Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
473/03.0TBBNV.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CHEQUE
PAGAMENTO INDEVIDO DE CHEQUE
CONTRATO DE MANDATO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A utilização do cheque não como meio de pagamento mas como instrumento de garantia não corresponde à sua função específica, mas constitui uma prática disseminada no tráfico jurídico, como é reconhecido pelo legislador, que afastou desses casos a tutela penal concedida aos cheques (cfr., expressamente nesse sentido, o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 316/97, de 19.11), e não é em si um ato ilícito, sendo certo que essa causa da emissão não afetará os direitos cartulares de terceiros que a ela sejam alheios (cfr. artigos 13.º, 21.º, 22.º da LUCH).
II – Não tem direito a indemnização por responsabilidade civil ou enriquecimento injustificado, contra a sociedade titular da conta de depósito à ordem ou contra o seu sócio gerente, a instituição bancária sacada que, por lapso dos seus serviços, devolveu tardiamente ao banco apresentante um cheque cuja cliente sacadora, através do seu sócio gerente, o havia declarado extraviado (por o cheque, emitido pelo gerente como meio de garantia de um negócio celebrado a título pessoal, ter sido endossado a terceiro em violação do acordado) e fora apresentado a pagamento para lá do prazo previsto no art.º 29.º da LUCH, tendo a instituição bancária sacada sido obrigada a creditar na conta da entidade apresentante o valor do cheque, por esta se ter recusado a aceitar a devolução, pese embora o cheque não ter provisão na conta sacada.
(JLL)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 28.02.2003 Caixa Geral de Depósitos, S.A. instaurou no Tribunal Judicial de ... ação declarativa de condenação com processo ordinário contra “A”, Lda, “B” e mulher, “C”.
A A. alegou, em síntese, que a 1.ª R. é uma sociedade que tem por objeto social a prestação de serviços de contabilidade e assessoria fiscal e os outros RR. são sócios da 1.ª R., sendo o R. marido o seu único gerente. A 1.ª R. é titular de uma conta de depósitos à ordem aberta numa agência da A. em .... Em 17.9.2001 a 1.ª R., representada pelo 2.º R., emitiu um cheque no valor de € 149 639,36 e entregou-o a terceiro que o depositou numa conta da Caixa de Crédito Agrícola de ... em .... A CCA... de ... apresentou o cheque à compensação do Banco de Portugal. Embora o 2.º R. tivesse, em 14.9.2001, solicitado à A. o não pagamento do cheque, por alegado extravio, e não obstante a conta da R. não ter saldo suficiente para o respetivo pagamento, a A. acabou por pagá-lo, pois devolveu-o já fora de prazo e a CCA... de ... não aceitou a devolução. Consequentemente a A. lançou tal valor a descoberto da conta da R., a qual ficou a apresentar um saldo negativo de € 148 797,70. Posteriormente a conta foi movimentada, tendo a A. pago um cheque de € 30,43 em virtude de o montante não permitir a sua devolução e efetuou pagamentos através de operações de baixo valor (pagamentos de portagens), pelo que a conta de depósitos à ordem da R. ficou a apresentar o saldo negativo de € 148 981,62. A A. interpelou a 1.ª R. para repor a quantia a descoberto, em vão. O R. marido reconheceu a dívida e prometeu o seu ressarcimento à A., mas não cumpriu. Assim a 1.ª R. deve à A. a quantia de € 192 877,61, reportada à data de 14.02.2003, sendo € 148 981,62 de capital e € 43 895,99 de juros de 24.10.2001 a 14.02.2003. Ainda que se entendesse não existir, no caso presente, um descoberto bancário, a 1.ª R. sempre estaria obrigada à restituição das verbas peticionadas, a título de enriquecimento sem causa. Por outro lado, o R. marido sacou o dito cheque no seu interesse pessoal e não no da sociedade, pois com ele visava sinalizar um contrato promessa de compra e venda de uma herdade para si próprio. Por outro lado, com essa aquisição a 3.ª R. também beneficiaria, pois aproveitaria o património comum conjugal. O R. marido sabia que a R. sociedade não tinha património suficiente para solver tal compromisso, tendo agido sem a diligência imposta pelo art.º 64.º do CSC e violando o disposto nos artigos 31.º a 33.º do CSC. A atuação do R. marido configura um claro abuso do direito da personalidade coletiva.
A A. terminou pedindo que os RR. fossem condenados, solidariamente, a pagar à A. a quantia de € 192 877,61, calculada à data de 14.02.2003, acrescida dos juros moratórios no montante diário, a partir de 15.02.2003, de € 91,84, até efetivo e integral pagamento.
A Ré sociedade e o R. “B” apresentaram contestação conjunta, na qual alegaram que o dito cheque fora emitido e entregue pelo R. “B”a um tal “D”, para garantir a celebração ulterior de um contrato promessa de compra e venda de um terreno pertencente a um outro cidadão espanhol, “E”, representado por “D”, de que seriam promitentes compradores interessados na altura ausentes do país, cheque esse que deveria posteriormente ser devolvido e substituído por outro de igual valor a emitir pelo comprador interessado. Porém, o “D”, contrariando tal acordo, em 06.9.2001 outorgou um contrato-promessa como promitente comprador e endossou o supra referido cheque ao outro contraente. Ao saber do ocorrido o R. “B”solicitou à A. o não pagamento do cheque, conforme descrito pela A.. Porém, a A. procedeu ao pagamento, por grosseira negligência da sua parte. À data do débito em conta do cheque em questão, a conta da 1.ª R. apresentava um saldo de € 841,66, quantia que seria suficiente para cobrir o valor de todas as outras operações e cheques referidos pela A. na petição inicial. O cheque foi emitido e entregue cerca de 15 dias antes da data nele aposta (17.9.2001), a sua revogação ocorreu em 14.9.2001 e o cheque foi apresentado a pagamento em 15.10.2001, pelo que a A. deveria ter acatado a ordem de revogação. A 1.ª R. não obteve qualquer vantagem patrimonial pelo facto de o cheque ter sido pago, tendo, pelo contrário, a A. causado incómodos e danos pelos quais deverá ser responsabilizada. Por exceção, os RR. arguiram a ilegitimidade do 2.º e da 3.ª R.. Mais invocaram a litigância de má fé da A..
Os 1.º e 2.º RR. concluíram pela improcedência da ação, por não provada, e pela procedência da invocada exceção de ilegitimidade, absolvendo-se os RR. do pedido e condenando-se a A. em multa e indemnização aos RR. por litigância de má fé.
Também a Ré “C” contestou. Arguiu a sua ilegitimidade para ser parte, a ineptidão da petição inicial, o seu desconhecimento em relação aos factos relatados, a inexistência de benefício da sua parte com o pagamento efetuado, a negligência da A. na realização do pagamento.
A R. concluiu pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido.
A A. replicou quanto à contestação da 1.ª R. e do 2.º R., pugnando pela improcedência da matéria de exceção, reiterando a sua pretensão e peticionando que esses RR. fossem condenados como litigantes de má fé.
A A. também replicou quanto à contestação formulada pela 3.ª R., defendendo a improcedência das exceções deduzidas.
Foi proferido despacho saneador no qual foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade processual do 2.º R. e da 3.ª R. e de ineptidão da petição inicial e procedeu-se à seleção da matéria de facto assente e controvertida.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e a final proferiu-se decisão sobre a matéria de facto.
Em 22.7.2008 foi proferida sentença em que se julgou a ação improcedente por não provada e, em consequência, absolveu-se os RR. dos pedidos formulados pela A..
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
(…).
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
O presente recurso incide sobre duas questões: responsabilidade da 1.ª R. pelo pagamento à A. da quantia de € 183,92, acrescida de juros, resultante de operações de baixo valor; responsabilidade da 1.ª R. e do 2.º R., para com a A., pelo pagamento de um cheque no valor de € 148 797,70, decorrente das regras da responsabilidade civil ou, subsidiariamente, das regras do enriquecimento injustificado.
Por se nos afigurar que a questão do cheque de € 148 797,70 antecede, cronológica e logicamente, o problema das operações de baixo valor, começaremos por aí a análise do recurso.
Primeira questão (cheque no valor de € 148 797,70)
O tribunal a quo deu como provada, sem impugnação das partes, a seguinte
Matéria de facto
1. A ré “A” é uma sociedade comercial registada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o n.° .../..., que tem como objecto social a prestação de serviços de contabilidade e assessoria fiscal - A) dos factos assentes;
2. O réu “B” é sócio-gerente da ré “A” – B) e C) dos factos assentes;
3. A ré “A” é titular da conta de depósitos à ordem n.° ..., aberta na agência de ... – D) dos factos assentes;
4. Esta conta destinava-se a ser movimentada pela ré “A” a crédito, através da entrega de fundos, e a débito, através da emissão de cheques, ordens de pagamento de transferências – E) dos factos assentes;
5. O réu “B” assinou e preencheu o cheque n.° ...88, sacado sob a conta referida em 3. e 4., com a data aposta referente a 17 de Setembro de 2001 e com os seguintes dizeres: "pague por este cheque a utilizar em Euros 149.639,36, local de emissão: ..., cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta e nove euros e trinta e seis cêntimos", e entregou-o a terceiro – F) e G) dos factos assentes;
6. Em 14 de Setembro de 2001, o réu “B” solicitou à autora o não pagamento do referido cheque, por alegado extravio – H) dos factos assentes;
7. O réu “B” emitiu o cheque referido em 5. e entregou-o a terceiro em data anterior a 17 de Setembro de 2001 – resposta ao quesito 1° da base instrutória;
8. O referido cheque veio a ser depositado numa conta da Caixa de Crédito Agrícola de ..., em ... – resposta ao quesito 2° da base instrutória;
9. Esta última instituição bancária apresentou o cheque à compensação do Banco de Portugal – resposta ao quesito 3° da base instrutória;
10. Não obstante a conta da ré “A” não ter saldo suficiente para o pagamento do referido cheque, o montante titulado no mesmo veio a ser pago pela autora – resposta ao quesito 4° da base instrutória;
11. Logo após a ordem de cancelamento do cheque, por extravio dado pelo réu “B”, a autora introduziu no sistema informático o código respectivo – resposta ao quesito 5° da base instrutória;
12. E por essa razão, quando o cheque foi apresentado à compensação do Banco de Portugal, foi introduzido na lista de não pagos, por motivo de rejeição – resposta ao quesito 6° da base instrutória;
13. Quando esta lista foi recebida pela autora, o funcionário encarregado de lhe dar tratamento, além de não se ter apercebido da inclusão do referido cheque na lista de rejeitados, interiorizou para si tratar-se de quantia em escudos – resposta ao quesito 7° da base instrutória;
14. A essa data estava ainda em curso um processo de alterações internas no sistema informático da autora, relacionado com a transição da moeda de escudos para euros, sendo aceites cheques em ambas as moedas – resposta ao quesito 8° da base instrutória;
15. O cheque veio a ser devolvido pela autora já fora do prazo – resposta ao quesito 9° da base instrutória;
16. Esta situação exigia a anuência do Banco onde o cheque foi depositado (Caixa de Crédito Agrícola de ...) – resposta ao quesito 10° da base instrutória;
17. Esta instituição não aceitou a devolução, não obstante a conta sacada não ter provisão para o pagamento da quantia titulada pelo cheque e exigiu à autora o respectivo pagamento – resposta aos quesitos 11° e 12° da base instrutória;
18. A autora em 24 de Outubro de 2001 creditou a conta da Caixa de Crédito Agrícola de ... pela quantia referida no cheque – resposta ao quesito 13° da base instrutória;
19. E, em face do referido em 18., a conta referida em 3. apresentou um saldo negativo de 148.797,70 euros – resposta ao quesito 14° da base instrutória;
20. Posteriormente, à data da emissão do cheque, a conta da ré “A” foi movimentada através de operações de baixo valor decorrentes da utilização do cartão via verde, para pagamento de portagens – resposta ao quesito 15° da base instrutória;
21. Em 25 de Outubro de 2001, foi apresentado a pagamento um cheque sacado sob a conta referida em 3., no valor de 30,43 euros – resposta ao quesito 16° da base instrutória;
22. Este último cheque foi pago pela autora, em virtude de o montante não permitir a sua devolução — resposta ao quesito 17° da base instrutória;
23. Nas datas de 31 de Outubro, 7, 21 e 30 de Novembro, e 7 e 14 de Dezembro de 2001, a autora pagou o custo das operações de baixo valor da ré “A” — resposta ao quesito 18° da base instrutória;
24. Após os descritos movimentos, a conta referida em 3., ficou a apresentar um saldo negativo de 148.981,62 euros — resposta ao quesito 19° da base instrutória;
25. Pelas cartas expedidas sob registo e aviso de recepção de 12 de Março, 8 de Maio e 26 de Julho de 2002, a autora interpelou a ré “A” em ordem a repor a quantia lançada a descoberto — resposta ao quesito 20° da base instrutória;
26. A ré “A” recebeu tais cartas — resposta ao quesito 21° da base instrutória;
27. O cheque referido em 5. destinava-se a sinalizar a promessa de uma compra pelo réu “B” de uma herdade situada no sul de Espanha, em J..., a qual era propriedade de um indivíduo espanhol de nome “E” — resposta ao quesito 23° da base instrutória;
28. Este cidadão é o titular da conta onde foi depositado o cheque referido em 6. — resposta ao quesito 24° da base instrutória;
29. O encargo correspondente aos juros calculados à taxa de descobertos, praticados pela autora é de 22,50% ao ano — resposta ao quesito 25° da base instrutória;
30. O réu “B”, ao emitir o cheque referido em 5., sabia que a ré “A” não dispunha de fundos suficientes para dar pagamento à quantia titulada no cheque — resposta ao quesito 26° da base instrutória;
31. Sabia ainda que a ré “A” não dispunha de património, constituído por móveis ou imóveis, créditos sobre terceiros, suficientes para liquidar a quantia titulada pelo cheque — resposta ao quesito 27° da base instrutória;
32. Estava ainda o réu “B” consciente que a ré “A” não dispunha de uma estrutura capaz de gerar receitas suficientes para ressarcir a autora da quantia aposta no cheque — resposta ao quesito 28° da base instrutória;
33. Em finais de Julho de 2001, o réu “B” foi contactado por dois indivíduos, um de nome “F” e o outro “D” que representavam um cidadão espanhol “E” que estava interessado em vender uma herdade, em J... — resposta aos quesitos 29° e 30° da base instrutória;
34. O réu “B” encetou diligências no sentido de encontrar um comprador interessado — resposta ao quesito 31° da base instrutória;
35. Tendo encontrado um comprador interessado, que estava ausente do país, o réu “B” acordou com “F” que entregaria a este o cheque no valor de 149.639,36 euros, para garantir o negócio, sendo que esse cheque ficaria na posse deste último, bem como de “D”, para depois ser devolvido e substituído por outro de igual valor pelo comprador interessado — resposta ao quesito 32° da base instrutória;
36. O réu “B” agiu como descrito em 6. porque tomou conhecimento de que “D”, contrariamente ao acordado, outorgara um contrato promessa, em que se comprometia a comprar a herdade e em que entregou o cheque referido em 5. para pagamento — resposta ao quesito 33° da base instrutória;
37. O cheque aludido em 5. foi apresentado a pagamento em 15 de Outubro de 2001 — resposta ao quesito 34° da base instrutória;
38. A ré “C” não teve qualquer participação e conhecimento directo dos factos supra descritos — resposta ao quesito 35° da base instrutória;
39. A ré “C” está separada de facto do réu “B” desde 5 de Abril de 2002, data em que o mesmo saiu de casa – resposta ao quesito 36° da base instrutória;
40. Já antes dessa data a ré “C” não fazia a vida em comum com o réu “B” – resposta ao quesito 37° da base instrutória.
O Direito
Provou-se que entre a A. e a 1.ª R. foi celebrado, através da agência daquela em ..., um “contrato de abertura de conta”, que desde logo se consubstanciou numa conta de depósito à ordem.
As contas à ordem, também denominadas “contas à vista” (José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º volume, Rei dos Livros, pág. 146), são aquelas em que os depósitos são exigíveis a todo o tempo, como determina o artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Dec.-Lei n.º 430/91, de 02.11.
Uma das formas de movimentação da conta a débito admissíveis é a emissão de cheques. O direito de emitir cheques pressupõe a celebração do chamado “contrato” ou “convenção de cheque”, celebração essa (expressa ou tácita) que está prevista no art.º 3.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
Desse contrato decorre para uma das partes o direito de dispor, através de cheques, de fundos que tenha à sua disposição no banco que com ela celebrou a aludida convenção (art.º 3.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque - LUCH). Com efeito, o cheque é um título que contém uma ordem dirigida a um banco, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, de pagar à vista a soma nele inscrita (artigos 1.º e 3.º da LUCH). O cheque, não sendo moeda fiduciária, é um meio de pagamento diferido, uma promessa de pagar, pelo que só existe pagamento através do cheque quando o beneficiário recebe do sacado, o banco, a importância que dele consta. É pela celebração do contrato de cheque que o banco fica obrigado para com o cliente/sacador a pagar, aos eventuais beneficiários, os cheques que por aquele venham a ser emitidos, até ao limite da provisão. Esta, a “relação de provisão”, consiste na existência de fundos, num determinado banco, à disposição do sacador, disponibilização essa que pode revestir diversas formas, como depósito, abertura de crédito, conta corrente, desconto (cfr., v.g., Sofia de Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, Lex, 1992, pág. 29 e 30, estudo também publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano LII, nº 1, Abril de 1992, pág. 45 e seguintes).
No âmbito de qualquer relação contratual, os contraentes devem proceder de boa fé (art.º 762.º n.º 2 do Código Civil), princípio esse que vai a par com os deveres gerais de agir com zelo e diligência, deveres que a lei (Dec.-Lei nº 298/92, de 31.12, que consagra o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, com sucessivas alterações, citando-se aqui a redação original, em vigor à data dos factos) expressamente consagra no que concerne à atividade bancária, maxime no que diz respeito às relações com os clientes (art.º 74.º: “Nas relações com os clientes, os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”; art.º 76º: “Os membros dos órgãos de administração das instituições de crédito, bem como as pessoas que nelas exerçam cargos de direcção, gerência, chefia ou similares, devem proceder nas suas funções com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, de acordo com o princípio da repartição de riscos e da segurança das aplicações, e tendo em conta o interesse dos depositantes, dos investidores e dos demais credores”). O que pressupõe o cabal cumprimento do dever de reunião de condições para o exercício competente das suas funções (art.º 73.º: As instituições de crédito devem assegurar aos clientes, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, dotando a sua organização empresarial com os meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência.”)
Conforme refere Sofia Galvão (Contrato de Cheque…, pág 44), no contrato de cheque, “tudo repousa, antes de mais, na existência de um dever de protecção baseado na confiança. Um dever mútuo de não prejudicar a contraparte. Por isso se afirma que a relação contratual assenta, caracteristicamente, numa recíproca obrigação de diligência das partes”.
Pormenorizando um pouco mais o conteúdo do leque de direitos e deveres que da convenção de cheque advêm para a entidade bancária e para o seu cliente, cita-se o acórdão desta Relação, de 11.3.2010, no qual foi relatora a exm.ª ora 1.ª adjunta (processo 5161/06.2TVLSB.L1-2, in www.dgsi.pt):
No que concerne ao cliente/sacador, pode dizer-se que o principal direito que adquire pela celebração de tal contrato reconduz-se à possibilidade de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco ficou vinculado a pagá-los. Acresce que, o cliente/sacador, em resultado da efectivação do contrato, ficou obrigado a um complexo de deveres específicos, os quais se podem traduzir num dever de saldo, num dever de diligência e num dever de informação. O cliente, para além de estar obrigado a dispor de fundos suficientes para pagar os cheques emitidos, tem de verificar regulamente o estado da sua conta, zelar pela boa guarda, ordem e conservação da sua caderneta de cheques, e tem ainda de dar imediata notícia ao banco de eventual extravio ou perda. Resulta, assim, de tal contrato, um especial dever de vigilância e zelo que onera o cliente e que este deverá cumprir pontualmente. No que concerne aos direitos do banco, o principal é o de lançar em conta o pagamento dos cheques. Quanto aos deveres que caracterizam a situação do banco no âmbito da convenção de cheque, são os mesmos numerosos e complexos, podendo agrupar-se em três categorias: Principais, Acessórios e Laterais – v. sobre esta distinção PAULO OLAVO CUNHA, Cheque e Convenção de Cheque, 471 e sgts. O principal dever do banco é o dever de pagamento. O banco está, com efeito, obrigado a pagar os cheques apresentados, quando estes forem emitidos pelos clientes, sempre que, para tanto, forem utilizados impressos próprios e quando haja provisão. Reconduzem-se a deveres acessórios do banco, o dever de informação, o dever de fiscalização e o dever de competência técnica. São, por outro lado, deveres laterais, o dever de diligência na celebração da convenção de cheque; o dever de aceitação da revogação do cheque; o dever de não pagamento em dinheiro de cheques para levar em conta; deveres de esclarecimento relativos à execução das obrigações contratuais; o dever de sigilo e o dever legal de rescisão da convenção de cheque.
O vínculo jurídico a que o contrato de cheque dá origem é recondutível à figura do mandato, mais precisamente o mandato sem representação (art.º 1180.º e seguintes do Código Civil). Com a celebração do contrato de cheque o banco (mandatário/sacado) obriga-se perante a contraparte (mandante/sacador) a, por conta deste mas em nome próprio, praticar atos jurídicos, isto é, pagar os cheques que lhe forem apresentados (cfr. Sofia Galvão, obra citada, páginas 60 e seguintes; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, 2.ª edição, 2001, pág. 539; na jurisprudência, v.g., STJ, 19.10.1993, in BMJ n.º 430, pág. 466 e ss).
O mandatário deve respeitar as instruções do mandante (art.º 1161.º alínea a) do Código Civil). E entre estas conta-se a própria revogação de cheque, ou seja, a contra-ordem, emitida pelo sacador, de não pagamento do cheque. Contudo, o banco terá de ter em consideração eventuais limitações legais. E aqui avulta o teor do art.º 32.º da LUCH, que tem a seguinte redação:
Revogação do cheque
A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.
Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.”
O prazo a que se refere este artigo está regulado no art.º 29.º da LUCH: no caso, como é o destes autos, de cheque pagável no país onde foi passado, o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias, contando-se tal prazo a partir do dia indicado no cheque como data de emissão.
Trata-se de uma norma que visa proteger o portador do cheque e a própria confiança no cheque enquanto meio de pagamento, durante o aludido prazo de apresentação.
A história do preceito foi longamente exposta no “assento” n.º 4/2000, do STJ, de 19.01.2000 (D.R. I-A, de 17.02.2000, pág. 570 e seguintes), acórdão esse (o acórdão apreciou a conduta de sacador que após emitir um cheque solicitara ao banco sacado, por escrito, que o não pagasse porque se extraviara – o que sabia ser falso – concluindo que tal conduta não constituía, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Dec.-Lei n.º 454/91, crime de falsificação de documento) em que, em sede de fundamentação, o STJ ajuizou que o banco sacado que confere eficácia à revogação do cheque operada pelo sacador durante o prazo de revogação, viola abertamente a lei, respondendo perante o portador de acordo com os princípios da responsabilidade civil extracontratual, defendendo o STJ que tal responsabilização decorria diretamente da segunda parte do corpo do art.º 14.º do Decreto n.º 13004, de 12.01.1927, que reputou permanecer em vigor (o corpo do art.º 14.º citado tem a seguinte redação: “A revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no artigo 12.º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação”).
Esta matéria foi retomada no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, n.º 4/2008, de 28.02.2008 (D.R., 1.ª série, de 04.4.2008, pág. 2058 e seguintes).
Nesse acórdão emitiu-se a seguinte decisão de uniformização de jurisprudência:
Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil.
Nesse acórdão ficou claro o entendimento de que a previsão do art.º 32.º da LUCH não constituía obstáculo à recusa de pagamento de cheques nos casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.
Porém, se o sacador comunicar ao banco sacado que o cheque se extraviou, sabendo que tal é falso, assim o determinando a recusar o seu pagamento, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro, praticará o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 454/91, de 28.12, se se verificarem os outros elementos constitutivos do ilícito (não tem relevância o cheque pós-datado; a tutela penal apenas abarca cheques que sejam apresentados a pagamento nos termos e prazos estabelecidos na LUCH): nesse sentido se pronunciou o STJ, no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 9/2008, de 25.9.2008 (D.R., 1.ª série, 27.10.2008, pág. 7548 e seguintes).
Sendo certo que a aludida falsa comunicação de extravio poderá consubstanciar um crime de falsificação de documento, anteriormente previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 256.º do Código Penal (redação do Dec.-Lei n.º 48/95, de 15.3), hoje alínea d) do mesmo número (redação da Lei n.º 59/2007, de 4.9), conforme entendeu o STJ no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2013, de 14.3.2013 (D.R., 1.ª série, 24.4.2013, pág. 2607 e seguintes).
No que concerne à atitude a adotar pelo banco sacado a quem seja dada ordem de não pagamento do cheque, por alegada causa justificativa, como extravio, furto, vício da vontade, a jurisprudência não é unânime.
Por exemplo, em acórdão datado de 13.7.2010, o STJ defendeu que, tendo o sacador ordenado ao banco sacado o não pagamento de cheque por si emitido, invocando extravio do mesmo, o banco sacado, ao recusar-se a pagar o cheque não viola qualquer obrigação, pois essa situação não integra a previsão do art.º 32.º da LUCH e o banco, enquanto mandatário do sacador, encontra-se sujeito, face ao disposto no art.º 1161.º, al. a), do Cód. Civil, às instruções do sacador mandante (processo 5478/07.9TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt).
Noutros acórdãos, porém, o STJ entendeu que nos casos de revogação por justa causa o banco sacado – ainda que não se lhe imponha a prova efetiva da causa invocada pelo sacador –, só deve recusar o pagamento do cheque quando disponha de indícios sérios da verificação da mesma ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, da grande probabilidade de se ter verificado – sob pena de responder, nos termos da responsabilidade civil extracontratual, perante o portador do cheque, pelos prejuízos que lhe causar com a recusa do pagamento (v.g., acórdão de 30.5.2013, 472/10.5TVPRT.P1.S1; acórdão de 29.4.2010, 4511/07.9TBLRA.C1.S1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt).
Adotando posição intermédia face às duas supra mencionadas, especificamente quanto à ordem de não pagamento de cheque por alegado extravio, a Relação de Coimbra defendeu, em acórdão de 21.3.2013 (processo 669/08.8TBTNV.C1), que o banco só deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento, e a prova dessa ocorrência cabe ao portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque.
Vejamos o que ocorreu nos autos.
O 2.º R., na qualidade de sócio-gerente da 1.ª R., emitiu, em data anterior à data que nele apôs (a data aposta foi 17 de setembro de 2001), um cheque no valor de € 149 639,36, sacado sobre a conta à ordem que a 2.ª R. tinha aberto na A. (n.ºs 2, 3, 5, 7 da matéria de facto). Em 14 de setembro de 2001 o 2.º R. solicitou à A. o não pagamento do referido cheque, por alegado extravio (n.º 6 da matéria de facto). A A. não questionou a ordem de não pagamento apresentada pelo 2.º R., tendo introduzido no sistema informático o código respetivo (n.º 11 da matéria de facto). O cheque foi depositado numa agência de outro banco, o qual o apresentou à compensação no Banco de Portugal em 15 de outubro de 2001 (n.ºs 8, 9, 37 da matéria de facto). A A., por lapso dos seus serviços, devolveu o cheque já fora do prazo (n.ºs 11 a 15 da matéria de facto). O banco apresentante do cheque não aceitou a devolução e exigiu o pagamento do cheque, pelo que a A., apesar de a conta da 1.ª R. não ter saldo suficiente para o pagamento do referido cheque, creditou o respetivo valor na conta do banco apresentante (n.ºs 16, 17, 18, 10 da matéria de facto).
Constata-se que a A. pagou um cheque em relação ao qual havia três razões para que não se procedesse ao seu pagamento: invocação de justa causa, por extravio, a que a A. não tinha levantado obstáculo; apresentação do cheque a pagamento para além do prazo de oito dias, sendo certo que nessa altura a ordem de não pagamento, se dúvidas houvesse sobre o seu fundamento, era já plenamente eficaz (2.ª parte do art.º 32.º da LUCH); falta de provisão na conta sacada.
Porém, a A., por lapso dos seus serviços, deixou passar o prazo de que dispunha para a devolução do cheque, prazo esse que era de dois dias úteis após a apresentação do cheque à compensação (nos termos do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI, aprovado pela Instrução do Banco de Portugal n.º 125/96, art.º 21.º, na redação introduzida pela Instrução n.º 7/2001, em vigor à data dos factos). Decorrido esse prazo a instituição apresentante já não era obrigada a aceitar a devolução do cheque (citado art.º 21.º, n.º 3). E efetivamente a Caixa de Crédito Agrícola de ... não aceitou a aludida devolução do cheque. Foi por isso que a A. procedeu ao pagamento, à aludida instituição (que provavelmente já creditara o seu valor a favor do cliente que nela depositara o cheque, uma vez que os fundos correspondentes ao valor do cheque tinham de ser disponibilizados – salvo atempada devolução do cheque – no prazo de dois dias úteis após o da liquidação financeira, que em regra era o dia da apresentação a pagamento – art.º 22.º da instrução citada), do valor do cheque. Sendo certo que o incumprimento dessa obrigação poderia implicar a aplicação de sanções, como a suspensão da participação da A. no SICOI, ou mesmo a sua exclusão (art.º 11.º da Instrução n.º 125/96).
Dos factos provados resulta que o aludido cheque fora emitido para garantir a celebração de um negócio de compra de uma herdade, cujo comprador interessado se encontrava ausente do país, tendo sido acordado entre o 2.º R. e a pessoa a quem este entregou o cheque, que o mesmo ficaria na sua posse e de um terceiro, para depois ser devolvido e substituído por outro de igual valor pelo comprador interessado (n.ºs 33 a 35 da matéria de facto, à luz dos quais deve ser interpretado o teor do n.º 27 da matéria de facto).
Porém, esse acordo foi violado pelos indivíduos a quem o 2.º R. entregou o cheque, pois um deles outorgou o contrato-promessa como promitente comprador da aludida herdade e entregou o cheque ao promitente vendedor, para pagamento (n.º 36 da matéria de facto).
É certo que o promitente vendedor, a quem o cheque foi entregue, era alheio às condições em que o cheque fora emitido, e tendo-lhe o cheque sido regularmente endossado, tornou-se titular do direito cartular nele inscrito (art.º 17.º da LUCH), sendo-lhe inoponíveis as exceções que o sacador poderia opor ao endossante em virtude da relação subjacente à emissão do cheque (art.º 22.º da LUCH).
Porém, o promitente vendedor estava sujeito ao ónus de apresentar o cheque no prazo de oito dias (art.º 29.º da LUCH), sob pena de perder o direito de ação cambiária em caso de não pagamento (art.º 40.º, corpo, a contrario sensu, da LUCH), sendo certo que a apresentação do cheque para além do dito prazo era, só por si, fundamento para o não pagamento do cheque pelo banco sacado (cfr. Parte VII do anexo à Instrução n.º 125/96, na redação introduzida pela Instrução n.º 37/2000, de 15.01.2001). Nesse caso o cheque poderia valer como mero quirógrafo, ficando o “portador” obrigado a demonstrar a titularidade de um crédito sobre o “sacador”, a partir da invocação de negócios ou situações da vida dele causais, à face do ordenamento jurídico.
In casu, se a A. tivesse cumprido as instruções do 2.º R./1.ª R., as normas da LUCH e, na íntegra, a instrução n.º 125/96 do Banco de Portugal, o cheque seria devolvido sem pagamento e, face aos factos provados, o seu portador, além de não dispor de direito cambiário contra os RR., também não seria seu credor a outro título, face à inexistência de relacionamento jurídico entre ambos (o promitente vendedor, “E”, portador do cheque, celebrara o contrato-promessa de compra e venda com “D” e não com qualquer um dos RR., tendo sido “D” quem se vinculara ao pagamento correspondente, visado pelo cheque). Sendo certo que o banco sacado não é obrigado cambiário, não intervém na relação cartular, não pode aceitar ou avalizar cheques (cfr. artigos 4.º e 25.º da LUCH), não estando compreendido no elenco dos co-obrigados referidos no art.º 40.º da LUCH.
A declaração de extravio não correspondia à verdade, pois o cheque não se perdera. O que ocorrera fora o incumprimento do acordo que presidira à emissão do cheque. Porém, o 2.º R., ao dar a referida ordem de não pagamento por extravio, não quis causar prejuízo a outrem nem obter benefício ilegítimo (pois, pelas razões supra expostas, nem ele nem a 1.ª R. estavam vinculados a obrigação subjacente à emissão do cheque, cuja proteção é atualmente visada pelo tipo de crime de emissão de cheque sem provisão, não bastando, pois, para que prejuízo relevante ocorra, o mero não pagamento da obrigação cartular: cfr., v.g., acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 1/2007 de 30.11.2006, D.R., 1.ª série, 14.02.2007, pág. 1156 e seguintes), pelo que a sua conduta não preenche o tipo de crime de emissão de cheque sem provisão (para o que também concorre o facto de o cheque ter sido pós-datado – cfr. n.º 3 do art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 454/91, de 28.12, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 316/97, de 19.11), nem o de falsificação de documento previsto e punido pelo art.º 256.º n.º 1, alínea b) - atualmente alínea d) - do Código Penal (o crime de falsificação de documento é um crime intencional, que tem como elemento típico um dolo específico, traduzido na intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo – cfr., v.g., acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 1/2003, de 16.01.2003, D.R., 1.ª série, 27.02.2003, pág. 1409 e seguintes).
A utilização do cheque não como meio de pagamento mas como instrumento de garantia não corresponde à sua função específica, mas constitui uma prática disseminada no tráfico jurídico, como é reconhecido pelo legislador, que afastou desses casos a tutela penal concedida aos cheques (cfr., expressamente nesse sentido, o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 316/97, de 19.11), e não é em si um ato ilícito, sendo certo que essa causa da emissão não afetará os direitos cartulares de terceiros que a ela sejam alheios (cfr. artigos 13.º, 21.º, 22.º da LUCH).
A emissão do aludido cheque pelo 2.º R. em nome da 1.ª R., enquanto garantia do cumprimento de uma obrigação assumida pelo 2.º R., sem que se mostre existir justificado interesse próprio da sociedade no negócio, extravasa a capacidade da 1.ª R., por ser contrária ao seu fim (n.ºs 1 e 3 do art.º 6.º do Código das Sociedades Comerciais - CSC). A consequência do desrespeito pelos limites da capacidade da sociedade é a nulidade da prestação da garantia pela sociedade (artigos 280.º n.º 1 e 294.º do Código Civil), com o que se visa acautelar os interesses dos credores sociais e dos sócios (cfr., v.g., Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, volume II, 3.ª edição, Almedina, página 187).
A A./apelante alega que o 2.º R. violou o disposto nos artigos 6.º, 64.º e 78.º do CSC e ainda a cláusula 3 das condições gerais do contrato de abertura de conta, pelo que quer o dito R. quer a sociedade, esta por via do disposto no n.º 5 do art.º 6.º do CSC, incorrem em responsabilidade civil pelos danos decorrentes para a A. dessa atuação, no caso o desapossamento do montante titulado pelo cheque.
Vejamos.
Excecionados os casos especiais de responsabilidade pelo risco e por atos lícitos, a responsabilidade civil, seja contratual, seja extracontratual, tem como pressupostos ou elementos a ocorrência de facto ilícito, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a culpa do agente (artigos 483.º, 798.º, 799.º n.º 2, 487.º n.º 2, 488.º, 562.º, 563.º do Código Civil).
O facto ilícito consiste, na responsabilidade contratual, no não cumprimento ou no cumprimento deficiente dos deveres emergentes (em regra) do contrato (artigos 798.º e 799.º n.º 1 do CC).
Na responsabilidade extracontratual, o facto ilícito traduz-se na lesão de direitos absolutos ou na violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art.º 483.º do CC).
A A. invoca a violação do contrato de abertura de conta celebrado com a 1.ª R., mais precisamente da sua cláusula 3.ª
O referido contrato está documentado a fls 18 dos autos (doc. 2 junto com a petição inicial) e a aludida cláusula 3.ª tem a seguinte redação:
3 - As pessoas colectivas e entidades equiparadas são representadas nas suas relações com a Caixa, designadamente nos actos de movimentação de contas, pelas pessoas singulares que, nos termos da lei, dos estatutos, do pacto social ou de deliberação tomada pelos seus órgãos, tenham poderes para o efeito, quer essas pessoas estejam integradas nas respectivas estruturas orgânicas, quer sejam terceiros a quem a pessoa colectiva ou a entidade equiparada tenha conferido procuração.
3.1 – Exceptuam-se do número anterior as entidades equiparadas a pessoa colectiva que tenham por substrato uma pessoa singular (ex.: estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, empresários em nome individual), a qual será nesse caso, titular das contas, podendo conceder a terceiro poderes representativos mediante procuração.
Não se vislumbra que tal cláusula foi violada. O 2.º R. é sócio-gerente da 1.ª R. (n.º 2 da matéria de facto) e como tal atuou em representação daquela, nada tendo sido alegado ou provado no sentido de que a sociedade lhe negara poderes para o efeito. A aludida cláusula nada estipula, nem tal lhe cabia, no que concerne à delimitação da capacidade de gozo da sociedade, ou seja, ao disposto no art.º 6.º do CSC, a que já se fez referência supra.
A limitação da capacidade de gozo da sociedade, decorrente do art.º 6.º do CSC, não fundamenta, de per si, pretensões indemnizatórias, mas sim a eventual declaração de nulidade dos atos que a ultrapassem. Seria a declaração de nulidade que poderia causar prejuízos a terceiros, maxime aos que do ato invalidado colheriam direitos ou créditos, que assim se veriam frustrados.
Não é a situação da A. nestes autos.
Quanto aos artigos 64.º e 78.º do CSC, igualmente invocados pela A., têm a seguinte redação:
Art.º 64.º (redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 280/87, de 8.7, em vigor à data dos factos – art.º 12.º do Código Civil):
“(Dever de diligência)
Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.”
Art.º 78.º (redação original, em vigor à data dos factos)
(Responsabilidade para com os credores sociais)
1 - Os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
2 - Sempre que a sociedade ou os sócios o não façam, os credores sociais podem exercer, nos termos dos artigos 606.º a 609.º do Código Civil, o direito de indemnização de que a sociedade seja titular.
3 - A obrigação de indemnização não é, relativamente aos credores, excluída pela renúncia ou transacção da sociedade nem pelo facto de o acto ou omissão assentar em deliberação da assembleia geral.
4 - No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida.
5 - Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 5 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º
O preceito contido no art.º 64.º orienta-se para a proteção dos interesses da sociedade, dos seus sócios e dos seus trabalhadores (e não propriamente, pelo menos diretamente, de pretensos credores sociais).
O art.º 78.º permite que os credores sociais exerçam contra os gerentes ou administradores os seus direitos, quando o património social da sociedade não seja suficiente para esse efeito, por inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à proteção daqueles, ou em substituição da sociedade ou dos sócios, quando a sociedade não exerça contra os administradores o direito de indemnização de que seja titular. Ou seja, o art.º 78.º confere um direito de ação por parte dos credores sociais contra os gerentes e administradores das sociedades, para o exercício de direitos deles próprios, credores, contra a sociedade, ou para o exercício de direitos da sociedade, em substituição desta, mas não constitui ele próprio base para a constituição desses direitos. Por conseguinte, o pretenso direito de indemnização da A. terá, primeiramente, de se sustentar numa outra norma, que não nesta.
Não se vislumbra, assim, que a 1.ª R. ou o 2.º R. incumpriram algum dever contratual ou preceito legal que tutele os interesses da A..
Mesmo que assim não fosse, seria necessário que entre a conduta dos RR. e o alegado prejuízo (desembolso da quantia de € 149.639,36) existisse um nexo de causalidade adequada.
Com efeito, nos termos do disposto no art.º 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Quis consagrar-se aqui a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstrato e em geral, o facto seja uma causa adequada do dano (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Almedina, 8ª edição, páginas 905 e 915).
No caso concreto, a conduta do 2.º R. (e da 1.ª R., por si representada) consistiu na emissão de um cheque-garantia, pós-datado, que o 2.º R. sabia não ter provisão, e subsequentemente, na ordem de não pagamento desse cheque, por alegado extravio. O desfecho previsível desses atos, apreciados à luz de um juízo de prognose assente no decurso normal das coisas, seria que o cheque não seria pago, seja porque em cumprimento do acordo que presidiu à sua emissão, oportunamente seria devolvido sem ser apresentado a pagamento, seja em virtude da falta de provisão do cheque, seja por causa da declaração de extravio, a que se veio somar a circunstância de o cheque ter sido apresentado a pagamento fora do prazo legal de oito dias. Porém, o cheque veio a ser pago pela A., e isto porque, contrariamente ao que era previsível, os funcionários da A. devolveram o cheque fora do prazo a que a A. estava obrigada e o banco onde o cheque fora depositado não aceitou a devolução. Ou seja, o cheque foi pago em virtude de circunstâncias anormais, fortuitas, fora do controle dos RR., e que teriam ocorrido mesmo que, por exemplo, o cheque se tivesse efetivamente extraviado.
Mas, ainda que se considerasse preenchido o pressuposto do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano (por se entender que na formulação que em regra se reputa mais criteriosa - formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann – o facto deve considerar-se causa adequada mesmo daqueles danos para cuja ocorrência também concorreu caso fortuito ou conduta de terceiro, só não sendo assim quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excecionais, que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito, e no caso dos autos as circunstâncias descritas não revesteriam esse carater acentuadamente extraordinário, fortuito ou excecional - A. Varela, obra citada, páginas 909 e 910, 917), e assumindo que a conduta dos RR. era censurável, preenchendo-se igualmente o pressuposto da culpa, ainda assim entendemos que a A. não teria direito ao pagamento da peticionada indemnização. De facto, nos termos do art.º 570.º nº 1 do Código Civil, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Ora, como se viu, a A. viu-se compelida a pagar o cheque por negligência sua, por ter incumprido as ordens da sua mandante, as regras da LUCH e do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária, tendo sido precisamente esse incumprimento que desviou o rumo normal e previsível das coisas, o qual apontava para o não pagamento do cheque. Não se vê que a A., obrigada que estava a desempenhar a sua atividade com elevado nível de competência técnica, possa transferir, ainda que parcialmente, sobre a sua cliente os custos da sua negligência, tanto mais que, como se expôs supra, esta dela não retirou nenhum benefício.
Improcede, pois, a pretensão da A., com fundamento nas regras da responsabilidade civil.
E à luz do enriquecimento injustificado?
Os requisitos do enriquecimento sem causa resultam do n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil e consistem (para além da sua natureza subsidiária, evidenciada no art.º 474.º):
Num enriquecimento de alguém à custa do empobrecimento de outrem;
Na ausência de causa justificativa para tal alteração patrimonial.
A ocorrência desses pressupostos deve ser demonstrada por quem invoca esse instituto para fundar uma pretensão (artigo 343.º n.º 1 do Código Civil). Não basta que o alegado enriquecido não consiga provar a existência de causa para o seu enriquecimento: é necessário que fique demonstrada a inexistência de causa, ou seja, acompanhando a disposição do n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil, que algo foi indevidamente recebido, ou foi recebido por causa que deixou de existir ou em vista de efeito que não se verificou. Conforme se expende no acórdão do STJ de 20.9.2007, publicado na internet, dgsi-itij, processo 07B2156, “um enriquecimento de alguém e correlativo empobrecimento de outrem traduz uma realidade que, por regra, tem uma causa (….) “Existir tal deslocação [patrimonial] sem causa representa um rompimento com a normalidade da vida patrimonial e daí compreender-se bem que esse rompimento haja de ser considerado elemento integrante do direito de restituição. Com a consequente demonstração por quem o invoca.”
Ora, no caso dos autos houve causa para o pagamento do aludido cheque por parte da A.: a A. procedeu ao pagamento do cheque em cumprimento da obrigação que sobre ela impendia por força das regras de funcionamento da compensação no Banco de Portugal, contidas no Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária. E teve de o fazer em virtude da sua incúria, que a levou a desrespeitar o prazo de devolução do cheque. Desse pagamento não adveio qualquer enriquecimento para os RR., conforme supra exposto, seja a título de ingresso de créditos ou direitos no seu património, seja a título de extinção de obrigações (que não existiam ou não eram exigíveis).
Nesta parte o recurso é, assim, improcedente.
Segunda questão (responsabilidade da 1.ª R. por operações de baixo valor)
Dos factos dados como provados sob os n.ºs 19 a 24 resulta que a A., pese embora o saldo negativo da conta da 1.ª R., suportou o pagamento de um cheque de reduzido valor sacado sobre essa conta e ainda débitos decorrentes da utilização do cartão via verde, tudo no valor global de € 183,92.
Porém, conforme decorre do supra referido, tal saldo negativo foi culposa e indevidamente provocado pela A., que debitou na conta da 1.ª R. (ou creditou a descoberto) o valor do cheque que pagara à Caixa de Crédito Agrícola de .... Não fora isso, o saldo da conta seria de € 841,66 (vide n.ºs 5, 18 e 19 da matéria de facto), montante mais do que suficiente para suportar os ditos pagamentos de baixo valor. Assim, cabe à A. retificar os lançamentos feitos na conta da 1.ª R., anulando a movimentação a débito (ou creditação a descoberto) do valor correspondente ao cheque pago à Caixa de Crédito Agrícola, com os consequentes reflexos no saldo da conta, que permitirá dar a 1.ª R. como definitivamente exonerada da obrigação de pagamento dos aludidos débitos de baixo valor.
Também aqui se confirmará, pois, a sentença recorrida (na qual se ponderou, a este respeito, que os RR. “serão absolvidos de todos os pedidos formulados porque o facto de a autora ter creditado a conta da ré “A” a descoberto, provocou a situação descrita em 19 a 24 dos factos provados.”).


DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante.

Lisboa, 20.6.1013

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins
Decisão Texto Integral: