Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1022/2006-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
GARANTIA AUTÓNOMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: 1. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a fiança, a garantia autónoma não tem natureza acessória em relação à obrigação garantida, sendo devida mesmo que a relação principal seja inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, pois o garante assume uma obrigação própria, independente da relação subjacente: “paga-se primeiro e discute-se depois”
2. O tribunal só pode ordenar a suspensão da instância, com o fundamento a que alude o nº 1 do artigo 279º do CPC, quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando estiver pendente uma causa prejudicial.
3. Para a apreciação e decisão sobre a prejudicialidade entre duas acções, há que ter em consideração o pedido e a causa de pedir.
4. Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.
5. Não existe nexo de prejudicialidade entre uma acção em que é invocada a prestação duma garantia bancária autónoma (on first demand) e outra em que se discute a relação causal ou subjacente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.
“IM... SA” propôs a presente acção com processo ordinário
Contra
“F... SA”,
Pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 178.548,16 euros acrescida de juros de mora e da sanção pecuniária compulsória a que se refere o artigo 829º-A, nº 4 do CC.
Para tanto alega, em síntese, que:
- celebrou com “EC...” um contrato de empreitada;
- a Ec.. solicitou ao réu uma garantia bancária para assegurar “a boa execução dos trabalhos” dessa empreitada.
- em 13.09.2000, o R emitiu uma garantia bancária no montante de 36.433,06 euros;
- por esta garantia, o R constituiu-se “fiador e principal pagador” da Ec..;
- esta garantia é prestada como título de garantia pela boa execução dos trabalhos, obrigando-se o Banco a entregar à primeira solicitação a importância desta caução se o mesmo adjudicatário for considerado em falta de cumprimento do contrato de empreitada pelo dono da obra.;
- em 06.12.00, o R emitiu nova garantia bancária nas mesmas condições, no montante de 42.462,17 euros;
- em 30.03.2001, o R emitiu nova garantia bancária nas mesmas condições, no montante de 99.652,61;
- por carta de 22.04.2002, a autora resolveu o contrato de empreitada, por alegado incumprimento por parte da Ec...;
- por carta de 22.10.2002, a autora solicitou ao réu o pagamento dos montantes das garantias prestadas;
- o R não pagou o montante fixado nas garantias bancárias;
- ao prestar tais garantias, o R constituiu-se “fiador e principal pagador” da Ecop e obrigou-se perante a autora a “entregar à primeira solicitação” a importância fixada nas garantias,
- a autora tem direito a receber do R os montantes das garantias bancárias por ele prestadas ex vi do disposto nos artigos 112º, 113º e 114º do DL 58/99, de 02.03.

O R contestou, dizendo em síntese:
- segundo a Ec..., o incumprimento do contrato, causa de resolução do mesmo, é da responsabilidade da autora;
- do texto das garantias bancárias não resulta a constituição de uma obrigação autónoma e independente no negócio jurídico subjacente; antes pelo contrário, as garantias prestadas estão na dependência do cumprimento pela EC... do referido contrato de empreitada. E nesta medida as garantias prestadas são acessórias e completamente subordinadas ao cumprimento do dito contrato de empreitada;
- a garantia do Banco é uma “obrigação secundária de garantia” e secundária na medida em que a obrigação principal de garantia é constituída pelo património da própria EC....

O R. requereu a intervenção da EC..., a qual foi admitida.
Esta contestou, dizendo aderir à contestação deduzida pelo réu F....
Todavia, pediu a suspensão da instância nos termos do artigo 279º do CPC, alegando que a acção que corre termos na 2ª secção da 7ª vara Cível de Lisboa sob o número 12/04.5TVLSB é prejudicial em relação a esta.
E isto porque as questões emergentes do contrato de empreitada celebrado entre a autora e a chamada, que seria pressuposto desta acção, estará a ser discutido naquela outra acção, pelo que a decisão a proferir nela prejudicará decisivamente a que vier a ser proferida nestes autos.

Por despacho de fls. 367 a 369 foi decretada a suspensão da instância até que seja proferida decisão na acção que corre termos na 7ª Vara, por esta constituir causa prejudicial em relação à causa que estes autos se reportam.
É que, lê-se em tal despacho, “ a estarmos em presença de uma garantia acessória, como é o caso da decorrente da fiança, ocorre uma íntima relação entre a obrigação de garantia e a relação fundamental, traduzida na comunicação à primeira dos vícios da última”.
Deste despacho recorreu a autora formulando as seguintes conclusões:
1. O tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, ou seja, quando a decisão da primeira causa seja susceptível de destruir o fundamento ou razão de ser da segunda;
2. No caso sub judice não existe fundamento para a suspensão da instância com fundamento em alegada prejudicialidade, pois as garantias assinadas a favor da A. constituem garantias bancárias autónomas – obrigando-se o banco a entregar à primeira solicitação a importância desta caução se o mesmo adjudicatário for considerado em falta de cumprimento do contrato de empreitada pelo dono da obra”;
3. In casu está excluída qualquer dependência da solução a dar ao presente processo em relação à decisão que venha a ser tomada na alegada causa prejudicial, em que se discute relação contratual distinta – contrato de empreitada e seu incumprimento.
O F... contra-alegou, pedindo a confirmação do despacho recorrido.
Aí defende que:
- as garantias prestadas pelo F... não são autónomas nem automáticas.
- tais garantias estão na dependência da obrigação principal que é objecto da acção que corre termos na 7ª Vara.
Vejamos.
Nos termos do artigo 279º do CPC, o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer motivo justificado.
Nos presentes autos o que se discute é a recusa por parte do Banco de honrar as três referidas garantias, em tudo iguais entre si, excepto quanto aos montantes e datas de constituição.
Discute-se se a garantia bancária prestada é uma fiança ou uma garantia autónoma.
Com efeito, uma distinção muito importante no domínio das garantias bancárias (que são garantias pessoais prestadas por Bancos) é a que se estabelece entre as garantias acessórias, por um lado, e as garantias autónomas, por outro (1).
A garantia acessória está funcionalmente ligada ao crédito garantido. O seu regime dependerá, em pontos importantes, desse mesmo crédito. É o caso da fiança. Em contraposição surge-nos a garantia autónoma, em que o garante se obriga a pagar ao beneficiário uma determinada importância, à primeira interpelação (on first demand), ou seja, o garante pagará ao beneficiário uma certa quantia logo que este lha exija.
Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a fiança, a garantia autónoma não tem natureza acessória em relação à obrigação garantida, sendo devida mesmo que a relação principal seja inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, pois o garante assume uma obrigação própria, independente da relação subjacente: “paga-se primeiro e discute-se depois”. Por isso, a função da garantia autónoma não é a de assegurar o cumprimento de um determinado contrato, mas antes de assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas, uma determinada quantia em dinheiro.
Portanto, a garantia autónoma não é afectada pelas vicissitudes da relação principal ou subjacente, ao contrário do que acontece com a fiança (que é uma garantia acessória). Aquela gera uma obrigação totalmente independente, e o garante não pode sequer discutir a falta de cumprimento do devedor.
A questão que se coloca é a de saber se as garantias prestadas pelo Banco réu constituem uma fiança ou se configuram uma garantia “os first demand”.
A fiança é uma garantia pessoal típica das obrigações e encontra-se prevista e regulada nos artigos 627º e seguintes do CC, através da qual um terceiro (o fiador) assegura a satisfação de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se pessoalmente, com o seu património, perante o credor.
E, como resulta do nº 2 do artigo 627º referido, a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o devedor principal, ou seja, a fiança fica subordinada e acompanha a obrigação principal, com as consequências a que aludem nos artigos 628º, 631º, 632º, 634º, 637ºe 651º.
A verdade é que a autora defende que as garantias bancárias prestadas pelo Finibanco têm natureza autónoma, não existindo, por isso, qualquer nexo de prejudicialidade entre as duas acções.
Ora, se a autora vem exigir o pagamento das garantias prestadas com este fundamento, nenhuma razão existe para a suspensão da instância.
Como diz a agravante, o réu estaria obrigado a pagar, à primeira solicitação, a quantia garantida, sempre que ela invocasse que não teria obtido o cumprimento por parte da Ec..., pois, como se referiu no acórdão do STJ de 27.01.1993 (2), “perante uma garantia de pagamento à primeira solicitação, o garante (...) está obrigado a satisfazê-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados”.
Por isso, as obrigações do réu não estariam dependentes das vicissitudes do contrato de empreitada (3).
Parece-nos, contudo, que não é este o momento próprio para apreciar e decidir tal questão. Aqui há que decidir apenas se se justifica a suspensão da instância, pois é este o objecto do recurso. A decidir-se o contrário estaríamos já a entrar na discussão do mérito da causa.
Assim, o que importa averiguar é se, perante os fundamentos alegados pela autora, existe nexo de prejudicialidade entre ambas as acções.
Ora, salvo o devido respeito, parece-nos que não.
Como vimos, o tribunal só pode ordenar a suspensão da instância, com este fundamento, quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando estiver pendente uma causa prejudicial, tal se justificando por razões de economia processual e coerência de julgados.
“Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda” (4).
Aquela acção é proposta pela ora autora contra a referida EC... E com base no alegado incumprimento de um contrato, pede a autora a condenação da ré a pagar-lhe uma determinada quantia a título de indemnização.
Mas, no caso sub judice, por um lado, a causa pretensamente prejudicial nem é proposta contra o F... e, por outro, mesmo que seja julgada improcedente não tira razão de ser a esta, tendo-se sobretudo em consideração os fundamentos alegados nesta acção. E para a apreciação e decisão sobre a prejudicialidade entre duas acções, há que ter em consideração o pedido e a causa de pedir da segunda.
Ora, neste recurso defende a autora claramente que não existe fundamento para a suspensão, com base na alegada prejudicialidade, porque as garantias prestadas pelo réu constituem garantias bancárias autónomas, “obrigando-se o Banco a entregar à primeira solicitação a importância desta caução se o mesmo adjudicatário for considerado em falta de cumprimento do contrato de empreitada pelo dono da obra”. E assim sendo, “está excluída qualquer dependência da solução a dar ao presente processo em relação à decisão que venha a ser tomada na alegada causa prejudicial, em que se discute uma relação contratual distinta – contrato de empreitada e seu incumprimento pela R Ec...”.
Por isso conclui a ora agravante no sentido de que o entendimento possível destas garantias por parte de um declaratário normal e diligente não pode ser outro senão a vinculação pelo F... de entregar, à primeira solicitação da autora, a importância garantida, sempre que este viesse a considerar que a Ec... se encontrava em situação de incumprimento relativamente ao contrato de empreitada.
E pela carta de 22.10.2002 pede a autora o pagamento das garantias prestadas, invocando precisamente que o ora réu se obrigou “a entregar à primeira solicitação a importância...”
Com este alegado fundamento não há qualquer dúvida de que não existe nenhuma relação de prejudicialidade entre as duas acções. É que, como se disse, perante uma garantia de pagamento à primeira interpelação, o garante está obrigado a satisfazê-lo de imediato, não podendo o garante invocar a “causa debendi”.
Foi referido no despacho recorrido (368) : “Efectivamente, a estarmos em presença de uma garantia acessória, como é ocaso da decorrente da fiança, ocorre um íntima relação entre a obrigação de garantia e a relação fundamental, traduzida na comunicação à primeira dos vícios da última”
E assim poderia ser na verdade se de uma fiança se tratasse. Mas, por um lado, não é seguro que assim seja, e sobretudo, por outro, não é esse o fundamento alegado pela autora. Seja qual for a decisão a proferir naquela acção, sempre esta poderá prosseguir seus termos, razão pela qual não se justifica a requerida suspensão.
**
Por todo o exposto acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir seus termos.

Custas pelos agravados.

Lisboa, 04.04.2006.

Pimentel Marcos
Abrantes Geraldes
Maria do Rosário.



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(1).-Menezes Cordeiro, in Manual de Direito Bancário, pag. 604 e s.s.

(2).-BMJ 423//483

(3).-Isto sem prejuízo dos direitos de defesa a invocar pelo réu e sempre partindo-se do pressuposto que o beneficiário age segundo os princípios da boa fé, que são aplicáveis a todos os contratos.

(4).-Alberto do Reis, in Comentário ao CPC , vol. III, pag. 206.