Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8319/21.0T8LRS.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: AIJRLD
DEVER DE LEALDADE
OPERADOR DE CAIXA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. Viola os deveres de lealdade e de promoção ou execução de actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa o trabalhador de caixa de um supermercado que durante uma campanha promocional promovida pelo empregador, com duração de três dias, consistindo num desconto de até €10 em toda a comida para animais na primeira compra a partir de €50 que os clientes fizessem na loja, que apenas podiam ser dispensados uma vez a cada cliente para a primeira compra a partir de €50 e desde que manifestasse interesse em levá-los e tivesse cartão de cliente registado, em dois dias e até ser descoberta por quatro vezes vendeu desses produtos a clientes que na verdade se destinaram a uma outra trabalhadora da empresa que beneficiou dos descontos (art.º 128.º, als. f) e g) do CT).

II. Tal violação abalou irremediavelmente a confiança da empregadora na trabalhadora em termos de lhe não ser exigível manter a relação laboral, pese embora a sua antiguidade na empresa de 19 anos (art.º 351.º, n.º 1 do CT).

(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
AAA (acção principal) e BBB (acção apensa) intentaram as presentes acções declarativas, com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, contra CCC., tendo apresentado formulários legais nos quais requereram que fosse declarada a ilicitude ou a irregularidade dos seus despedimentos, com as legais consequências.
Citada a ré, foram convocadas e realizadas audiências de partes, nas quais as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.

Na sequência da notificação para esse efeito, a ré apresentou os seus articulados de motivação dos despedimentos, nos quais aceitou que cada uma das autoras vigoraram contratos de trabalho, que os mesmos cessaram por despedimento com justa causa das autoras e juntou os processos disciplinares.

As trabalhadoras contestaram por impugnação dos factos imputados e reconviram, pedindo a declaração de ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a pagar-lhes as retribuições que deixaram de perceber desde então e que continuarão a não receber até ao trânsito em julgado da sentença.

A ré respondeu às reconvenções, negando os factos invocados pelas reconvintes e reafirmando os que alegara nos articulados motivadores dos seus despedimentos.

Foi determinada a apensação a esta da acção com o n.º 8322/21.0T8LRS (na qual é autora a trabalhadora BBB

Foi lavrado despacho saneador, no qual foram admitidas as reconvenções deduzidas pelas autoras, fixado o objecto dos litígios e os temas de prova e admitidas as provas arroladas pelas partes.

Realizada a audiência de julgamento, foi em seguida proferida sentença, na qual o Mm.º Juiz decidiu:
a) quanto à autora AAA: julgar a sua impugnação judicial do despedimento, bem como a sua reconvenção, totalmente improcedentes e, em consequência, absolver a ré de todos os pedidos por ela deduzidos.

b) quanto à autora BBB:
1. declarar a ilicitude do seu despedimento ocorrido em 01-09-2021; e, em consequência, condenar a ré a pagar-lhe:
• uma indemnização em substituição da reintegração, correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano ou fracção completos de antiguidade que se vencer até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal, e que nesta data, contabilizados 19 anos, 11 meses e 15 dias, já ascende a €14.800,00;
• todas as retribuições intercalares que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado desta decisão ou outra que a confirme, e que ascendiam, então, a €5.824,89, quantia à qual já foi deduzido o valor de €729,34 por ela auferido como rendimento de trabalho em período posterior ao despedimento;
 2. absolvê-la do pedido de pagamento à mesma de indemnização por danos não patrimoniais.

Inconformada, a ré interpôs recurso relativamente à autora da acção apensa, BBB pedindo que a sentença proferida seja revogada e substituída por outra que declare a licitude do seu despedimento, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
(…)
(…)

Contra-alegou a autora, sustentando que deve ser negado provimento à apelação e confirmar-se a sentença recorrida.

Admitido o recurso na 1.ª Instância e remetido a esta Relação, foram os autos ao Ministério Público,[1] tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto aposto o seu visto.

Colhidos os vistos,[2] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[3] Assim, importa apurar se:
i. o despedimento da apelada foi licitamente perpetrado pela apelante.
***
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
"i. A Empregadora é uma sociedade comercial que se dedica à venda de produtos de consumo a retalho mediante contrapartida de pagamento de um preço.
ii. A trabalhadora BBB foi admitida no dia 04-05-2002 para trabalhar sob a autoridade e direcção da sociedade CCC.
iii. À data do despedimento, a trabalhadora BBB desempenhava as funções correspondentes à categoria profissional de Operadora Especializada de Caixa, na loja da …, auferindo a retribuição base mensal de € 740,00;
iv. À data do despedimento, a trabalhadora AAA desempenhava as funções correspondentes à categoria profissional de Operadora de Caixa, na loja da … e tinha cinco anos de antiguidade.
v. Em 4 de Maio de 2021, foi determinada a instauração de procedimento disciplinar às trabalhadoras AAA e BBB por despacho subscrito pela Direcção de Relações Laborais da Empregadora.
vi. Por carta enviada por correio à trabalhadora AAA em 21 de Junho de 2021 e entregue em mão à trabalhadora BBB, em 20 de Julho de 2021, foram ambas notificadas da nota de culpa, da possibilidade de consulta dos autos de procedimento disciplinar, do prazo de que dispunham para responderem à nota de culpa, sendo igualmente informadas da possibilidade de, a final, lhes ser aplicada a sanção disciplinar de despedimento com justa causa.
vii. Em 19 de Agosto de 2021 o instrutor dos processos disciplinares, proferiu os respectivos relatórios finais, tendo concluído, em ambos, pela adequação da aplicação da sanção de despedimento com justa causa.
viii. Em face das propostas de decisão proferidas pelo instrutor nomeado, a Empregadora proferiu decisões finais de despedimento com justa causa, em 20 de Agosto de 2021, que comunicou às trabalhadoras por meio de cartas registadas com aviso de recepção, recebidas, em ambos os casos, no dia 01-09-2021.
ix. A sociedade ré lançou uma campanha promocional, para vigorar nos dias 27 a 29 de Abril de 2021.
x. A campanha consistia num desconto de até €10 em toda a comida para animais, na primeira compra a partir de 50 euros que os clientes fizessem na loja.
xi. Sendo que esses artigos apenas podiam ser dispensados uma vez a cada cliente, pois a campanha era para a primeira compra a partir de 50 euros.
xii. Só podendo esses artigos ser dados aos clientes que manifestassem o interesse em os levar e tivessem o cartão poupa mais registado.
xiii. No dia 27 de Abril de 2021, a chefe de caixas … apercebeu-se de movimentações estranhas com embalagens de comida para animais, por parte de ambas as autoras;
xiv. O que levou a que a … tivesse perguntado à AAA o que é que se passava, tendo esta dito que não era nada.
xv. A … reportou a situação superiormente, tendo-se averiguado o que é que se estava a passar.
xvi. No dia 27 de Abril de 2021, pelas 14:50, a AAA foi à placa de venda, donde trouxe várias embalagens de comida para animais.
xvii. A AAA colocou essas embalagens de comida para animais, na caixa onde a BBB estava a operar.
xviii. Tendo a BBB registado esses artigos (…), na conta de uma cliente.
xix. Após efectuar o pagamento das suas compras, essa cliente foi-se embora, deixando ficar na caixa da BBB as embalagens de comida para animais.
xx. A BBB colocou as embalagens dentro de sacos da parafarmácia, juntamente com os talões de pagamento.
xxi. Mais tarde, a AAA ligou da caixa onde estava a operar para o telefonista da loja, tendo-lhe pedido para ir buscar esses sacos à caixa da BBB;
xxii. O telefonista assim fez e levou os sacos para junto da AAA.
xxiii. Tendo a AAA pedido ao telefonista para deixar ficar esses sacos no balcão dos seguranças;
xxiv. Como o telefonista disse que tal não era possível, a AAA pediu-lhe para colocar esses sacos num dos cacifos dos clientes, que se encontram à entrada da loja.
xxv. Ficando a AAA com a chave do mesmo.
xxvi. Mais tarde, a AAA voltou a ir à placa de venda buscar duas embalagens de comida para gato.
xxvii. A AAA levou essas duas embalagens para a caixa 4, onde estava a operar a colaboradora ….
xxviii. A fim de esta registar essas duas embalagens na conta de uns clientes conhecidos da BBB
xxix. Após esse registo, os clientes deixaram ficar essas duas embalagens junto à caixa da …, com uma cópia do respetivo talão.
xxx. Já depois de sair do serviço, a BBB passou na caixa da AAA que lhe entregou a chave do cacifo dos clientes.
xxxi. Depois, a BBB foi à caixa da …, buscar as duas embalagens de comida para animais que aí tinham ficado.
xxxii. Que levou consigo e colocou no cacifo de clientes, do qual a AAA lhe tinha dado a chave.
xxxiii. Quando saiu do serviço, a AAA dirigiu-se ao cacifo e retirou do mesmo todos os sacos, pelo menos quatro embalagens, de comida para animais que aí se encontravam.
xxxiv. Levando essas embalagens de comida para animais consigo, fazendo-as suas.
xxxv. No dia 28 de Abril de 2021, a BBB e a AAA voltaram a agir da mesma maneira.
xxxvi. Pelas 11:40, a AAA interrompeu um atendimento que estava a fazer a uns clientes.
xxxvii. Tendo ido à placa de venda buscar duas embalagens de comida para animais.
xxxviii. Que trouxe para a caixa onde estava.
xxxix. Registando essas duas embalagens na conta dos clientes que estava a atender.
xl. Esses clientes eram conhecidos da BBB, que se encontrava na caixa em frente e com quem os clientes comunicaram.
xli. Depois de o cliente pagar a conta, a AAA colocou essas duas embalagens no chão, junto a si.
xlii. Não tendo o cliente levado qualquer uma dessas embalagens.
xliii. Mais tarde, no seu intervalo para almoço, a BBB foi à caixa da AAA, tendo esta entregue as chaves do seu carro e o talão de pagamento onde estavam registadas as duas embalagens.
xliv. Tendo a BBB levado consigo as duas embalagens de comida para animais.
xlv. A BBB saiu da loja e dirigiu-se ao seu carro, onde deixou ficar as duas embalagens.
xlvi. Nesse mesmo dia 28 de Abril, pouco antes das 13:20, a BBB interrompeu um atendimento a um cliente e saiu da sua caixa.
xlvii. Indo à placa de venda, buscar duas embalagens de comida para animais.
xlviii. Que trouxe para a caixa, onde estava a atender o cliente.
xlix. Registando essas duas embalagens na conta do cliente (COM. SC GT FRISKI).
l. Tendo o cliente colocado essas duas embalagens no carrinho onde tinha as suas compras.
li. Afastando-se, de seguida, levando essas embalagens consigo.
lii. Antes de sair da loja, o cliente dirigiu-se ao balcão dos seguranças, tendo aí deixado ficar as duas embalagens, demonstrando que já estavam pagas.
liii. Tendo dado indicações ao vigilante de serviço, para entregar essas embalagens à AAA
liv. Quando a AAA ia a sair da loja, o vigilante chamou-a e entregou-lhe as duas embalagens de comida para animais.
lv. Que a AAA levou da loja, fazendo-as suas.
lvi. Resulta dos factos acima referidos que a AAA, com a ajuda e participação da BBB, fez suas várias embalagens de comida para animais.
lvii. Obtendo esses artigos sem que tivesse efectuado compras, no valor que lhe permitisse obter os mesmos.
lviii. Conforme a AAA e a BBB bem sabiam, pois tal resulta das condições da campanha;
lix. Acresce que no dia 28 de Abril, a AAA perguntou à supervisora … e à adjunta … se podia ficar com as embalagens que os clientes não quisessem.
lx. Sendo que ambas informaram a AAA de que tal não era possível.
lxi. Com a sua atitude, a AAA – com a ajuda e participação da BBB – fez suas várias embalagens de comida para animais, a que bem sabia não tinha direito.
lxii. A campanha em causa, visava a fidelização de clientes e fomentar as vendas, bem como o registo e utilização do cartão poupa mais.
lxiii. A sociedade ré investiu recursos, materiais e humanos, no lançamento e manutenção dessa campanha.
lxiv. Com a colaboração entre a AAA e a BBB agiram ambas em prejuízo da empregadora e em benefício da primeira, apoderando-se esta de vários artigos de comida para animais no valor de, pelo menos, €40.
lxv. A ré, para além do custo correspondente às embalagens de comida para animais, tem de suportar os custos com a campanha promocional.
lxvi. As trabalhadoras agiram livre e conscientemente.
lxvii. A Empregadora dispõe de autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, para recolha de imagens de videovigilância com a finalidade de proteção de pessoas e bens;
lxviii. As imagens juntas aos autos foram captadas por câmaras que não estão dirigidas exclusivamente para locais de trabalho, nem para o interior de áreas reservadas aos trabalhadores, designadamente zonas de refeição, vestiários, ginásios, instalações sanitárias e zonas exclusivamente afectas ao seu descanso;
lxix. A existência de sistema de videovigilância é do conhecimento não só dos trabalhadores, como do público em geral que frequenta a loja em apreço, porquanto a Empregadora faz a divulgação da existência de um sistema de videovigilância.
lxx. A AAA vive com uma filha de quatro anos diagnosticada com síndroma de …, ou seja, tem um atraso cognitivo, tem compulsão alimentar e necessita de terapia da fala.
lxxi. A entidade patronal bem sabe as dificuldades da trabalhadora e da sua filha, tanto que era ela quem pagava a terapia da fala da menina.
lxxii. A AAA vive angustiada desde que foi notificada do processo disciplinar e posteriormente despedida.
lxxiii. A AAA está a trabalhar, desde 01-11-2021, na …, auferindo a retribuição base de €665,00/mês, acrescida de duodécimos de subsídios de férias e de Natal, até 31-12-2021, sendo que a partir de 01-01-2022, passou a auferir mensalmente, a retribuição base de €705,00, acrescida de duodécimos dos subsídios de férias e de Natal.
lxxiv. Desde 01-09-2021, a autora AAA não beneficiou de qualquer prestação social;
lxxv. O emprego de BBB era a única fonte de rendimento do seu agregado familiar, actualmente composto por si e uma filha de menor idade.
lxxvi. A trabalhadora BBB trabalhou em Setembro e Outubro de 2021 para a empregadora …, tendo auferindo, em contrapartida, a quantia de €729,34;
lxxvii. Desde 01-09-2021, a autora BBB não beneficiou de qualquer prestação social;
lxxviii. A incerteza quanto ao futuro gera angústia na BBB face ao despedimento e à ausência de rendimento que permita o normal sustento do agregado familiar e o pagamento das suas despesas da vida corrente e encargos assumidos na compra de casa".
2. O direito
A questão que a apelante trás ao desembargo desta Relação de Lisboa é a de saber se o despedimento da apelada foi por ela efectuado licitamente.
Na perspectiva da apelante, que também é a da sentença prolatada pelo Mm.º Juiz a quo e, sejamos justos em dizê-lo, também da apelada, com a sua conduta esta última violou os deveres de lealdade e de promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa a que se encontrava vinculada para com a primeira por virtude do contrato de trabalho e se reportam as alíneas f) e g) do art.º 128.º do Código do Trabalho, situando-se o dissídio intelectual entre a primeira e as segundas apenas quanto à gravidade e da ilicitude e da culpa para comprometer irremediavelmente a manutenção da relação laboral, desde logo porque as coisas abusivamente apropriadas não o foram pela apelante mas pela trabalhadora AAA  (autora na acção principal e relativamente à qual a sentença confirmatória do seu despedimento transitou em julgado) e os produtos em causa foram entregues, em primeira mão, a quem reunia as condições para os receber e que os pagou para beneficiar da promoção, não sendo possível aferir do valor do prejuízo patrimonial sofrido pela apelante.
Vejamos então como decidir.
A lei consagra como deveres do trabalhador "guardar lealdade ao empregador"[4] e "promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa",[5] "constituindo justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho".[6]

Como já se viu referido, a "obrigação de lealdade constitui uma parcela essencial, e não apenas acessória, da posição jurídica do trabalhador, o que aponta no sentido de que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam) e que, encarado de um outro ângulo, apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações, com o sentido que lhe é sinalizado pelo art.º 119.º/1 CT, donde promana, no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional - razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo - da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja 'no contrato', isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte".[7]

Discorrendo sobre o conteúdo desse dever, refere Monteiro Fernandes que "em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de 'execução leal' tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de 'perigo' para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa".[8] Daí que, prossegue, "o que pode dar-se por seguro é que o dever geral e lealdade tem, por um lado, uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam). É necessário - quanto a este aspecto do dever de lealdade - que a conduta do trabalhador não seja em si mesma, susceptível de destruir ou abalar essa confiança, isto é, capaz  de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele".[9] Certo e compreensível é que "o seu conteúdo varia conforme a natureza das funções do trabalhador, sendo mais intenso para os trabalhadores mais qualificados e responsáveis".[10]

Já Maria do Rosário Palma Ramalho nota que "o dever de lealdade do trabalhador entronca, em primeiro lugar, no dever geral de cumprimento pontual dos contratos. Nesta perspectiva, o dever de lealdade tem como destinatário o empregador, contraparte no contrato de trabalho, e não é mais do que a concretização laboral do princípio da boa fé, na sua aplicação ao cumprimento dos negócios jurídicos, tal como está vertido no art.º 762.º, n.º 2 do Código Civil. (…) Mas o dever de lealdade do trabalhador, no sentido amplo indicado, tem uma outra dimensão, que decorre dos dois elementos do contrato de trabalho que o tornam singular no panorama dos contratos obrigacionais: o elemento do envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo; e a componente organizacional do contrato. O elemento da pessoalidade explica que a lealdade do trabalhador no contrato de trabalho seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento pessoal do dever de lealdade que justifica, por exemplo, o relevo de condutas extra-laborais do trabalhador para efeitos de configuração de uma situação de justa causa de despedimento, bem como o relevo da perda da confiança pessoal do empregador no trabalhador para o mesmo efeito".[11]

Em todo o caso, como refere Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2017, 18.ª edição, Almedina, Coimbra, página 282, "a diminuição da confiança não está dependente da verificação de prejuízos nem ‒ salvo no tocante à medida ou grau ‒ da existência de culpa grave do trabalhador".

Também o Supremo Tribunal de Justiça tem seguido neste rumo, como no caso em que decidiu que "o dever de lealdade tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa fé, um aspecto pessoal e um aspecto organizacional, cujo conteúdo se densifica quando os trabalhadores exercem cargos de responsabilidade na gestão financeira da empresa".[12] Deste modo, "contratado alguém (intuitu personæ), é a lealdade, que engloba o dever de honestidade em relação à entidade empregadora, que sustenta a confiança necessária e indispensável à manutenção da relação laboral"[13] no que considerou que "viola o dever de lealdade o trabalhador que se apodera ilicitamente de dinheiro pertencente à sua entidade patronal. Tal comportamento constitui justa causa de despedimento: a honestidade é um valor absoluto, não sendo de atender, em ordem a evitar o despedimento, circunstâncias ditas atenuantes, respeitantes ao zelo, à dedicação, à disponibilidade e à falta de antecedentes disciplinares. A infidelidade patrimonial inquina a mancha indelevelmente a confiança necessária ao equilíbrio da concreta relação de trabalho";[14] e noutro passo salientou que "a diminuição de confiança, resultante da violação do dever de lealdade não está dependente da verificação de prejuízos nem da existência de culpa grave do trabalhador, já que a simples materialidade desse comportamento, aliado a um moderado grau de culpa, pode em determinado contexto levar razoavelmente a um efeito redutor das expectativas de confiança".[15]

Quanto ao segundo dos deveres em análise (de promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa), Diogo Vaz Marecos, Código do Trabalho, Comentado, 2020, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, página 343 evidencia que "significa isto que o trabalhador deve não só assumir uma conduta actividade procura de aperfeiçoamento da produtividade da empresa, como ainda não contrariar as medidas implementadas pelo empregador com semelhante finalidade. Assim entendido, a violação deste dever afere-se tendo em conta o caso concreto". Ou seja, como nota Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2015, 7.ª edição, Almedina, página 518, "essa obrigação do trabalhador implica um empenhamento na realização da actividade, de molde a cumpri-la de forma produtiva; obrigação que está igualmente relacionada com o zelo e a diligência".

Aqui chegados, temos por certo que se é verdade, como sustentam a sentença e a apelada, que esta se não apropriou de nenhum dos produtos em causa[16] e que se não quantificou com exactidão o prejuízo assim causado à apelada,[17] também é seguro que isso não é suficiente para afastar a legalidade da sanção que lhe foi aplicada. Aliás, como vimos atrás, para que a violação do dever de lealdade possa levar ao despedimento não é forçoso que tenha provocado um prejuízo (embora no caso, como de resto acentuou a sentença recorrida, isso até se verificou, embora o proveito material fosse, aparentemente, apenas para trabalhadora AAA; releva, todavia, para sustentar a decisão da apelante empregadora de despedir a apelada trabalhadora nos termos enunciados na sentença recorrida que tal se verificou e que esta teve (com a trabalhadora Patrícia) o domínio dos factos (pois que sem a sua conduta, de resto pro-activa, não teriam de todo ocorrido).

Em linha com isto, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 30-03-2022, no processo n.º 764/20.5T8VNG.P1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt, que "viola os deveres de obediência e lealdade, previstos respectivamente nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho de 2009, o trabalhador, operador de posto de abastecimento, que, por diversas vezes, à revelia de ordens e instruções do empregador, registou, no âmbito das suas funções, aquisições de combustível por clientes, mas utilizando o seu cartão …, nele registando o benefício da aquisição, que poderia utilizar em compras nos hipermercados Continente ou em aquisições de combustível nos postos da Ré, a fim de obter benefício indevido" e que "tal conduta afecta intoleravelmente a confiança que o empregador nele depositava tornando inexigível a manutenção da relação de trabalho, integrando justa causa de despedimento" (não tendo sido obstáculo a tal conclusão o facto de, como aqui, se não ter provado a verificação de qualquer dano para a empregadora); e pelo mesmo caminho seguiu o acórdão da Relação de Évora, de 23-05-2013, no processo n.º 6/11.4TTFAR.E1, publicado em http://www.dgsi.pt ao decidir que "constitui justa causa de despedimento, a actuação de uma trabalhadora, que, sendo operadora de caixa, se aproveita da sua posição funcional para se apropriar de talões de desconto destinados a clientes da empregadora, no âmbito de campanhas promocionais e os utiliza em benefício próprio, havendo uma regra na empresa que proíbe que, em qualquer circunstância, os colaboradores fiquem com os talões de desconto que os clientes não queiram ou se esqueçam na loja. Tal comportamento da trabalhadora viola os deveres de obediência e de lealdade, destruindo irremediavelmente a relação de confiança que tem de existir numa relação laboral".

É certo que no caso sub iudicio os factos praticados pelas apelada trabalhadora foram num número menos exuberante (quatro) que no caso tratado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça atrás citado,[18] mas é conveniente notar que agora se tratava de uma campanha de curta duração (três dias, como nos diz o facto provado ix.) enquanto naquele se inseriam na actividade negocial regular da empresa, mas ainda assim neste caso a apelada persistiu nos dois primeiros dias e só cessou quando a situação foi detectada por superior hierárquico (factos provados xiii. a xv., xvi. e seguintes, xxvvi. e seguintes, xxxv. e seguintes, xlvi. e seguintes).

Assim sendo, conclui-se que a confiança da apelante na apelada ficou irremediavelmente afectada pela conduta desta em termos de lhe não lhe ser exigível manter a relação laboral, pese embora a sua longevidade na empresa e por isso deve ser concedida a apelação, revogada a sentença recorrida e a apelante absolvida do pedido.
***
III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida e absolver a apelante do pedido.
Custas pela apelada (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
*
Lisboa, 28-09-2022.
António José Alves Duarte
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
_______________________________________________________
[1] Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[2] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[3] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[4] Art.º 128.º, alínea g) do Código do Trabalho.
[5] Art.º 128.º, alínea h) do Código do Trabalho.
[6] Art.º 351.º, n.º 1 do Código do Trabalho (note-se que, como de resto se retira do advérbio de modo "nomeadamente" constante do n.º 2 desse normativo, as causas expressamente ali previstas são apenas exemplificativas).
[7] João Moreira da Silva, ob. cit., páginas 57 a 59.
[8] Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 1994, páginas 214 e seguinte.
[9] Idem, página 216.
[10] João Moreira da Silva, em Direitos e Deveres dos Sujeitos da Relação Individual de Trabalho, Almedina, Coimbra, 1983, página 61. Na mesma linha, por exemplo, também Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 9.ª edição, Almedina, 1994, página 216.
[11] Maria do Rosário Palma Ramalho, no Tratado de Direito do Trabalho, 5.ª edição, Almedina, 2014, página 444 e seguinte.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-06-2013, no processo n.º 192/10.0TTVNF.P1S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-02-2001, no processo n.º 00S3317, publicado em http://www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-02-2001, no processo n.º 00S3317, publicado em http://www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-12-2001, no processo n.º 00S4017; e ainda nesta linha decidiram os acórdãos da Relação de Lisboa, de 06-03-2013, no processo n.º 265/06.4TTVNG.L1 e da Relação do Porto, de 05-12-2016, no processo n.º 3809/15.7T8BRG.P1, como aquele publicados em http://www.dgsi.pt.
[16] Sendo embora irrelevante para a apreciação e solução do caso sub iudicio, crê-se que a conduta das trabalhadoras autoras talvez melhor quadrasse num crime de burla que de abuso de confiança enunciado na sentença apelada, atendendo ao estatuído nos art.os 205.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1 do Código Penal.
[17] Há a questão do desconto ilegitimamente obtido pela trabalhadora Patrícia, é certo, mas não o reflexo negativo da conduta de ambas nos objectivos publicitários e de fidelização clientelar procurados pela apelante com a promoção descrita nos factos provados ix. a xiii. e lxii. (e nisto, salvo o devido respeito pela apelante, não pode de modo algum ser desconsiderado, pois que numa economia de mercado, como a nossa, é facto notório que as empresas fazem campanhas deste tipo e com isso investem dinheiro e outros recursos nele mensuráveis sabendo ‒ ou pelo menos perspectivando seriamente ‒ que em regra mais à frente irão colher benefícios generosos; como nos dizem, de resto, os factos provados lxii. e lxv.).
[18] Mas já não no caso tratado no citado acórdão da Relação de Évora, em que só estava em acusa um acto da trabalhadora e o valor envolvido (€ 50,15) era similar ao do caso sub iudice.


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