Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4475/24.4T8SNT.L1-1
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: RECLAMAÇÃO
ARTIGO 105.º N.º 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DIREITO REAL
IMÓVEL
DOMICÍLIO DO RÉU
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO – ARTIGO 105.º N.º 4 DO CPC
Decisão: RECLAMAÇÃO PROCEDENTE
Sumário: 1) Visando o autor, em primeira linha, a verificação pelo Tribunal de que, em razão do decurso do prazo de 180 dias contado da data da escritura de compra e venda, sem que a ré tivesse apresentado comunicação ou requerimento para licenciamento de construção no lote, o contrato de compra e venda se resolveu, sendo as demais pretensões expostas na petição inicial meramente consequenciais da procedência de um tal pedido, o objeto da causa centra-se no facto jurídico que é fonte de transferência do direito real – a compra e venda - pelo que, só mediatamente visa o direito real sobre o imóvel, como consequência da declaração de verificação da causa resolutiva constante do aludido contrato de compra e venda.
2) Assim, não estando em causa, imediatamente, o direito real sobre o imóvel, não tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 70.º do CPC, que se reporta ao foro da situação do bem, havendo antes que recorrer ao foro pessoal, no caso, à regra geral constante do artigo 80.º, n.º 1, do CPC, que estipula que, “em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. Por petição inicial apresentada em juízo em 13-03-2024, o MUNICÍPIO DE PORTALEGRE instaurou ação declarativa, com processo comum contra INCITATUS – ARTIGOS EQUESTRES, LDA., pedindo o seguinte:
“(…) I – Declarar resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre Autor e Ré por escritura pública de 23-06-2006, com efeitos a essa mesma data, nos termos e com os efeitos suprarreferidos;
II – Declarar o Autor único e legítimo proprietário da totalidade do prédio urbano correspondente ao lote de terreno nº (…) do Loteamento Municipal da Zona Industrial de Portalegre, concelho de Portalegre, sito no mesmo local e destinado a indústria, com a área de (…)m2, descrito na conservatória do registo predial de Portalegre sob o nº (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia da (…) sob o artigo (…)º;
III – Condenar a Ré na imediata restituição do prédio descrito em “II” ao Autor, sem qualquer dilação;
IV – Ordenar o cancelamento das inscrições registais de aquisição do prédio em causa a favor da Ré, “INCITATUS – Artigos Equestres, Lda.”, e de ónus de inalienabilidade por 7 anos, feitas pela Ap. (…) de (…) 2008 no registo predial;
V – Mais se requer a V. Exa. que seja comunicada à conservatória do registo predial de Portalegre a propositura e pendência da presente ação para efeitos de registo desse facto, em cumprimento do disposto nos arts. 2º, nº 1, als. a), h), e n); 3º, nº 1, al. a); 8º-A, nº 1, al. b) e 8º-B, nº 3, al. a), todos do Código do Registo Predial.”
Em 20-03-2024, o Juízo Local Cível de Sintra – Juiz “X” julgou verificada exceção dilatória da incompetência relativa, em razão do território, declarando-se incompetente para conhecer da ação e determinou a remessa do processo ao Juízo Local Cível de Portalegre, que considerou competente, referindo que a presente ação versa sobre imóvel sito em Portalegre e que, sobre as acções que versem sobre o direitos reais sobre imóveis, dispõe o aludido art. 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que as mesmas devem ser propostas no Tribunal da situação dos bens.
O autor apresenta reclamação, em conformidade com o disposto no artigo 105.º, n.º 4, do CPC, pugnando pela revogação do despacho de 20-03-2024, tendo concluído o seguinte:
“I – Os pedidos do Autor de reconhecimento do mesmo como proprietário e condenação da Ré na entrega do imóvel são dependentes e por isso secundários do pedido principal de declaração da resolução do contrato de compra e venda sujeito a condição resolutiva, sendo o seu resultado (declaração do Autor como proprietário e entrega do imóvel) juridicamente inacessível ao Autor até que o Tribunal declare resolvido tal contrato, por tal resultado ser consequência dessa resolução;
II – Com a presente ação, o Autor não pretende exercitar qualquer direito real ou pessoal de gozo, obter despejo, exercer preferência, execução específica ou reforçar, substituir, reduzir ou expurgar hipoteca, mas antes que o Tribunal aprecie a relação obrigacional criada com o contrato de compra e venda e conclua pela sua resolução na data em que se verificou o facto em que se que traduzia a condição resolutiva, com os consequentes efeitos de regresso da propriedade à esfera do Autor e dever de a Ré entregar o imóvel;
III – Para tal tendo alegado factos que não descrevem o exercício de nenhum daqueles tipos de direitos, não se arrogando, desde logo, proprietário do imóvel, antes alegando que foi celebrado um contrato sujeito a condição resolutiva do contrato e que a mesma se verificou;
IV – Não sendo a presente ação uma ação “real”, é inaplicável o critério de atribuição de competência territorial previsto no art. 70º, nº 1, do CPC, aplicando-se, sim, a regra geral do domicílio do réu (art. 80º, nº 1), sendo que o critério previsto no art. 71º, nº 1 – aquele que mais se aproximava da situação dos autos – também não é aplicável por não estar em causa incumprimento contratual propriamente dito.
V – Por a Ré ter sede na sua circunscrição territorial, é o Juízo Local Cível de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o tribunal territorialmente competente para apreciar a ação dos presentes autos, tendo o Tribunal a quo, com o devido respeito, errado ao considerar que “versa a presente ação, tal como resulta dos pedidos formulados pelo autor, sobre o direito de propriedade relativo ao prédio urbano …” e ao aplicar, consequentemente, o critério de competência territorial previsto no art. 70º do CPC (foro da situação dos bens), julgando-se incompetente”.
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II. “A competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-05-2022, Pº 4239/20.4T8STB.E1, rel. FRANCISCO XAVIER; em semelhante sentido, vd., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2023, Pº 7962/21.2T8VNG.P1, rel. ISOLETA DE ALMEIDA COSTA).
O autor reclama – ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 4, do CPC - da decisão que julgou verificada exceção de incompetência territorial do Juízo Local Cível de Sintra e declarou competente o Juízo Local Cível de Portalegre.
A infração das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
Os critérios territoriais de determinação da competência determinam em que circunscrição territorial deve a ação ser instaurada.
O critério geral nesta matéria é o de que o autor deve demandar, em regra, no tribunal do domicílio do réu (regra semelhante consta, relativamente a pessoas coletivas e sociedades). Contudo, a lei prevê casos em que esse critério geral é afastado por regras especiais.
Assim, sempre que alguma das regras especiais for aplicável à situação em causa, o critério geral não terá aplicação, sendo antes aplicável a regra especial.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (A competência declarativa dos tribunais comuns; 1994, Lex, p. 83) “os critérios especiais determinam a competência territorial em função de um nexo entre o tribunal e o objecto da causa ou as partes da acção”.
No presente caso, conforme decorre da petição inicial, a presente ação (pedido principal) destina-se a ver reconhecido ao autor a resolução de contrato de compra e venda – que, segundo a autora, se encontrava sujeita a condição resolutiva – e a declaração de propriedade do autor sobre a totalidade do prédio sito em Portalegre, condenando a ré a restitui-lo e devendo ser ordenado o cancelamento – a comunicar à conservatória do registo predial de Portalegre - das inscrições registrais de aquisição do referido prédio a favor da ré e de ónus de inalienabilidade por 7 anos.
O Tribunal a quo entendeu que é aplicável o disposto no artigo 70.º do CPC.
De acordo com o n.º 1 deste preceito legal, “devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, a ação de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas”.
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 100), “[a]s ações reais (em cuja base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu que a ação se proponha efetivar) ou as ações de natureza semelhante que versem sobre direitos pessoais de gozo são instauradas no tribunal da situação dos bens sobre que incidem. Aqui se inscrevem designadamente as ações de reivindicação da propriedade e outras ações que visem a tutela de direitos reais de gozo, como o usufruto ou a servidão predial. Em contrapartida, as ações pessoais são aquelas em que entre o autor e o réu existe um vínculo de natureza obrigacional (v.g. a ação de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda ou ação de cumprimento de um contrato de compra e venda para obtenção da entrega da coisa)”.
Os direitos reais sobre imóveis só podem ser aqueles direitos que, como tal, o direito substantivo consagra e trata no Direito das Coisas – Livro III do Código Civil: o direito de propriedade, o usufruto, o uso e habitação, o direito de superfície, as servidões prediais.
Entre os direitos pessoais de gozo sobre imóveis contam-se a locação, o comodato, a tradição da coisa objeto do contrato prometido, o direito real de habitação periódica, etc..
Os direitos reais têm várias fontes e a propriedade pode ser originária ou derivada. No caso da aquisição derivada a sua fonte é um negócio jurídico, um contrato, uma doação ou a lei (como sucede na sucessão legítima), e a sua causa a anterior propriedade de outrem.
Ora, “a acção só é real quando o seu objecto é imediatamente o próprio direito real e não a sua fonte. A acção de reivindicação é uma acção real porque visa reconhecer o próprio direito real sobre um imóvel, imediatamente, e a sua restituição pelo possuidor.
Outros casos há em que o objecto da acção é o próprio facto jurídico que é fonte de transferência do direito real, pelo que, só mediatamente se visa o direito real sobre o imóvel” (assim, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-02-2007, Pº 0730387, rel. AMARAL FERREIRA).
Vejamos:
No caso em apreço, visa o autor, em primeira linha, a verificação pelo Tribunal de que, em razão do decurso do prazo de 180 dias contado da data da escritura de compra e venda, sem que a ré tivesse apresentado comunicação ou requerimento para licenciamento de construção no lote, o contrato se resolveu (cfr. pretensão expressa no ponto I do petitório formulado na petição inicial), sendo que, as demais pretensões expostas na petição inicial são meramente consequenciais da procedência de um tal pedido.
Com efeito, o objeto da causa centra-se no facto jurídico que é fonte de transferência do direito real – a compra e venda - pelo que, só mediatamente visa o direito real sobre o imóvel, como consequência da declaração de verificação da causa resolutiva constante do aludido contrato de compra e venda.
Assim, não estando em causa, imediatamente, o direito real sobre o imóvel, não tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 70.º do CPC, que se reporta ao foro da situação do bem, havendo antes que recorrer ao foro pessoal, no caso, à regra geral constante do artigo 80.º, n.º 1, do CPC, que estipula que, “em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu”, ou seja, o Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste.
Assim, procederá a reclamação, com a conclusão de que a competência territorial para a apreciação da presente ação radica no Juízo Local Cível de Sintra – Juiz “X”.
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III. Nos termos expostos, julga-se procedente a reclamação apresentada, revogando-se o despacho reclamado, declarando-se competente para prosseguir a lide, o Juízo Local Cível de Sintra – Juiz “X”.
Sem custas.
Notifique.
Baixem os autos.

Lisboa, 15-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).