Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2884/2004-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
UNIÃO DE FACTO
ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: Para efeitos de reconhecimento do direito à obtenção de pensão de sobrevivência por falecimento daquele com quem o interessado vivia em união de facto, a prova da impossibilidade de obtenção de alimentos dos familiares a que se reporta o art. 2009º do CC deve ser encarada com razoabilidade.
Devem considerar-se, designadamente, a incapacidade de mobilização prática dos instrumentos jurídicos e judiciários e, por outro, a premência inerente à natureza das prestações alimentícias.
Tendo sido concedido à interessado pelos serviços da Segurança Social o benefício do apoio judiciário, não obsta à afirmação daquele requisito o facto de a mesma ter uma filha emigrada na Alemanha, atentas as dificuldades inerentes à obtenção do reconhecimento do direito a alimentos e à execução da sentença respectiva.
Decisão Texto Integral: I – M. ROSA
intentou contra
CENTRO NACIONAL DE PENSÕES
acção declarativa com processo ordinário pedindo que se reconheça que vivia em união de facto com José R., beneficiário da Segurança Social, e que seja reconhecida a sua qualidade de titular do direito às prestações por morte.

O R. veio o réu apresentar contestação, limitando-se praticamente a pedir a improcedência da acção.

Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Apelou a A. e concluiu que:

a) Não são conhecidos irmãos, nomeadamente vivos, à A.
b) A sua filha Paula C., filha da A., encontra-se a residir na Alemanha, onde trabalha em limpezas.
c)De acordo com a experiência comum decorrerá daqui que a A., vivendo em Portugal, não poderá obter alimentos da sua referida filha.
d)Foi dado como provado que a A., à data da morte de José R., vivia com ele há mais de 2 anos em situação análoga a dos cônjuges e que não tem quaisquer rendimentos para além do "rendimento mínimo garantido" que lhe foi atribuído no valor de PTE 33.400$00, sendo certo que não trabalha nem o pode fazer, por ser doente.
e)A filha da A. Maria do R. deixou de ter contacto com a A. e vive em Lisboa e a filha Lígia C. é casada tendo como único rendimento o vencimento do marido.
f) A A. não pode obter alimentos de qualquer dos seus familiares.
g) Mostram-se preenchidos todos os requisitos previstos no art. 8° do Dec. Lei nº 322/90 de 18-10, com referência ao art. 2020° n° l do CC.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Factos provados:
1. No dia 27-5-98 faleceu José R., no estado de solteiro – A);
2. À data do falecimento, era o beneficiário n° 121.296.684 da Segurança Social – b);
3. A A. nasceu no dia 20-12-37, e é solteira (doc. fls. 53);
4. P. Cristina nasceu em 15-5-65, é filha de José R. e de M. Rosa, e é casada – C);
5. Maria R. nasceu em 13-6-66, é filha de José R. e de M. Rosa, e é solteira – D);
6. Lígia R. nasceu em 6-10-71, é filha de José R. de M. Rosa, e é casada – E);
7. A A. viveu com José R., como se marido e mulher fossem, desde 1961 até a data do falecimento deste último – 1º;
8.Coabitando na mesma casa, ali recebendo os seus amigos, dormindo na mesma cama e partilhando os seus rendimentos para fazerem face às necessidades de ambos – 2º;
9. José R. não deixou quaisquer bens – 3º;
10. A A. não tem quaisquer outros rendimentos para além do "rendimento mínimo garantido" que lhe foi atribuído, no valor de PTE 33.400$00 mensais – 4º;
11. E não tem bens ou rendimentos que lhe permitam angariar sustento para si – 5º;
12. A A. não trabalha, nem o pode fazer, por ser doente – 6º;
13. As despesas mensais da A., em alimentação, vestuário e medicamentos, ascendem a montante muito superior ao valor do "rendimento mínimo" que aufere – 7º;
14. A filha da A., Paula C., foi para a Alemanha, onde trabalha em limpezas – 9º;
15. A filha da A., Maria do R., deixou de ter contactos com a A. – 11º;
16. Consta à A. que a filha Maria do R. vive em Lisboa – 12º;
17. A filha da A., Lígia C. é doméstica –13º;
18. Lígia C. e o marido têm como único rendimento o vencimento deste – 15º;
19. Sendo com este rendimento que provêm ao rendimento de ambos – 16º.

III – Decidindo:
1. A sentença apelada julgou a acção improcedente com fundamento em dois motivos fundamentais: por não se ter provado que os únicos familiares da A. sejam as suas 3 filhas e por, relativamente à filha que reside na Alemanha, não se ter provado a impossibilidade de prestar alimentos a sua mãe

2. Atenta a data em que faleceu o beneficiário da Segurança Social que com a A. viveu em união de facto, o caso rege-se fundamentalmente pelo disposto no art. 8º do Dec. Lei nº 322/90, de 18-10, conjugado com o Dec. Regulamentar nº 1/94, de 18-1, e com o disposto no art. 2020º do CC.
De acordo com um tal regime, o direito às prestações por morte depende da prova da existência de uma situação de união de facto, à data da morte, com duração mínima de 2 anos, e da prova de uma situação de carência que implique a prestação de alimentos a cargo da herança, por não poderem ser obtidos dos familiares legalmente obrigados a prestá-los; se acaso inexistirem bens da herança, exige-se que no processo dirigido contra a instituição de segurança social se declare a situação de carência alimentar que não possa ser superada através da sua exigência aos referidos familiares.

3. No caso concreto, está assente a situação de união de facto e a sua manutenção na data da morte por tempo largamente superior ao limite mínimo legal.
Ainda assim, mal se compreende a razão que terá presidido à não formalização da união que, de facto, existiu e que perdurou por cerca de 40 anos, período durante o qual ambos viveram como se fossem efectivamente casados e de cuja união nasceram três filhas.
Tanto bastaria para que à A. fosse reconhecida pela autoridade administrativa, sem quaisquer impedimentos ou exigências, o direito às prestações sociais previstas para os casos de falecimento do beneficiário, nos termos do art. 9º do Dec. Lei nº 322/90, de 18-10.
Como tal não aconteceu, vê-se a A. confrontada com exigências suplementares.

4. Neste contexto, para além da comprovada situação de união de facto, não se duvida da sua necessidade alimentar, tal a precariedade das condições em que vive: com 67 anos de idade, sem poder trabalhar, por se encontrar doente, e sem quaisquer rendimentos, a não ser o rendimento mínimo garantido, no valor de PTE 33.400$00.
Questionável é apenas se se pode considerar satisfeita a exigência constante do art. 2020º do CC, ou seja, que a A. não pode obter os alimentos mediante o recurso às pessoas referidas no art. 2009º, nº 1, als. a) a d).[1]
Posto que tal segmento normativo que se refere à “impossibilidade” onere a A.,[2] deve ser interpretado com razoabilidade. Razoabilidade essa que é imposta não só pela natureza da obrigação alimentícia, como ainda pela necessidade de serem ponderadas as reais possibilidades de alguém, com o estatuto sócio-económico da A., conseguir, por outras vias, superar a situação de carência alimentar que não seja através do recurso à pensão de sobrevivência.
Deve ainda ter-se em consideração o pano de fundo em que surgem reclamações como a deduzida pela A., por um lado, e por outro, as medidas de política social que levaram o legislador a alargar o âmbito e a espécie de prestações sociais (v.g. a protecção concedida à união de facto e a previsão do rendimento mínimo garantido).
Efectivamente, como refere Remédio Marques,[3] as prestações da segurança social visam frequentemente suprir o decrescimento da solidariedade inter-familiar, em resultado da conjugação do envelhecimento da população e do desmembramento ou dispersão do agregado familiar, circunstâncias estas que são visíveis no caso presente em que das três filhas da A. nenhuma vive consigo.
 
5. A obrigação de alimentos impende, em abstracto, sobre o elenco de pessoas referidas no art. 2009º do CC, com respeito pela ordem aí fixada, dependendo o reconhecimento e a fixação da medida dos alimentos da verificação não apenas da situação de necessidade do alimentando, como das possibilidades das pessoas legalmente obrigadas a prestá-los.
Ora, não podendo duvidar-se que a A. carece de alimentos (o facto de receber o rendimento mínimo garantido, suportado pela Segurança Social, demonstra isso mesmo, de forma clara, perante o próprio Centro Nacional de Pensões), também pode afirmar-se, com a necessária segurança, que essa prestação alimentícia, em termos de reconhecimento do direito e da sua exercitação prática, não pode efectivar-se contra qualquer das suas 3 filhas.
Relativamente a duas delas essa impossibilidade foi assumida, sem ter sido questionada, na sentença recorrida. É, aliás, o resultado da prova de que quanto à filha Maria do R. nem sequer existem contactos, e, quanto a outra (Lígia C.), a prova de que é doméstica, tem dois filhos menores (docs. fls. 91 a 93) e vive unicamente do rendimento do seu marido cujo montante também se desconhece.
Já, porém, se considerou na sentença que a A. não fez prova de semelhante impossibilidade em relação à terceira filha da A. (Paula C.).
Não acolhemos essa posição.
É verdade que não se provou a matéria do quesito 10º, mas a resposta que foi dada ao quesito 9º, de onde resulta que essa filha está emigrada na Alemanha, onde “trabalha em limpezas”, satisfaz o condicionalismo legal.
Na verdade, ainda que teoricamente não esteja de todo afastada a possibilidade de se conseguir a fixação de uma prestação alimentícia e a sua posterior execução, o certo é que tais démarches são incompatíveis quer com o estatuto sócio-económico da A., quer, principalmente, com a natureza e objectivo de qualquer prestação de alimentos que, como decorre do art. 2003º do CC, visa obter o “indispensável ao sustento, habitação e vestuário”.
As circunstâncias que rodeiam a A. não permitem impor-lhe, para prova da aludida “impossibilidade”, o accionamento de todos os mecanismos que, em último caso, passariam ainda pela execução de uma sentença de alimentos em país estrangeiro.
 Em suma, a expressão constante do art. 2020º, nº 1, do CC (“não puder obter”), deve ser interpretada em termos hábeis que considerem, por um lado, a (in)capacidade de mobilização prática dos instrumentos jurídicos e judiciários por parte do interessado e, por outro, a premência inerente à natureza das prestações alimentícias que visam suprir necessidades básicas.
Por isso se entende que a matéria de facto apurada permite afirmar o preenchimento do referido pressuposto normativo.

6. Não se acolhe igualmente o argumento inserido na sentença extraído da ausência de prova de que, para além das filhas, existam outros familiares aptos a prestar alimentos, no caso, os irmãos.
Nada nos autos indicia a existência de outros familiares, pese embora a própria A. ter alegado que tinha dois irmãos que emigraram e relativamente aos quais perdeu o contacto.
De todo o modo, ainda que pudesse assumir-se a existência desses familiares, deveriam transpor-se as considerações que anteriormente foram feitas acerca da integração do pressuposto da “impossibilidade”, em termos de razoabilidade.

7. Assim, verificada a situação de impossibilidade de exercitação do direito a alimentos relativamente a familiares e comprovada a inexistência de bens deixados por morte de José R., consideram-se reunidas as condições para que à A. seja reconhecido o direito às prestações sociais legalmente previstas para o elemento sobrevivo da união de facto.

III – Conclusão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida a qual se substitui por outra a reconhecer à A. o direito a beneficiar das prestações de segurança social, nos termos do art. 3º, nº 2, do Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1.
Sem custas por delas estar isento o R.
Notifique.
Lisboa, 27-4-04
A. Abrantes Geraldes

M. Tomé Soares Gomes                           M. do Rosário Morgado
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[1] Note-se que um recente Ac. do Trib. Constitucional, publicado no D. R., II Série, de 16-4-04, veio julgar inconstitucional disposições interpretadso com o sentido de que a “atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da Caixa Nacional de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido ... com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009º do CC”.
[2] Neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 29-6-95, CJSTJ, tomo II, pág. 147, contrariando a tese defendida por Remédio Marques, Algumas Notas Sobre Alimentos, págs. 237 e 238, segundo o qual se trataria de facto impeditivo cujo ónus de prova reciaria sobre a Segurança Social.
[3] Algumas Notas Sobre Alimentos, págs. 208 e segs.