indicada em 5. dos factos provados, sendo a utilização da casa onde residiam facultada pelos donos dos prédios e da exploração agrícola neles realizada, sem qualquer contrapartida, em razão da sua qualidade de empregados agrícolas da exploração. 2. A casa onde a Ré habita atualmente era uma edificação, anteriormente destinada a abegoaria, pertencente à exploração agrícola. 3. A Ré ignorava que se encontrava a lesar interesses alheios. 4. O quintal utilizado pela Ré encontra-se vedado com uma rede com a altura de cerca de 1,20 metros. 5. Todos os vizinhos da Ré a reconhecem como dona do imóvel. Da modificação da decisão da matéria de facto O Autor-Apelante, invocando os depoimentos das testemunhas FA, CM e NN, pretende que seja aditado, ao elenco dos factos provados, um ponto 33, com o seguinte teor: Os factos descritos nos n.ºs 7, 9, 11, 12, 13, 15 e 17 ocorreram sem que a Ré, a sua Mãe e o seu Avô praticassem tais atos com a intenção de agir como donos do terreno, mas antes aproveitando-se da tolerância dos donos do mesmo terreno. A Ré-Apelada discorda, invocando o depoimento da testemunha FA, sem, contudo, observar o disposto no art. 640.º, n.º 2, al. b), do CPC. Vejamos. É sabido que, na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou as exceções (incluindo as contra-exceções) alegados pelas partes, bem como os factos instrumentais, e os factos (que não deixam de ser essenciais) complementares (aqui se incluindo os factos base de presunções legais e os factos contrários aos legalmente presumidos) ou concretizadores que resultem da instrução da causa, bem como os factos de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC). O Autor intentou uma ação de petição da herança, alegando que os prédios identificados nos autos fazem parte da herança da sua falecida mãe, estando registada a aquisição do direito de propriedade a favor dos respetivos sucessores. Pretendendo o Autor prevalecer-se da presunção fundada no registo predial, cujas certidões juntou, à Ré incumbia provar os factos que alegou, tendo em vista o reconhecimento, ainda que a título de exceção, do direito de propriedade que se arroga sobre os mesmos, com base na usucapião (implicitamente invocada), ou seja, os factos atinentes à (sua) posse (adquirida por sucessão) exercida durante um lapso temporal suficiente para a aquisição do referido direito. Perante a possibilidade de operar, no caso dos autos, alguma das presunções legais, atinentes à posse invocada, em particular a consagrada no art. 1252.º, n.º 2, do CC (nos termos do qual, “(E)m caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto”), pretenderá o Autor-Apelante com o aditamento ora requerido demonstrar factos que, na prática, funcionam como uma espécie de contra-exceção, alguns dos quais foram alegados na Petição Inicial (numa antecipada defesa). Assim, foi alegado no art. 13.º da PI que “Após o falecimento da Mãe da R., em 1991, a R. continuou a habitar a mesma casa, sempre sem pagamento de qualquer contrapartida, por mera tolerância dos donos dos imóveis, tal como, aliás, sucedia com outras pessoas residentes no mesmo aglomerado de edificações”. No art. 16.º da PI foi alegado que “A R., tal como todas as outras pessoas que residem em casas implantadas no mesmo local, sabe que essas casas pertencem à Herança de HP, ou aos Herdeiros de uma Irmã desta Senhora, MM, a quem algumas dessas casas ficaram a pertencer em partilhas por óbito da Avó do A., quer por pagarem renda por essa utilização, quer, nos casos em que não pagam renda, por terem consciência de que a utilização que delas fazem decorre exclusivamente da tolerância dos donos”. Finalmente, no art. 17.º da PI foi alegado que “Essa tolerância tem a sua origem no facto de se tratar de famílias há muito ligadas à propriedade e de a sua presença constituir obstáculo a ocupações por outras pessoas, com a constituição de aglomerados clandestinos de remoção problemática, pelo que a permanência das famílias de antigos empregados da exploração agrícola subsistiu, mesmo depois do desaparecimento dessa exploração.” Não se olvida ainda o que foi alegado no articulado de Resposta, constatando-se que, nos seus Articulados, o Autor não alegou que o avô da Ré (mas apenas a mãe desta e a própria Ré) ao atuar da forma descrita não tinha a intenção de agir como dono do terreno, mas antes aproveitar-se da tolerância dos donos do mesmo terreno. O que não obsta a que esse facto possa vir a ser considerado pelo Tribunal caso resulte da instrução. O que o Autor-Apelante pretende é, bem vistas as coisas, fazer a prova de factos contrários aos factos presumidos, isto é, a prova de factos que visam afastar o funcionamento das presunções legais consagradas nos artigos 1252.º, n.º 2, e 1268.º, n.º 1, ambos do CC. O Apelante veio, assim, requerer o aditamento de factos supostamente não constantes do elenco dos factos provados e não provados, que invoca numa formulação sintética e algo conclusiva, factos esses impeditivos do efeito jurídico (em particular do previsto no art. 1252.º, n.º 2, do CC) presuntivo dos factos que identifica (descritos nos n.ºs 7, 9, 11, 12, 13, 15 e 17). Em particular, é claro que o Autor almeja beneficiar da aplicação do disposto no art. 1253.º, alíneas a) e b), do CC, nos termos do qual são havidos como detentores ou possuidores precários: a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito. Pretende, pois, afastar o enquadramento jurídico feito na sentença, na parte em que aí se reconheceu que existia uma situação de posse, defendendo, ante os (novos) factos provados, que se está perante um caso de simples detenção. De referir, lembrando as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, no seu “Código Civil Anotado”, Volume III, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 9 e 10, que na primeira categoria, dos que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, cabem “os casos de posse e nome alheio, como sucede com os empregados ou trabalhadores do proprietário ou usufrutuário do imóvel”; e que os atos especialmente visados na alínea a) são os “actos facultativos”, que “supõem a inércia do titular do direito. Este não age, em consequência disso, o vizinho tem um benefício (…) o não exercício, da parte do titular de um direito, da faculdade contida no próprio direito, não pode fazer nascer noutro, qualquer pretensão sobre os bens que constituem o objecto daquele direito”. Continuam aqueles autores referindo o duplo aspeto de que se podem revestir os atos facultativos, abrangendo os atos praticados a título precário por aquele que tira proveito da inação do titular do direito, bem como os atos de abstenção ou omissão praticados pelo titular do direito, no uso pleno da faculdade que a lei lhe confere, acrescentando que “Em qualquer dos dois grupos de casos só haverá posse a partir do momento em que o poder de facto exercido pelo beneficiário revestir, objectivamente, a aparência do exercício de um direito”. Já quanto à alínea b), atinente aos atos de tolerância do titular do direito, explicam os referidos autores que não pretendeu o legislador alterar o sentido que a palavra “tolerância” tinha no código de 1867, atinente aos “actos praticados por um indivíduo que não é o titular da coisa ou do direito sobre que incidem, e que, em virtude de motivos de amizade, de parentesco ou de vizinhança, a lei supõe praticados com o consentimento daquele titular e não significam, portanto, a afirmação de um direito próprio”. Acrescentam que o aproveitamento da tolerância do titular do direito se traduz em “actos de intromissão excepcional no âmbito deste direito (atravessar prédio alheio, utilizar em proveito próprio certa água alheia, etc.), enquanto os actos facultativos assentam em faculdades normalmente contidas no direito. Os actos facultativos têm como causa a inércia do titular do direito; os actos de tolerância baseiam-se no seu consentimento, expresso ou tácito”. Dito isto, é inevitável constatar que o Autor alegou, nos seus Articulados, um conjunto de factos que consubstanciam o consentimento, expresso ou tácito, em que assentam os ditos atos de tolerância, subsumíveis na previsão da alínea b) do art. 1253.º do CC, factos esses que foram considerados não provados nos dois primeiros pontos do elenco dos factos não provados: 1. Os avós maternos da Ré trabalhavam na exploração agrícola indicada em 5. dos factos provados, sendo a utilização da casa onde residiam facultada pelos donos dos prédios e da exploração agrícola neles realizada, sem qualquer contrapartida, em razão da sua qualidade de empregados agrícolas da exploração. 2. A casa onde a Ré habita atualmente era uma edificação, anteriormente destinada a abegoaria, pertencente à exploração agrícola. Porém, o Autor, na sua alegação de recurso, ao invés de se reportar especificamente aos factos concretos alegados na Petição Inicial e no seu articulado de Resposta no sentido de serem, agora, considerados como provados, veio propor uma redação “aglutinadora”, incluindo na mesma, com a referência ao aproveitamento da “tolerância dos donos do terreno”, um “facto conclusivo”, ou seja, uma conclusão que haveria de ser retirada de um conjunto de factos, mais precisamente os vertidos nos pontos 1 e 2 do elenco dos factos não provados, que o Apelante não cuidou impugnar. Não se está, pois, aqui perante um verdadeiro facto, não se podendo considerar a expressão proposta como sendo de uso corrente e coloquial, pelo menos não no contexto dos presentes autos, em que o Apelante não veio requerer que fossem dados como provados os factos ilustrativos dessa concreta “tolerância”, em particular dos vertidos nos dois primeiros pontos do elenco dos factos não provados. Nessa parte, improcede a pretensão do Apelante. Quanto à restante matéria, trata-se de factualidade alegada no articulado de Resposta e que, na parte atinente ao avô da Ré, embora não alegada, cumpre averiguar se resultou complementarmente da instrução da causa, já não se podendo entender, pelas razões acima referidas, que seja de natureza conclusiva e/ou que o seu aditamento seja juridicamente irrelevante. Na verdade, tal factualidade está intrinsecamente relacionada com a vertida no ponto 31, estando provado que tanto o avô da Ré, como a mãe desta, sabiam que o imóvel em questão não lhes pertencia e que os donos não lhes tinham conferido autorização para o respetivo uso, nem feito acordo de onde resultasse a transmissão para a mãe da Ré de tal imóvel ou da sua utilização. De referir que, na motivação da sentença, a este propósito se refere, além do mais, o seguinte: «Sobre esta matéria, a testemunha FA, irmão da R., fez referência a conversas que ouviu entre o avô e o Sr. Pessoa sobre a parcela de terreno em que se encontrava a barraca da sua mãe, mais referindo que achava que esta era do Sr. Pessoa, porque o ouviu dizer ao avô, referindo-se à mesma, “Isto é teu”. Contudo, não foi possível perceber o contexto e datas de tais conversas, uma vez que mais nenhuma testemunha se referiu a elas. Sendo certo que mencionou que na altura do Natal ia com a avó entregar um borrego a casa do Sr. Pessoa, tal não se mostra suficiente para concluir que tal oferta era um ato de agradecimento pela tolerância daquele à permanência da mãe da R. em tal local ou, bem assim, por uma doação dessa parcela de terreno.» Neste Tribunal da Relação foi ouvida na íntegra a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, mostrando-se o depoimento desta testemunha crucial e até bem mais esclarecedor do que o Tribunal a quo considerou. A testemunha FA, irmão da Ré, disse que, tal como ela, nasceu na barraca de madeira que o seu avô construiu num terreno - um quintal onde o avô guardava as ovelhas - que era do Sr. Pessoa, barraca essa inicialmente identificada pelo n.º 6, o mesmo da casa onde o seu avô vivia - o que evidencia bem a ligação do quintal e da barraca aí implantada com aquela casa. Esclareceu que o seu avô era arrendatário, tendo-lhe sucedido o irmão (da testemunha e da Ré) MC, pois ambos pagavam renda, conforme disse a testemunha, referindo que, quando o avô morreu, a sua irmã RS não foi viver para a casa arrendada porque ela não tinha posses para pagar a renda. Afirmou, é certo, que o Sr. Pessoa (que conhecia como sendo o dono dos prédios e senhorio), falando com o seu avô e referindo-se ao quintal lhe dizia “isso é teu”, mas, percebeu-se bem, que, com essa afirmação, o Sr. Pessoa estava apenas a dizer ao seu arrendatário que podia usar o dito terreno como sucedeu, pelo menos para guardar ovelhas, de modo algum se podendo retirar dessas palavras (tanto mais tendo em consideração o facto vertido no ponto 31) que o dito quintal era propriedade do avô da Ré. Aliás, parece-nos óbvio que se o avô da Ré o tivesse comprado (ou adquirido de outra forma), ele próprio o teria dito aos seus filhos, o que não consta ter feito nem se coaduna com o facto provado no ponto 31 (tanto o avô da Ré, como a mãe desta, sabiam que o imóvel em questão não lhes pertencia). No contexto fáctico apurado, não podemos deixar de ver no gesto acima referido (a oferta do borrego) um ato de cortesia e agradecimento por parte do avô da Ré para com o senhorio, pois embora pagasse renda da casa onde vivia, podia guardar o rebanho num terreno próximo, onde até construiu uma barraca (porventura, inicialmente, como abrigo para os animais). Também resultou do depoimento da testemunha MP, mulher do Autor, que revelou conhecer bem o local e a família da Ré, ter sido um irmão desta, o Sr. MC, quem ficou a viver, até à sua morte, na casa que era do avô da Ré, pagando renda. De salientar que a própria Ré, nas declarações que prestou, disse que um seu irmão tinha ficado a viver na casa do avô e pagava renda, como, aliás, os residentes das outras casas. Afirmou ainda a Ré, de forma que não nos mereceu nenhuma credibilidade, pelo menos com o sentido que quis imprimir à sua afirmação, que a mãe dizia que a casa era dela e que, quando esta morreu, os irmãos disseram que não queriam nada dela e que ela, Ré, queimou os papéis que diziam respeito ao imóvel. Porém, ainda que a mãe da Ré possa ter afirmado isso em algumas ocasiões, o que, aliás, foi também referido pela testemunha CM, estamos convictos que com tais afirmações apenas se estava a referir à casa como sendo a sua residência, do mesmo modo que quem reside numa casa arrendada pode dizer que se trata da sua casa, pois ficou claríssimo (e o facto vertido no ponto 31 aponta nesse sentido) que a mãe da Ré nunca se arrogou proprietária de nenhuma casa, limitando-se a residir na barraca que o seu pai havia construído, com deficientes condições de habitabilidade, por falta de condições financeiras para uma alternativa melhor, alternativa essa que poderia passar, como é normal nestas situações, pela atribuição de habitação social, expetativa essa que a própria Ré tinha, como resultou claro do depoimento do seu filho NN. Portanto, é nossa convicção que a Ré, durante o período da sua infância e adolescência e inclusivamente enquanto a mãe foi viva, residiu na casa sem se considerar dona da mesma, já que, quanto muito, consideraria a mãe como sendo a dona. Mas depois da morte da sua mãe, a Ré começou a considerar que o imóvel devia ficar para ela, o que poderá ter a ver com a circunstância de não pagar renda e os irmãos não terem interesse na barraca, sendo ela que ali ficou a viver (juntamente com uma irmã com deficiência). Por isso mesmo, a dada altura, já com a intenção de agir como dona da casa, realizou obras - transformou a barraca de madeira numa construção de alvenaria - e até participou nas Finanças a existência de uma casa (embora com caraterísticas não inteiramente coincidentes com o imóvel em apreço, pelo menos no que à área descoberta concerne). Assim, neste particular, não assiste razão ao Apelante. Todavia, até essa altura, estamos convictos que nem o avô, nem a mãe da Ré, nem mesmo esta última tinham a intenção de agirem como donos do terreno. O avô da Ré era arrendatário de uma casa a cujos donos (da família do Autor) pagava as respetivas rendas, guardava as suas ovelhas num espaço pertencente ao senhorio, tendo construído aí uma barraca, atuação essa que não mereceu qualquer oposição da parte do senhorio; a mãe da Ré acabou, a dada altura, por ir viver nessa barraca, junto da casa dos pais, seguramente para ficar perto da família e dada a falta de condições económicas, bem sabendo estes familiares da Ré que não eram donos do terreno, inferindo-se dos factos apurados que não tinham intenção de agirem como donos do terreno; o mesmo acontecendo relativamente à Ré, enquanto vivia com a sua mãe na dita barraca, designadamente durante a sua infância e adolescência, e até à morte desta, sem oposição por parte dos senhorios (que se foram sucedendo), os quais tinham conhecimento da relação familiar da Ré com o Sr. MC, que arrendava a casa do n.º 6, como antes sucedera com aquele seu avô. Pelo exposto, decide-se aditar o ponto 31-A com o seguinte teor: O avô da Ré procedeu da forma descrita no ponto 11, a mãe da Ré praticou os atos descritos nos pontos 9, 12 e 13, e a Ré os atos descritos no ponto 15 sem a intenção de agirem como donos do terreno (onde está a casa e o quintal referidos em 7 e 27, respetivamente). Da nulidade da sentença O Tribunal recorrido, na sentença em apreço, considerou que o Autor é herdeiro de HP, falecida em 21-01-1989, concorrendo à sucessão aberta por sua morte, estando, assim, preenchido o primeiro requisito para a procedência da ação de petição de herança. Mais se considerou que a propriedade dos prédios identificados nos autos, à luz do disposto no art. 7.º do Código do Registo Predial, se presume da herança aberta por morte de HP, uma vez que os titulares aí inscritos são os seus herdeiros, em comum e sem determinação de parte. Entendeu ainda que a mãe da Ré tinha uma posse não titulada e de má fé, e que, tendo falecido no ano de 1991, a posse que era exercida por esta continuou nos seus sucessores, independentemente da apreensão material da coisa, conforme estabelece o art. 1255.º do CC, não tendo a Ré provado a existência de qualquer ato que fosse suscetível de inverter o título da posse relativamente aos demais herdeiros, no sentido de se considerar que iniciara uma posse em nome próprio e exclusivo, não sendo suficiente o facto de ter continuado a habitar a casa, realizando obras na mesma e na vedação do terreno que se encontra nas traseiras, nem a circunstância de ter provado que pagava IMI. Concluiu, assim, o Tribunal recorrido que, desde 1991 até à atualidade, a Ré não exerceu uma posse em nome próprio, antes em nome da herança aberta por óbito de sua mãe e, portanto, em conjunto com a dos demais sucessores, posse essa que não lhe permite a aquisição por usucapião em nome próprio, nem tão pouco a presunção do direito emergente do art. 1268.º do CC, e que, não sendo a usucapião de conhecimento oficioso e não tendo sido esta invocada em relação à herança aberta por morte da mãe da Ré, improcede, forçosamente, tal exceção. Na parte final da fundamentação da sentença, vem, todavia, afirmado pelo Tribunal recorrido que a ação deve improceder por não estar demonstrado que os bens peticionados sejam propriedade da herança aberta por óbito de HP, uma vez que, por aplicação da regra prevista no art. 1268.º, n.º 1 do CC, a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da Ré e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, se sobrepõe à presunção de titularidade da propriedade a favor do Autor e restantes herdeiros de HP, registada em data posterior ao início da posse daquela. No entender do Autor-Apelante a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por ter conhecido de uma questão não compreendida no objeto do litígio ou nos temas da prova, pelo que violou o disposto nos arts. 5.º e 573.º n.º 1 do CPC. Apreciando. Nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. De salientar ser absolutamente pacífico que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que alude aquele normativo legal, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos - mormente alegações de factos e meios de prova - produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões. Neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 10-01-2012, no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Embora este entendimento seja pacífico, citamos, pela sua clareza, a explicação de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 737, a respeito do conceito de questões empregado na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º em apreço, referindo que: “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça.” Na anotação ao art. 608.º, págs. 712-713, estes autores clarificam que na sentença o juiz deverá responder aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que a apreciação de um esteja prejudicada; o mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade), acrescentando que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.” Nesta linha de pensamento, veja-se o acórdão do STJ de 02-07-2009, proferido na Revista n.º 534/09-2 - 2.ª Secção, afirmando-se no ponto I do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt, que: “I - O juiz, embora, como regra, só possa servir-se dos factos alegados pelas partes, não está sujeito às alegações destas no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: pelo que respeita ao direito, o juiz pode ir buscar regras diferentes das invocadas pelas partes (indagação), pode atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhes deram (interpretação), ou fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram (aplicação).” Dito isto, podemos afirmar que as “questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” (cf. art. 608.º, n.º 2, do CPC) não são necessariamente coincidentes com o conteúdo do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Idealmente, se o despacho de identificação do objeto do litígio tiver sido corretamente elaborado, até poderá existir coincidência, na medida em que naquele despacho deverão ser identificados, de forma sucinta, os pedidos (incluindo reconvencionais) e respetivas causas de pedir, bem como as exceções perentórias deduzidas. Atentemos melhor no teor da sentença recorrida em ordem a determinar se a mesma enferma da nulidade invocada, passando a citar (omitindo as notas de rodapé, salvo a reproduzida entre parenteses retos) a parte da fundamentação contra a qual o Apelante se insurge (e que é desenvolvida depois do parágrafo em que se afirma que “Assim, não sendo a usucapião de conhecimento oficioso (art.º 303.º ex vi art.º 1292.º, ambos do CC), e não tendo sido esta invocada em relação à herança aberta por morte da mãe da R., improcede, forçosamente, tal exceção.”): «Aqui chegados, porém, e considerando o que acima se disse sobre a continuidade da posse iniciada pela mãe da R., nos termos do art.º 1255.º do CC, haverá ainda que analisar se existe confronto das presunções que decorrem, a favor dos herdeiros de HP, por força do art.º 7.º do Código do Registo Predial, e a favor da herança aberta por morte da mãe da R., MCl, por força do disposto no art.º 1268.º do CC. Com efeito, estabelece este último artigo que “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.” A presunção de titularidade do direito a favor do possuidor é um dos principais efeitos da posse, presumindo-se, no que aqui nos interessa, que aquele que exerce atos materiais próprios do direito de propriedade, é titular desse direito. Como bem esclarece, a propósito desta matéria, Menezes Leitão, “o facto de alguém estar na posse de uma coisa implica que a lei presuma que ele é igualmente titular do direito sobre a mesma, dispensando-o de ter de provar essa titularidade para exercer a posse (possideo quia possideo). Consequentemente, a menos que se prove a existência de um direito real sobre a coisa, o possuidor verá conservada a sua posse. A posse implica assim a presunção da propriedade, o que dá uma importante vantagem ao possuidor.” Ora, no caso de conflito de presunções decorrentes da posse e do Registo Predial, estabelece tal artigo que prevalecerá a primeira, exceto se o registo for anterior ao início da posse. Revertendo ao caso que aqui nos ocupa, resulta da factualidade provada que a posse iniciada pela mãe da R., que continuou nos seus sucessores após o seu falecimento, nomeadamente na R., teve início em data não concretamente apurada, mas há pelo menos 60 anos (facto provado 12.). Por sua vez, dos factos 3. e 4. resulta que as inscrições no Registo Predial a favor dos herdeiros de HP são posteriores ao início de tal posse. Assim, é forçoso concluir, por aplicação da regra prevista no art.º 1268.º, n.º 1 do CC, que a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da R., e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, se sobrepõe à presunção de titularidade da propriedade a favor do A. e restantes herdeiros de HP, porque registada em data posterior ao início da posse daquela. Consequentemente, não existindo qualquer registo anterior a favor do A. e restantes herdeiros, nem tendo este alegado, nem demonstrado, a cadeia de transmissões anteriores ao mesmo – porque se está perante uma aquisição derivada, a título de sucessão por morte –, não se mostra ilidida a presunção de titularidade do direito de propriedade que emerge do n.º 1 do art.º 1268.º do CC a favor da herança aberta por óbito de MC, mãe da R. [No presente caso não é aplicável a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/99, de 18 de maio de 1999, onde se lê que “a posse a que se reporta o mencionado artigo só pode ser a que, revestindo-se dos requisitos inerentes ao seu conceito, (...) ainda lhe falta capacidade aquisitiva por carência do decurso do tempo necessário”, uma vez que não foi invocada a usucapião a favor da herança aberta por morte da mãe da R. e a mesma não é de conhecimento oficioso]. De tudo decorre que, prevalecendo tal presunção, se impõe a conclusão de que as parcelas dos prédios onde se encontram implantadas a casa e logradouro/quintal onde reside a R. não são propriedade dos herdeiros de HP. Por outro lado, pese embora o A. tenha alegado que tinha a posse de tais prédios, tal como já a tinham os seus antecessores, a verdade é que não resultou provado que, sobre as concretas parcelas ocupadas pela mãe da R. e, desde 1991, pela R., estes realizassem qualquer ato material suscetível de ser qualificado como corpus da posse, nos termos que supra se explicitou. Pelo contrário, resultou provado que a R. nunca foi interpelada para qualquer pagamento de rendas e que foi esta e a sua mãe que realizaram obras em tal casa, bem como a vedação e sua posterior substituição, ao contrário do que sucedia nas demais edificações do prédio urbano indicado em 3. dos factos provados. Face ao que supra se expôs, concluindo-se que os bens aqui peticionados não são propriedade da herança aberta por óbito de HP, improcede a pretensão do A..» Portanto, o Tribunal recorrido considerou que não podia prevalecer a presunção legal invocado pelo Autor fundada no registo predial, mas não assentou esse entendimento no reconhecimento da Ré como sendo possuidora e, assim, a titular do direito de propriedade sobre a parte do prédio identificada nos autos (rejeitando que tivesse sido adquirido por usucapião), mas antes na consideração de que se verificava a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da Ré e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991 (isto apesar de reconhecer não ter sido invocada a usucapião a favor da herança aberta por morte da mãe da Ré e não ser aquela de conhecimento oficioso). Será que na sentença se conheceu, assim, de questão de que o Tribunal não podia conhecer ou (apenas) se incorreu em erro de julgamento, fazendo um diferente (porventura errado) enquadramento jurídico dos factos provados? Segundo o Autor-Apelante a sentença recorrida conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, porquanto os factos alegados como manifestação da posse que foi invocada pela Ré não podiam ser considerados - pelo menos sem que ele tivesse a possibilidade de se pronunciar a esse respeito - como uma manifestação da posse exercida pela herança da mãe da Ré, configurando, assim, uma exceção (perentória), ao afastarem a presunção decorrente do registo predial. Note-se que o Apelante não defende que factos não abrangidos pela previsão do art. 5.º, n.ºs 1 e 2, do CPC do CPC tenham sido indevidamente incluídos no elenco dos factos dados como provados, em violação direta daquele preceito legal. Da sua linha de argumentação resulta sim que os factos provados (não questionados/impugnados no presente recurso) foram qualificados incorretamente, o que não configura causa de nulidade da sentença, mas erro de julgamento. Um tal erro até poderá advir da violação (indireta) do disposto no referido art. 5.º do CPC, caso se conclua que, na fundamentação de direito, se assumiu a (suposta) ocorrência de factos não alegados pela Ré na sua Contestação, designadamente a existência de uma herança indivisa aberta por óbito de sua mãe e uma sucessão na posse em benefício de todos os (supostos) sucessores da mãe da Ré (desconsiderando a possibilidade de existirem testamentos e repúdios da herança). Porém, isso não parece traduzir-se no conhecimento de questão de que o Tribunal recorrido não podia conhecer, já que não deixou de visar a averiguação da questão de saber se, com base na presunção registal invocada pelo Autor, os prédios peticionados faziam parte da herança da mãe deste. É certo que a Ré, arrogando-se possuidora e (por via da usucapião implicitamente invocada) a atual proprietária do prédio, não alegou que o prédio fazia parte da herança aberta por óbito da sua mãe. Mas, por outro lado, ao Autor incumbia provar que o prédio possuído pela Ré faz parte integrante da herança aberta por óbito da mãe daquele, procurando prevalecer-se de presunção (fundada no registo) que a Ré pretendeu ilidir com a defesa deduzida na Contestação, fazendo-o, como vimos, sem quaisquer alegações de direito. A circunstância de o Tribunal recorrido, na sentença, ter feito - resta saber se bem - uma qualificação jurídica dos factos provados diversa da que resulta do despacho de identificação do objeto do litígio não configura a causa de nulidade em apreço, tanto mais considerando que a Contestação da Ré é completamente omissa quanto à indicação do instituto da usucapião ou quaisquer preceitos legais. Importava apreciar se (i) o direito de propriedade invocado pelo Autor estava demonstrado, bem como conhecer (ii) da exceção que foi arguida, de forma algo incipiente, pela Ré, exceção essa que se nos afigura ter sido corretamente identificada no despacho de identificação do objeto do litígio, servindo as considerações constantes da sentença para dar resposta negativa a ambas as questões. Portanto, o que está fundamentalmente aqui em causa, mais do que o conhecimento de uma nova questão à luz do disposto no art. 608.º, n.º 2, do CPC (um novo pedido ou uma nova exceção) é uma diferente qualificação jurídica dos factos em termos que não poderiam ter sido perspetivados pelas partes, suscitando uma nova questão jurídica de que não podia o Tribunal a quo ter conhecido sem que tivesse sido precedida da prévia audição das partes. Efetivamente, é inquestionável que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cf. art. 3.º, n.º 3, do CPC. Este comando é, aliás, uma decorrência do princípio mais abrangente da tutela jurisdicional efetiva contido no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e do direito a um processo equitativo consagrado no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Na perspetiva tradicional, que temos adotado, a inobservância desse princípio pode gerar nulidade processual, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC (“quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”), a qual, quando coberta por decisão judicial, poderá implicar a própria nulidade dessa decisão, a arguir no respetivo recurso. Com efeito, o meio próprio para reagir contra as nulidades processuais cobertas por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou (ainda que só de modo implícito) o respetivo ato ou omissão é o recurso desse despacho, como já explicava MC, referindo a “doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se” (in “Noções elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 183). Não estando a nulidade a coberto de decisão judicial (despacho), a mesma deve ser arguida, mediante reclamação, nos termos e prazo do art. 199.º do CPC. Numa perspetiva mais recente, alguma jurisprudência vem afirmando que a arguição de nulidade da sentença, por nesta o Tribunal a quo ter efetuado uma qualificação jurídica diversa da equacionada pelas partes, sem audição prévia das mesmas, se integra nas nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, sendo assim apenas invocável em sede de recurso da mesma sentença e não por reclamação formulada ao abrigo do disposto no art. 195.º do CPC, perante o Tribunal a quo (neste sentido, exemplificativamente, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 19-11-2020, no proc. n.º 3332/13.4TBTVD-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt). No caso dos autos, seja qual for a perspetiva que se adote, é inevitável concluir que, na sentença em apreço, não podia o Tribunal recorrido ter avançado pela qualificação jurídica dos factos nos termos em que o fez sem previamente auscultar as partes a esse respeito. No atual estado do processo, as partes já tiveram, nas suas alegações recursórias, a oportunidade de se pronunciarem, pelo que, não obstante se reconheça a nulidade da sentença, importa conhecer do restante mérito do recurso, averiguando se, como defende o Apelante, esse enquadramento jurídico padece de erro de julgamento, mormente no que concerne à aplicação do disposto no art. 1268.º do CC, por o Tribunal a quo ter julgado verificada, com base em factos que se reportavam aos pressupostos da usucapião invocada pela Ré, a presunção da titularidade do direito de propriedade a favor da mãe da Ré e da herança aberta por sua morte, a partir de 1991, em detrimento da presunção legal invocada pelo Autor. Pelo exposto, julga-se verificada a invocada nulidade da sentença, passando-se a apreciar o restante objeto da apelação (cf. art. 665.º, n.º 1, do CPC). Da petição da herança O Autor intentou uma ação de petição da herança, ao abrigo do disposto no art. 2075.º do CC, cuja procedência depende, no caso em apreço, da demonstração dos seguintes requisitos: 1.º) que o Autor tem a qualidade de herdeiro (o que já foi reconhecido na sentença recorrida); 2.º) que os prédios peticionados pertencem à herança; 3.º) que a Ré os vem possuindo sem qualquer título, já tendo sido reconhecido na sentença que a Ré não adquiriu por usucapião o respetivo direito de propriedade. Não estamos perante uma ação de reivindicação (que haveria de ter sido intentada por todos os herdeiros), muito embora sejam evidentes os pontos de contacto entre uma e outra ação. Assim, já no “Código Civil Anotado” por Pires de Lima e Antunes Varela, Volume VI, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 131, se afirmava que a caraterização da petição da herança através dos dois elementos que a definem tem levantado na doutrina as maiores dificuldades e viva controvérsia, procurando aqueles autores distingui-la da ação de reivindicação, referindo que “o Código aceitou a definição proposta no Anteprojeto quanto ao duplo objecto da petição: o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do requerente, em primeiro lugar; e a consequente restituição de todos os bens da herança (quer o requerente seja considerado como único herdeiro ou como simples co-herdeiro) ou de parte deles, indevidamente retidos pelo demandado”. Na jurisprudência, a este respeito, veja-se, exemplificativamente, o acórdão da Relação do Porto de 15-12-2010, proferido no processo n.º 802/05.1TBLMG.P1: “I – O que, na realidade, separa as duas acções – de petição da herança e de reivindicação – resumir-se-á à circunstância de a acção de petição de herança poder assumir um carácter universal, visando globalmente todo o património da herança ( o universum jus defuncti de que falam Pires de Lima e Antunes Varela), enquanto que a acção de reivindicação terá sempre como objecto coisas determinadas, sendo certo ainda que, enquanto a acção de petição de herança pode ser intentada por um só herdeiro (conforme dispõe expressamente o art. 2078º do CC), a acção de reivindicação de bens da herança, caindo sob a alçada do art. 2091º, nº1 do mesmo Cod. corresponderá a um direito relativo à herança que apenas pode ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros. II – Tal como acontece na acção de reivindicação, também na acção de petição de herança não existe verdadeira independência entre os pedidos de reconhecimento da qualidade de herdeiro e o pedido de restituição dos bens pertencentes à herança, sendo que o primeiro constitui apenas o pressuposto no qual tem que assentar a procedência do segundo.” Nos presentes autos, o objeto do litígio é integrado, em primeiro lugar, pelo pedido de reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro, diversamente do que acontece com uma ação de reivindicação, que tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade. No entanto, como acontece em ambas as ações, o que se pretende é a restituição da coisa, pretensão essa assente ou derivada da procedência do pedido principal, cumprindo, no caso da petição da herança, demonstrar que a coisa possuída/detida pelo demandado faz parte da herança. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 29-10-2009, na Revista n.º 577/04.1TVLSB.S1 - 2.ª Secção, sumário disponível em www.dgsi.pt: I - A acção de petição da herança a que se refere o art. 2075.º do CC pode ser proposta por um só herdeiro - art. 2078.º do CC - sem que o demandado possa opor ao demandante que os bens não lhe pertencem por inteiro. II - Essencial na petição de herança é o duplo fim que visa: por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto de herdeiro que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro. III - A acção de petição da herança tem, como pedido principal, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro; diversamente, a acção de reivindicação tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade; ainda assim, em ambas as acções, a pretensão da restituição da coisa é um pedido derivado daqueles pedidos principais. IV - Daí que, antes da partilha, o herdeiro use a acção de petição de herança; partilhada a herança, quem quiser pedir a restituição de um bem que herdou há-de usar a reivindicação, porque então é já proprietário. V - Embora o direito à herança não prescreva, o exercício do direito de petição da herança, com vista à restituição ou entrega de bens hereditários, pode, como acontece com o direito de propriedade na reivindicação, soçobrar perante a usucapião invocada pelo demandado. VI - Esta invocação da usucapião, para produzir os seus efeitos, pode ser implícita ou tácita, desde que se aleguem os factos e os requisitos que revelem inequivocamente a intenção de nela se fundamentar o pretendido direito de propriedade. VII - A usucapião vive de dois elementos nucleares: posse e decurso do tempo. VIII - A posse boa para usucapião há-de ser, pelo menos, pública e pacífica; a posse violenta ou tomada às ocultas não merece a tutela do direito, antes sofre a sua reprovação. IX - Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados, isto é, por todos quantos, face ao circunstancialismo concreto envolvente, são directa ou indirectamente afectados pelo exercício do corpus possessório; não é necessário, contudo, que a posse seja exercida à vista dos interessados, mas que o seja de forma a poder ser deles conhecida. X - A partilha não converte em titulada uma posse que o não era: o inventário e a partilha não são negócios translativos, pois falta neles o transmitente de que fala o art. 1259.º, n.º 1, do CC. XI - Não sendo titulada a posse do réu, presume-se de má fé, presunção esta que é ilidível. Não se discute já nos presentes autos que o Autor tem a qualidade de herdeiro na herança indivisa da qual fazem parte os prédios identificados nos autos, apenas se discutindo se uma parte desses mesmos prévios (uma casa e quintal) devem ser restituídos pela Ré, conforme peticionado, por esta não ter logrado ilidir a presunção registal a favor dos identificados sucessores da herança aberta por óbito da mãe do Autor. De salientar que, ao contrário do que seria expetável, a Ré não deduziu reconvenção em ordem a reivindicar a parte dos prédios que se recusa a restituir, limitando-se a invocar, de forma implícita, por exceção, uma forma de aquisição originária da propriedade, mormente a usucapião, baseada na posse continuada ao longo do tempo sobre a casa construída num dos prédios (urbano) e o quintal situado noutro prédio (rústico), posse essa que diz ter sido do seu avô, depois da sua mãe e finalmente dela própria. Efetivamente, conforme se afirma no sumário do acórdão do STJ de 17-04-2018, proferido na Revista n.º 3452/15.0T8VIS-D.C1.S1 (disponível em www.stj.pt), pese embora a parte interessada não tenha invocado expressamente a usucapião, se articulou os factos a ela conducentes é porque quer, até prova em contrário, aproveitar-se dos efeitos dela, tudo se passando como se tivesse feito uma invocação expressa. Portanto, a Ré pretendeu valer-se do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), do Código do Registo Predial, conjugado, entre outros, com o art. 1268.º, n.º 2, do CC, nos termos do qual “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.” Ora, o Tribunal recorrido considerou que os factos invocados não bastavam para que a Ré pudesse ser considerada, por via da usucapião, proprietária da casa e do quintal em apreço, mas entendeu, surpreendentemente, sem que isso nunca tivesse sido invocado, que eram parte integrante da herança da falecida mãe da Ré, fazendo, assim, uma diferente qualificação jurídica dos factos. Por outras palavras, entendeu que embora a Ré não tivesse adquirido, por usucapião, o direito de propriedade do aludido imóvel, o mesmo integrava a herança da sua falecida mãe, pelo que, prescindindo aparentemente do reconhecimento da aquisição (pela herança) do direito de propriedade por usucapião, concluiu que teria sido ilidida a presunção registal de titularidade do direito pela prevalência de presunção fundada numa posse, iniciada em data anterior à do registo, continuada pelos (hipotéticos) sucessores da mãe da Ré. Aqui chegados importa que façamos algumas considerações. A respeito da usucapião, uma das formas de aquisição originária de direitos reais de gozo (excluídos, nos termos do art. 1293.º do CC, as servidões prediais não aparentes e os direitos de uso e de habitação), preceitua o art. 1287.º do CC que “(A) posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”. Assim, para conduzir à aquisição do direito de propriedade, por via da usucapião, é indispensável demonstrar que existe uma situação possessória, tendo em atenção o disposto no art. 1251.º do CC, nos termos do qual “(P)osse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. Sendo sabido que a posse envolve, não apenas, um elemento objetivo a que se chama corpus – exercício de poderes de facto –, mas também um elemento psicológico-jurídico comummente denominado animus – em termos de um direito real. A posse relevante (boa) para a usucapião tem de revestir duas características: ser pública e pacífica (cf. art. 1297.º do CC). As restantes características – ser de boa ou de má fé, ser titulada, ou não – influem apenas no prazo (arts. 1258.º a 1262.º, 1287.º e 1294.º a 1207.º, todos do CC). Ademais, a quem invoca a aquisição por usucapião incumbe alegar e provar os respetivos requisitos (cf. art. 342.º do CC) ou, pelo menos, sendo caso disso, os factos base das presunções legais, em que avultam a prevista no art. 1252.º, n.º 2, do CC (presunção ilidível), nos termos do qual “(E)m caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º” (sem olvidar, neste âmbito, o Acórdão do Pleno das Secções Cíveis do STJ de 14-05-1996, publicado no DR II Série, n.º 144, de 24-06-1996, que uniformizou jurisprudência: “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”). Não logrando a parte provar que a posse é titulada e de boa fé, a aquisição por usucapião (provada obviamente a posse pública e pacífica) só pode ocorrer após 20 anos, ainda que os efeitos retroajam ao seu início. A este respeito, veja-se, a título exemplificativo, - o acórdão do STJ de 23-02-2010, na Revista n.º 94/1984.C1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt: «V - A usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenha a coisa possuída por objecto (v.g., a exigência de forma para a partilha de uma herança e a proibição de divisão de um prédio); vem sendo entendido que o estado de facto criado pela divisão feita pelos comproprietários sem escritura ou auto público pode converter-se em estado de direito, pelo princípio da usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais. VI - Por se mostrar difícil, se não mesmo impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o art. 1252.º, n.º 2, do CC, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), razão pela qual, quando seja necessário o corpus e o animus, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste – neste campo há que ter em consideração o Acórdão do STJ, de 14-05-96, in DR, II Série, n.º 144, de 24-06-96, p. 8409, que uniformizou jurisprudência no sentido que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.» - o acórdão do STJ de 08-10-2019, na Revista n.º 3696/15.5T8AVR.P2.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt: «VIII - A posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa, em termos correspondentes ao direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251.º, n.º 1, do CC), envolvendo um, elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico – em termos de um direito real. Ao primeiro chama-se corpus e ao segundo animus. IX - Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252.º, n.º 2, do CC), devendo entender-se que o poder de facto não exige um contacto físico e permanente com a coisa, bastando que esta se encontre na “zona de disponibilidade empírica do sujeito”. X - Desde o AUJ, de 14-05-1996, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal entende que, estando provado o corpus da posse, presume-se, nos termos do art. 1252.º, n.º 2, do CC, o animus, ou seja, uma vez assente o exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, se deve presumir que quem o exerce o faz em nome próprio, recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse.» Sendo a aquisição derivada (como sucede no caso dos autos quanto ao direito invocado pelo Autor-Apelante), não basta ao autor provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada, já que nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito. Assim, como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, nestas situações, “é preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam alguns autores. Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse, se ela puder ser oposta ao detentor, e do registo (arts. 1268.º do Cód. Civ. e 8.º do Cód. Reg. Pred.).” - in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª ed., pág. 115. Todavia, poderá bastar para a prova dos factos constitutivos do direito de propriedade uma presunção da propriedade, como a resultante da posse (art. 1268.º do CC) ou do registo (art. 7.º do Código do Registo Predial). Para que alguém beneficie da presunção fundada na posse - que, no caso, sublinhe-se, seria de convocar ante a alegação fáctica feita pela Ré na sua Contestação - terá que demonstrar os elementos essenciais que caracterizam a posse à luz do disposto no art. 1251.º do CC, a saber o corpus e o animus, sem olvidar que o primeiro consiste na atuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor, e o segundo na intenção de exercer como seu titular um direito real sobre a coisa. Quanto à presunção decorrente do registo predial (invocada pelo Autor-Apelante), encontra-se consagrada no art. 7.º do Código Registo Predial, segundo o qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Ante os registos de aquisição do direito de propriedade sobre os prédios onde se encontram a casa e o quintal em apreço, terá a Ré logrado ilidir a presunção registal (cujos factos base estão vertidos nos pontos 3 e 4) pela demonstração dos factos base de presunção fundada numa posse iniciada em data anterior à do registo, continuada pela Ré ou, numa leitura diferente das alegações de facto contidas na Contestação, pelos herdeiros da falecida mãe da Ré? A resposta é, desde já adiantamos, negativa. Em primeiro lugar, é muito duvidoso que o mero facto de o avô da Ré ter construído a casa, na verdade, uma barraca (como claramente se retira do vertido no ponto 26) seja suficiente para consubstanciar o corpus da posse. Na altura, este vivia e continuou a viver numa casa ali próxima, desconhecendo-se por que motivo construiu a dita casa, mas tendemos a considerar esse ato isolado insuficiente para que se possa dizer que agiu, pelo menos ao longo dos anos, como possuidor (e não se está a discutir a eventual aquisição do direito por via do instituto da acessão industrial imobiliária). Seja como for, o certo é que nada – rigorosamente nada – nos factos provados revela que tenha existido da parte daquele, bem como da mãe da Ré e desta última, pelo menos até ao falecimento da sua mãe, o elemento subjetivo da posse, estando claramente afastada a aplicabilidade da presunção legal consagrada no art. 1252.º, n.º 2, do CC, ante os factos provados vertidos nos pontos 31 e 31-A: Tanto o avô da Ré, como a mãe desta, sabiam que o imóvel em questão não lhes pertencia e que os donos não lhes tinham conferido autorização para o respetivo uso, nem feito acordo de onde resultasse a transmissão para a mãe da Ré de tal imóvel ou da sua utilização, o que evidencia bem que não tiveram jamais intenção de agir como beneficiários de um qualquer direito real, não se podendo entender que tivessem animus de possuidores, em particular nos termos do direito de propriedade; o avô da Ré procedeu da forma descrita no ponto 11, a mãe da Ré praticou os atos descritos nos pontos 9, 12 e 13, e a Ré os atos descritos no ponto 15 sem a intenção de agirem como donos do terreno (onde está a casa e o quintal referidos em 7 e 27, respetivamente). Por isso, não podia a Ré - nem, aliás, contrariamente ao que entendeu o Tribunal recorrido, hipotéticos sucessores da sua falecida mãe -, ter sucedido numa situação possessória, nos termos do art. 1255.º do CC, já que esta não existia. Na verdade, apenas se poderá entender que na base da implantação da casa e da vedação do quintal em prédios alheios esteve um aproveitamento da inércia do respetivo dono, que levou a uma situação de simples detenção ou posse precária por parte do avô e da mãe da Ré, e não de posse efetiva, mormente, repete-se, nos termos do direito de propriedade. Não está, pois, demonstrado (diretamente ou por via de presunção legal) que o avô e a mãe da Ré, sem embargo do poder de facto exercido sobre as partes do prédio ocupadas, alguma vez tenham atuado com a intenção de exercerem, como seus titulares, um qualquer direito real sobre tais coisas, em particular o seu animus domini. Pelo contrário, os atos materiais acima descritos sobre os imóveis em apreço foram praticados por aqueles sem intenção de exercerem como seus titulares um direito real sobre a coisa, sabendo que o imóvel não lhes pertencia, que não tinham autorização para o respetivo uso, nem feito acordo nenhum de onde resultasse a transmissão para a mãe da Ré de tal imóvel ou da sua utilização. Nesta linha de pensamento, a título meramente exemplificativo, veja-se o sumário do acórdão do STJ de 02-07-2009, proferido na Revista n.º 534/09-2 - 2.ª Secção, acima referido: II - Para efeitos de posse, conducente à usucapião, não são considerados possuidores, mas meros detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, bem como os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem. III - O direito de superfície pode constituir-se, além do mais, por usucapião. IV - Não resultando dos factos provados que, no exercício dos poderes de facto sobre as construções e edificações que a ré levantou em prédios da autora, tenha aquela agido com intenção de actuar esses poderes como titular do direito de superfície, não está demonstrado o requisito do animus possidendi, não se podendo ter por constituído a favor da ré, por usucapião, um direito de superfície sobre as ditas construções e edificações.” E tanto bastaria para afastar a conclusão jurídica errada a que o Tribunal recorrido chegou, ao considerar verificada e não ilidida pelo Autor a presunção de titularidade do direito de propriedade que emerge do art. 1268.º, n.º 1, do CC a favor da herança aberta por óbito da mãe da Ré. Na verdade, os factos provados não permitem considerar que a mãe da Ré fosse possuidora da casa e quintal cuja restituição foi peticionada nos presentes autos. Quanto muito, dos factos provados resultará que a Ré - e só esta -, pelo facto de continuar a residir na casa após o falecimento da mãe, aí realizar obras e pagar o respetivo IMI, se tornou, ela própria, possuidora (posse não titulada e de má fé – cf. art. 1260.º, n.º 2, do CC), assim beneficiando da presunção da titularidade de um (eventual) direito real, podendo ser considerada como possuidora. No entanto, isso acaba por ser indiferente para a decisão da causa, uma vez que já ficou definitivamente decidido na sentença na sentença, em termos (obviamente) não questionados pelo Apelante, nem, aliás, pela Apelada em ampliação do âmbito do recurso (cf. art. 636.º do CC), que improcede a exceção de usucapião invocada pela Ré e que esta não pode beneficiar da presunção emergente do art. 1268.º do CC. A Ré, na sua alegação de resposta, defende que deve manter-se a sentença recorrida, continuando a sustentar que “A R. adquiriu-a (a posse) seguramente à mais de 60 anos por usucapião” e que “a R., conforme ficou provado tem o corpus e o animus dos imóveis”. No entanto, não percebeu a Ré que a sua posse não foi reconhecida na sentença recorrida. De qualquer forma, sempre se dirá, para terminar, que a única situação possessória que podemos admitir como emergindo dos factos provados é superveniente à morte da mãe da Ré, em 1991 (já que, conforme estabelece o art. 1254.º, n.º 2, do CC, uma posse atual não faz presumir a posse anterior, salvo quando seja titulada), pelo que sempre uma presunção baseada nessa posse, em benefício da Ré, haveria de ceder perante a presunção fundada no registo, datado de 1990, anterior ao início dessa (suposta) posse – cf. art. 1268.º, n.º 1, do CC. Portanto, conclui-se que (i) os prédios peticionados fazem parte da herança de que o Autor é herdeiro/cabeça de casal, e que (ii) a Ré vem indevidamente retendo/ocupando/possuindo uma parte desses prédios, pois a presunção fundada no registo predial não cede perante a aquisição por usucapião que foi (implicitamente) invocada pela Ré (tendo essa exceção sido julgada improcedente na sentença recorrida), nem perante nenhuma presunção de posse iniciada antes das inscrições de registo mencionadas nos pontos 3 e 4 do elenco dos factos provados. Assim, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido provimento, com a revogação da sentença recorrida, impondo-se decidir, em substituição da mesma, pela total procedência da ação de petição de herança. Vencida a Ré-Apelada, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). No entanto, não será condenada no pagamento das custas da ação e do recurso, da sua responsabilidade, uma vez que beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. ofício junto em 13-10-2021) – cf. artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC, artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP. *** III - DECISÃO Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, que ora se substitui, decidindo julgar procedente a ação, condenando a Ré RS a: a) a reconhecer no Autor RP a qualidade de herdeiro de HP; e b) a restituir ao Autor os bens da herança que vem usando e que correspondem a parte do prédio urbano sito na Estrada …, n.º …, ..., Venda Nova, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova, e a parcela com a área aproximada de 80 m2 do prédio rústico sito na ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º … da freguesia da ...-Venda Nova e denominado “...”. Não se condena a Ré no pagamento das custas da ação e do recurso, da sua responsabilidade, atento o apoio judiciário de que beneficia. D.N. Lisboa, 11-01-2024 Laurinda Gemas António Moreira Susana Maria Mesquita Gonçalves |