Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO GRILO AMARAL | ||
Descritores: | CONGELAMENTO DE FUNDOS OPERAÇÕES BANCÁRIAS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | (da inteira responsabilidade do relator) I. A aplicação da medida de congelamento, previsto no art.49º nº6 da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, depende da verificação de dois requisitos cumulativos: que esteja indiciado que os fundos, valores ou bens que previamente tenham sido alvo da medida de suspensão são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e que se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima. II. Assim, a medida do congelamento (freezing) é forçosamente distinta da figura da suspensão temporária da execução de operações, numa evolução gradativa de gravidade, umbilicalmente ligados aos requisitos mais exigentes para a sua aplicação, mas que reflexamente tem consequências, igualmente mais graves, ao nível da disponibilidade do objecto sobre que incide. III. Atento quer o teor do elemento literal do mecanismo previsto no nº5, quer da natureza, sentido e alcance das referidas medidas, não é admissível a autorização para a realização de operações pontuais nas contas bancárias ou outras relações de negócio, entretanto alvo da medida de congelamento. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO I.1 No âmbito do processo de inquérito nº 102/23.5TELSB, que corre termos pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal, em que é suspeito AA, com os demais sinais nos autos, foi proferido despacho, datado de 21/11/2024, no qual o Mmº Juiz a quo decidiu nos termos seguintes [transcrição]: “(…) Por despacho proferido em 08.04.2024, foi determinado o congelamento dos fundos depositados na conta bancária em questão (fls. 1327 a 1329), sendo que, conforme resulta do disposto no art.º 49.º, n.º 5, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, a realização de operações pontuais somente pode ocorrer na vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias e não também no caso do congelamento de fundos a que alude o n.º 6 daquele preceito legal. Assim, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido. Notifique. (…)” » I.2 Recurso da decisão Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso AA, com os fundamentos expressos nas respectivas motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) A. O presente recurso respeita à decisão que indeferiu o pedido de nova livre disponibilização de mais € 50.000,00 através de conta bancária por si titulada que foi objecto de decisão de congelamento. B. O Recorrente apresentou reside em Portugal, sendo a conta bancária congelada a única que tem em Portugal, e tem despesas da sua vida corrente que precisa de fazer face. C. O recorrente apresentou a documentação das despesas médicas, escolas das filhas, alimentares e outras a que precisa de fazer face, o Ministério Publico concordou com a libertação parcial de fundos, mas o Tribunal o quo recusou o pedido formulado. D. Ora, o Recorrente entende que decisão proferida viola o disposto no artigo 49º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto e é nula por violação dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, e da não discriminação em função do território de Origem, previstos nos artigos 2º, l3º, l8º e 32º da CRP. E. Decorridos 22 meses de inquérito, ou seja, esgotado o prazo legal de inquérito, está o Recorrente privado - há 22 meses - de ter acesso à sua conta bancária, sem nunca lhe ter sido dada a possibilidade ao Recorrente de ser ouvido. F. Volvidos praticamente dois anos sobre o início do processo, e da primeira suspensão da movimentação da conta, não tendo o Ministério Público concluído o inquérito, nem recolhido indícios suficientes que justifiquem a constituição do recorrente como arguido, determinou o congelamento de suas contas bancárias. G. A este respeito deveria haver um entendimento análogo ao da limitação do tempo da prisão preventiva, tendo o Ministério Público obrigação de finalizar a investigação num prazo vaiável, e se não o fizer, pelo menos tem de devolver a pessoa à sua liberdade. H. A liberdade individual não é apenas uma liberdade física, a privação da propriedade é igualmente um atentado contra a liberdade individual, e não pode subsistir indefinidamente, na verdade, privar um cidadão de ter livre acesso ao seu dinheiro é um atentado contra os seus direitos, liberdades e garantias, direitos que têm dignidade constitucional e cuja violação não se pode justificar com alusão a suspeitas abstratas, fundadas em preconceitos e não em factos. I. A verdade é que o congelamento da conta bancária é uma clara privação da liberdade do recorrente. J. A verdade é que, não obstante de ter previsão legal, a medida de congelamento das contas de um cidadão é claramente violadora do princípio da presunção de inocência, mais o é na interpretação feita pelo Tribunal a quo na decisão que ora se recorre. K. O Recorrente requereu disponibilização de € 50.000,00 para fazer face a despesas essenciais da sua vida corrente, tendo apresentado a respectiva documentação, e tendo o Ministério Público - entidade responsável pela investigação, concordado com tal disponibilização. L. O que revela que o MP reconhece que o uso parcial de tais fundos não colocava em risco a investigação, nem se afigurava como desproporcional. M. Assim, mal se entende a decisão proferida qual é um grave atentado aos direitos, liberdades e garantias do Recorrente, e não tem cobertura na lei. N. O despacho proferido refere que a libertação de fundos não está permitida pela lei porque "(...) conforme resulta do disposto no artigo 49 número 5 do lei 83 /2017 de 18 de 08 a realização de operações pontuais somente pode ocorrer no vigência do medida de suspensão temporária de operações bancárias e não também no coso de congelamento de fundos o que alude o número 6 daquele preceito legal" (sublinhado nosso). O. Ora, interpretação não tem cobertura na lei, uma vez que tal visão não resulta do dispositivo da norma. P. Como é patente, a lei não excluiu a possibilidade de ter acesso a uma disponibilização pontual de fundos no caso de congelamento das contas. Sendo que interpretar a norma nesse sentido seria claramente desproporcional e inconstitucional, isto porque, o princípio associado à possibilidade de se ter acesso a fundos é de forma a garantir de a quem seja aplicada tal medida não seja colocada em causa o seu sustento e da sua família. Q. A privação total de acesso a meios de pagamento das suas despesas é ilegal por violação do direito constitucional da igualdade. R. A Decisão do tribunal o quo parte do princípio de que a possibilidade de uso de fundos prevista ao abrigo do nº 5 do artigo 49º da Lei de Branqueamento de capitais, não é aplicável ao caso de congelamento de contas, feito ao abrigo do nº 6 da mesma norma. Interpretação qual a qual discordamos, uma vez que o nº 5 e o nº 6 do artigo 49.º não devem ser interpretados de forma dissociada, na verdade ambos tratam do uso de fundos congelados sob diferentes condições. S. Assim o uso parcial de fundos congelados nos termos do nº 6 deve ser analisado segundo os mesmos critérios que os do nº 5, considerando: T. Assim, sendo o disposto no artigo 49.º, nº 6 da Lei nº 83/2017 permite o mesmo uso de fundos que o nº 5, ampliando as possibilidades de aplicação desde que as autoridades competentes verifiquem sua conformidade com as normas aplicáveis e os princípios da proporcionalidade e da necessidade. Ambos os números têm como base o equilíbrio entre o interesse público de combate ao crime e a proteção dos direitos fundamentais das partes afetadas. U. Essa interpretação garante a aplicação justa e equilibrada da norma, respeitando os preceitos constitucionais e assegurando que o congelamento de bens não resulte em restrições arbitrárias ou desproporcionais. V. Sendo manifesta a desproporcionalidade em causa com a decisão proferida W. O tribunal ao impedir o acesso a fundos próprios com vista a conseguir pagar as suas necessidades da vida corrente, nomeadamente comida, médicos e despesas escolares das filhas menores, viola, igualmente, e o princípio da propriedade privada e à livre iniciativa privada e do princípio constitucional da proporcionalidade, constantes, respetivamente, dos artigos 62º nº1,61º nº1 e l8º nºs 2 e 3, ambos da CRP, devendo o mesmo ser revogado. X. Acresce que, estando decorrido o prazo legal de inquérito têm de caducar a medida de congelamento da conta aplicada. (…)” » Foi admitido o recurso nos termos dos despachos proferidos a 20/12/2024, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo. » I.3 Respostas ao recurso Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua procedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição] (…) 1. A decisão sob recurso é clara e fundamenta-se na interpretação objectiva da impossibilidade de apelo ao disposto no art.º 49.º, n.º 5 da Lei n.º 83/2017, de 18/08 quando a medida decretada é o congelamento, não padecendo de qualquer nulidade, muito menos por violação do princípio da não discriminação em função do território de origem invocado. 2. Na vigência das suspensões de operações bancárias foi, em 05-06-2023, permitida ao recorrente a disponibilidade do montante de 50.000,00€ da conta n.º ...), junto do ... por si titulada. 3. Em 08-04-2024 foi proferida decisão de congelamento das contas bancárias tituladas pelo recorrente, tendo este requerido em ...-...-2024 nova disponibilidade do montante de 50.000,00€ da conta n.º ... junto do ..., a fim de fazer face a despesas, nomeadamente, entre outras, despesas correntes, de habitação, educação e de saúde, que, não obstante a não oposição do MP foi indeferida por falta de fundamento legal. 4. Da leitura dos artigos 47.º, 48.º e 49.º, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, resulta uma clara intenção de prevenir que o sistema financeiro seja utilizado para efeitos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, inviabilizando, assim, a disseminação dos fundos detectados de proveniência duvidosa no sistema financeiro. 5. A suspensão temporária de execução de operações bancárias não é uma medida de coacção, nem de garantia patrimonial, mas sim um meio (de natureza cautelar) de prevenção e repressão da prática de determinados crimes, nomeadamente de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, de forma a evitar que o agente faça desaparecer os valores detectados. 6. O n.º 5, do artigo 49.º, da Lei n.º 83/2017, de 18.08 prevê a possibilidade de realizar operações pontuais na vigência de suspensão temporária, possibilidade que não resulta expressamente da Lei quando a medida decretada é o congelamento de fundos. 7. Na verdade, o art.º 49.º distingue claramente entre a suspensão temporária de operações e o congelamento de fundos. Desde logo, a primeira apenas exige suspeitas da origem ilícita dos fundos para o seu decretamento e a segunda, de maior envergadura, já exige indícios dessa origem. 8. Tal exigência legal compreende-se à luz dos momentos em que são decretadas. A suspensão temporária de operações é, por norma, decretada no âmbito da Prevenção de Branqueamento / Financiamento de Terrorismo, ou seja, na fase inicial de um inquérito, enquanto que o congelamento de fundos é, por norma, decretado numa fase mais adiantada do inquérito, ou seja, numa fase em que os indícios já se encontram mais consolidados. 9. Atendendo apenas ao teor literal do n.º 5, do artigo 49.º, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, parece resultar que a concretização de operação de débito pontual só poderá configurar-se em relação à medida de suspensão de operações bancárias, no entanto, entendemos que ambas medidas visam impedir, da mesma maneira, embora com base em pressupostos diferentes, qualquer movimentação para garantir que os fundos em questão permaneçam intactos durante a investigação criminal. Nesse aspecto, não se distinguem… 10. Será a ausência de menção expressa nesse normativo impeditiva de uma interpretação (extensiva e mais favorável à entidade sujeita a medida restritiva) que inclua a medida de congelamento de fundos? Entendemos que não… 11. Pelo contrário é nosso entendimento ser admissível uma interpretação extensiva da norma prevista no n.º 5, do artigo 49.º, da Lei n.º 83/2017, de 18.08 (configurando-se, até, como a que melhor se adequa ou compatibiliza com os elementos lógicos, racionais, teleológicos e sistemáticos), permitindo a sua aplicação à medida cautelar de congelamento 12. Na verdade e não obstante os crimes em investigação - fraude fiscal, violação de medidas restritivas e branqueamento -, o Ministério Público, atendendo à natureza das despesas em causa - habitação, educação e de saúde - e por entender adequado, necessário e proporcional, não se opôs à criação de um cativo no valor de 50.000,00€ tendo especialmente em conta a data do início do inquérito, as datas a partir das quais o requerente e a sua companheira ficaram impedidos de movimentar as respectivas contas domiciliadas no sistema financeiro português, que a disponibilização do montante de 50.000,00€ ao requerente já foi determinada há mais de um ano, a tipologia e montantes das despesas apresentadas… 13. O MP Promoveu, no entanto, que fossem estabelecidos limites à livre movimentação do cativo, nomeadamente, que o mesmo apenas pudesse ser movimentado a débito, unicamente para compras, pagamentos, transferências, em qualquer caso destinadas a contas/entidades terceiras e em território nacional (e como tal, rastreáveis quer quanto ao destinatário, quer quanto à natureza dos pagamentos). 14. Entendemos, pois, que ao indeferir a criação do cativo por entender ser inaplicável, in casu, o artigo 49.º, n.º 5, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, embora fazendo uma interpretação literal e objectiva da Lei e em consonância com a Jurisprudência, a decisão em crise acaba por antecipar um eventual resultado de confisco sobre os fundos existentes nas contas tituladas pelo Recorrente, sendo certo que, não existe ainda decisão definitiva quanto à ilicitude da proveniência dos fundos congelados. 15. Note-se que, nada na Lei impede, por exemplo, que uma medida de congelamento de fundos seja parcialmente derrogada a fim de manter apenas um saldo cativo, permitindo a disponibilidade dos demais fundos ao titular da conta. 16. Mesmo em situações de apreensão de saldo (medida ainda mais restritiva e que já se afasta da suspensão de operações bancárias e do congelamento de fundos), nada impede a que se proceda a uma redução da apreensão dos fundos apreendidos de forma a permitir a disponibilidade de fundos ao titular da conta. (…) » I.4 Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, aduzindo: (…) Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer de que o recurso interposto pelo Recorrente AA deve ser julgado procedente e, consequentemente, a Decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que autoriza a realização de operações pontuais até ao máximo de € 50.000,00 e unicamente para efeitos de compras, pagamentos ou transferências a entidades terceiras e em território nacional.” » I.5. Resposta Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer. » I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir. » II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem. » II.2- Apreciação do recurso Face às conclusões extraídas pelo recorrente, da motivação dos recursos interpostos, a questão decidenda a apreciar e decidir é a seguinte: - Da aplicabilidade do regime processual previsto no artigo 49.º, n.º 5, da Lei n.º 83/2027, de 18.08 à medida de congelamento, previsto no nº6 do mesmo artigo. Vejamos. II.3- Elementos processuais relevantes: a) Despacho recorrido (…) Fls. 1583: Veio AA requerer autorização para nova livre disposição de mais €50.000,00 (cinquenta mil euros) através de conta bancária por si titulada que inicialmente foi objecto de decisão de suspensão temporária de operações bancárias e, posteriormente, objecto de decisão de congelamento. O Ministério Público nada opôs ao requerido (fls. 1632 e 1633). Cumpre apreciar e decidir. Por despacho proferido em 08.04.2024, foi determinado o congelamento dos fundos depositados na conta bancária em questão (fls. 1327 a 1329), sendo que, conforme resulta do disposto no art.º 49.º, n.º 5, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, a realização de operações pontuais somente pode ocorrer na vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias e não também no caso do congelamento de fundos a que alude o n.º 6 daquele preceito legal. Assim, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido. Notifique. (…)” b) Mais resulta dos autos: Em 08/04/2024, foi proferido o seguinte despacho: Veio o Ministério Público, invocando o disposto no art.º 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, requerer que se substitua a medida de suspensão de operações pelo congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias identificadas a fls. 1322. Prevê o n.º 6 do art.º 49.º da citada Lei n.º 83/2017 que, a solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objecto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima. Investiga-se nestes autos a prática dos crimes de violação de medidas restritivas, p. e p. pelo art.º 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 97/2017, de 23.08, e de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 1, al. j), a 4, do Código Penal, surgindo ainda como ilícito antecedente deste o crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, ambos do RGIT. As suspeitas que conduziram à confirmação da suspensão temporária de operações bancárias têm vindo a ser corroboradas pela investigação em curso, mostrando-se neste momento indiciado que o saldo das contas bancárias acima referidas está relacionado com a prática dos referidos ilícitos criminais. Na ponderação que neste momento terá de ser feita entre, por um lado, a circunstância de os presentes autos se encontrarem sujeitos ao regime do segredo de justiça e, por outro lado, o dever de fundamentação dos actos decisórios (art.º 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), pode concluir-se, como o faz o Ministério Público na promoção de fls. 1314 a 1322, que: AA é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na ... e que mantém relação familiar com (…) BB, tendo filhos em comum; esta última controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes daquele – e, indirectamente, da ... –, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários; também as contas tituladas pela própria BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA; subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos para contas no estrangeiro – designadamente, como se verifica nos autos já ter acontecido, ... e ... (Revolut). Por seu turno, com a cessação da vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias, mantém-se o perigo de as quantias que se indicia terem sido obtidas ilicitamente, e que estão depositadas nas contas bancárias em causa, serem dispersas pela economia legítima. Pelo exposto, defere-se o requerido e, consequentemente: - Determina-se o congelamento do saldo das contas bancárias identificadas a fls. 1322; - Declara-se cessada, por inutilidade superveniente, a medida de suspensão temporária de operações bancárias relativa às referidas contas bancárias. Notifique e comunique às instituições bancárias. Foi interposto recurso de tal despacho, tendo sido proferido despacho de admissão do mesmo, nos seguintes termos: “Fls. 1369 a 1377: Porque legal, tempestivo, interposto por quem tem legitimidade e sendo a decisão recorrível, admito o recurso interposto por AA, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo – arts. 399.º, 400.º a contrario, 401.º, n.º 1, al. d), 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 2, al. c) [aplicado analogicamente], 408.º a contrario, 411.º, n.ºs 1 e 3, e 414.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal. Notifique nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, sendo ainda o recorrente do presente despacho. Instrua o apenso de recurso com certidão (frente e verso) de fls. 1314 a 1323, 1327 a 1329 e deste despacho, e ainda com o original do requerimento de interposição de recurso e da motivação de fls. 1369 a 1377 (deixando certidão nestes autos). Após a apresentação da resposta, junte o original da mesma ao apenso (deixando certidão nestes autos) e abra ali conclusão. Ou, caso não seja apresentada resposta, decorrido o prazo para a apresentação da mesma, abra conclusão no apenso.” » II.4- Da questão decidenda Como vimos, a questão colocada à apreciação deste Tribunal de recurso é da aplicabilidade do regime processual previsto no artigo 49º nº5, da Lei nº 83/2027, de 18 de Agosto à medida de congelamento, prevista no nº6 do mesmo artigo. Antes de mais, não se pode deixar de apontar que o recorrente invoca nas conclusões questões que nada têm a ver com o despacho recorrido ou são questões novas. Assim nos pontos E a J e X, invoca que nunca foi ouvido, que a medida de congelamento deveria ter um prazo, e logo invoca a figura da caducidade de tal medida, mas sem que tenha solicitado tal pretensão junto da 1ª instância, demonstrando inconformismo com algo que não foi decidido ou abordado no despacho recorrido. Insurge-se ainda contra a medida de congelamento que foi decretada, apontando-lhe vícios, mas mais uma vez, tal extravasa o âmbito do presente recurso. Conforme resulta dos autos, o arguido apresentou recurso relativamente a tal medida, e é nessa sede que deverá ser apreciada a sua regularidade. Sendo certo que tal recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo, a medida decretada produz efeitos, enquanto não houver decisão aquele recurso, o que desconhecemos. O âmbito do presente recurso está assim claramente delimitado à apreciação do despacho que indeferiu o pedido de libertação parcial de fundos do recorrente. * A Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro e das atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, bem como, a Diretiva 2016/2258/UE, do Conselho, de 6 de dezembro de 2016, que altera a Diretiva 2011/16/UE, no que respeita ao acesso às informações antibranqueamento de capitais por parte das autoridades fiscais – art.º 1.º. De harmonia com o preceituado nos termos do art.º 47.º do diploma em análise, temos: 1 - As entidades obrigadas abstêm-se de executar qualquer operação ou conjunto de operações, presentes ou futuras, que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo. 2 - A entidade obrigada procede de imediato à respetiva comunicação nos termos dos artigos 43.º e 44.º, informando adicionalmente o DCIAP e a Unidade de Informação Financeira que se absteve de executar uma operação ou conjunto de operações ao abrigo do número anterior. (…) 4 - A Unidade de Informação Financeira, no prazo de três dias úteis a contar do recebimento das comunicações previstas nos n.ºs 2 e 3, pronuncia-se sobre as mesmas, remetendo ao DCIAP a informação apurada. (…) Segundo o seu art.º 48.º, 1 - Nos quatro dias úteis seguintes à remessa da informação a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, o DCIAP pode determinar a suspensão temporária da execução das operações relativamente às quais foi ou deva ser exercido o dever de abstenção, notificando para o efeito a entidade obrigada. 2 - Fora dos casos previstos no número anterior, a suspensão temporária pode ainda ser decretada nas seguintes situações: a) Quando as entidades obrigadas não tenham dado cumprimento ao dever de comunicação de operações suspeitas previsto no artigo 43.º ou às obrigações de abstenção ou de informação previstas no artigo anterior, sendo os mesmos devidos; b) Com base em outras informações que sejam do conhecimento próprio do DCIAP, no âmbito das competências que exerça em matéria de prevenção das atividades criminosas de que provenham fundos ou outros bens, do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo; c) Sob proposta da Unidade de Informação Financeira com base na análise de comunicações de operações suspeitas preexistentes. 3 - A decisão de suspensão temporária: a) Pode abranger operações presentes ou futuras, incluindo as relativas à mesma conta ou a outras contas ou relações de negócio identificadas a partir de comunicação de operação suspeita ou de outra informação adicional que seja do conhecimento próprio do DCIAP, independentemente da titularidade daquelas contas ou relações de negócio; b) Deve identificar os elementos que são objeto da medida, especificando as pessoas e entidades abrangidas e, consoante os casos, os seguintes elementos: i. O tipo de operações ou de transações ocasionais; ii. As contas ou as outras relações de negócio; iii. As faculdades específicas e os canais de distribuição. Por seu turno, estabelece o art.º 49.º o seguinte: 1 - A decisão de suspensão temporária prevista no artigo anterior caduca se não for judicialmente confirmada, em sede de inquérito criminal, no prazo de dois dias úteis após a sua prolação. 2 - Compete ao juiz de instrução confirmar a suspensão temporária decretada por período não superior a três meses, renovável dentro do prazo do inquérito, bem como especificar os elementos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo anterior. 3 - Por solicitação do Ministério Público, a notificação das pessoas e entidades abrangidas, na decisão fundamentada do juiz de instrução que, pela primeira vez, confirme a suspensão temporária, pode ser diferida por um prazo máximo de 30 dias, caso entenda que tal notificação é suscetível de comprometer o resultado de diligências de investigação, a desenvolver no imediato. 4 - O disposto no número anterior não prejudica o direito de as pessoas e as entidades abrangidas pela decisão de, a todo o tempo e após serem notificadas da mesma ou das suas renovações, suscitarem a revisão e a alteração da medida, sendo as referidas notificações efetuadas para a morada da pessoa ou entidade indicada pela entidade obrigada, se outra não houver. 5 - Na vigência da medida de suspensão, as pessoas e entidades por ela abrangidas podem, através de requerimento fundamentado, solicitar autorização para realizarem uma operação pontual compreendida no âmbito da medida aplicada, a qual é decidida pelo juiz de instrução, ouvido o Ministério Público, e ponderados os interesses em causa. 6 - A solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima. 7 - Em tudo o que não se encontre especificamente previsto no presente artigo, é subsidiariamente aplicável o disposto na legislação processual penal. Dos citados normativos distinguem-se claramente dois mecanismos distintos, e que obedecem a pressupostos igualmente diversos. Vejamos: A medida de suspensão temporária da execução de operações a débito das contas bancárias é uma medida de natureza preventiva e repressiva, nomeadamente, de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, o que só pode ser alcançado de forma eficaz com medidas próprias, de forma a evitar que o agente faça desaparecer os valores detectados, nomeadamente, através de transferências internacionais facilmente exequíveis, em particular quando podem estar em causa agentes experientes em actividades económico-financeiras internacionais. Trata-se de um meio de prevenção da prática de crimes (determinados crimes, designadamente o de branqueamento de capitais), havendo uma clara intenção de prevenir que o sistema financeiro seja utilizado para efeitos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, desta forma inviabilizando a disseminação dos fundos detectados (de proveniência duvidosa) no referido sistema financeiro (ac. RL de 03/05/2022, proc. 261/20.9TELSB-E.L1-5). A medida de “abstenção de execução de movimentos, radica num juízo de necessidade de prevenção da prática de crime de branqueamento (neste sentido, José Damião da Cunha, Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Universidade Católica Editora. 2017, págs.77 a 85). Esta medida pode ser prorrogada por períodos não superiores a três meses (segundo o princípio rebus sic stantibus), tendo como limite de vigência o correspondente ao prazo do inquérito. O prazo máximo do inquérito não pode ser ultrapassado, sob pena de extinção da medida de suspensão temporária de operações financeiras, por caducidade, nos termos do artigo 49.º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 83/2017, de 18.08 (Ac.RL de 23/09/2020, proc.546/18.4TELSB-B. L1-3 e Ac.RP de 27/01/2021, proc.109/19.7TELSB-B.P1) Não se trata de uma medida de coacção, nem se exige para a sua aplicação requisitos tão apertados como para os casos da aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal. Na verdade, enquanto que para a aplicação de qualquer medida de coação, com excepção do T.I.R., a lei exige que se verifiquem indícios suficientes da prática de crime doloso e, ainda, a verificação de um dos perigos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal, para a aplicação da medida de suspensão temporária da execução de operações bancárias a lei basta-se com a existência de uma suspeita e para tal basta a existência de um indício (no singular), e sem qualquer graduação de intensidade (art.º , nº1, al e) do CPP). Surge depois a medida de congelamento, prevista no nº6 do art.49º do citado diploma, mecanismo híbrido, entre a apreensão e o arresto preventivo3 4. Conforme se refere no Ac. RP de 14/07/2020, proc. 109/19.7TELSB-A.P1), «A medida de suspensão temporária de movimentos e operações em conta bancária (...) inscreve- se no naipe de medidas com que se visa evitar prejuízos na prevenção ou na investigação da atividade criminosa, revestindo similitudes com as apreensões de objetos e produtos do crime (sem o ser) (...)». Por conseguinte, «(...) dos artigos 47º, n.º 1 e 48.º, n.º 1 resulta que o fundamento para a decisão de suspensão é o conhecimento ou a suspeita da operação bancária poder estar associada a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo». Ao invés, «O n. 6 do artigo 49º. exige a indiciação de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, apenas para a determinação do seu congelamento. No momento de determinação da ordem de suspensão, em que não existe nenhuma investigação, não pode ser exigido mais do que um juízo de suspeição, sob pena de destituir de qualquer sentido útil o instrumento jurídico ali criado. Numa fase ulterior, reunidos elementos probatórios que sustentem uma indiciação da proveniência dos fundos, poderá ser decidido o seu congelamento. Ou, obviamente, findo o inquérito ou o prazo deste sem que seja possível sustentar esta indiciação, terá de ser declarada cessada a ordem de suspensão (...). Transformando-se a suspeita em indiciação, será então o momento de ponderar o congelamento dos fundos». Vejamos detalhadamente o normativo que regula tal figura: “6 - A solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.” Estamos perante um mecanismo, cuja legitimidade para a sua petição está apenas consagrada ao Ministério Público, sendo de sua iniciativa o pedido para a aplicação de tal figura, enquanto titular do inquérito e do ius puniendi do Estado (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2003 de 04/02/2004). A competência para o seu decretamento está reservada ao juiz de instrução, enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias. Tem por objecto fundos, valores ou bens que previamente tenham sido alvo da medida de suspensão, não sendo possível o decretamento de tal medida, sem os passos cronológicos que determinam previamente a SOB (suspensão temporária de operação suspeita). Depende sempre da verificação de dois requisitos cumulativos: - Que esteja indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, afastando-se decisivamente da SOB, onde apenas é necessário a existência de suspeitas. Onde antes se bastava com circunstâncias anómalas, que poderiam apontar para a existência de operações ilícitas em curso, mas sem a sua comprovação ou confirmação, passa a ser necessário a existência de, pelo menos, um indício claro e inequívoco que aponte para tal. - Que se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima. E este segmento é decisivo para a questão que se coloca no presente recurso. Pretendeu o legislador, com a necessidade de preenchimento deste requisito, acautelar o risco de fundos, valores ou bens, provenientes ou relacionados com atividades criminosas, serem integrados no sistema financeiro legal, dificultando a sua deteção e recuperação, ou seja, impedir que recursos de origem indiciariamente ilícita fossem integrados no sistema financeiro formal, evitando a sua circulação e utilização na economia legal. Assim, a medida do congelamento (freezing)5 é forçosamente distinta da figura da suspensão, numa evolução gradativa de gravidade, umbilicalmente ligados aos requisitos mais exigentes para a sua aplicação, mas que reflexamente tem consequências, igualmente mais graves, ao nível da disponibilidade do objecto sobre que incide. Sustentar que o mecanismo previsto no nº5 do artigo em causa é igualmente aplicável no caso de decisão de congelamento sobre os bens que anteriormente estavam sujeitos apenas à medida de suspensão de temporária de execução de operações bancárias esbarra quer no elemento literal da norma quer na natureza, sentido e alcance de cada uma de tais figuras. Assim, desde logo, o modo como o artigo em causa se mostra estruturado não deixa quaisquer dúvidas quanto a tal, dado o nº5 do preceito em causa referir expressamente que o pedido para a realização de operações pontuais apenas pode ser efectuado “na vigência da medida de suspensão”. Se tal não fosse a intenção do legislador, não seria necessário tal expressa referência, ou pressuporia a referência aos dois mecanismos. Agora sustentar que se aplica aos dois, mas só refere um deles, é totalmente contrário aos princípios da hermenêutica jurídica. Esta necessidade de singularização aponta, de forma inequívoca, que a possibilidade de efectuar operações pontuais se mostra restrito às SOB. Para além disso, caso o legislador pretendesse que tal pedido fosse correspectivamente aplicável no caso da medida de congelamento, nunca a teria colocado no nº5, anteriormente a esta, que figura no nº6 do preceito, autonomizando esta claramente da possibilidade de ser formulado tal pedido. Mesmo que tal argumentação não bastasse, a natureza dos dois mecanismos imediatamente o incute. Frise-se o requisito – evitar que os bens sejam dispersos na economia legítima. Ao aceitar-se que fosse possível o pedido para a realização de operações pontuais era inequivocamente permitir que valores ou bens fossem introduzidos na economia legitima, sob o beneplácito dos tribunais, sabedores já que estavam perante valores que indiciariamente provinham ou estavam relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, raciocínio que não é aplicável às SOB, porquanto parte do princípio que se está perante meras suspeitas, e logo a compressão total dos direitos dos visados não é possível, aqui sim, sob pena de violação do principio da proporcionalidade e adequação. É nesta dialéctica entre meras suspeitas e compressão do direito de propriedade que radica este ambivalente mecanismo de permitir que sejam autorizadas operações pontuais, de modo a que os visados não vejam os seus direitos afectados de forma tão gravosa, tanto que tal medida poderá perdurar durante o tempo máximo do inquérito, sem a constituição de arguidos. No entanto, a partir do momento em que as suspeitas se cristalizam em indícios, que indicam estarmos perante valores provenientes da prática de atividades criminosas, e que esteja em causa o perigo de os mesmos serem dispersos na economia legítima, a natureza do mecanismo do congelamento impõe necessariamente a impossibilidade total e absoluta de movimentação das contas bancárias (ou outras relações de negócio), uma vez que a gravidade imanente das condutas posterga a possibilidade de movimentação. Invoca o recorrente que a decisão seria violadora do princípio da igualdade. Segundo o Acordão Tribunal Constitucional nº901/2024 de 11/12/2024, “São variadíssimos os acórdãos do Tribunal Constitucional que se ocuparam das exigências inerentes à consagração constitucional do princípio da igualdade, previsto de forma expressa no artigo 13.º da nossa Constituição, configurando jurisprudência absolutamente estabilizada que a nossa Lei Fundamental só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material, havendo que precisar o sentido da igualdade jurídica. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, no seguimento de inúmeras decisões anteriores no mesmo sentido, que: «[…] Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum). Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88: ‘A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º. Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.’” Não se vislumbra (nem o recorrente o sustenta) em que é que a decisão recorrida belisca o principio constitucional da igualdade, porquanto entendeu, e bem, que perante situações diversas, quais sejam, por um lado a suspensão de temporária de execução de operações bancárias e, por outro lado, o congelamento, os mesmos tinham requisitos diversos, face à natureza diversa dos pressupostos em que assenta o seu decretamento, e aos fins visados, pelo que obedeciam a regras distintas, sem que de daí resulte qualquer arbitrariedade. Invoca ainda o recorrente que a decisão de não ter acesso a fundos seria claramente desproporcional, e logo inconstitucional, dado que estaria a colocar em causa o sustento da família. O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência que aborda o direito de propriedade privada, reconhecendo-o como um direito fundamental consagrado no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa. No entanto, este direito, embora protegido constitucionalmente, não é absoluto e pode ser sujeito a restrições, desde que estas respeitem os princípios constitucionais, como o da proporcionalidade. Conforme refere o Ac.TC nº299/2020 de 18 de Setembro, “ Assim, considera-se que «não é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afigurem necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados» (Acórdão n.º 391/2002). De modo que o princípio da proporcionalidade tem aplicação quando a intervenção do legislador restringe o âmbito de proteção do direito fundamental de propriedade; estando em causa dimensão em que o direito fundamental é de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a admissibilidade constitucional da restrição tem que ser analisada à luz do regime previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP. A aplicabilidade do princípio da proporcionalidade mantém-se ainda que as restrições à propriedade sejam impostas pela solução de conflitos com outros direitos, valores ou princípios constitucionais (Acórdãos n.º 254/99 e 723/2004). A admissibilidade de limites resultantes do conflito com outros direitos constitucionalmente garantidos também tem que ser justificada pelos parâmetros da proporcionalidade. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, impõe-se que «tais limites reduzam o âmbito do direito ou direitos atingidos apenas na medida estritamente necessária à superação do conflito» (ob. cit., Vol. I, pág. 389). Como é sabido, o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: (i) princípio da adequação ou idoneidade, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (ii) princípio da exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornarem-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos (Acórdãos n.ºs 187/2001,491/2002 e 159/2007). Importa ainda ter presente que a aplicação do princípio da proporcionalidade deve basear-se num rigoroso critério de evidência. Ou seja, deve respeitar o espaço de livre conformação legislativa e sobrepor-se a ele, fundamentalmente, em caso de "erro manifesto de apreciação". Tal ressalta com nitidez do Acórdão n.º 187/2001, quando refere que «em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efetuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação - como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida -, ser resolvidas contra a posição do legislador. [...]; a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa». Conforme refere o Ac. TC nº 294/2008 de 29 de Maio, sobre a apreensão de saldos bancários, uma figura paredes meias com a do congelamento agora em discussão: “Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição revista, Coimbra, pág. 801; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628). Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redacção originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com a garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, II Série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na sua redacção originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objectos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático. No caso vertente, não se vê que a manutenção da apreensão de quantias para além dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei. Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. Damião da Cunha, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos. A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal. E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adoptar medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2º a 5º), a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 7º) – sobre estes aspectos, Damião da Cunha, ob. cit., págs. 7-10).” Como já vimos, a Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, foi publicada com o objetivo de estabelecer medidas para combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo em Portugal, reforçando a prevenção e o combate a crimes financeiros. Estando nós já perante um situação de congelamento, com o preenchimento dos pressupostos para o seu decretamento (distintos, como vimos, da suspensão de temporária de execução de operações bancárias), havendo já indícios que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, entre a privação total do uso dos rendimentos congelados imposta aos destinatários de tal medida e a possibilidade de a decisão de congelamento impedir ou interromper o processo trifásico de reciclagem (integração, ocultação e integração)6 dos bens ou vantagens patrimoniais resultantes de factos típicos e ilícitos das espécies previstas no art.º 368º A nº 1 do Código Penal, afigura-se proporcional a compressão do direito de propriedade do recorrente, face à indispensabilidade para o objectivo pretendido, qual seja o de evitar a dissipação dos bens. Trata-se de sacrificar um direito individual que, pese embora tenha dignidade constitucional, não é absoluto, à realização do interesse público na administração da justiça penal, de acordo com a priorização da importância dos valores em confronto e com o princípio da proporcionalidade, da adequação e da necessidade. Não existe nos autos qualquer elemento que suporte a invocada violação do princípio da não discriminação em função do território de Origem, nem o recorrente o densifica. Face ao exposto, nenhum dos princípios constitucionais invocados pelo recorrente se mostra violado. Igualmente os argumentos aduzidos não beliscam o acerto da decisão em causa pelo que o recurso interposto é improcedente. » III- DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs. Notifique nos termos legais. » Lisboa, 11 de Março de 2025 (O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia) Os Juízes Desembargadores, João Grilo Amaral Ana Lúcia Gordinho Pedro José Esteves de Brito _______________________________________________________ 1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. 2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. 3. A definição de congelamento surpreende-se na DIRETIVA 2014/42/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 3 de abril de 2014 sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, transposta para o ordenamento jurídico português, pela Lei 30/2017 de 30 de Maio, nos seguintes termos: «Congelamento», a proibição temporária de transferir, destruir, converter, alienar ou movimentar um bem ou de exercer temporariamente a guarda ou o controlo do mesmo, a qual se deverá ter em conta face ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nomeadamente o art.º 82.º, n.º 2 e o art.º 83.º, n.º 1 (Vd. João Narciso, A PERDA SEM CONDENAÇÃO À LUZ DO DIREITO COMPARADO, FDUC, 2022, pag.12) 4. “Referindo que o conceito de congelamento é diferente e mais amplo do que o conceito de apreensão, mas encontrando correspondência nas figuras portuguesas da apreensão (art.º 178.º do Cód.Processo Penal), do arresto preventivo (art.º228 do Cód.Processo Penal) e, em figura que será mais tarde elencada, do arresto do art.º 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, ANA ISABEL ROSA PAIS, “A decisão de apreensão de bens: reflexões à luz do novo Regulamento da União Europeia de 14 de Novembro de 2018”, in: RPCC, Ano 29 (2019), pp. 201-202. Identificando a apreensão com o conceito supranacional de congelamento, HÉLIO RIGOR RODRIGUES, “Quando dois mundos colidem: do (potencial) conflito entre o confisco das vantagens do crime e o processo de insolvência”, in: Estudos Projeto Ethos – Corrupção e Criminalidade Económico-Financeira, Lisboa: Procuradoria-Geral da República, 2018, p. 453. Perspetivando os arts. 178.º, 227.º e 228.º como meios processuais segundo a definição de congelamento da Diretiva, MARIA JOÃO ANTUNES, “Recuperación de activos. Garantías procesales del decomiso de bienes en el derecho portugués”, cit., p. 591, e JOÃO CONDE CORREIA, “Reflexos da diretiva 2014/42/EU (do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia) no Direito Português vigente”, cit., p. 93.” )Vd. João Narciso, A PERDA SEM CONDENAÇÃO À LUZ DO DIREITO COMPARADO, FDUC, 2022, pag.29, nota de rodapé 35) 5. Vd, O Ministério Público na prevenção do branqueamento e do financiamento do terrorismo, Carlos Casimiro Nunes, Revista do Ministério Público, 153, Março 2018, pag.130 6. Ac.RL de 30/10/2019, proc. 405/14.0TELSB.L1-3 |