Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ELEONORA VIEGAS (VICE-PRESIDENTE) | ||
| Descritores: | INTERESSE EM AGIR ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA PENA DE PRISÃO CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/24/2025 | ||
| Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECLAMAÇÃO (405.º, CPP) | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Sumário: | Tem interesse em agir o assistente que recorre da sentença condenatória pedindo que seja alterada a qualificação jurídica dos factos provados, e que a pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado, na sequência daquela alteração, seja suspensa na sua execução na condição de, nomeadamente, o ressarcir dos danos sofridos. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | I. Relatório AA, assistente nos autos, veio reclamar, nos termos do art. 405.º do CPP, do despacho que não admitiu o recurso que interpôs da sentença que condenou o arguido. Por sentença de 29.11.2024, foi julgada a acusação parcialmente procedente e, em consequência, foi o arguido BB condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art. 143.º, n.º1 do Código Penal, 33.º e 34.º, n.º1 da Lei n.º 33/2009, de 30/07, na redacção da Lei nº 113/2019, de 11/09 – regime em vigor à data dos factos, mais favorável - na pena de 450 dias de multa à taxa diária de €7,00, num total de €3.150,00 autorizando-se o seu pagamento em 24 prestações; absolvendo o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelo art. 144.º, al. b) e c) do CP; e julgando parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civil formulados por AA bem como o formulado pelo CC e totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo DD. Em suma, considerou-se na sentença que: “No caso dos autos o que se verificou foi uma limitação na alimentação do ofendido, que ficou capaz apenas de ingerir alimentos líquidos e já não sólidos, os quais não têm a mesma capacidade nutritiva. Esta limitação não configura impossibilidade de utilização do corpo para efeitos de agravação da ofensa à integridade cometida. Tais ocorrências não se traduziram na retirada ou afectação da possibilidade de utilizar o corpo, com a extensão supra aludida, ou seja, “como um todo”, apenas a limitando na execução de algumas tarefas, ou fazendo com que estas fossem, para ele, dolorosas, ao executá-las. Ainda que assim não fosse, sempre será de considerar que as referidas limitações foram temporárias, transitórias, tendo perdurado tão-somente até à cura, em especial durante quatro meses. Essa transitoriedade não permite qualificar como graves as afectações em apreço. (…) Conclui-se, pois, que não se mostra preenchida também a agravante da alínea b) do artigo 144º do Código Penal sendo os factos provados subsumíveis apenas à comissão de um crime de ofensa à integridade física.” O reclamante interpôs recurso da sentença formulando, após motivação, as seguintes conclusões: “1. O recorrente não aceita que os factos dados como assentes não se enquanto a tipo de crime previsto e punido pelo artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal. 2. A agressão em si, bem como as consequências da mesma no recorrente, causaram doença especialmente dolorosa e impediu a vítima de maneira grave de utilizar aquela parte do corpo, nomeadamente para se alimentar. 3. Para que se aferir da gravidade da ofensa não é necessário que a doença que resulte da mesma seja permanente, mas sim que intensidade da agressão provoque dor e doença especialmente dolorosa, mesmo que temporária. 4. Ora, foi o que aconteceu nos presentes autos. 5. O demandante esteve doente durante 1 ano e 6 meses, sendo que durante 4 meses ficou incapacitado de se alimentar com alimentos sólidos, fazendo a alimentação à base de líquidos, tendo perdido 15 kg de peso (factos provados 8 e 13 a 17). 6. As lesões sofridas pelo recorrente são as que estão assentes no ponto 6 dos factos provados. 7. Assim sendo, salvo melhor opinião, o tribunal a quo deveria ter enquadrado os referidos factos no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, em vez do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. 8. E, em consequência, o arguido deveria ter sido condenado em pena de prisão em vez de pena de multa. 9. Dada a ausência de antecedentes criminais e o facto de se encontrar inserido social profissionalmente, a pena de prisão deverá ficar suspensa na sua execução, na condição, à semelhança do promovido pelo Ministério Público, nas suas doutas alegações, de frequentar programa de sensibilização para a violência no desporto e de ressarcir a vítima, neste caso, o recorrente, dos danos sofridos. 10. Pelo exposto, a decisão recorrida violou o artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal.”. Por despacho de 28.01.2025 foi rejeitado o recurso, ao abrigo do n.º 2 do art.º 414º do Código de Processo Penal, com fundamento em que o mesmo visa apenas a alteração da qualificação jurídica dos factos, não tendo o assistente/recorrente um concreto e próprio interesse em agir. O recorrente fundamenta a sua reclamação alegando o seguinte: “O arguido encontrava-se acusado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave (artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal). O arguido foi condenado pelo tribunal a quo pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal). Pelo que a acusação deduzida pela Ministério Público foi parcialmente procedente. Não se trata de uma mera questão de qualificação jurídica de factos. O tribunal a quo considerou que os fatos dados por assentes não podem ser qualificados como se tratando de uma ofensa à integridade física grave, por no entender do mesmo os factos descritos na acusação não terem ficado provados. Como também não se trata de uma questão de estarmos perante um crime com natureza semi-pública ou pública. Em ambos os casos, tanto no crime pelo qual o arguido foi acusado, como pelo crime que foi condenado, estamos perante crime públicos, por aplicação da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.” Cumpre apreciar. * II. Fundamentação Os factos relevantes para a decisão da reclamação são os que constam do Relatório. * Nos termos do disposto no art. 414.º, n. º2 do CPP o recurso não é admitido quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer. Dispõe o artigo 69º do CPP sobre a posição processual e atribuições dos assistentes: 1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei. 2. Compete em especial aos assistentes: a. (...) b. (...) c. Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito. Dispõe, por seu turno, o artigo 401º, sobre a legitimidade e interesse em agir: 1. Têm legitimidade para recorrer: a. (...) b. O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas. c. (...) 2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir. Vejamos. O despacho reclamado aplicou estas normas na interpretação dada pelo Assento n.º 8/99, de 30.10.1997, recurso n.º 1151/96, publicado no DR n.º 185/99 Série I-A, de 10.08.1999, que firmou a seguinte jurisprudência obrigatória: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.” Tendo citado também os acórdãos do STJ de 16.10.2023, proc. 03P3280 e de 29.06.2025, proc. 2041/05, concluiu-se no despacho reclamado que o recorrente/assistente não demonstra um concreto e próprio interesse em agir, pelo que, ao abrigo do art. 414.º, n. º2 do CPP, não admitiu o recurso. A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não condiciona as possibilidades de recurso do assistente. A única exigência da lei como pressuposto do recurso de uma decisão é que seja proferida contra o assistente, isto é, que tenha interesse em agir. Ora, no caso não está só em causa, como se refere no despacho reclamado, a estrita alteração da qualificação jurídica, bem como não está directamente em causa a espécie e medida da pena aplicada ao arguido. O assistente recorre da sentença pedindo que, alterada que seja a qualificação jurídica dos factos provados, a pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado (o crime de ofensas corporais graves é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos, cfr. art. 144.º do Código Penal), seja suspensa na sua execução na condição de, nomeadamente, o ressarcir dos danos sofridos. Pelo acórdão n.º 2/2020 de 26 de Março, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência: O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada. Se é certo que no caso o arguido não foi condenado em pena de prisão (o art. 143.º do CP prevê a alternativa da condenação em multa para o crime de ofensa à integridade física simples), também o é que a condição do pagamento da indemnização de €10.000,00 a título de ressarcimento pelos danos sofridos que foi arbitrada ao assistente - um interesse próprio, concreto e legítimo seu – resultará, com maior probabilidade, da alteração da qualificação jurídica dos factos provados. Sem esquecer, afigura-se-nos, que o assistente é o ofendido, a vítima do crime que foi qualificado na sentença como de ofensa à integridade física simples, constituído assistente por querer conformar o resultado do processo. Resultado esse que abrange também a pena, que é aplicada tendo em vista a protecção de bens jurídicos de que o ofendido é, precisamente, o titular – neste sentido, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo V, Almedina, 2024, p. 100. Como tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça, o interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que tenha de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos. Conclui-se, assim, que a presente reclamação deve ser julgada procedente. * III. Decisão Pelo exposto, julgo procedente a reclamação apresentada por AA. Sem custas. Notifique. *** Lisboa, 24.03.2025 Eleonora Viegas (Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, com competência delegada) |