Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CAPACETE | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO RESOLUÇÃO TRESPASSE OBJECTO COMUNICAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/29/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Trespasse é a transmissão definitiva, por ato entre vivos, onerosa ou gratuita, de um estabelecimento comercial. 2. Num concreto negócio de trespasse as partes gozam de liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos do estabelecimento, não podendo, no entanto, essa exclusão abranger os bens necessários ou essenciais para identificar ou exprimir a empresa objeto do negócio. 3. Desrespeitando-se o âmbito mínimo (necessário) ou essencial de entrega, constituído pelos elementos necessários ou suficientes para a transmissão de um concreto estabelecimento, impossibilitado fica o trespasse, pelo que objeto do negócio translativo serão então singulares bens, ou conjuntos de bens de um estabelecimento, mas não o próprio estabelecimento. 4. Na comunicação do trespasse ao senhorio é necessária a remessa da cópia de um exemplar do contrato de trespasse, sob pena de ineficácia em relação ao senhorio. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I - RELATÓRIO: G, A e C, instauraram a presente ação declarativa contra R, [ ….LDA.] , alegando, em suma, que são donos da loja destinada a comércio, sita no vão de escada do prédio urbano sito __, em Lisboa[1]. Em 13 de maio de 1960, F, o falecido pai da autora G e avô dos autores A e C, deu a loja de arrendamento a D. O estabelecimento instalado na loja foi sendo objeto de sucessivos trespasses, até que em outubro de 2009 a sociedade L., Lda., o trespassou à ora ré, a qual, a partir de dezembro do mesmo ano se tornou a responsável pelo pagamento das rendas. Por carta datada de 01.01.2013, remetida em 07.01.2013 e rececionada pela ré em 08.01.2013, os autores comunicaram a esta a denúncia do contrato de arrendamento da loja, para produzir efeitos a partir de 15 de janeiro de 2018. Até ao momento a ré não desocupou a loja. Os autores concluem assim a petição inicial: «Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, consequentemente, a Ré condenada: a) no despejo imediato (desocupação e entrega aos Autores) da loja, destinada a comércio, sita __, em Lisboa; b) no pagamento aos Autores da indemnização a que se refere o artigo 1045º do Código Civil, no valor de 118,64€ por cada mês que decorra desde a data da cessação do contrato de arrendamento (15.01.2018) até à restituição do locado.» * A ré contestou, alegando, em síntese, que entre si e a sociedade L não foi celebrado qualquer contrato de trespasse. Conclui pugnando para que a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição dos pedidos. * Apesar de nenhuma exceção, dilatória ou perentória, ter sido arguida na contestação, pois a ré apenas se defendeu por via de impugnação, a senhora juíza a quo concedeu aos autores a possibilidade de exercerem «o contraditório relativamente à [inexistente] matéria de excepção invocada pela R. na contestação.» * Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré dos pedidos. * Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações: «1. É certo que, como vem afirmado na douta sentença recorrida, a pretensão dos Autores depende de ter havido trespasse, no entanto, não pode ser oposto aos Autores o facto de não ter sido transmitido à trespassária qualquer activo corpóreo, dado que os Autores, na sua qualidade de senhorios, são terceiros em relação ao negócio do trespasse propriamente dito, e embora a sua pretensão dependa de ter havido trespasse, não é o trespasse que fundamenta a pretensão dos Autores. 2. A douta sentença recorrida, ao considerar relevante para a pretensão dos autores o trespasse enquanto negócio jurídico autónomo em vez de ter considerado o trespasse apenas como forma de transmissão do arrendamento sem intervenção do senhorio, fez, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, errada interpretação da lei. I – IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO 3. Além da matéria considerada provada no nº. 4 do Factos Provados, deverá também ser considerado provado que, por carta de 6 de Outubro de 2009, a L informou os Senhorios que era sua intenção dar de trespasse o estabelecimento à Ré, pelo preço de €50.000,00 - matéria que foi alegada pelos Autores e não foi impugnada pela Ré, estando demonstrada pelo Doc. 5 que instrui a p.i.). 4. Deverá igualmente ser considerado provado o seguinte facto: “A L., Ldª celebrou com a Ré, por escrito particular, um contrato de trespasse, no âmbito do qual lhe transmitiu a posição de arrendatária do locado - Isto porque, nos autos, tal facto está provado através dos seguintes elementos: a) - o doc. 5 que instrui a p.i. demonstrativo que a L informara os Senhorios que era sua intenção dar de trespasse o estabelecimento à Ré; b) - o doc. 6 que instrui a p.i. demonstrativo que a trespassante L “informou os senhorios que deu de trespasse o estabelecimento à Ré”; c) - os depoimentos das várias testemunhas demonstrativos que a Ré passou a ser locatária e, a partir de dezembro de 2009, passou a ser responsável pelo pagamento da renda; d) - o depoimento da testemunha D, gerente da Trespassante, demonstrativo que o contrato de trespasse foi celebrado e reduzido a escrito particular, que se transcreve: (...) e) O que consta da página 4 da douta sentença recorrida, que se transcreve: “Relativamente aos factos vertidos em 2), 3) e 4) julgou o Tribunal suficiente os elementos documentais juntos a fls. 8vº a 12, visto que traduzem a informações prestadas aos senhorios sobre os trespasses operados. A existência de um contrato de trespasse entre a L e a Ré foi invocado pelo depoimento de LF, sócio gerente da L, que confirmou a sua realização ainda que não detivesse suporte documental (referiu ter havido um contrato), mas desconhecia o seu teor…”. 5. Inversamente, deverá ser considerada não escrita a parte da Motivação que concluiu ser do conhecimento dos A.A. que o locado foi recebido pela Ré sem nada no seu interior - Isto porque, não era do conhecimento dos A.A., senhorios, “ter a Ré recebido o locado sem nada no seu interior e ali começado novo negócio” porque: f) - dos 13 “Factos Provados” indicados nas págs. 2/4 da douta sentença recorrida não é possível extrair tal conhecimento; - A Ré, nem na sua contestação, nem posteriormente, nunca alegou que os A.A, tivessem tal conhecimento; - Não existem nos autos quaisquer documentos que demonstrem o mesmo conhecimento por parte dos A.A.; - Não consta dos Temas da Prova; - Nenhuma das testemunhas ou depoentes ouvidos na audiência de julgamento declarou que era do conhecimento dos A.A. que o locado foi recebido pela Ré sem nada no seu interior; g) Pelo contrário, as Testemunhas e os próprios Gerentes da Ré, no respectivo depoimento, revelaram não conhecer sequer os Senhorios pessoalmente e ninguém referiu terem os Autores tal conhecimento. Concretizando, seguem-se os pertinentes depoimentos: (...) 6. É totalmente incompatível com os elementos articulados e demonstrados nos autos a conclusão expressa na motivação de que os A.A. tinham conhecimento de que o locado foi transmitido sem nada no seu interior, aspecto que não foi sequer minimamente abordado nos autos, nem directa, nem indirectamente, não podendo, por isso, ser considerado relevante a propósito da motivação da matéria de facto. II - DO DIREITO 7. Está demonstrado nos autos que o anterior Locatário (L) comunicou aos Locadores que ia trespassar o estabelecimento à Ré, seguidamente, a L comunicou aos Locadores que tinha procedido ao trespasse referido na sua comunicação anterior e o contrato de trespasse foi celebrado por escrito particular. 8. A lei não obriga ao envio do título de trespasse ao locador, mas sim e apenas a comunicar o trespasse [cfr. art. 1038º, al. g) do Código Civil], sabendo-se que, à data, o trespasse já não carecia de ser formalizado por escritura pública. 9. Aliás, a jurisprudência dos tribunais superiores é unânime no sentido de ser desnecessário que o locador conheça o título do trespasse, bastando que o mesmo lhe seja comunicado (cfr. por todos o recente acórdão do STJ de 24/05/2018, proferido no Pº7471/15.978CBR.C1.S2., antes parcialmente transcrito) 10. No presente caso, a Arrendatária L notificou os Locadores, ora Autores, não só para o exercício do direito de preferência, como também, posteriormente, que o trespasse tinha sido realizado, informando que a renda seguinte iria ser paga pela nova arrendatária. 11. Nestas circunstâncias, os Locadores estavam dispensados de indagar sobre a formalização ou não do contrato de trespasse e por maioria de razão se estavam ou não reunidos todos os elementos que integram a figura jurídica do trespasse. 12. Tendo recebido da arrendatária a notificação de que celebrara com a ora Ré o contrato de trespasse, os Locadores, ora Autores, naturalmente, formaram a convicção de que o trespasse ocorrera e, por isso, passaram a emitir os recibos das rendas subsequentes em nome da trespassária, ora Ré. 13. A existência do trespasse, na economia dos presentes autos releva apenas para efeito de permitir a aplicação da alínea c) do artigo 1101º do Código Civil (possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio) aos “arrendamentos para fins não habitacionais”, por aplicação das normas conjugadas dos artigos 1101º, 1110º do Código Civil e artigos 26º, nº. 4 al. c) e nº. 6 e 28º, nº. 3 na redação da L. nº. 6/20067 de 27 de Fevereiro e L. 31/2012 de 14 de Agosto. 14. O contrato de trespasse não constitui causa de pedir nos presentes autos, sendo apenas uma condição de que a lei fez depender a possibilidade de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento. 15. Logo, é irrelevante nos presentes autos a questão da formalização do contrato de trespasse, tal como é irrelevante o facto de estarem ou não reunidos todos os elementos que caracterizam o contrato de trespasse celebrado entre a L e a Ré. 16. Por isso, não pode a acção ser julgada improcedente por razão inerente ao contrato de trespasse, concretamente, não ter a Ré recebido da L “ao ocupar o espaço, qualquer activo corpóreo dessa sociedade como mercadorias, mobiliário, máquinas, contratos de trabalho ou fornecimento de mercadorias”. 17. Acresce que, nunca, em momento anterior à apresentação da sua contestação nos autos da presente acção, a Ré invocou a inexistência do trespasse. 18. Ao invocar, agora (decorridos mais de 8 anos sobre a data da transmissão), a inexistência do trespasse – com o único intuito de obstar ao despejo - a Ré actua de forma ilegítima, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, o que constitui abuso de direito, nas modalidades de “venire contra factum proprium” e “supressio”- cfr. art. 334º do Cód. Civil. (cfr. neste sentido, cfr. o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 12.09.2017, no âmbito do processo nº 7471/15.9T8CBR.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, e parcialmente transcrito na exposição das presentes alegações). 19. Finalmente, nunca foi comunicada, autorizada, nem reconhecida pelos Autores qualquer transmissão da posição contratual de arrendatária para a Ré, em virtude de outro negócio diferente do trespasse e/ou para exercício de qualquer outro ramo de actividade. 20. Consequentemente, o Tribunal a quo devia ter considerado o trespasse regularmente notificado aos Autores e, consequentemente considerar legalmente denunciado o contrato de arrendamento sub iudice. 21. Ao considerar relevante para a pretensão dos autores o trespasse enquanto negócio jurídico autónomo em vez de ter considerado o trespasse como forma de transmissão do arrendamento sem intervenção do senhorio, o Tribunal fez uma incorrecta interpretação da lei aplicável, designadamente do disposto nos artigos 1101º, 1110º do Código Civil e artigos 26º, nº. 4 al. c) e nº. 6 e 28º, nº. 3 na redação da L. nº. 6/20067 de 27 de Fevereiro e L. 31/2012 de 14 de Agosto. 22. A correcta interpretação das referidas normas imporia, necessariamente que o trespasse fosse considerado como existente e, consequentemente, que a acção fosse julgada totalmente procedente e a Ré condenada no pedido. 23. Fundamento específico da recorribilidade: decisão que põe termo à causa, que apreciou a cessação de contrato de arrendamento. Nestes termos e nos mais de direito, que Vossas Excelências doutamente se dignarão suprir, deverá a presente Apelação ser julgada integralmente procedente e, consequentemente, a douta sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção e condene a ré no pedido, com as inerentes consequências legais.» * A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pala manutenção da decisão recorrida. * Entretanto foi suscitado incidente de habilitação de herdeiros na sequência do óbito da co-autora G, tendo, por decisão de fls. 105-105vº, sido julgados habilitados a sucederem na posição por aquela ocupada, os outros co-autores, A e C. * II - ÂMBITO DO RECURSO: Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do CPC) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem. Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º). Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do art. 663.º, n.º 2). À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se os autores operaram validamente a denúncia do arrendamento respeitante à loja acima identificada. *** III - FUNDAMENTOS: 3.1 - Fundamentação de facto: A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: «1. Por contrato celebrado em 13.05.1960, F, falecido pai da Autora G e avô dos Autores A e C, deu de arrendamento, para comércio, a D, que reciprocamente tomou de arrendamento, a loja, destinada a comércio, sita ___. 2. No final do ano de 1996, o primitivo inquilino informou os senhorios que tinha trespassado o estabelecimento instalado no locado à sociedade P&L., Lda.. 3. Sociedade esta que, por sua vez, em 4 de Julho de 2000, informou os senhorios que deu de trespasse o mesmo estabelecimento à L., Lda. 4. Em Outubro de 2009, a L., Lda. informou os senhorios que deu de trespasse o estabelecimento à Ré, que passou a ser locatária e, a partir de Dezembro de 2009, passou a ser responsável pelo pagamento da respectiva renda. 5. Os Autores são os actuais proprietários por terem adquirido o locado por sucessão hereditária de F e a Autora G, por o ter também adquirido por transmissão da posição da sua mãe GN. 6. Por carta datada de 01.01.2013 os Autores comunicaram à Ré a denúncia do contrato de arrendamento para produzir efeitos a partir de 15 de Janeiro de 2018. 7. A referida comunicação de denúncia do contrato de arrendamento foi remetida pela Ilustre Mandatária dos Autores à Ré, em 07.01.2013 e recebida em 08.01.2013. 8. Por cartas datadas, respectivamente, de 15.11.2016 e 05.05.2017 subscritas e remetidas pela Ilustre Mandatária dos Autores à Ré e por esta recebidas em, respectivamente,16.11.2016 e 09.05.2017, foi confirmada a denúncia do contrato de arrendamento em causa. 9. A Ré não desocupou e entregou o locado aos Autores em 15 de Janeiro de 2018. 10. Nem o fez posteriormente, continuando a ocupar o até à presente data. 11. A renda estipulada era de 59,32€. 12. A L. entregou à ora Ré o espaço por si anteriormente ocupado passando a Ré a pagar a renda e exercer no local o seu comércio de venda de artesanato e souvenirs. 13. A Ré não recebeu da L. qualquer mercadoria ou mobiliário.» * 3.2 - Do mérito do recurso: 3.2.1 - Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto: O direito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processuais, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação forem insuscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, assumirem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente[i]. Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no art. 130º do C.P.C., deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir[2]. Assim, e pelas razões que já a seguir melhor se compreenderão, este tribunal não irá apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. 3.2.2 - Enquadramento jurídico: Dispunha o art. 1101.º, al. c), do Cód. Civil, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que «o senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes: (...) c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.» Por sua vez, dispunha o art. 26.º, n.º 4, al. c), da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro: «Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: (…) c) Não se aplica a al. c) do artigo 1101.º do Código Civil.» Acrescentava, no entanto, a al. a) do n.º 6, que «em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, cessa o disposto na al. c) do n.º 4 quando: a) Ocorra trespasse ou locação de estabelecimento após a entrada em vigor da presente lei. (...)».[3] Estabelecia o art. 28.º, n.º 3, al. a) da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto[4], que «em relação aos arrendamentos para fins não habitacionais, a antecedência a que se refere a al. c) do art. 1101.º do Código Civil é elevada para cinco anos quando: a) Ocorra trespasse (...).»[5]. Está provado que: - «Por carta datada de 01.01.2013 os Autores comunicaram à Ré a denúncia do contrato de arrendamento para produzir efeitos a partir de 15 de Janeiro de 2018»; - «A referida comunicação de denúncia do contrato de arrendamento foi remetida pela Ilustre Mandatária dos Autores à Ré, em 07.01.2013 e recebida em 08.01.2013.» Para que através de tal comunicação os autores operassem validamente a denúncia do contrato de arrendamento, necessária seria a ocorrência de um contrato de trespasse através do qual a ré se tivesse tornado arrendatária da loja. A ré nega que entre si e a L., Lda., tivesse sido celebrado qualquer contrato de trespasse. Provou-se, a este propósito que: - em Outubro de 2009, a L., Lda., informou os senhorios que deu de trespasse o estabelecimento à ré; - a partir de então a ré passou a ser a locatária da loja; - a partir de Dezembro de 2009, passou a ser responsável pelo pagamento da respetiva renda[6]. Dispõe o art. 1112.º do Cód. Civil, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro: «1 - É permitida a transmissão por ato entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio: a) No caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial; b) A pessoa que no prédio arrendado continue a exercer a mesma profissão liberal, ou a sociedade profissional de objeto equivalente. 2 - Não há trespasse: a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; b) Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino. 3 - A transmissão deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio. (...).» A lei não nos fornece a definição de trespasse. Com Gravato Morais podemos definir trespasse como a «transmissão definitiva, por acto entre vivos, onerosa ou gratuita, de um estabelecimento comercial.»[7]. Como refere Coutinho de Abreu, «num concreto negócio de trespasse gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos do estabelecimento. Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens necessários ou essenciais para identificar ou exprimir a empresa objeto do negócio. Desrespeitando-se o âmbito mínimo (necessário) ou essencial de entrega (constituído, portanto, pelos elementos necessários ou suficientes para a transmissão de um concreto estabelecimento), impossibilitado fica o trespasse; objeto do negócio translativo serão então singulares bens (ou conjuntos de bens) de um estabelecimento, não o próprio estabelecimento.»[8]. Nos termos da parte final do mesmo n.º 3, a transmissão da posição de arrendatário do trespassante deve ser comunicada ao senhorio. Nessa comunicação, salienta Gravato de Morais, é «necessária a remessa ao senhorio da cópia de um exemplar do contrato de trespasse. Com efeito, ao tempo em que se exigia a outorga da escritura pública de trespasse, entendia-se, pacificamente, que bastava a comunicação da data e do local da realização do acto em causa, assim como a identificação do novo arrendatário. A partir do momento em que se exigiu o formalismo exigido - com o DL 64-A/2000 -, não parece razoável efectuar uma comunicação em moldes semelhantes. Com efeito, na sequência da diminuição da exigência, se tal ocorresse, o senhorio não tinha possibilidade de se dirigir ao cartório notarial para requerer a correspondente fotocópia do acto em causa. Agora, só o envio do contrato ao senhorio possibilita tal conhecimento nossa mesmos e exatos termos. É isto que se impõe utilizando um argumento de igualdade de razão.»[9]. Coutinho de Abreu refere também «que essa comunicação precisará normalmente de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato de trespasse. Pressupõe isto, bem se vê, escrito enformando tal contrato.»[10]. Como é sabido, nos termos que decorrem da regra geral contida no art. 342.º, n.º 1, do Cód. Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a demonstração dos factos constitutivos do direito invocado. Assim, à semelhança do que ocorre, por exemplo, nos casos em que o senhorio pretende obter a resolução do contrato de arrendamento por transmissão não autorizada do direito ao arrendamento, em que lhe cabe provar que o estabelecimento não foi efetivamente trespassado[11], no caso presente incumbia aos locadores, ora recorrentes, a alegação e prova de que entre a sociedade L., Lda. (enquanto - alegada - trespassante) e a ré (enquanto - alegada - trespassária) foi celebrado, em 2009, um contrato de trespasse pelo qual aquela transmitiu a esta o estabelecimento comercial situado na loja, enquanto, reitera-se, facto constitutivo do seu alegado direito à denúncia do contrato de arrendamento. E a verdade é que os autores não fizeram essa prova. Não basta, para prova da existência de tal contrato de trespasse, enquanto elemento indispensável do direito à denúncia do contrato de arrendamento, a comunicação efetuada pela L em 2 de novembro de 2009, através da carta registada com aviso de receção cuja cópia se encontra a fls. 12vº e da qual consta o seguinte: «Serve a presente, para informar V. Exa. que, conforme comunicação de 06-10-2009[12], procedemos ao trespasse da loja sita na Rua do Carmo, n.º 74 - vão de escada, pelo que a renda referente a Dezembro 2009 irá ser paga pelo novo arrendatário.» Nem o depoimento da testemunha D, gerente da sociedade L., Lda., nos termos em que foi prestado e que se mostram transcritos pelos próprios apelantes nas alegações do recurso. Do que aqui se trata, reitera-se, é da prova da efetiva existência de um contrato de trespasse enquanto elemento determinante da validade do direito à denúncia do contrato de arrendamento. Os autores bastaram-se com a comunicação da L., quando essa comunicação, para ser valida e eficaz em relação a eles, necessitava de ser acompanhada da cópia de um exemplar do contrato de trespasse. Não consta que em momento algum os autores tenham sequer exigido, da L. ou da ré, o envio de cópia do contrato de trespasse. Tal como salienta ainda Gravato de Morais, «no caso de faltar, de ser intempestiva tal comunicação ou até de não ser efetuada nos termos devidos, a consequência é justamente (...) a da ineficácia do acto em relação ao senhorio. Tal efeito permite subsequentemente a resolução do contrato de arrendamento comercial (...) devendo a competente acção de despejo ser intentada contra o arrendatário.»[13]. Ou seja, a cedência do locado pelo arrendatário a terceiro, sem a devida autorização do senhorio (art. 1038.º, al. g, do Cód. Civil) confere a este, não o direito que os autores pretenderam exercer através desta ação, mas o direito à eventual resolução do contrato de arrendamento por incumprimento culposo do arrendatário (art. 1083 n.º 2 al. e) do Cód. Civil). Sucede que o objeto da presente ação (constituído pelo pedido e pela causa de pedir que lhe subjaz), assenta no alegado direito à denúncia do contrato de arrendamento, nos termos expostos, e não no direito à resolução do contrato por cedência não autorizada do locado. A tudo acresce, que não apenas os autores não fizeram prova da ocorrência do trespasse, como lhes competia, como foi a própria ré quem fez prova de que o mesmo não ocorreu. Na verdade, está provado, sob o ponto 13. dos factos provados, e que não foi objeto de impugnação por parte dos apelantes, que a ré não recebeu da L. qualquer mercadoria ou mobiliário. Não pode, assim, na situação sub judice, falar-se em trespasse. Consequentemente, não pode considerar-se válida a denúncia do contrato de arrendamento tendo por objeto a loja acima identificada, pretendida operar pelos autores através da carta que enviaram à ré, referida nos pontos 6. e 7. dos factos provados, e cujo texto, na parte que interessa, aqui se reproduz: «Nos termos e para os efeitos no disposto na al. c) do artº. 1101 por remissão do artº. 1110 do Código Civil e o disposto no artigo 28 do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro com a redação dada pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto (...).» Fundando-se o pedido formulado nesta ação, assim como a causa de pedir que lhe subjaz, precisamente na validade dessa denúncia, não poderia a mesma deixar de ser julgada improcedente na sentença proferida em 1.ª instância, como efetivamente foi, decisão que agora se confirma. *** IV - DECISÃO: Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a sentença recorrida. Custas pelos apelantes - art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Lisboa, 29 de Setembro de 2020 José Capacete Carlos Oliveira Diogo Ravara _______________________________________________________ [1] Doravante referida apenas por “loja”. [2] Cfr. Ac. do S.T.J. de 17.05.2017, Proc. nº 4111/13.4TBBRG (Cons. Isabel Pereira), in www.dgsi.pt. [3] O n.º 6 do art. 26.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, foi revogado pela al. c) do art. 13.º da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto. [4] Posteriormente alterada pela Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro. [5] O citado preceito foi, entretanto, revogado pela al. b) do art. 12.º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro. [6] Tratam-se de três enunciados que a sentença recorrida concentrou no ponto 4. dos factos provados. [7] Novo Regime do Arrendamento Comercial, Almedina, 3.ª Edição, Almedina, 2011, p. 48. Cfr. ainda, do mesmo Autor, Alienação e Oneração de Estabelecimento Comercial, Almedina, 2005. pp. 78-80. [8] Curso de Direito Comercial, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 300-301. [9] Novo Regime cit. p. 348. Em Alienação cit., p. 100, já o Autor afirmava, no âmbito do RAU, ser «exigível a remessa ao senhorio de fotocópia do contrato de trespasse celebrado.» [10] Curso cit., p. 300. No mesmo sentido, cfr. Ricardo Costa, O novo regime do arrendamento urbano e os negócios sobre a empresa, FDUC, Nos 20 anos do Códigos das Sociedades Comerciais, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 503. [11] Cfr. Gravato de Morais, Alienação cit., pp. 94-95 e doutrina e jurisprudência citada na nota 207. [12] A comunicação escrita de 6 de outubro de 2009, enviada pela Lucatêtil à falecida co-autora Gabriela Macedo, tem o seguinte teor: «Assunto: Trespasse da Loja sita na Rua do Carmo, n.º 74, Lisboa. (...). Na qualidade de arrendatária da loja sita na Rua do Carmo, n.º 74 tornejando para a Rua de Santa Justa mº 98-100, em Lisboa, vimos comunicar, para os efeitos do número 4 do artigo 1112º do Código Civil, a nossa intenção de realizar o trespasse do estabelecimento comercial instalado no referido local. Assim, nos termos e designadamente, do disposto nos artigos 416º informa-se que trespassário é RAPIDSOUVENIRS - UNIPESSOAL, LDA., que o preço será de 50.000,00, o qual será pago Euros 25.000,00 a pronto e Euros 25.000,00 a 120 dias. (...).» [13] Alienação cit., p. 100. [i] Cf. Ac. da R.C. de 27.5.2014, Proc. nº. 104/12.0T2AVR.C1 (Moreira do Carmo), in www.dgsi.pt. No Acórdão da mesma Relação de 24.4.2012, Proc. nº. 219/10.6T2VGS.C1 (Beça Pereira, in www.dgsi.pt, escreveu-se a este propósito: «A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante. Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º». No acórdão da mesma Relação de 14.1.2014, Henrique Antunes, 6628/10, a mesma ideia é assim expressa: «De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC). Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação. Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.». |