Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8648/18.0T8SNT.1.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil):
Conforme artigos 904.º, n.º 4, e 897.º, n.º 2, do CPCivil, na revisão da medida de acompanhamento, a audição do beneficiário constitui uma diligência processual indispensável, salvo se a mesma se mostrar impossível ou for gravemente lesiva dos interesses do beneficiário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.
RELATÓRIO.
Em 07.05.2018 o Ministério Público pediu que fosse decretada a interdição por anomalia psíquica de “A”.
Em 24.09.2019 procedeu-se à audição de “A”, tendo ficado consignado no respetivo «Auto de Audição», além do mais, que:
a mesma «se desloca por si mesma, tendo cumprimentado os presentes», «[a]presenta um discurso arrastado, mas claro e coerente nas respostas às questões colocadas, não denotando confusão de pensamento» e «[m]ostra-se tranquila e cordata, dirigindo e fixando o olhar, capaz de manter o diálogo».
Em 11.10.2019 foi proferida sentença, entretanto transitada em julgado, cuja parte dispositiva, no que ora releva, tem o seguinte teor:
«(…) aplico em benefício de “A”:
a) A medida de acompanhamento de representação geral, com responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos (i.e. decisões de saúde), sem constituição de Conselho de Família;
b) Determino a limitação do direito pessoal de testar e de votar.
(…) Nomeia-se como acompanhante a Superiora da Casa de Saúde (…) onde a beneficiária reside.
(…)
Revisão periódica
O tribunal revê as medidas de acompanhamento de cinco em cinco anos (artigo 155.º, do Código Civil)».
Em 13.09.2024, no âmbito da revisão oficiosa da medida de acompanhamento decretada, o Ministério Público requereu, além do mais, a «audição pessoal da beneficiária», diligência que voltou a requerer em 28.10.2024.
Com data de «25/09/2024», consta «Relatório Médico» subscrito por «Médico Psiquiatra» que
«(…) declara, para os devidos efeitos, que “A” se encontra internada na Casa de Saúde (…), encontrando-se em regime de longo internamento.
Apresenta esquizofrenia, a que corresponde o código F20 da ICD10.
Apresenta deterioração funcional e cognitiva.
Desde 2019 mantém o quadro descrito na douta sentença de interdição/inabilitação.
Todavia, desenvolveu como intercorrência síndrome de apneia obstrutiva do sono, tendo tido necessidade de transição para uma enfermaria, com mais cuidados de enfermagem.
A afecção de que padece é crónica e irreversível.
Por força dessa afecção mantém, salvo melhor opinião, incapacidade de, por si, de forma livre, exercer os seus direitos fundamentais e os seus deveres (…)». 
Em decisão de 06.11.2024, o Juízo Local Cível de Sintra dispensou a audição da beneficiária e manteve a aplicação das medidas de acompanhamento da mesma, sendo quanto àquela dispensa referiu basicamente que:
«(…) o Tribunal considera ter todos os elementos necessários à prolação de uma decisão, constando informação clínica nos autos que permite, com segurança, ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a manter/alterar e não havendo reporte doutra natureza (social ou familiar) que determine necessidade de maiores averiguações (tendo o Tribunal concedido o contraditório para que, caso existisse algo a reportar, o fosse feito)».
Inconformado com aquela decisão, o Ministério Público dela recorreu, apresentando as seguintes conclusões:
«1. Por despacho proferido a 06.11.2024 a Mm.ª Juiz do tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audição da acompanhada no presente apenso de revisão da medida de acompanhamento, considerando “face a todos os elementos probatórios juntos” que “se revelaria diligência inútil”, proferindo, subsequentemente, a respetiva sentença final.
2. O presente apenso iniciou-se tendo em vista a revisão das medidas de acompanhamento que foram aplicadas à acompanhada “A”, por sentença proferida nos autos principais a 11.10.2019, no âmbito da qual se decidiu sujeitá-la à medida de representação geral sem constituição de Conselho de Família, sendo ainda limitados os seus direitos pessoais de testar e votar.
3. Analisados os autos temos que foi aqui, em primeiro despacho proferido, determinada a notificação do acompanhante para vir aos autos informar do estado de saúde atual da beneficiária juntando documentação clínica que atestasse os factos alegados, devendo ainda pronunciar-se sobre se as medidas de acompanhamento aplicadas pela sentença de 11.10.2019 se manteriam pertinentes e necessárias ou se consideraria que existia necessidade de alteração.
4. Foi junto pela acompanhante relatório médico da beneficiária, sendo que a ilustre defensora nomeada nada disse sobre a necessidade de audição da acompanhada e realização de nova perícia médico-legal.
5. Antes de tal despacho o Ministério Público já se havia pronunciado sobre a necessidade de ser designada data para audição pessoal da beneficiária, o que reiterou na sua promoção datada de 28.10.2024.
6. Acontece que foi decidida a dispensa da audição da beneficiária, com a qual não podemos concordar.
7. Conforme amplamente defendido na nossa jurisprudência nos processos de maior acompanhado, não pode dispensar-se a audição do beneficiário, exceto se estiver cabalmente demonstrada situação que impeça, ou torne gravemente inconveniente, a sua audição.
8. Consideramos, que tal entendimento vale não só para o processo principal de acompanhamento como também para os apensos de revisão das medidas de acompanhamento em vigor.
9. A este propósito, e em conformidade com tal entendimento, veja-se o citado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, proc. n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa:
“«O pedido de cessação ou modificação das medidas deve ser formulado por apenso, aplicando-se a tramitação prevista nos art.ºs 892º a 900º, com as necessárias adaptações. Esta remissão implica a obrigatoriedade da audição, pessoal e direta, do maior acompanhado (cf. art.ºs 897º, nº 2 e 898º).
A tangibilidade do caso julgado justifica-se em nome da tutela da dignidade e da autonomia do beneficiário.»
Também Margaria Paz, “O Ministério Público e o maior acompanhado”, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, e-book do CEJ 2019, pp. 131-132, sinaliza que:
«Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal.
Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, nomeadamente:
-Escolha do acompanhante (como resulta diretamente do artigo 143.º, n.º 1, do CC);
- Decisão de acompanhamento (como resulta diretamente do artigo 898.º, n.º 1, do CPC);
- Revisão periódica do acompanhamento (artigo 155.º do CC);
- Modificação ou cessação do acompanhamento (artigo 904.º do CPC);
- Decretamento de medidas provisórias (artigo 891.º, n.º 2, do CPC);
- Autorização para a prática de atos, entendida em sentido amplo (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro).»”
10. Como se sabe, é à luz dos princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência, que emergem da Convenção das Nações Unidas, assinada por Portugal a 30 de março de 2007, no qual assenta o regime do maior acompanhado atualmente em vigor, que se deve interpretar este regime, entre eles e ao que aqui maioritariamente interessa: a pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica, sem esquecer ainda que a pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico.
11. No presente caso, está em causa a revisão da medida de acompanhamento, já antes aplicada no processo principal de acompanhamento.
12. Ora, por revisão entenda-se o ato ou efeito de rever, um exame minucioso ou um novo exame, nova leitura de uma determinada situação.
13. Não podemos ignorar que se o legislador impôs a obrigação de revisão periódica da situação do maior acompanhado (cfr. art.º 155.º do Código Civil) foi para se assegurar se as medidas de apoio antes aplicadas continuam a ser absolutamente necessárias e proporcionais à sua (no momento da revisão) situação clinica.
14. Para tal terá que ser ouvido antes da decisão de revisão, independentemente se esta for (ou não) de manutenção das anteriormente aplicadas (conclusão, aliás, que o julgador apenas pode tirar depois de proceder à sua audição) e mesmo que já tenha sido ouvido no processo principal.
15. Não nos parece de todo que o legislador, nas situações de revisão das medidas de acompanhamento, tenha atribuído ao juiz o poder de decidir se se afigura ou não necessária a realização da audição do acompanhado, quando refere no art.º 904.º, n.º 3 do CPC, “que o regime se aplica na medida do necessário ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento”.
16. Este preceito estipula que “Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892.º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal”.
17. Ou seja, no presente caso, onde se irá rever a medida de acompanhamento aplicada (com a sua manutenção, alteração ou revogação), dever-se-á seguir o disposto nos arts. 892.º e seguintes do diploma legal referenciado. Nos preceitos para os quais se remete está o artigo 897° do CPC, que, sob a epígrafe “poderes instrutórios” dispõe:
“1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por eles requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 – Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre” (n/sublinhado)
18. A expressão usada no art.º 904.º/3 do CPC, “aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário” não nos parece que permita afastar a obrigatoriedade de audição pessoal e direta do beneficiário, que é imposta pelo art.º 897.º/2 do mesmo diploma (e para o qual se remete).
19. Esta necessidade de contacto direto entre o juiz e o beneficiário deve manter-se nas situações de revisão da medida de acompanhamento, a fim de se averiguar/analisar novamente a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, no sentido da sua manutenção/alteração/revogação.
20. Nos apensos de revisão da medida de acompanhamento não podemos deixar de aplicar e observar os citados princípios fundamentais, pois que também aqui se irá novamente tomar uma decisão sobre a capacidade jurídica do beneficiário.
21. Independentemente das conclusões que se extraem do resultado do exame pericial a que a aqui beneficiária foi sujeita nos autos principais e que no presente apenso tenha sido junto atestado médico atualizado sobre a sua atual situação clínica onde consta que “desde 2019, mantém o quadro descrito na douta sentença de interdição/ inabilitação”, entendemos que a acompanhada continua a manter o direito ter contacto direto com o juiz, contribuindo de modo efetivo para a decisão do caso que lhe diz respeito, em completo respeito ao preceituado no disposto nos arts. 139.º/1 do C.C. e nos arts. 904º, nº3, 897º, nº 2 e 898º estes do CPC.
22. Contrariamente ao entendimento da Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, o Ministério Público, aquando a sua promoção de 28.10.2024 , referiu que “a beneficiária foi sujeita a exame pericial e quando ouvida apresentou um discurso arrastado, mas claro e coerente nas respostas às questões colocadas, não denotando confusão de pensamento” e porque era a esta possível estabelecer diálogo, logo expressar a sua vontade, haveria que ouvi-la pessoal e diretamente, a fim de melhor se averiguar a sua atual situação (capacidade) e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a manter/alterar. Os “elementos” que levaram o Ministério Público a promover a audição pessoal e direta da beneficiária advêm da obrigatoriedade imposta por lei na realização de tal diligência.
23. Não nos podemos, pois, esquecer das consequências e dos efeitos possíveis da manutenção da acompanhada ao regime do acompanhamento, onde estão em causa fortes limitações à capacidade de exercício dos seus direitos, configurando também aqui a sua audição uma diligência obrigatória, não podendo ser dispensada à luz de critérios de oportunidade, utilidade ou outros.
24. Prescindir da audição do beneficiário nos apensos de revisão, que se regem pelos mesmos princípios do processo (principal) de acompanhamento, implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o direito da beneficiária a ser consultada sobre a decisão que irá incidir (novamente) sobre a sua capacidade jurídica, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado, como seja, o direito a ser ouvido sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica, mas também o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico e cuja relevância é nimiamente enfatizada na já mencionada Convenção.
25. Resumindo: atentas as finalidades a que se destina também a situação de revisão da medida de acompanhamento - aferir novamente a situação do beneficiário, determinando/mantendo/revogando as medidas de acompanhamento aplicadas (as quais terão que ser as mais adequadas) e paralelamente, assegurar a possibilidade do beneficiário manifestar a sua vontade (se necessário apenas da presença do julgador), continua a parecer-nos vital a realização da sua audição no contexto da revisão em apreço, não se podendo concordar e compreender que tal se revela diligência inútil, dispensando-a.
26. Ademais se realce que a entender-se que tal audição só pode ser dispensada em situações extremas, como a do acompanhado não ter condições médicas para ser ouvido, mais se diga que nada consta no relatório de perícia médico legal, a que “A” foi sujeita nos autos principais, nem no relatório médico aqui junto, que nos permita ainda concluir que esta se encontra numa situação que impeça ou torne gravemente inconveniente a sua audição.
27. Assim sendo, em conformidade com todo o dito, cremos, pois, que o despacho da Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, que dispensou a realização da audição pessoal e direta da beneficiária, proferindo de imediato sentença final, violou a norma legal prevista no art.º 897°, n° 2 do CPC, aqui aplicável por força da remissão operada pelo art.º 904º, nº 3 deste diploma, o que por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art.º 195º, nº 1, 2ª parte, do CPC e que tem como consequência a anulação do processado subsequente, maxime da sentença final, depois proferida, nos termos do nº 2 do art.º 195º do CPC.
28. Pelo exposto deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão que dispensou a realização da audição da beneficiária, anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de “A”, nos termos do artigo 139°, n°1 do Código Civil e nos artigos 904º, nº3, 897º, nº 2 e 898º estes do Código do Processo Civil.
Em conformidade, propugna-se pela procedência do presente Recurso, assim decidindo Vossas Excelências farão a costumada Justiça!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 663.º, n.º 2, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso a dilucidar, está em causa tão-só apreciar e decidir da dispensa de audição da beneficiária na fase de revisão da medida de acompanhamento e, não sendo caso disso, dos efeitos decorrentes daquela omissão.
Assim.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório do presente acórdão, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. A Lei n.º 49/2018, de 14.08, instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, substituindo os anteriores institutos da interdição e inabilitação por um regime único de tratamento de situações caracterizadas pela menor capacidade de exercício por parte de maiores, justificativas de um acompanhamento personalizado e humanista por parte de terceiro.
Como refere António Pinto Monteiro, em O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, CEJ, Coleção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei n.º 49/2018, página 38, «[t]emos hoje (…), em vez do modelo passado rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, (…) um regime que segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação», sendo que «o sucesso, na prática deste novo modelo vai depender, em grande medida dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, na definição – e revisão – das medidas adequadas a cada deficiente, a cada situação!».
2. O novo regime do maior acompanhado procura concretizar no direito interno a denominada  Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30.03.2007, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 07.05, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30.07, bem como o respetivo Protocolo Adicional, adotado pelas Nações Unidas, igualmente em 30.03.2007, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 57/2009, de 07.05, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30.07.
Conforme artigo 3.º da referida Convenção, com a epígrafe «Princípios Gerais», «[o]s princípios da presente Convenção são: a) O respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas; b) Não discriminação; c) Participação e inclusão plena e efectiva na sociedade; d) O respeito pela diferença e aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e humanidade; e) Igualdade de oportunidade; f) Acessibilidade; g) Igualdade entre homens e mulheres; h) Respeito pelas capacidades de desenvolvimento das crianças com deficiência e respeito pelo direito das crianças com deficiência a preservarem as suas identidades».
3. No direito ordinário o regime jurídico do maior acompanhado encontra-se densificado basicamente nos artigos 138.º a 156.º do CCivil e 891.º a 905.º do CPCivil.
Segundo o disposto no artigo 139.º, n.º 1, do CCivil, «[o] acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas».
Nos termos do artigo 897.º, n.º 2, do CPCivil, «(…) o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontra».
De acordo com o disposto no artigo 904.º, n.º 3, do CPCivil, «[a]o termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892.º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal».
Do confronto de tais preceitos legais decorre que a audição do beneficiário constitui uma diligência processual indispensável, quer antes da decisão judicial quanto ao acompanhamento, quer na fase de alteração/revisão da medida de acompanhamento anteriormente decretada, o que bem se compreende no contexto da apontada reforma decorrente da Lei n.º 49/2018, pois pretende-se conferir ao Tribunal a imediação necessária para avaliar a situação do beneficiário e a eventual vontade deste em ordem a determinar no caso a ou as medidas adequadas ao mesmo.
Aceita-se, contudo, que a audição do beneficiário seja dispensada em situações absolutamente excecionais em que tal diligência se mostre impossível ou gravemente lesiva dos interesses do beneficiário, conforme deveres de gestão processual conferidos ao Tribunal, bem como os princípios da adequação formal e da limitação dos atos, na consideração designadamente dos artigos 6.º, 547.º e 131.º do CPCivil.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, em O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, CEJ, Coleção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, páginas 51 e 54, «[o] regime do processo de acompanhamento de maiores comporta igualmente uma prova atípica: a audição pessoal e directa do beneficiário (art.º 897.º, n.º 1, e 898.º). Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art.º 139.º, n.º 1, CC; art.º 897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição»
«(…) À revisão e ao levantamento da medida de acompanhamento aplica-se, com as necessárias adaptações, o procedimento respeitante ao decretamento da medida (art.º 904.º, n.º 3); isto significa, além do mais, que é obrigatória a audição pessoal e directa do maior acompanhado (cf. art.º 897.º, n.º 2, e 898.º)».
Igualmente em O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, CEJ, Coleção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, O Ministério Público e o Novo Regime do Maior Acompanhado, página 131, Margarida Paz refere que «[a] audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]».
«Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal».
«Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, nomeadamente: (…) Revisão periódica do acompanhamento (artigo 155.º do CC)» e «Modificação ou cessação do acompanhamento (artigo 904.º do CPC) (…)».
No sentido da obrigatoriedade da audição do beneficiário na fase de revisão da medida de acompanhamento anteriormente decretada, Ana Luísa Santos Pinto, O Regime Processual do Acompanhamento de Maior, in Julgar, n.º 41, edição de maio-agosto de 2020, página 171, refere que «[o] acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, pelo que na revisão periódica do acompanhamento essa diligência deve ser realizada».
Também com o mesmo entendimento, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, página 345, em anotação ao artigo 904.º, referem que a remissão constante do respetivo n.º 3 «implica a obrigatoriedade da audição, pessoal e direta, do maior acompanhado (cf. arts. 897º, nº 2 e 898º). A tangibilidade do caso julgado justifica-se em nome da tutela da dignidade e da autonomia do beneficiário».
A jurisprudência das Relações tem-se igualmente pronunciado no sentido da obrigatoriedade da audição do beneficiário na fase de revisão da medida de acompanhamento anteriormente decretada, conforme acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, processo n.º 1354/20.8T8VFX-A.L1-7, e de 19.12.2024, processo n.º 7192/19.3T8SNT.1.L1-7, e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.10.2024, processo n.º 62/14.3TBMLG-A.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt/.
4. Na situação vertente.
O Tribunal recorrido dispensou a audição da beneficiária por entender que a mesma não era obrigatória no âmbito da revisão oficiosa da medida de acompanhamento decretada e os autos disporem dos elementos necessário à prolação da respetiva decisão.
Discorda-se, contudo de tal entendimento.
Com efeito, conforme resulta do exposto, a audição do beneficiário constitui uma diligência processual necessária na revisão da medida de acompanhamento, salvo se a mesma se mostrar impossível ou gravemente lesiva dos interesses do beneficiário, circunstancialismo de exceção que não decorre dos autos.
Na verdade, in casu, na fase de decretamento da medida de acompanhamento a beneficiária era capaz de manter um diálogo e, conforme relatório médico de 25.09.2024, tal estado manteve entretanto.
Assim sendo, por violação do disposto nos referidos artigos 904.º, n.º 3, e  897.º, n.º 2, do CPCivil, quer se entenda que a situação enferma de nulidade por preterição de formalidade legal suscetível de influir na decisão da causa, conforme artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPCivil, quer se sufrague entendimento de que a decisão recorrida  constitui uma decisão-surpresa, padecendo, por isso, de nulidade, conforme artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fini, do CPCivil, cumpre revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguirem seus termos com a audição da Beneficiária.
V.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que os autos prossigam seus termos no Tribunal recorrido com a audição do Beneficiária.
Sem custas – artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 16 de fevereiro de 2025
Paulo Fernandes da Silva
Rute Sobral
António Moreira