Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
32/22.8PBSXL.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
PRESCRIÇÃO
CADUCIDADE
CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - O prazo de prescrição do procedimento criminal relativo ao crime de injúria é o mais curto (art 118.º, n.º 1, al. d), e 181.º, n.º 1, CP), assim como o prazo de caducidade o é (art 115.º, CP), sendo imprescindível que se saiba qual o ponto de partida dessa contagem, em ambas as vertentes (prescrição e caducidade: art 119.º, n.º 1, CP, e 115.º, n.º 1, CP).
II - Se as expressões tendentes a preencher o tipo legal em questão não forem diretamente proferidas a uma pessoa em específico, dificilmente haverá crime, sendo antes exigível uma ligação efetiva das expressões proferidas ao assistente.
III - A conciliação entre as proposições provadas e não provadas tem de ser compreendida dentro do non liquet correspondente à indefinição temporal que conduziu ao juízo absolutório posto em crise, cuja figura do crime continuado não consegue ultrapassar, pela exclusão dos crimes contra bens eminentemente pessoais operada pelo legislador - art. 30.º, n.ºs 2 e 3, CP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 32/22.8PBSXL do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Seixal – Juiz 2, foi proferida sentença a 12.12.2023, que decidiu:
- Julgar improcedente a acusação particular deduzida pelo assistente AA e, consequentemente, absolver o arguido BB da prática, em autoria material e na forma continuada de um crime de injúria previsto e punível pelo art. 181.º n.º 1 do Código Penal tendo em conta o artigo 30.º, n.ºs 2 e 3 do mesmo diploma legal.
- Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante/assistente AA e, consequentemente, absolver o arguido/demandado BB da totalidade do mesmo.
2. Recurso Assistente
Não se conformando com a decisão absolutória, veio o assistente AA interpor recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A. Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida em 12.12.2022, que julgou totalmente improcedente a acusação particular, deduzida pelo Assistente/Recorrente AA – acompanhada pelo M.P – e, em consequência, absolveu o Arguido do cometimento, em autoria material e na forma continuada de um crime de injúria previsto e punível pelo art.º 181.º nº 1 do Código Penal tendo em conta o artigo 30º, nº2 e 3 do mesmo diploma legal, bem como julgou totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido, e, em consequência absolve o arguido/demandado da totalidade do mesmo.
B. Entende o Assistente/Recorrente que a Sentença recorrida padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, previsto no art. 410º, nº2, al. b) do CPP.
C. Entende o Assistente/Recorrente que se verificam na Douta Sentença recorrida, contradições insanáveis, designadamente entre os factos provados sob os números 7, 8 e 9 e a fundamentação e destes com a própria decisão de direito.
D. Pois, o Tribunal “a quo” dá como provado que “Em datas, momentos, e circunstâncias não concretamente apuradas também por causa do ruido, proveniente do estabelecimento em causa, ou da rua por causa das pessoas que saiam do estabelecimento e um número indeterminado de vezes, o arguido da janela da sua residência, dirigindo se de forma indiferenciada, conforme a pessoa ou pessoas que estivessem no exterior, podendo fazê-lo ao assistente, ao outro gerente do bar, a qualquer cliente ou a funcionários, proferia as seguintes expressões: “pretos do caralho”, “assassinos”, “ por vossa causa vão morrer milhares de pessoas”, “filhos da puta”, “andam a falsificar documentos” “vou-vos fechar o bar”, e, portanto aqui incluindo o Assistente/Recorrente como alvo das ofensas (provadas) perpetradas pelo Arguido;
E. Acresce que, o Tribunal “a quo” dá, também, como provado que “Ao agir desse modo tal como consta de 7) o arguido fê-lo com o propósito de ofender a honra e consideração de quem quer que aí se encontrasse, podendo incluir o assistente”, como efectivamente resulta da prova produzida em sede de audiência de julgamento, que o Arguido incluía no seu propósito o Assistente;
F. O Tribunal “a quo” dá, igualmente, como provado que o Arguido “Agiu livre, deliberada e conscientemente sabendo que a conduta era proibida e punível por lei.”
G. Resultando, assim, provados quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo legal do crime pelo qual o Arguido vem acusado,
H. Os factos provados e a fundamentação conduziriam a uma determinada decisão final de iure, que só poderia ser a condenação do Arguido, no entanto, no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso.
I. Com efeito, por um lado o Tribunal dá como provados os factos da acusação particular (e bem), ou seja as expressões proferidas pelo Arguido contra a pessoa do Assistente/Recorrente, com o propósito de ofender a honra e consideração, podendo incluir o Assistente (como se provou que incluiu) e que o fez de forma livre, deliberada e conscientemente e, por outro lado absolve o Arguido, por entender que os factos ocorreram em datas, momentos e circunstâncias, não concretamente apuradas,
J. Porém, na fundamentação, quanto às declarações do Arguido refere “Disse que antes da pandemia - e durante a mesma, - havia muito barulho das pessoas do bar, além de ser incomodativo era muito perigoso “via as pessoas a morrem na televisão de covid” e “os hospitais sem camas”. Chamou muitas vezes a polícia (confirmado pelo assistente), que ia ao local, porque estavam uma serie de pessoas no bar.” (pág.s 8 e 9 da Sentença),
K. E que, “Por vezes acordava a meio da noite com o barulho, estavam grupos lá em baixo, tinham saído do bar. Nessas ocasiões admite que dizia coisas (lá para baixo), podia suceder algumas vezes três vezes numa semana, não sabendo quando, em que altura tal sucedeu, nem em que ano. Acordava, e não conseguia dormir e “há pessoas que compreendem e há pessoas que não compreendem”. Ficava muito perturbado, porque as pessoas iam saindo do bar e ficavam a fazer muito barulho (...) (pág. 9 da Sentença)
L. Refere ainda a Sentença que as restrições limitativas decorrentes do combate à pandemia foram atenuadas através da resolução do Conselho de Ministros de 23 de setembro de 2021, com o levantamento das mesmas, mediante a possibilidade de abertura de bares e discotecas (página 13 da Sentença),
M. E, ainda que, “O arguido admite que pode ter dito as expressões que ficaram provadas da sua janela cá para baixo, não faz ideia se lá estava o assistente, eram várias pessoas, grupos quando saiam do bar, não via as expressões das mesmas, desde logo porque ter grandes problemas de visão (facto provado). Por lado, e com maior relevo não se encontra sequer minimamente concretizado o período temporal destes eventos, ou pelo menos de um único destes, pois tanto o assistente como a testemunha referem que exploravam o estabelecimento em causa, já muito antes de setembro de 2021, sendo aliás que as medidas limitativas de covid foram muito anteriores a essa data.”
N. Ora, se o bar explorado pelo Assistente/Recorrente se encontrava fechado antes do referido normativo, por imposição legal, os factos imputados na acusação e também referidos pelo Arguido em declarações, pela lógica e até pela experiência comum, só podiam respeitar a um período de tempo posterior a 21 de setembro de 2021 e não antes, por impossibilidade fáctica, pois que não se provou que o bar estivesse a funcionar contrariamente à lei.
O. Ademais, como se sabe, a pandemia não findou com o termo das restrições, apenas diminuíram os casos e a perigosidade do contágio, sendo, por isso normal que o Arguido se referisse à pandemia, porquanto só muito posteriormente é que a situação pandémica deixou de o ser.
P. Pelo que, a que a Decisão proferida contraria a lógica e as mais elementares regras da experiência comum e enferma, assim, de manifesta contradição insanável entre os factos provados, a fundamentação e a decisão proferida a final, contradição que resulta da Sentença por si mesma.
Q. Do exposto, impõe-se concluir que a Decisão recorrida constitui um atropelo às regras da lógica e da experiência, consubstanciando situações subsumíveis ao disposto na al. b) do nº.2 do art. 410º. CPP como se disse.
R. Consequentemente, impõe-se a condenação do Arguido, na forma consumada, de um crime de injúria, p.e p. pelo artigo 171.º do C.P.
Ou, caso assim não se entenda,
S. Impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo, no qual cumprirá diligenciar pelo cabal esclarecimento dos factos pertinentes, de modo a colmatarem-se as anomalias detectadas (arts.426º, nº 1 CPP).
Caso assim, também, não se entenda, e se conclua pela não verificação da aludida nulidade ou pela possibilidade da sua sanação por esse Venerando Tribunal, se dirá ainda,
T. Entende o Assistente/Recorrente que a Sentença recorrida padece, também de erros de julgamento.
U. Verifica-se erro na fundamentação desde logo quanto ao argumento que “as declarações do assistente e da testemunha por este apresentada foram bastante contraditórias, considerando desde logo que a testemunha em causa incide as injúrias do arguido sobre a sua pessoa - e sobre qualquer pessoa que estivesse no local, embora não colocando de parte que também possa ter sucedido com o assistente – mas não as incindido particularmente sobre este”, porquanto, nenhuma contradição se verifica, conforme se pode aferir dos depoimentos prestados quer pelo Assistente/Recorrente quer pela referida testemunha CC, em audiência de julgamento realizada no dia 27.11.2023, conforme se transcreveu se transcreve na motivação.
V. De facto, confrontando ambos os depoimentos, nenhuma contradição existe, sendo bastante coincidentes entre si.
W. Além disso, embora a Testemunha CC incidisse as injúrias sobre a sua pessoa, não deixou de esclarecer convenientemente o Tribunal, que as injúrias incidiam, igualmente sobre o Assistente/Recorrente, expondo de forma cabal o modo como sucediam.
X. De ambos os depoimentos, resulta que as injúrias incidiam de forma generalizada sobre as pessoas que ali se encontrassem no momento, e, de igual forma resulta que incidiam, com elevada frequência e diretamente sobre a pessoa do Assistente/Recorrente, designadamente à tarde, por volta das 17 horas, quando ia levar as compras ao bar, quer fosse só, quer fosse acompanhado e também à noite, no período de funcionamento do bar e ainda aquando do seu encerramento.
Y. Estamos, pois, indubitavelmente, face a uma errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal “a quo”, que tem de ser censurada.
Mais,
Z. A circunstância do Arguido não conhecer o Assistente/Recorrente e deste não conhecer o Arguido, não retira a ilicitude dos factos perpetrados sobre a pessoa do Assistente/Recorrente, não diminui a culpa nem a consciência dessa mesma ilicitude, nem apaga os efeitos, os danos, provocados como causa directa desses mesmos factos ilícitos.
AA. Pois que, o agressor conhecer a vítima e a vítima conhecer o agressor não são pressupostos para a condenação pela prática do ilícito penal em causa ou sequer para a sua atenuação.
BB. Assim como a circunstância do Arguido ser pessoa nervosa e doente ou até mesmo de estar perturbado pelo ruido, não lhe confere qualquer direito à agressão, que o próprio reconheceu que podia suceder algumas vezes, três vezes numa semana, como aliás, consta da Sentença.
CC. Sendo certo que relativamente ao ruído, embora se tratasse de uma zona residencial, o Arguido foi o único residente que se queixou e, embora a polícia acorresse ao local frequentemente por via das queixas deste, o bar estava a funcionar completamente dentro da legalidade conforme resulta do depoimento do Assistente/Recorrente do minuto 10:07 ao minuto 10:34 e do depoimento da referida testemunha do minuto 07:04 ao minuto 10:23, acima transcritos na motivação, e nenhuma prova se fez do contrário.
DD. O erro na apreciação da prova existe, ainda, quando na Sentença se refere ser “incredível que esta situação se passasse três vezes por dia, durante anos sem qualquer reação da sua parte e sem sequer ao menos querer saber quem era em concreto a pessoa que o fazia.” e que “A única coisa que fazia “era ignorar”, na verdade andava na sua vida, tinha outras questões que o preocupavam mais. Apesar disso a pessoa continuava a chamar nomes. Nunca tentou falar com a pessoa em causa porque nem sequer sabia quem era, nem qual o andar onde morava. A policia ia quase todos os dia ao seu bar por causa das queixas.”
EE. E ainda que “independentemente de as palavras terem sido ou não proferidas, não nos parece lógico que durante anos e anos o assistente fosse insultado todos os dias, três vezes por dia, e nada tenha feito desvalorizando tal situação referindo apenas, mas quando lhe foi especificamente perguntado que não se sentia confortável.”
FF. Pois que, o bar esteve encerrado por um largo período de tempo, devido às medidas preventivas decretadas pelo Governo no âmbito da pandemia do covid19 e como tal, haverá que considerar que os factos se passaram durante o período da Pandemia e posteriormente ou seja, nos períodos em que foi permitido o funcionamento do bar, como aliás o próprio Assistente/Recorrente o referiu e a testemunha por si apresentada.
GG. E, o facto de o Assistente/Recorrente não saber qual era o andar de onde o Arguido proferia as expressões injuriosas, deveu-se ao facto de o prédio do Arguido ter entrada por outra rua e ter também alturas distintas em ambas as ruas, sendo mais alto na fachada voltada para a entrada do bar, conforme se transcreveu na motivação.
HH. No mais, o Assistente/Recorrente esclareceu o Tribunal “a quo” das razões porque nunca contactou o Arguido, nem havia apresentado queixa anteriormente, conforme se transcreveu na motivação, sendo certo que é irrelevante que aquele nunca tenha contactado este ou que não tenha apresentado queixa anteriormente, desde que a tenha apresentado em tempo, pois, o que para o caso interessa é apurar se o Arguido cometeu ou não contra o Assistente o crime que este lhe imputa em sede de acusação e em que circunstancias.
II. Mais se diga que a condenação do Arguido não se encontra dependente da circunstância do ofendido apurar junto do mesmo as razões da ofensa dado que, esta circunstância não é um elemento do tipo legal do crime de injúria
JJ. E que, o facto de apresentar queixa não ser a prioridade do Assistente/Recorrente, à data dos factos continuados que foram alegados, não pode servir para minimizar a culpa do Arguido e a intensidade do dano sofrido, desde que tenha sido apresentada atempadamente.
KK. Acresce que, a certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito.
LL. O cometimento do crime não suscitou dúvidas aos Tribunal, que o deu como provado, apenas não se apurou em que data exacta se consumou,
MM. Porém, existem elementos de prova que permitem concluir, sem dúvida, que o mesmo foi praticado durante e após pandemia, pelas palavras até do próprio Arguido, cfr. se transcreveu na motivação.
NN. O que recorrendo às regras da lógica terá de se concluir que foi no período em que o bar já se encontrava aberto, ou seja, posteriormente a setembro de 2021, porque antes estava encerrado.
OO. Pelo que, dúvidas não há que a situação descrita na acusação aconteceu antes e aquando da denúncia em 12.01.2022 e que persistiu para lá dessa data, e que, portanto, foi respeitado o prazo do art.º 115.º, n.º 1, do Cód. Penal.
PP. No que concerne à periodicidade com que o Arguido praticava as ofensas contra o Assistente/Recorrente e que tanta dúvida causou ao Tribunal “a quo”, é o próprio Arguido que refere que não seria todos os dias, mas duas ou três vezes por semana, cfr supra se transcreveu na motivação do minuto 20:26 ao minuto 20:52.
QQ. Cabe, também referir, ainda, considerando os fundamentos da Sentença e os erros de raciocínio e de apreciação da prova, que a queixa foi apresentada antes da ordem de restrição de horário ao estabelecimento, conforme o próprio Arguido o confirmou e supra se transcreveu do minuto 19:39 ao minuto 20:07.
RR. Pelo exposto entende o Assistente/Recorrente que o facto dado como provado em 7. deve ser alterado, ficando a constar do mesmo o texto que supra se indicou na motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
SS. Em consequência deve ser eliminado o ponto d) dos factos dados como não provados.
TT. Deve ainda ser alterado o teor do facto provado em 8. devendo ficar o mesmo com o teor que supra se indicou na motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
UU. Pois que, face à prova produzida se impõe a alteração do julgamento da matéria de facto, nos termos supra expostos.
VV. Face ao exposto, a Sentença recorrida violou não só o artigo 181.º do Código Penal e os critérios legais a que os art. 124 e 127.º do CPP sujeitam a avaliação probatória, como também é violadora do princípio da dignidade da pessoa humana – enquanto princípio regulativo primário da nossa ordem jurídica.
WW. Igualmente, violou o príncipio da livre apreciação da prova.
XX. No que concerne ao pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente/Recorrente resultou provado que o mesmo se sentiu ofendido na sua honra, consideração e dignidade, tendo sofrido psicológicamente com a situação para além do simples incómodo, sendo que ainda hoje sofre, uma vez que não a superou, cfr. resulta dos depoimentos transcritos na motivação, quer do próprio Assistente quer da testemunha CC.
YY. A Sentença recorrida é, assim, igualmente violadora do direito à reparação da lesão sofrida pelos Recorrentes consagrado nos art.s art. 483.º, n.º 1 e art. 562.º, ambos do Código Civil, por força do disposto no art. 129.º do Código Penal.
ZZ. Pois, de tudo o que atrás de expôs e que aqui se dá por reproduzido, resulta claro impender sobre o Arguido a obrigação de indemnizar o Assistente/Recorrente, que comprovadamente sofreu danos morais, nos termos do disposto nos arts. 483.º, n.º 1 e 562.º, ambos do Código Civil.
AAA. Não só o Arguido deve ser condenado na pena da lei pelo crime de injúria cometido contra a honra e consideração do Assistente/Recorrente, como, em consequência do ilícito cometido, deve ser condenado no pedido civel peticionado, por provado.
BBB. Impondo-se, em consequência, a absolvição do Assistente/Recorrente quanto a custas criminais em que foi condenado.
CCC. Termos em que, deve a Douta Sentença ser revogada e sustituída por outra que condene o Arguido pelo crime de injúria cometido contra a honra e consideração do Recorrente, por provado, que condene o Arguido no pagamento da indemnização civil por danos não patrimoniais peticionada pelo Recorrente, por provado e no pagamento das custas criminais.
NESTES TERMOS,
e nos mais que V. Exas. doutamente suprirão, deverá conceder-se provimento ao presente recurso, sendo a douta sentença recorrida revogada e substituída por outra que declare a existência do vício de contradição insanável previsto no art. 410º, nº2, al. b) do CPP. e, em consequência, seja o vício sanado condenando o Arguido, na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 171.º do C.P. e no pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente/Recorrente, por provado;
Ou, caso assim não se entenda,
Que se proceda ao reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo, no qual cumprirá diligenciar pelo cabal esclarecimento dos factos pertinentes, de modo a colmatarem-se as anomalias detectadas (arts.426º, nº 1 CPP). Ou, caso assim, também, não se entenda,
Deve a Douta Sentença ser revogada e sustituída por outra que condene o Arguido pelo crime de injúria cometido contra a honra e consideração do Recorrente, por provado, que condene o Arguido no pagamento da indemnização civil por danos não patrimoniais peticionada pelo Recorrente e no pagamento das custas criminais
Sendo que assim se fará JUSTIÇA!
3. Resposta Ministério Público
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo assistente, defendendo a sua improcedência e formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. A Mmª Juiz a quo, de acordo com a prova efetuada que foi, indubitavelmente, corretamente apreciada, jamais poderia ter dado como provado qual/is o/s dia/s e por quantas vezes é que o arguido, no mencionado contexto, proferiu as supra mencionadas expressões injuriosas para as quais se remete, dirigidas ao arguido.
2. De facto, do depoimento não só do Assistente, como das testemunhas e das declarações do próprio arguido, apenas foi possível apurar que, a partir de uma determinada altura contemporânea à existência da pandemia pelo vírus Covid 19, este último, proferia as ditas expressões para as pessoas que se encontravam a entrar e sair do estabelecimento comercial explorado pelo Assistente (nas quais poderia, por vezes, se incluir o próprio Assistente), não tendo sido possível provar em que dias concretos e por quantas vezes é que o arguido cometia o crime de injuria.
3. Tendo em conta esta indefinição temporal, em termos jurídicos, a única figura jurídica relativa à execução pluríma do mesmo tipo de fato ilícito criminal seria a execução na forma continuada.
4. Contudo e, em primeira linha, a forma continuada não é legalmente admissível no caso de crimes eminentemente pessoais – como é o crime de injúria - pese embora também entendamos que os restantes pressupostos deste mecanismo jurídico estipulado no art.30º do C.P. não se encontrem verificados nos factos ínsitos na acusação particular.
Pelo exposto, nenhuma alteração deverá ser introduzida à matéria de facto fixada na primeira instância, bem como à aplicação do Direito, porquanto a sentença recorrida não padece, pois, de qualquer vício.
4. O arguido apresentou resposta ao recurso, sem formular conclusões, mas pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, alinhando pela resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância e pugnando pela validação do decidido.
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, atendendo às conclusões da motivação de recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:
- Impugnação matéria de facto: vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP) e erro de julgamento.
- Pedido de indemnização civil: violação do direito à reparação da lesão sofrida pelo recorrente.
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo deu como provada e não provada a seguinte factualidade:
Factos provados
Da acusação particular:
1. O assistente exerce o cargo de gerente do estabelecimento comercial denominado de ..., sito em ...;
2. O que sucede desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde há cerca de três ou quatro anos, e já anteriormente ao ano de 2020.
3. No estabelecimento em causa, em determinados períodos desenvolvia-se somente a actividade de bar;
4. Noutros períodos, desenvolvia-se a actividade de bar e de restaurante;
5. O arguido reside na ...;
6. Prédio esse que embora com entrada pela identificada artéria confina com o centro comercial no qual se situa o referido estabelecimento comercial gerido pelo assistente, e também por CC.
7. Em datas, momentos, e circunstâncias não concretamente apuradas também por causa do ruido, proveniente do estabelecimento em causa, ou da rua por causa das pessoas que saiam do estabelecimento e um número indeterminado de vezes, o arguido da janela da sua residência, dirigindo-se de forma indiferenciada, conforme a pessoa ou pessoas que estivessem no exterior, podendo fazê-lo ao assistente, ao outro gerente do bar, a qualquer cliente ou a funcionários, proferia as seguintes expressões: “ pretos do caralho”, “assassinos”, “ por vossa causa vão morrer milhares de pessoas”, “filhos da puta”, “andam a falsificar documentos” “vou-vos fechar o bar”.
8. Ao agir desse modo tal como consta de 7) o arguido fê-lo com o propósito de ofender a honra e consideração de quem quer que aí se encontrasse, podendo incluir o assistente.
9. Agiu livre, deliberada e conscientemente sabendo que a conduta era proibida e punível por lei.
Mais se provou que:
10. O arguido não possui antecedentes criminais.
11. O arguido tem vários problemas de saúde, nomeadamente cefaleias desde a infância, tumor, tensão arterial elevada, vários problemas de oftalmologia com falta de visão grave, tendo já sido internado.
12. Recebe R.S.I. na quantia de 309,00 euros / mensais.
13. Vive sozinho.
14. Paga 312.00 euros/ mensais a titulo de quantia mensal de prestação da casa.
15. Paga 150,00 mensais, nomeadamente em água, electricidade, gaz de bilha, internet e com custos adjacentes à casa, nomeadamente seguros.
16. Encontra-se em situação de fragilidade física, também económica e psicológica;
Do pedido cível:
- Além dos factos descritos de 1. a 9 não se mostram provados outros factos.
Factos não provados
Da acusação particular:
a. O assistente exerce o cargo de gerente do estabelecimento comercial aludido em 1) apenas desde meados de setembro de 2021.
b. Foi desde o inicio da vigência de medidas limitativas decorrentes de combate à pandemia covid 19 que o arguido se passou a dirigir ao assistente de modo ofensivo, em concreto, através das expressões que constam do ponto 7);
c. dirigindo-se somente ao assistente, sempre que o encontrava no exterior do estabelecimento;
d. As expressões dirigidas pelo arguido nos termos que constam do ponto 7) incluindo ao assistente ocorreram no período temporal compreendido entre o mês de setembro de 2021 e até meados de 2022,
e. E sempre que se apercebia da presença do assistente, do outro gerente, de clientes ou de funcionários no estabelecimento, no exterior e imediações do mesmo;
f. O assistente chegou a retorquir ao arguido perguntando; “mas que mal é que lhe fiz e qual é o seu problema?”
g. O arguido respondeu ao assistente;” cala-te oh preto”.
Do pedido cível:
a. O demandante sentiu-se profundamente ofendido na sua honra e consideração.
b. Alguns clientes sentiram-se incomodados e disseram que deixariam de se deslocar ao estabelecimento.
c. Por via de qualquer conduta do arguido o assistente ficou dominado por um sentimento de enorme injustiça, sentindo a sua imagem denegrida.
d. Por causa de qualquer conduta do arguido, o assistente ficou profundamente vexado.
e. Por causa de qualquer conduta do arguido o assistente passou a padecer de insónias.
f. Imaginando que a qualquer momento nas proximidades do estabelecimento que gere poderia ser confrontado com a presença do arguido.
g. O demandante era pessoa alegre e divertida, sendo hoje pessoa deprimida receosa, e amedrontada.
h. O estado de inquietação acompanha o assistente e tem vindo a ter repercussões na sua vida familiar gerando discussões, e desentendimentos.
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição parcial):
(…)
Posto isto, cumpre explicar que a matéria que resultou provada - e a que não se provou - derivou da ponderação conjugada e crítica das declarações do arguido, do assistente / demandante cível, em conexão com o depoimento da testemunha ouvida, apenas com maior relevo a apresentada pelo assistente, sendo que a apresentada pelo arguido referiu com relevo que o seu tio (arguido) se encontra muito perturbado com a situação do bar sendo pessoa doente devendo salientar-se que as declarações do assistente e da testemunha por este apresentada foram bastante contraditórias, considerando desde logo que a testemunha em causa incide as injúrias do arguido sobre a sua pessoa - e sobre qualquer pessoas que estivesse no local, embora não colocando de parte que também possa ter sucedido com o assistente – mas não as incindido particularmente sobre este - tudo analisado mediante recurso às regras da experiência comum, as quais nos conduzem por padrões de normalidade, habitualidade, racionalidade e lógica, nos moldes que se deixarão em seguida particularizados.
O arguido prestou declarações de forma muito emotiva, pouco clara e bastante perturbada vendo-se claramente que a situação do bar, do ruido e da doença covid o perturbou imensamente – mas do mesmo modo, embora com (muito) maior serenidade o assistente e a testemunha por este apresentado.
O arguido disse que nem conhecia o assistente (facto confirmado por este assistente que também refere que nem conhecia o arguido). Só conhecia a pessoa mais baixa reportando-se à testemunha CC, que julgava que era o gerente do bar.
Disse que antes da pandemia - e durante a mesma, - havia muito barulho das pessoas do bar, além de ser incomodativo era muito perigoso “via as pessoas a morrerem na televisão de covid” e “os hospitais sem camas”. Chamou muitas vezes a policia (confirmado pelo assistente), que ia ao local, porque estavam uma serie de pessoas no bar. Via as noticias e tinha medo que as pessoas fossem infetadas (via os hospitais cheios nos telejornais) e que “milhares morressem devido a essas condutas”. Indirectamente “era um assassinato” o que faziam. Actualmente o bar continua a funcionar, mas à porta fechada, não é a mesma coisa. Como fazia queixas à policia (era o único do prédio que o fazia, “tinha essa coragem”) estavam sempre a ameaçá-lo (mas não explicando como). Era “o mais baixo” e “o porteiro” que o ameaçavam. Uma vez até apareceu escrito numa parede “fuck chibos” – não sabe quem foi, mas acha que era a si que se referiam. Era “um caos”, “durante a pandemia, não olhavam a meios para colocar o bar a funcionar”. Uma única vez - durante a pandemia - o assistente (apenas agora sabe que é este, a pessoa mais alta) tentou falar consigo – o que “curiosamente” o próprio assistente nega dizendo com toda a certeza este mesmo assistente nunca ter falado e nem sequer se ter aproximado do arguido dado que nem conhecia a sua fisionomia.
Nessa ocasião, o assistente estava no terraço e disse-lhe; “o que vocês estão aqui a fazer é um assassinato”, “indirectamente é um assassinato, milhares e milhares de pessoas estão a ser contaminadas, podem contaminar outras e morrer “– referindo-se à questão relativa a estarem a funcionar no bar, na altura da doença covid 19 com muitas pessoas. Só dessa vez falou com essa pessoa. A outra pessoa mais baixa, é que tentou falou consigo, não sabendo explicar quando, nem onde e ameaçou-o, mas também não sabendo explicar como. Por vezes acordava a meio da noite com o barulho, estavam grupos lá em baixo, tinham saído do bar. Nessas ocasiões admite que dizia coisas (lá para baixo), podia suceder algumas vezes três vezes numa semana, não sabendo quando, em que altura tal sucedeu, nem em que ano. Acordava, e não conseguia dormir e “há pessoas que compreendem e há pessoas que não compreendem”. Ficava muito perturbado, porque as pessoas iam saindo do bar e ficavam a fazer muito barulho, lá em baixo, não conseguia voltar a dormir. Quando dizia as aludidas expressões não sabe se estava o assistente- ou não-. Não vê bem. Tem muitos problemas de visão, e não consegue ver nada, a alguma distância. Admite que podia dizer; “vão para a vossa terra, escumalha”, mas desconhecendo quem lá estava em concreto, nem sabendo ocasiões, ou datas. Estava grandemente perturbado por causa do barulho (já é uma pessoa perturbada) e por causa de “alegadamente” o bar ter pessoas que não devia ter sem qualquer segurança e estarem-se a contaminar. O barulho era constante e tinha muitas dores de cabeça. Fez muitas queixas à polícia e à Câmara Municipal. Dizia que o que estavam a fazer “indirectamente” era um assassinato porque os hospitais estavam todos ocupados, não havia camas, as pessoas estavam a morrer e, no entanto, faziam-se grupos com imensas pessoas. Actualmente a situação está melhor porque o bar funciona à porta fechada.
Ouvido o assistente o mesmo também não foi claro, e foi até muito impreciso perante os factos que constavam da acusação particular não confirmando grande parte destes e apresentando versão diversa dos mesmos.
Começou por dizer que não conhecia o arguido, apenas o tinha visto na última sessão de julgamento. Sabia apenas havia uma pessoa que falava atrás de uma janela, mas não via a pessoa e nunca a viu (salientou várias vezes) não conhecia a sua fisionomia e nunca falou com este. Refere que era gerente do bar aludido em 1) com o seu colega. Começou a fazer a exploração do bar julga que há 3 ou 4 anos (não menos) não coincidindo pois com a data da acusação particular referida setembro de 2021. Já muito antes da covid era gerente. Era um bar longue e depois na altura da covid era também restaurante.
Não consegue explicar quanto às várias fases das restrições como “funcionavam” - falando quase sempre no plural - apenas referindo que “estavam sempre dentro da lei”. Não conhece o arguido nem sequer a sua fisionomia. Sabe que estava uma pessoa a dizer nomes atrás de uma janela. Dizia “filhos da puta” “pretos da merda”, vou “fechar esse bar”. Umas vezes as expressões eram para si, mas outras vezes eram para outras pessoas. Esta situação passava- -se todos os dias (quando chegava por volta das 17,00 horas, depois quando abriam mais tarde e depois ainda quando fechavam) – sendo incredível que esta situação se passasse três vezes por dia, durante anos sem qualquer reação da sua parte e sem sequer ao menos querer saber quem era em concreto a pessoa que o fazia. Durou muito tempo, foi antes do covid, durante o covid e depois do covid. Acontecia “sempre”. A única coisa que fazia “era ignorar”, na verdade andava na sua vida, tinha outras questões que o preocupavam mais. Apesar disso a pessoa continuava a chamar nomes. Nunca tentou falar com a pessoa em causa porque nem sequer sabia quem era, nem qual o andar onde morava. A policia ia quase todos os dias ao seu bar por causa das queixas. Quando foi fazer queixa na policia, nunca se dirigiu à pessoa para lhe dizer nada. Acha que ninguém se dirigiu à pessoa em causa. Na verdade, independentemente de as palavras terem sido ou não proferidas, não nos parece lógico que durante anos e anos o assistente fosse insultado todos os dias, três vezes por dia, e nada tenha feito desvalorizando tal situação referindo apenas, mas quando lhe foi especificamente perguntado que não se sentia confortável. A determinada altura receberam uma carta que lhes diminuía o horário de funcionamento por causa dessas queixas. Ficou com o horário até à 1 da manhã e por isso já não explora o bar (não dizendo desde quando). O motivo foi por causa das queixas (redução do horário) já não compensava.
Não sabe qualquer o andar de onde vinham “as queixas” embora referindo que via uma janela, seria “pelo quarto andar”. Quando fechou o bar coincidiu com a altura em que lhe mandaram a carta com a ordem de redução do horário do bar. Na altura anterior tiveram várias dificuldades devido ao covid (refira-se que o assistente usa quase sempre as expressões no plural) e o seu fito não era dar atenção às palavras do arguido,( de onde decorre que estas não o afetaram nos moldes que havia exposto no seu pedido de indeminização cível (factos não provados) não “era prioridade preocupar-se com uma questão de palavras” (o que desde logo se verifica que não ficou afetado com esta situação para efeitos de danos, não confirmando espontaneamente os factos do pedido cível).
A testemunha CC do mesmo modo era gerente do aludido bar refere que conhece o arguido porque o via da janela. Só o conhece de vista. O estabelecimento já estava aberto há 4 /5 anos, e logo nessa altura tinha alguém na janela a chamar nomes, chamava-lhe nomes a si e a outras pessoas (a quem estivesse no local) da janela; “pretos do caralho”, “filhos da puta” e outras que já nem se lembra. Por vezes via um senhor à janela, mas nem sempre via). aconteceu nalgumas ocasiões segundo pensa estar com o senhor AA, mas geralmente estava sozinho – aquando das expressões. Também podia estar com clientes ou funcionários, eram sempre as mesmas palavras sempre que parava o carro na rua tal acontecia, as palavras “eram para toda a gente”, para si, para o AA, para os clientes, para os funcionários. Nunca disseram nada, nunca falaram com a pessoa, pensavam que era algo passageiro (o que durante anos e anos conforme relatado não se afigura muito credível) mas não terminava. A policia ia quase todos os dias ao bar por causa disso, das queixas, e reduziram-lhes o horário (deixaram de ter autorização para trabalhar até mais tarde).
Ora desde logo embora o arguido admita algumas expressões refere que estas não eram para o ofendido, - embora diga que quando falou com este sozinho lhe teria do que estavam a cometer um assassinato, sendo que o assistente nega alguma vez ter falado com o arguido, nem sabia quem era. O arguido admite que pode ter dito as expressões que ficaram provadas da sua janela cá para baixo, não faz ideia se lá estava o assistente, eram várias pessoas, grupos quando saiam do bar, não via as expressões das mesmas, desde logo porque ter grandes problemas de visão (facto provado). Por lado, e com maior relevo não se encontra sequer minimamente concretizado o período temporal destes eventos, ou pelo menos de um único destes, pois tanto o assistente como a testemunha referem que exploravam o estabelecimento em causa, já muito antes de setembro de 2021, sendo aliás que as medidas limitativas de covid foram muito anteriores a essa data. Por outro lado, não se consegue situar a actuação do arguido num período concreto, com as respectivas datas, pois quanto ao crime continuado, tal figura, a nosso ver não se mostra aplicável, não ficando qualquer data concretizada, referindo-se “anos” em que o arguido proferiria tais expressões, tanto para o assistente, como para testemunha também gerente, como para clientes e funcionários, e sendo certo que o assistente nem mesmo sabia quem era o arguido.
Ficamos, dada a prova que aqui foi produzida sem saber em que momento se verificaram os factos, mas não os podendo situar no período temporal entre meados de Setembro de 2021 e meados de 2022 – sendo e contraditória a acusação particular quando refere que o assistente desenvolvia a actividade de exploração do bar desde Setembro de 2021, mas referindo depois no ponto 6 “ que foi desde o inicio das medidas limitativas decorrentes do combate à pandemia que o arguido se passou a dirigir ao assistente de modo ofensivo”, pois tais regras como é sabido foram implementadas muito anteriormente mais concretamente em 2020.
Alias pode menos dizer que que foram atenuadas através da resolução do Conselho de Ministros de 23 de setembro de 2021 que declara a situação de alerta em todo o território nacional continental até às 23h59 de 31 de outubro de 2021 referindo o seguinte” Atingindo o patamar de 85% da população vacinada e face à estratégia gradual de levantamento de medidas de combate à pandemia da doença COVID-19, o Governo adota, através desta resolução e de um decreto-lei, as seguintes medidas a partir de 1 de outubro:
Abertura de bares e discotecas;
Restaurantes sem limite máximo de pessoas por grupo;
Fim da exigência de certificado digital ou teste negativo para acesso a restaurantes;
Fim dos limites em matéria de horários;
Fim dos limites de lotação, designadamente para:
Casamentos e batizados
Comércio
Espetáculos culturais
Necessário Certificado para:
Viagens por via aérea ou marítima
Visitas a lares e estabelecimentos de saúde
Grandes eventos culturais, desportivos ou corporativos
Bares e discotecas
Eliminação da recomendação de teletrabalho;
Eliminação da testagem em locais de trabalho com mais de 150 trabalhadores;
Fim da limitação à venda e consumo de álcool;
Fim da necessidade de certificado ou teste nas aulas de grupo em ginásios;
Obrigatoriedade de uso de máscara em transportes públicos, estruturas residenciais para pessoas idosas, hospitais, salas de espetáculos e eventos e grandes superfícies;
Mantém-se obrigatório o uso de máscaras na utilização de transportes coletivos de passageiros, incluindo o transporte aéreo”
E também na verdade não se admitindo neste caso como não se admite a figura do crime continuado, nem acusação particular tem factos para tal, seria absolutamente necessário ter ficado concretizada pelo menos uma data em que o arguido tivesse proferido expressões injuriosas ao assistente, o que não foi confirmado por qualquer meio de prova, - sendo certo que o assistente refere que eram todos os dias podia ser para si ou para todas pessoas era conforme quem lá estivesse, sendo o mesmo referido pela testemunha ouvida mas referindo-se a si, até dizendo que “também podia ter sucedido com o AA
A data em causa seria muito relevante porque não podemos olvidar que explorando o assistente o bar desde antes da pandemia covid 19 – confirmado pelo assistente - a queixa apenas foi feita em 12.01.2022 – provavelmente em período em que foi dada a ordem de restrição de horário ao estabelecimento ficando-se totalmente sem saber sequer se foi respeitado o prazo do art.º 115.º, n.º 1, do Cód. Penal, “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.”. Na versão do assistente tais eventos passavam há muitos anos e nem sequer ligava nem alguma vez tendo sequer ido falar com o arguido. O assistente nem mesmo conhecia a fisionomia do arguido como varias vezes repetiu e nem sabia verdade qual era o andar onde este morava
Por todos estes motivo e fundamentos e com base nos aludidos meios de prova apenas ficaram provados os factos 1 a 9 tal como destes constam.
A ausência de antecedentes criminais do arguido tal como consta do ponto 10) teve em conta o certificado de registo criminal do mesmo que consta dos autos.
Os factos relativos aos problemas de saúde do arguido e os relativos à sua situação económico social que constam dos pontos 11 a 16 basearam-se nas declarações do próprio bem como no teor dos documentos médicos juntos pelo mesmo a fls 80 e 81 e ainda no teor do depoimento da testemunha por si apresentada, seu sobrinho.
No mais quanto aos restantes factos estes não são confirmados por qualquer meio de prova, salientando-se quanto aos factos do pedido cível nem mesmo o assistente os confirmou denotando ao invés ter desvalorizado bastante a situação.
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3. Apreciando
Nos termos do estatuído no art. 368.º aplicável ex vi art. 424.º n.º 2, ambos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer em primeiro lugar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Após, das que a este respeitem, começando pelas relativas à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código do Processo Penal. Finalmente, debruçar-se-á sobre as questões atinentes à matéria de Direito.
Nessa medida, independentemente da sequência pela qual o recorrente suscita as questões, na sua apreciação o tribunal de recurso deve seguir uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras, tendo por referência a ordem indicada na disposição legal citada.
In casu o recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto, impugnando-a por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art. 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de «revista alargada»), concretamente, por verificação de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP).
- mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP (impugnação em sentido lato), com isso pretendendo inverter o sentido da decisão absolutória e subsequente subsunção ao crime de injúria sob a forma continuada.
Ora, quanto a este último segmento, impõe-se, conforme resulta da análise do normativo correspondente (n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP), que o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada.
Tal delimitação decorre da circunstância de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num “remédio jurídico”, destinado a suprir eventuais erros. Por conseguinte, se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis, a mesma será inatacável.
Pretende, pois, o recorrente sindicar a valorização dos meios de prova realizada pelo tribunal a quo, visando a reapreciação da prova produzida, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, impugnando, concretamente, os factos provados em 7. e em 8., bem como a alínea d) dos factos dados como não provados que, no seu entender, foram incorretamente julgados.
Porém, não dá cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, na medida em que não indica qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa em relação aos factos da sentença recorrida que, na sua opinião, traduzem erros de julgamento.
Com efeito, não invoca o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, concretamente, das declarações do arguido, das declarações do assistente e do depoimento da testemunha por este apresentada (CC).
Propõe-se ultrapassar aquilo que esteve na origem do juízo absolutório proferido pelo tribunal a quo, ou seja, a indeterminabilidade do(s) momento(s) delituoso(s) e a quantificação dos pretensos crimes.
Ao invés, considera que essa circunstância, de se ignorar em que ocasião(ões) o arguido proferiu as imputadas expressões lesivas da dignidade pessoal do assistente, se mostra esclarecida pela prova pessoal produzida, com apelo às regras da experiência e da lógica.
Ora, reanalisada por nós toda a prova produzida nos presentes autos, verificamos não ser possível situar a situação descrita na acusação particular de acordo com o pretendido pelo assistente (conclusão NN: “o que recorrendo às regras da lógica terá de se concluir que foi no período em que o bar já se encontrava aberto, ou seja, posteriormente a setembro de 2021, porque antes estava encerrado).
Efetivamente, tal pretensão mostra-se, desde logo, contrariada pelas declarações do arguido (cf. minuto 27:20 das declarações relativas ao assistente, quando, a dada altura, é dada a possibilidade de o arguido também falar, interrompendo aquelas), ao afirmar que “no ano de 2020 estava lá um post para chamarem as pessoas para ir ao local passarem o fim do ano e estiveram lá”, invalidando a conclusão de que o bar estava encerrado ou mesmo de que “estava a funcionar completamente dentro da legalidade” (cf. conclusão CC).
Ora, para além daquilo que se acabou de enunciar, certo é que ainda partilhamos da solução assumida na decisão recorrida, que sempre seria devida em obediência ao princípio in dúbio pro reo, que será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes.
É que mesmo que se admitisse que os factos tiveram lugar durante o período Covid, seria necessário ter ficado concretizada pelo menos uma data, ou pelo menos um período específico em que o arguido tivesse proferido expressões injuriosas ao assistente.
Com efeito, tendo a queixa apenas sido apresentada a 12.01.2022, certo é que, conforme salientado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido nos autos, “o prazo prescricional do procedimento criminal é o mais curto (art 118º, 1, d), e 181º, 1, CP), assim como o prazo de caducidade o é (art 115º,CP), sendo imprescindível que se saiba qual o ponto de partida dessa contagem, em ambas as vertentes (prescrição e caducidade: art 119º,1, CP, e 115º,1, CP)”.
Por outro lado, nada urge alterar ao facto tido como assente em 8, porquanto, e desde logo, o mesmo não deixa de considerar a possibilidade de o assistente ser um dos presentes na altura delituosa, o que se mostra conforme à prova produzida.
Sem prejuízo, da audição das declarações prestadas pelo assistente, pelo arguido e pela testemunha, afigura-se-nos, de igual modo, que as expressões proferidas não foram diretamente proferidas a uma pessoa em específico, designadamente o assistente, pelo que dificilmente haveria crime que, ainda assim, exige uma qualquer ligação entre o arguido e o assistente.
Falecendo, desse modo, a pretendida impugnação ampla, mostra-se o tribunal de recurso limitado ao poder/dever de conhecer oficiosamente qualquer dos vícios indicados no art. 410.°, n.ºs 2 e 3 do CPP, designadamente, aquele que é apontado pelo assistente, ou seja, da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. b) do CPP).
Os vícios em questão devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento - art. 426.º, n.º 1 do CPP.
Contudo, da análise da peça processual colocada em crise não se vislumbra a ocorrência da invocada contradição.
Verdadeiramente, a conciliação entre as proposições provadas e não provadas, que verificamos, tem de ser compreendida dentro do non liquet correspondente à indefinição temporal que conduziu ao juízo absolutório posto em crise.
Melhor dizendo, o proferimento das expressões integradoras do tipo legal em debate, quer na sua dimensão objetiva quer subjetiva (factos provados em 7, 8 e 9) não se mostra em crise, mas antes a referida indefinição temporal (cuja figura do crime continuado, almejada pela acusação particular, não consegue ultrapassar, pela exclusão dos crimes contra bens eminentemente pessoais operada pelo legislador - art. 30.º, n.ºs 2 e 3 do CP), em conjugação com aquilo que efetivamente importa, ou seja, a falta de ligação efetiva das expressões proferidas ao assistente.
Desta feita, e porque nenhum vício julgamos verificado, improcede a pretendida impugnação da matéria de facto, e com ela a totalidade do recurso, porquanto a apreciação da questão relativa ao pedido de indemnização civil sempre estaria dependente da verificação dos pressupostos relativos à responsabilidade criminal, inerente a um juízo condenatório.
Em suma, improcede totalmente o recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 21 de maio de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João Ferreira
Sandra Oliveira Pinto