Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6330/23.6T8LSB.L1-4
Relator: PAULA PENHA
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
OBJECTO DA ACÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–A acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho foi criada para combater o fenómeno do trabalho subordinado clandestino e/ou do falso trabalho autónomo (infelizmente, muito vulgarizados), visando tutelar os respectivos interesses públicos: de redução da precariedade dessas relações, em nome da segurança e estabilidade do emprego; de promoção da igualdade de direitos e condições de trabalho; e de incremento do pagamento regular das obrigações fiscais e contributivas para com o Estado que cabem ao empregador realizar, contribuindo para a sustentabilidade dos sistemas de segurança social e combate a fraude fiscal;

II–Esta acção obedece a um processo especial cuja instância se inicia com o recebimento da participação da ACT, cabendo ao Ministério formular a respectiva petição inicial na qual expõe essa pretensão de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho relativamente a um trabalhador com fixação da respectiva data de início desse vínculo laboral.

III–O Ministério é parte demandante em representação do aludido interesse público (não representando nem patrocinando qualquer trabalhador) nesta acção e cuja instância prossegue independentemente do interesse e/ou da vontade de qualquer trabalhador relativamente à qual diga respeito.

IV–O demandado é o empregador (do trabalhador cujo vínculo laboral esta acção visa reconhecer) que pode contestar tal demanda, mas apenas no tocante àquele pedido específico/limitado/restrito (qualificação de uma relação com sendo laboral e fixação da data do seu início). Sendo inatendíveis, neste tipo de acção, questões que digam respeito, por exemplo, à validade ou invalidade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação, os direitos do trabalhador e/ou impossibilidade de regularização da situação do trabalhador e/ou qualquer defesa do empregador que extravase o âmbito específico desta acção.

V–Caso haja contestação do demandado/empregador são remetidos duplicados dos articulados (da petição inicial e da contestação) ao trabalhador, relativamente ao qual diz respeito esta lide, para este, querendo, poder aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público ou apresentar articulado e constituir mandatário ou abster-se de qualquer intervenção, no prazo legal.

VI–A sentença é sempre comunicada ao respectivo trabalhador, visando estender-lhe os efeitos do caso julgado dessa decisão de forma a salvaguardar o efeito útil que da mesma decorra.


(Sumário da autoria da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório


O Ministério Público junto do Juízo do Trabalho de Lisboa intentou, sob a forma de processo especial com o nº 6330/23.6T8LSB, a presente acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra a Rádio e Televisão de Portugal, S.A. (doravante RTP ou empregadora ou demandada), relativamente à trabalhadora AA, pedindo que seja declarada a existência, desde 8/3/2021,de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre esta trabalhadora e aquela como sua empregadora.

A RTP contestou, excepcionando com vista à absolvição da instância e, subsidiariamente, impugnando com vista à absolvição do pedido.

O Ministério Público respondeu, refutando as invocadas excepções, pugnando pela sua improcedência e reiterando a condenação desta no pedido a que se reporta a acção.

Foi elaborado despacho saneador que julgou improcedentes as excepções invocadas pela ré.

Depois de efectuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com a seguinte decisão (transcrição):

«DECISÃO
Pelo exposto, o tribunal julga a presente ação nos seguintes termos:
A)-Declara a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, desde 8/3/2021, entre AA, na qualidade de trabalhadora e “RÁDIO E TELEVISÃO DE PORTUGAL, S.A.”, na qualidade de empregadora;
B)-Declara que o aludido contrato é nulo, face ao disposto nas sucessivas Leis do Orçamento de Estado de 2013 em diante, designadamente do art. 50º da Lei 2/2020, de 31/3; do art. 59º da Lei 75-B/2020, de 31/12; do art. 45º da Lei 12/2022, de 27/6 e do art. 28º da Lei 24-D/2022, de 30/12. (…) ».

Insurgido com esta segunda parte da decisão, o Ministério Público interpôs recurso contendo as seguintes conclusões e respectivo pedido (transcrição):

«1.–A ARECT insere-se no programa de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado e, tratando-se de uma acção de simples apreciação positiva, visa apenas obter uma declaração judicial que reconheça, ou não, a existência de um contrato de trabalho e, na primeira situação, desde que data.
2.–A legitimidade do Ministério Público – como parte activa - para instaurar a acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho resulta da própria Lei e do seu Estatuto Legal que lhe dão competência própria e tem como pressuposto a existência de um interesse público determinado – o combate à precariedade laboral fruto dos chamados falsos “recibos verdes”.
3.–Não é esta acção a forma processual adequada para discutir créditos laborais, a irregularidade ou nulidade dos contratos de trabalho, até porque o trabalhador nem sequer é parte nesta acção.
4.–Resulta claro das disposições legais aplicáveis, designadamente, dos artigos 15º-A da lei nº 107/2009 de 14 de Setembro e 186º-K do Código de Processo de Trabalho que a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é aplicável a todas as relações de trabalho constituídas e tem como escopo o combate a determinadas práticas que se têm vindo a expandir e que procuram configurar formalmente a relação laboral como sendo de trabalho autónomo, com isso visando afastar toda a regulamentação e protecção legal própria do trabalhador subordinado.
5.–Mesmo nos casos em que possa ser discutível a nulidade de uma contratação de um trabalhador efectuada com violação das normas orçamentais aplicáveis, a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não visa discutir, analisar e anular o procedimento seguido pela Ré com vista à contratação de uma trabalhadora, ou a validar os créditos laborais que possam advir desse reconhecimento, mas sim e tão-só discutir a natureza do vínculo pré-existente entre a Ré – “Rádio e Televisão de Portugal, SA” e a trabalhadora – AA.
6.–É o que decorre, nomeadamente, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2018, processo n.º 17459/17.0T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, relativamente à Acção de Reconhecimento de Existência de Contrato de Trabalho: “Trata-se de uma ação com uma tramitação muito simplificada, cujo objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 8, do art.º 186.º-O, do diploma citado. Assim, atento o objeto da ação em causa, estão fora da discussão  todas as questões que não estejam relacionadas com a qualificação  do vínculo e, como já se referiu, com a fixação do início da relação quando a mesma deva ser qualificada como laboral. Se a ação for julgada procedente, por se ter concluído que existe um contrato de trabalho, está, então, aberto o caminho para se poder, eventualmente, discutir uma série de questões que poderão ser suscitadas, como por exemplo a validade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação e os direitos do trabalhador. A discussão de todas estas questões só poderá ter lugar a jusante da primeira etapa, que é a  qualificação do vínculo” (negritos e sublinhados nossos).
Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a douta decisão recorrida parcialmente revogada, dando-se por anulado e não escrito tudo o que concerne à suposta nulidade do contrato de trabalho reconhecido e, nomeadamente, o ponto B) do dispositivo dessa decisão, isto é, a parte em que declara o Tribunal “a quo” nulo o contrato de trabalho existente entre a trabalhadora  AA e a “Rádio e Televisão de Portugal, SA.”, no mais, mormente no ponto A) do dispositivo, mantendo a sentença recorrida.
Sem prejuízo, se assim não se entender, seja a douta decisão recorrida revogada, determinando-se a sua substituição por outra que não extravase a acção especial que o Ministério Público intentou. »

Não houve contra-alegações.

Recebidos os autos nesta Relação, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Questão a decidir

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente [conforme preveem os artigos 635.º, n.º 4, 637º, nº 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante com a abreviatura CPC), aplicáveis “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (doravante com a abreviatura CPT)] – sem prejuízo do conhecimento oficioso de outras [conforme prevê o art. 608º, n.º 2, parte final, aplicável “ex vi” do art. 663º, n.º 2, parte final, do CPC aplicáveis “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do CPT] a questão a decidir é a seguinte:
Neste tipo de acção é possível apreciar e decidir sobre a validade/invalidade do vínculo contratual reconhecido através da mesma ?

Fundamentação

Conforme já referimos, o Ministério Público junto do Juízo do Trabalho na 1ª instância intentara esta acção, sob a forma de processo especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra a Rádio e Televisão de Portugal, S.A. (relativamente à trabalhadora AA), pedindo que seja declarada a existência, desde 8/3/2021,de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre esta trabalhadora e aquela como sua empregadora - conforme veio  a ser reconhecido nesses exactos termos (constantes da alínea A da parte decisória da sentença proferida pela 1ª instância, após fixação da respectiva factualidade apurada e sua subsunção ao direito aplicável) e de forma incontroversa.  
Mas, além deste reconhecimento, a mesma sentença da 1ª instância também apreciou a questão da invalidade desse mesmo vínculo laboral (suscitada pela demandada/empregadora/RTP) e decidiu neste sentido, declarando nulidade deste mesmo contrato, nos termos constantes da alínea B da parte decisória da sentença – parte esta contra a qual se vem insurgir o Ministério Público, por considerar que a natureza ou âmbito legal deste tipo de acção não permite sequer que seja efectuada tal apreciação.
Por isso, não sendo necessário apreciar o mérito ou desmérito de tal apreciação, será inútil a transcrição de qualquer factualidade e/ou da respectiva subsunção por parte do Tribunal “a quo”.
      

Apreciação do recurso

A acção em apreço denominada como “Acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” (doravante com a abreviatura AREC) foi criada no nosso sistema jurídico desde Setembro de 2013 (através da Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto) e está prevista nos arts. 26º, nº 1, al. i), e nº 6 e 186º-K a 186º-R do CPT (com tais alterações) como:
. um processo especial e de natureza urgente;
. cuja instância se inicia com o recebimento da participação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT que levou a cabo o respectivo procedimento administrativo previsto no art. 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro);
. após esta recepção, o Ministério Público formula a respectiva petição inicial (enquanto parte demandante nesta acção, em representação do interesse público – não representando nem patrocinando qualquer trabalhador -) contra o demandado/empregador (a outra parte principal nesta acção) e através dessa petição inicial expõe a respectiva pretensão de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho relativamente a um trabalhador);
. caso haja contestação do demandado/empregador são remetidos duplicados dos articulados (da petição inicial e da contestação) ao trabalhador para este, querendo, poder aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público ou apresentar articulado e constituir mandatário ou abster-se de qualquer actuação, no prazo legal. Cabendo ao trabalhador a respectiva opção, após essa necessária comunicação - pois não faria sentido que se “construísse” esta acção à margem desta pessoa que é parte da relação cuja qualificação do vínculo o Estado/representado pelo Ministério visa  reconhecer através desta acção -;
. se nada impedir o conhecimento do mérito da causa, tem lugar a audiência de julgamento e caso a sentença reconheça a existência de um contrato de trabalho deve fixar a data do início da relação laboral e mandar comunicar a sentença ao respectivo trabalhador, à ACT e ao Instituto da Segurança Social;
. esta comunicação, ao concreto trabalhador, de cópia da respectiva sentença (quer ele tenha intervindo quer ele se tenha abstido de intervir na concreta lide) visa estender-lhe os efeitos do caso julgado dessa decisão, de forma a salvaguardar o efeito útil que da mesma decorra (cfr. Joana Vasconcelos em “A posição processual do/a trabalhador/a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”, Temas do Direito do Trabalho e do Processo de Trabalho, 8 de Abril de 2016, CEJ (gravação vídeo).

Esta acção de cariz publicista foi criada, precisamente, para combater o  fenómeno do trabalho subordinado clandestino e/ou do falso trabalho autónomo (”falsos recibos verdes”), infelizmente, muito vulgarizados como forma de reduzir os custos de mão-de-obra e afastar o cumprimento das imposições laborais e fiscais e da sustentabilidade da Segurança Social.
Esse fenómeno representa uma forma de “dumping” social com  graves distorções na concorrência leal face aos empregadores cumpridores e que põe em causa os objetivos fixados a nível europeu no que toca ao trabalho digno e às metas de crescimento e desenvolvimento sustentado  (cfr. Joana Nunes Vicente em “ A fuga à relação de trabalho (típica): em torno da simulação e da fraude à lei”, Coimbra Editora, 2008, págs. 25 a 55).

Por isso, esta acção especial surge como forma/mecanismo de combate a tais fenómenos de trabalho subordinado não declarado/trabalho clandestino ou dos “falsos recibos verdes” visa, primordialmente, tutelar os inerentes interesses colectivos:
de redução da precariedade dessas relações, em nome da segurança e estabilidade do emprego;
de promoção da igualdade de direitos e condições de trabalho; e
de incremento do pagamento regular das obrigações fiscais e contributivas para com o Estado que cabem ao empregador realizar. Trata-se de criar as condições de contexto para um combate eficaz à precariedade, de garantir a sustentabilidade dos sistemas de segurança social e de combater a fraude fiscal.

É, pois, para nós inquestionável que é este interesse público, ligado à garantia da igualdade, da concorrência leal e do cumprimento das obrigações fiscais e contributivas para com o Estado que legitima, em primeira linha, a criação desta ação.
Apenas, reflexamente, tutelando o respectivo trabalhador. Mas, não sendo este o enfoque desta acção em que, aliás, o trabalhador não é sequer parte principal.
Por isso, sendo compreensível que haja uma desvalorização da vontade/interesses particulares das partes, pois o Ministério Público (através desta/nesta acção) age em prol daquele interesse público, não age em representação ou defesa de qualquer trabalhador concreto.
E, aliás, mesmo que, porventura, o demandado/empregador (através da contestação e respectivo depoimento ou declarações de parte) e o respectivo trabalhador (através de eventual articulado conforme a lei lhe consente ou através de eventual depoimento testemunhal), se aliarem entre si no sentido de uma mera prestação de serviços, o tribunal pode decidir o contrário, precisamente em face da prova constante dos autos e em nome do sobredito interesse público inerente à efectividade da lei.
Por isso, a jurisprudência tem-se alinhado no sentido de não admitir transacção entre empregador e trabalhador no âmbito desta acção  (cfr. a jurisprudência citada aquando dos sábios ensinamentos de Monteiro Fernandes em “Direito do Trabalho“, 22ª edição, págs. 160-162).

Em suma, o primado do sobredito interesse público, a propósito da qualificação jurídica da concreta relação contratual em apreço, neste tipo especial de acção, faz subtrair essa qualificação à livre disponibilidade das partes.

Tendo o Tribunal Constitucional já tomado posição no sentido de rejeitar qualquer inconstitucionalidade (inerente a este tipo especial de acção) por alegadas violação de liberdade de escolha de profissão e/ou violação do direito de acção e/ou violação do direito a um processo equitativo e/ou violação do princípio da igualdade (cfr. o Acórdão do TC nº 85/2016, em DR 46/2016, séria II, de 7/3/2016).    

Este tipo de acção/AERC (acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho), conforme a sua própria denominação já indica, tem como único escopo tal reconhecimento judicial.

Por isso,  esta é uma acção declarativa de simples apreciação positiva (nos termos do disposto no art. 10º, nºs 1, 2 e 3, al. a), do CPC) porque destinada a obter, unicamente, a declaração da existência de um facto/contrato de trabalho, com o inerente provimento da acção caso tal suceda.  

Por isso mesmo, atento o objeto específico/restrito/limitado desta acção, estão fora do seu âmbito de discussão todas as questões que não estejam relacionadas com a existência/a qualificação do vínculo laboral e, em caso afirmativo, da respectiva fixação do início da relação qualificada como laboral.

Por conseguinte, a procedência deste tipo de acção (cingida aos termos sobreditos), apenas, poderá abrir caminho para, eventualmente e em momento posterior, no âmbito (não desta, mas) de outro tipo de acções judiciais, o respectivo trabalhador e/ou o respectivo empregador poderem vir a discutir uma série de questões que poderão ser suscitadas por estes, como por exemplo a validade ou invalidade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação, os direitos do trabalhador e/ou impossibilidade de regularização da situação do trabalhador (conforme tem sido entendido de forma pacífica pela nossa mais alta jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do STJ de 4/4/2018 p.2635/17.3T8VFX.L1.S1,de 4/4/2018 p. 17596/17.0T8LSB.L1.S1 e de 23/11/2021 p.18638/17.5T8LSB.L2.S1, todos acessíveis em dgsi.pt).

Aqui chegados, após estas breves considerações, estamos em condições de apreciar a questão solvenda: é possível (neste tipo de acção) apreciar e decidir sobre a validade/invalidade do vínculo contratual reconhecido através da mesma ?
Afigurando-se-nos como óbvia a resposta negativa a dar-lhe e que prejudica a respectiva parte da sentença recorrida.
Conforme consta da transcrição já efectuada, a sentença recorrida (depois de declarar a existência de um contrato de trabalho entre a demandada/RTP e a trabalhadora AA), também, declarou a nulidade deste contrato.
Ora, conforme refere o Digno recorrente (na sua acertada motivação recursiva aqui dada como reproduzida), este tipo especial de acção não permite (nunca) discutir nem decidir sobre a validade/invalidade do vínculo contratual reconhecido através da mesma.
Salvo o devido respeito, não andou bem a Exmª Juiz da 1ª instância ao ter extravasado o âmbito legal desta acção, mais concretamente (após considerar a existência – agora incontroversa - de um vínculo jus-laboral entre a demandada/empregadora e essa sua trabalhadora), não podia ter sequer analisado a questão da invalidade desse vínculo (que a demandada havia excepcionado) e, muito menos, ter decidido sobre esta matéria, no âmbito desta lide.
Sendo de salientar que, à excepção do acórdão do TRE de 8/3/2018, todos os acórdãos aludidos pela Exmª Juiz da 1ª instância, para justificar o seu passo seguinte de apreciação da invalidade do vínculo (que acabara de reconhecer) dizem respeito a decisões proferidas pelo TRL, mas no âmbito de acções declarativas sob a forma de processo comum (não em acções como a dos autos em apreço).
Aliás, volvendo ao caso concreto e compulsado o teor do despacho saneador proferido nos autos, constata-se que havia sido proferido um despacho, notificado às partes e transitado em julgado, segundo o qual, o Exmº Juiz de 1ª instância já havia julgado improcedentes as excepções que a demandada/empregadora invocara na contestação (cfr. na refª. citius 427494774, págs. 1 e 2 aqui dadas por reproduzidas) – com a inerente força de caso julgado formal que já se havia formado, com força obrigatória dentro deste mesmo processo, nos termos previstos pelo art. 620º, nº 1, do CPC (conforme explicita a anotação de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa em “Código de Processo Civil Anotado “Vol. I, edição 2018, pág. 745).

E, para além disso, então havia ficado consignado que o objecto do litígio se circunscrevia (e bem) à questão de saber se a relação contratual entre o “empregador” e a “trabalhadora” tinha, ou não, natureza laboral e  todos os temas de prova, então consignados, diziam respeito a essa única questão (cfr. na refª. citius 427494774, pág. 3 aqui dadas por reproduzidas).

Mas, independentemente do teor destes despachos (por nós trazidos  à colação), o Tribunal recorrido sempre estaria vinculado, à discussão, apreciação e decisão, única e exclusivamente, da matéria relativa ao reconhecimento, ou não, da existência de contrato de trabalho entre a demandada/empregadora e aquela concreta trabalhadora.

Ora, não se tendo cingido o Tribunal recorrido a essa matéria (também discutindo e decidindo sobre a validade/invalidade do vínculo contratual reconhecido), impõe-se a procedência do recurso em apreço em que o Ministério Público contra tal (e muito bem) se insurge.

Decisão

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência:
Revoga-se a sentença recorrida na parte relativa à segunda questão nela enunciada, bem como a apreciação dessa e a respectiva decisão constante sob o item B)que se declaram como não escritos e sem qualquer efeito;
Sem prejuízo da demais apreciação que conduziu à decisão constante da alínea A)da sentença, não recorrida nesta parte e que se mantém nos seus exactos termos.

*  
Sem tributação.
Notifique.
 

(Texto elaborado pela relatora, revisto pelas signatárias, com assinatura digital de todas e voto de vencida da 2ª Adjunta)


Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024



Relatora - Paula de Sousa Novais Penha
1ª Adjunta - Maria Luzia Carvalho 

2ª Adjunta - Francisca Mendes- (vencida nos termos da declaração que junta): 


Votei vencida, porque considero que a nulidade do contrato (do conhecimento oficioso) deve ser declarada nestes autos, cabendo em acção própria a apreciação dos efeitos próprios de tal
declaração de nulidade (art. 122º do CT).