Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
187/11.7TBCLD.L1-3
Relator: RUI GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
IRRECORRIBILIDADE
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2011
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO
Sumário: I – As decisões judiciais são impugnáveis por meio de recurso, cuja admissibilidade está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei, designadamente da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida.
II – A garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20.º, n.º 1 da CRP, não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.
III – Estabeleceu no art. 73.º, do R.G.C.O.C. de forma positiva, as decisões de que cabe recurso para a Relação e que correspondem a decisões finais.
IV – Da observação emparelhada dos arts. 64.º e 73.º, ambos do R.G.C.O.C., há que concluir que o aludido art. 73.º, n.º 1, quando se refere a sentença ou despacho judicial proferidos nos termos do art. 64.º tem em vista, apenas, decisões finais, e só as decisões finais que, realmente conheçam do mérito do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa.
V – A lei (cf. art. 63.º, n.º 2 e 73.º, ambos do R.G.C.O.C.) apenas admite recurso para o Tribunal da Relação da sentença e do despacho judicial que, na 1.ª instância, tiverem conhecido da impugnação da decisão da autoridade administrativa [verificado que seja uma das situações incluídas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art.º 73.º] e do despacho liminar que tiver rejeitado o recurso por ser extemporâneo ou por não respeitar exigências de forma.
VI – A decisão que o recorrente pretende impugnar não assume essa natureza, já que é um despacho interlocutório que não procede a qualquer rejeição liminar, e não se enquadra em qualquer das previsões das diversas alíneas do n.º 1 do art. 73.º do R.G.C.O.C.. Assim sendo, a decisão impugnada é insusceptível de recurso para o Tribunal da Relação.
VII – Para recorrer, não basta ter legitimidade; é necessário também possuir “interesse em agir” (art.º 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), sendo que este é o interesse em recorrer ao processo, na perspectiva de o direito do recorrente estar necessitado de tutela.
VIII – Os presentes autos não espelham um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária. Assim, mesmo que a decisão impugnada fosse recorrível, que não é, sempre o recorrente carece de interesse em agir.
Decisão Texto Parcial:DECISÃO SUMÁRIA
(Proferida ao abrigo do disposto no art.º 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, ambos do Código de Processo Penal)
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1. RELATÓRIO
1.1. Por despacho de 20JAN2011 proferido pela Senhora Juíza do 1.º Juízo do Tribunal judicial de Caldas da Rainha, que se mostra incorporado nos autos a fls. 39, e que consubstancia a decisão recorrida, foi na parte relevante afirmado:
[…]
Não consta [dos autos de recurso de contra-ordenação n.º187/11.7TBCLD] qualquer decisão administrativa, assim temos de concluir que não foi remetido o processo na sua totalidade como impõe o aludido artigo 62.º. [do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27OUT].
Pelo exposto, e porque os autos não forma remetidos na sua totalidade, não existe qualquer justificação para a remessa dos autos a Juízo, devendo os mesmos serem devolvidos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes
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1.2. Desavindo com o assim decidido, em 02FEV2011, recorre para este Tribunal o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:
“1. Por decisão proferida em 20.01.2011, a Meritíssima Juiz ordenou a devolução dos autos ao Ministério Publico, por ter considerado que os autos de contra-ordenação não contem a decisão da autoridade administrativa;
2. Tal despacho constitui uma violação ao preceituado no art. 63º, nº 1 do RGCO porquanto o mesmo contém, de forma taxativa, os motivos que admitem que o juiz rejeite o recurso (impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa);
3. Com efeito, nos termos do art. 63, n.º 1 do RGCO, apenas constituem causas de rejeição, a intempestividade e a falta de observância dos requisitos de forma a que se refere este artigo são indicadas no nº 3 do art. 59º, ou seja, quando o recurso não tenha sido apresentado na forma escrita e/ou não contenha alegações ou conclusões.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho de que se recorre, no sentido de ser admitido o recurso, por forma a ser proferida decisão final por sentença ou por simples despacho.
Vossas Excelências, porém, melhor decidirão, com o habitual elevado saber, assim se fazendo Justiça.”
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1.3. Na primeira instância não foi apresentada resposta ao aludido recurso.
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1.4. Por despacho de 07MAR2011 foi admitido o interposto recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito tempestivo, aí se afirmando, no que ora releva, que “(…) a decisão é recorrível (…) o recorrente [tem] legitimidade e interesse em agir (…)” (cf. fls. 48).
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DA QUESTÃO DE FACTO
[…] ocorrências relevantes […]
2.1.1. […]
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2.2. DA QUESTÃO DE DIREITO
QUESTÃO PRÉVIA DA IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO
Como é sabido a decisão por despacho judicial (simples despacho, é a expressão legal) a que se refere o art. 64.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (R.G.C.O.C.) (Instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27OUT, (actualizado pelos Decreto-Lei n.º 356/89 de 17OUT, Decreto-Lei n.º 244/95 de 14SET e Lei n.º 109/2001, de 24DEZ).) consubstancia uma das novidades do processo decisório do regime jurídico das contra-ordenações permitindo ao juiz em determinadas situações decidir da impugnação dispensando o formalismo processual subjacente à efectivação de uma audiência de discussão julgamento e evidentemente suprimindo os princípios da oralidade e da imediação que lhe estão subjacentes.
Razões de celeridade processual estão especialmente na origem de tal disposição que no entanto só é possível de materializar desde que assegurados requisitos imperativos, que para a questão prévia acima suscitada não cabe aqui analisar.
Na verdade, in casu ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 420.º do Código de Processo Penal cabe especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
É o que passamos a fazer.
É consabido que as decisões judiciais são impugnáveis por meio de recurso, cuja admissibilidade está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei, designadamente da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida ( REGO, Carlos Lopes do, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 83.).
Na verdade, a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos [Cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 496/96, de 20MAR1996 (José de Sousa Brito), in DR, II Série, de 17JUL1996, pp. 9761 e ss.]. Quer isto dizer que o legislador não pode é abolir in toto o sistema de recursos, ou restringir excessivamente o direito de recorrer em termos de se poder tirar a conclusão que os recursos foram realmente suprimidos, mas pode impor limites razoáveis à sua admissibilidade.
No referido R.G.C.O.C., o legislador entendeu atribuir competência para o processamento das contra-ordenações e aplicação de coimas e sanções acessórias às competentes autoridades administrativas (cf. arts. 33.º e 34.º, ambos do R.G.C.O.C.), mas submeteu a sua decisão a impugnação judicial (arts. 55.º e 59.º, ambos do R.G.C.O.C.). Além disso, estabeleceu no art. 73.º, do R.G.C.O.C. de forma positiva, as decisões de que cabe recurso para a Relação e que correspondem a decisões finais.
Sucede que a decisão que o recorrente pretende impugnar não assume essa natureza, já que é um despacho interlocutório, e não se enquadra em qualquer das previsões das diversas alíneas do n.º 1 do art. 73.º do R.G.C.O.C..
Acresce que a mera discordância do recorrente contra o despacho datado de 20JAN2011, vazado nos autos a fls. 39, proferido pela Sr.ª Juíza do Tribunal a quo onde se afirma “ (…) não constar qualquer decisão da autoridade administrativa”, isto apesar de a decisão condenatória se mostrar transcrita a fls. 30, e de a fls. 1 e 1 verso, aquando da remessa do processo de contra-ordenação ao Ministério Público pelo “Instituto de Infra-estruturas Rodoviárias IP” se afirmar claramente:

O processo administrativo em causa nos presentes autos [n.º Processo de contra-ordenação n.º 100126507], por razões que se prendem essencialmente com o volume de informação fornecida pelas concessionárias e com a necessidade de celeridade no respectivo tratamento, encontra-se desmaterializado, existindo apenas em suporte informático. [sublinhado nosso]
[…] requere-se […] que se digne considerar cumprido o disposto no artigo 62.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27OUT, sem embargo de, caso V.Exa. o julgue útil ou necessário ficamos à disposição para o fornecimento de qualquer elemento adicional.” [sublinhado nosso].

Não é suficiente para fazer desencadear e garantir o acesso ao recurso, ao abrigo da válvula de segurança ínsita no n.º 2 do art.º 73.º do mencionado diploma legal, sendo certo que o recorrente nem sequer nela se estriba.
Por outro lado, há que realçar que a garantia plena de recurso integra as garantias de defesa circunstanciadamente previstas para o processo criminal e não para o processo contra-ordenacional, cujas diferenças quanto àquele agasalham tratamento distinto. Daí que a não admissibilidade do recurso interposto pelo mesmo, que respeita tão-somente a despacho interlocutório, não constitua in casu violação dos arts. 20.º, n.º 4 e 32.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
A tudo isto acresce o seguinte:
Da observação emparelhada dos arts. 64.º e 73.º, ambos do R.G.C.O.C., dúvidas não existem de que o art. 73.º, n.º 1 quando se refere a sentença ou despacho judicial proferidos nos termos do art. 64.º tem em vista, apenas, decisões finais, e só as decisões finais que, realmente conheçam do mérito do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa (Cf. neste sentido Ac. da Rel. do Porto de 30SET1998, B.M.J. 479, p.710. ).
Na verdade, se bem vemos, a lei (cf. art. 63.º, n.º 2 e 73.º, ambos do R.G.C.O.C.) apenas admite recurso para o Tribunal da Relação da sentença e do despacho judicial que, na 1.ª instância, tiverem conhecido da impugnação da decisão da autoridade administrativa [verificado que seja uma das situações incluídas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art.º 73.º] e do despacho liminar que tiver rejeitado o recurso por ser extemporâneo ou por não respeitar exigências de forma.
In casu basta uma leitura integral e atenta da decisão impugnada para facilmente se enxergar que a mesma não espelha qualquer despacho liminar de rejeição.
Na verdade, a decisão posta em crise pelo Ministério Público não decide a final da impugnação nem plasma qualquer rejeição liminar.
Com efeito, como acima deixámos expresso, no R.G.C.O.C., o legislador entendeu atribuir competência para o processamento das contra-ordenações e aplicação de coimas e sanções acessórias às competentes autoridades administrativas (arts. 33.º e 34.º), mas submeteu a sua decisão a impugnação judicial (arts. 55.º e 59.º). Além disso, estabeleceu no art. 73.º, de forma positiva, as decisões de que cabe recurso para a Relação e que correspondem a decisões finais.
Acontece que a decisão que o recorrente impugna não assume essa natureza, já que é um despacho liminar interlocutório que não procede a qualquer rejeição liminar, e não se enquadra em qualquer das previsões das diversas alíneas do n.º 1 do art. 73.º do R.G.C.O.C..
Assim sendo, como é, a decisão impugnada é insusceptível de recurso para este Tribunal.
A decisão de admissão do recurso datada de 07MAR2011, vazada nos autos a fls. 48, não vincula este Tribunal (cf. n.º 3 do art.º 414.º do Código de Processo Penal).
Nestes termos, o presente recurso tem que ser rejeitado pois a decisão impugnada não é decisão final que tenha conhecido do mérito do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa, nem patenteia que a impugnação judicial tenha sido rejeitada.
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Noutra linha de pensamento mesmo que a decisão impugnada fosse recorrível, o que como vimos na realidade não é, sempre diremos, em síntese:
Para recorrer, não basta ter legitimidade; é necessário também possuir “interesse em agir” (art.º 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), sendo que este é o interesse em recorrer ao processo, na perspectiva de o direito do recorrente estar necessitado de tutela.
Ora in casu, independentemente da análise da bondade do despacho impugnado, bastaria atentar no vertido a fls. 1 e 1 verso, aditando ao expediente os elementos acusados em falta e que a autoridade administrativa se prontificou a adicionar e remeter os autos de novo a Juízo para facilmente se vislumbrar que o direito do recorrente Ministério Público não carece de tutela.
Com efeito, quanto a este quid, salvo o devido respeito por opinião em contrário, os presentes autos não espelham a nosso ver um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária (Cf. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 2007, Editora Rei dos Livros, Lisboa 6.ª ed. pp. 58 e 59.). Isto na óptica dada pelo recurso e na presença dos efeitos desejados com o mesmo em cotejo com o sistema legal que regula a área da pretensão formulada. Assim, também o recorrente in casu não é detentor de interesse em agir no recurso que interpôs. Daí que, mesmo que a decisão impugnada fosse recorrível não poderia dela recorrer (art. 401.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
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3. DISPOSITIVO
& Em face de tudo o que dito fica, ao abrigo do disposto nos arts. 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e 2, todos do Código de Processo Penal, este Tribunal decide rejeitar o recurso interposto em 02FEV2011, pelo recorrente Ministério Público através do requerimento de fls. 42-46, por a decisão impugnada não ser recorrível.
& Sem tributação e legal sanção pela rejeição, por delas estar isento o recorrente (cf. art. 420.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
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Lisboa, 23MAR2011 (processado e revisto pelo signatário)

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(Rui Gonçalves)
Decisão Texto Integral: