Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
170/09.2TBVSB.L1-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: POSSE
ACESSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Tem-se entendido que o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, pois que, para que ela exista é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto, ou seja, é preciso que haja por parte do detentor a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa (cfr. o art.1253º, do C.Civil).
II – A acessão é uma forma de aquisição derivada da posse, estando esta prevista na al.b), do art.1263º, do C.Civil, onde se refere a tradição material ou simbólica, efectuada pelo anterior possuidor.
III - As duas posses devem ser contínuas ou consecutivas, não podendo, pois, intrometer-se a posse de terceiro que inutilize a anterior.
IV - E devem ser, em princípio, homogéneas, não podendo, pois, aquele que tem a posse a título precário unir à sua detenção uma posse verdadeira, nem aquele que possui a título de proprietário unir à sua posse a daquele que haja possuído apenas como usufrutuário ou como titular de uma servidão.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
No Tribunal Judicial de V…, J… & Filhos, Ld.ª, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra V… e mulher M…, J… e mulher R…, M… e mulher M.L…, alegando que é dona e legítima proprietária de um prédio urbano composto por casa baixa telhada, com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225,972 m2 e área descoberta de 15.177 m2, com a área total de 241.149 m2, sito nos …, inscrito na matriz de V…, em 1997, sob o artigo ….
Para o efeito, alega que aquela construção foi edificada, em 1962, por J…, então comerciante em nome individual, para aí guardar e proceder à reparação dos autocarros que possuía, e ao depósito de combustíveis que então comercializava.
Mais alega que a referida garagem era utilizada para recolha e oficina de reparação dos autocarros da autora, já que, na altura, e ainda hoje, mantém a concessão e exploração dos transportes públicos da Ilha de …, encontrando-se a sua utilização devidamente autorizada por via do alvará nº10/2008.
Alega, também, que o terreno onde J… construiu a aludida garagem foi adquirido por aquele, através de permuta levada a cabo entre ele e José Júlio Silva, tendo o antecessor da autora ficado com uma parcela do terreno rústico inscrito na matriz sob o art…., de que tomou logo posse, pública e pacificamente.
Alega, ainda, que desde 1960 até à actualidade, primeiro pelo referido J… e antepossuidores, como assim pela autora, tem estado na posse do aludido prédio, de forma pública e pacífica, pelo que a autora é também dona e legítima possuidora do mesmo, por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 e 40 anos, tendo, pois, a autora adquirido tal prédio por usucapião.
Alega, por último, que os réus M… e mulher e J… e mulher são herdeiros do falecido J…, tendo o prédio inscrito na matriz sob o artigo … (de onde foi desanexado o atrás referido – artigo …) integrado a respectiva quota hereditária, conforme escritura de partilhas de 16/11/01, após o que, por escritura de compra e venda lavrada em 18/10/05, aqueles venderam ao réu V… o aludido prédio, bem sabendo que desse prédio fazia parte uma área de 241.149 m2, com a construção nele edificada, que era propriedade da autora. Sendo que o réu V… vem utilizando, desde fins do ano de 2008, uma área de garagem com cerca de 100 m2, contra a vontade da autora e sem qualquer título que o legitime.
Conclui, assim, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se a autora única e exclusiva proprietária do prédio identificado no art° 1° supra, com a sua área e confrontações aí referidas, dada a sua aquisição originária por usucapião.
b) Condenar-se solidariamente os RR. no reconhecimento desse direito.
c) Condenar-se os RR V… e mulher a largar mão da área de 100 m2 a que se refere artigo 29 supra deixando-a livre de pessoas e coisas e a entregá-la à Autora.
d) Condenar-se estes mesmos RR V… e mulher a pagar à Autora a quantia de 1.000,00 euros por mês, desde a citação, e até à entrega a esta da referida área de 100 m2 da garagem.
e) Determinar-se o cancelamento da descrição predial supra referida - 1.191 da CRP de V… e consequente inscrição n0…, aí existente - a favor do co-réu V… e mulher.
f) Declarar-se nula e de nenhum efeito a escritura supra referida de 18 de Outubro de 2005, exarada a. fls. 62/63 do Livro 37-B do Cartório Notarial da C… e o consequente negócio a que a mesma se refere.
g) Declarar-se a nulidade da inscrição matricial rústica 3.109 de V….
Os réus V… e mulher contestaram, por excepção, invocando a ilegitimidade da ré mulher, e, por impugnação, alegando que a parcela adquirida por J… tem somente uma área com cerca de 122 m2, onde ele construiu a garagem, ocupando o réu uma outra garagem, com cerca de 104 m2, mas que está implantada, não no prédio inscrito sob o artigo …, mas sim no prédio inscrito sob o artigo …, adquirido verbalmente pelo pai do réu, V…, a P…, no final da década de 60, mas com escritura lavrada em Fevereiro de 1978.
Concluem, deste modo, que a ré mulher deve ser absolvida da instância e que, de todo o modo, a acção deve ser julgada improcedente.
A autora replicou, alegando que o terreno onde foi implantada a segunda garagem foi adquirido verbalmente pelo J… a P… e mulher, por volta de 1964, entrando logo na posse desse terreno, de forma pública e pacífica, passando a usufrui-lo, o que ocorreu até ao seu falecimento em 1999, sendo que a autora continuou ali na posse do mencionado terreno até 2009, continuando os seus autocarros de passageiros a servir-se dele, pelo que a autora adquiriu o mesmo por usucapião, ampliando a final o pedido no sentido de tal ser declarado.
Os réus contestantes treplicaram, concluindo que não deve ser admitida a ampliação do pedido e, no mais, como na contestação.
Seguidamente, foi proferido despacho saneador, não admitindo a requerida ampliação do pedido e julgando procedente a excepção de ilegitimidade passiva deduzida pela ré contestantes, tendo-se, ainda, seleccionado a matéria de facto relevante considerada assente e a que passou a constituir a base instrutória da causa.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, após decisão da matéria de facto, proferida sentença, decidindo nos seguintes termos:
1. Julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre os RR., V…, J… e mulher, R… e M… e mulher, M. L…, no dia 18 de Outubro de 2005 (ponto 13. da matéria de facto provada) e respectiva escritura pública, absolvendo-os desse pedido.
2. Julgar improcedente o pedido de cancelamento da descrição 1.191 da Conservatória do Registo Predial do conselho de V….
3. Julgar improcedente o pedido de declaração de nulidade da inscrição matricial rústica n° 3.109 da freguesia de V…,
4. Julgar improcedente a solidariedade da condenação dos RR. a que se refere o ponto 6. infra.
5. Declarar a A., J… & Filhos, Lda única e exclusiva proprietária do prédio urbano composto por casa baixa telhada com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225,972 m2 e área descoberta de 15,177m2, com área total de 241,149m2, confrontando a norte com estrada, a sul com F…, a nascente com servidão e a poente com V…, localizado nos…, inscrito na matriz urbana da freguesia da U… sob o art. … (ponto l. da matéria de facto provada), por o ter adquirido por usucapião.
6. Condenar os RR., V…, J… e mulher, R.. e M… e mulher, M. L…, a reconhecerem tal direito.
7. Condenar o R. V… a entregar à A. J… & Filhos, Lda, a área de 100 m2, que ocupa, do prédio referido no ponto l. da matéria de facto provada, deixando-a livre de pessoas e coisas.
8. Condenar o R. V… a pagar à A. A. J… & Filhos, Lda, a titulo de indemnização, a quantia que se vier a liquidar posteriormente, valor esse devido desde a data da citação e até à efectiva entrega da referida faixa de terreno com 100 m2.
Inconformados, os referidos réus interpuseram recurso de apelação daquela sentença.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
1. A construção a que se refere o prédio urbano composto por casa baixa telhada com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225,972 m2 e área descoberta de 15,177m2, com área total de 241,149m2, confrontando a norte com estrada, a sul com F…, a nascente com servidão e a poente com V…, localizado nos…, inscrito na matriz urbana da freguesia da U… sob o art. …, foi edificada em três fases por J…, da seguinte forma:
a) a 1ª fase consistiu na construção de um armazém de paredes em pedra, com área de cerca de 122m2 e com uma área descoberta de terra batida a poente, de cerca de 104m2, o que ocorreu em 1962.
b) a 2° fase consistiu na abertura de uma fossa de apoio e assistência mecânica às suas viaturas nessa área descoberta, que veio a ser cimentada 1964.
c) a 3ª fase consistiu na construção de um armazém em blocos de cimento nessa zona descoberta e com área de cerca de 104 m2, o que ocorreu entre 1975 e 1980. (ponto 1º da b.i.)
2. Parte do terreno onde está construído a prédio identificado em l. chegou ao domínio de J…. em 1960, através de acordo realizado entre aquele e J… outra parte foi adquirida pelo referido J… a um primo de nome P…. (ponto 5º da b.i.)
3. Através desse acordo, J… ficou com o terreno onde está construído parte do prédio a que se refere o ponto l. e J… com outro terreno localizado em local que não foi possível apurar concretamente. (ponto 6º da b.i.)
4. J…, quando iniciou as construções mencionadas em l. era comerciante em nome individual, tendo realizado tais construções para aí guardar e proceder à reparação dos autocarros que tinha e ao depósito de combustíveis que comercializava. (pontos 2º e 3º da b.i.)
5. Desde a construção e até ao momento, a A. dedica-se à exploração de transportes públicos na ilha de …. (ponto 4º da b.i.)
6. Logo após o acordo referido em 2. J… começou, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém:
a) a construir a garagem mencionada em l.
b) a granjeá-lo.
c) a colher frutos. ,
d) a pagar as contribuições do mesmo. (ponto 7º da b.i.)
7. Fê-lo na convicção de que exercia um direito seu e sem ofender direitos de terceiros. (ponto 8º da b.i.)
8. Depois de realizado o acordo mencionado em 2. J…, J… ou os herdeiros de ambos, jamais puseram em dúvida tal acordo. (ponto 9º da b.i.)
9. Desde 1962 a 2006, era nas construções mencionadas em l. que se guardavam, reparavam e mecanicamente se assistiam os autocarros da A., à vista de toda a gente. (ponto 10º da b.i.)
10. Desde 1962 até 2006, era em frente da garagem que os autocarros colhiam e deixavam os passageiros, o que faziam à vista de toda a gente. (ponto 11º da b.i.)
11. Em 16 de Novembro de 2001, foi lavrada no Cartório Notarial de V…, a folhas 28 e 29 do livro 341-B, escritura com o seguinte teor:
“PARTILHA
No dia dezasseis de Novembro de dois mil e um,... compareceram como outorgantes:
Primeira – N…, viúva ...
Segundos – M… ... e esposa M.L…...
Terceiros – J… ... e esposa R… ....
Pelos primeiros outorgantes foi dito que:
A primeira é viúva e os segundos e terceiro outorgantes maridos, são os únicos filhos do casal da primeira outorgante com o seu falecido marido, J….
Por óbito deste foi feita habilitação neste cartório, em quinze de Fevereiro de mil novecentos e noventa e cinco...
Vão, por esta escritura, proceder à partilha
Todos os bens a partilhar constam de relação organizada nos termos do número dois do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado.
FORMA À PARTILHA
O valor dos bens a partilhar, patrimonial e atribuído é de sessenta e cinco mil cento e setenta escudos de que são atribuídos à viúva dois terços um sexto a cada um filho respectivamente com quota e meação para a viúva de quarenta e três quatrocentos e quarenta e sete escudos e dez mil oitocentos e sessenta e dois escudos para cada filho.
PAGAMENTOS
Foram adjudicados:
À primeira outorgante a verba décima oitava ...
Aos segundo e terceiro outorgantes ficam adjudicados, em comum e partes iguais, as restantes verbas acima relacionadas...” (al.C da matéria de facto assente)
12. Em anexo à escritura mencionada em 11., consta a seguinte, relação de bens:
“ …
Décimo Quarto - Terra e Biscoito, com área de sessenta e sete ares e setenta e seis centeares, Mistérios, freguesia de U…, concelho de V…; -Norte Caminho; Sul, J….; Nascente, Servidão; Poente, A…; artigos …; Valor patrimonial-1.605$00, omisso no registo predial.
…” (al.D da matéria de facto assente)
13. Em 18 de Outubro de 2005, foi lavrada no Cartório Notarial da C…, a folhas 62 e 63 do livro 37-B, escritura com o seguinte teor:
“COMPRA E VENDA
No dia dezoito de Outubro de dois mil e cinco,.... compareceram como outorgantes:
PRIMEIRO:
a} M… ... e mulher M. L… ...
b) J… ... e mulher R…...
SEGUNDO: V… ... casado no regime da separação de bens com M… ...
E DECLARARAM OS PRIMEIROS OUTORGANTES, excepto a outorgante mulher identificada na alínea b):
Que pelo preço já recebido de MIL E QUINHENTOS EUROS, vendem ao segundo, V…, o prédio rústico, denominado "T.B…", sito no Lugar …, freguesia de U…, concelho de V…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de €8,30, descrito na Conservatória do Registo Predial de V… sob o número …/U.., inscrito em seu favor pela inscrição G-um.
DECLAROU O SEGUNDO:
Que aceita esta venda nos termos exarados.
…” (al.B da matéria de facto assente)
14. O prédio referido em 13. está inscrito na CR Predial a favor do R., V…, desde 06- 01-2009, pela inscrição AP… de 06-01-2009.
15. Quando realizaram o negócio mencionado em 13. os RR. sabiam que uma parte do terreno objecto desse negócio era utilizado, nos termos mencionados em 4,4,6, 9 e 10 pela A. (ponto 12º da b.i.)
16. Todos os RR. tomaram conhecimento do acordo mencionado em 2. e 3. (ponto 13º da b.i.)
17. Desde 2008 que o R. V… utiliza uma área de 100m2 da garagem da A. sem autorização desta, aí colocando um barco de recreio e uma retroescavadora. (pontos 15º e 16º da b.i.)
18. Com a utilização mencionada em 17. a A. não consegue utilizar esse mesmo espaço. (ponto 17º da b.i.)
19. Desde 2006 a A. exerce a actividade de transportes noutras instalações. (ponto 21º da b.i.)
20. O R. V…, de fita métrica na mão, na companhia de um seu familiar procedeu à medição do prédio urbano composto por casa baixa telhada com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225,972 m2 e área descoberta de 15.177 m2, com área total de 241,149 m2, confrontando a norte com estrada, a sul com F…, a nascente com servidão e a poente com V…, localizado …, S. M…, U…, com vista à sua inscrição na matriz. (ponto 14º da b.i.)
21. O Município de V… elaborou documento que designou de "ALVARÁ DE UTILIZAÇÃO Nº…/2008", datado de 5 de Maio de 2008 e cujo teor é o seguinte:
“ ... é emitido, o alvará de autorização de utilização nº…/2008 em nome de J…& Filhos, Lda, portador do contribuinte nº….
O presente alvará titula a autorização de utilização do Garagem sito em …, da freguesia de U…, a favor de J… & Filhos, Lda.
Por despacho de 02-05-2008 foi autorizada a seguinte utilização: Uso geral;
Área de Pavimentos: 225,97
Nº de Estacionamentos: 2
Localização: U…
Confrontações:
Norte: Estrada
Sul: F…
Nascente: Servidão
Poente: V…
…” (al. A da matéria de facto assente)
22. Está inscrito a favor de V… e V…, desde 20-10-2008, a casa de rés-do-chão e 1° andar, destinada a habitação e quintal, com a superfície coberta de 157,52 m2, quintal com 432 m2, mato de faias, vinha e casa de despejo com 23.637,48 m2, a confrontar a norte com caminho, a sul com mar, a nascente com M… e outros e a poente com J…., inscrito na matriz predial urbana sob o art. … e na matriz predial rústica sob o art. … da freguesia da U…. Tal inscrição ocorreu em 29-10-2008.
O imóvel foi adquirido a P… por escritura pública lavrada no dia 15-02-1978.
23. A A. mostra-se inscrita na CRComercial desde 12-10-1971, tendo como objecto o serviço de transportes colectivos e de passageiros e mercadorias, em carreiras regulares e em regime de aluguer, em carros pesados e ligeiros.
2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:
l. Por sentença de 01.08.2012 proferida no processo identificado em epígrafe, o Tribunal a quo decidiu:
- declarar a A., J… & Filhos, Lda. única e exclusiva proprietária do prédio urbano composto por casa baixa telhada com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225.972 m2 e área descoberta de 15,177 m2, com área total de 241,149 m2, confrontando a norte com estrada, a sul com F…, a nascente com servidão e a poente com V…., localizado nos…, U…, inscrito na matriz urbana da freguesia da U… sob o art. … (ponto l. da matéria de facto provada), por o ter adquirido por usucapião;
- condenar os RR., V…, J… e mulher, R… e M… e mulher, M. L…, a reconhecerem tal direito;
- condenar o R. V…a entregar à A. J… & Filhos Ldu. a área de 100m2, que ocupa, do prédio referido no ponto 1. da matéria de facto provada, deixando-a livre de pessoas e coisas;
- condenar o R. V… a pagar à A. J… & Filhos Lda., a título de indemnização, a quantia que se vier a liquidar posteriormente, valor esse devido desde a data da citação e até à efectiva entrega da referida faixa de terreno com 100m2.
Custas do pedido de indemnização provisoriamente em partes iguais.
Custas dos referidos nos pontos 1., 4., 5., e 6. deste dispositivo, na proporção de 1/4 para a A. e 3/4 para todos os RR..
Custas referentes aos pedidos referidos nos pontos 2., 3. e 7 deste dispositivo, a cargo de A. e R., V…, na proporção de 1/6 para a A. e 5/6 para o R. V….
2. O ora recorrente entende que a prova produzida impunha uma decisão diversa quanto à seguinte matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, no seu ponto 2: "e outra parte foi adquirida pelo referido J… a um primo de nome P… ".
3. Não foi efectuada qualquer prova quanto à aquisição pelo J… de qualquer terreno a um primo de nome P….
4. O Tribunal a quo fundamentou tal factualidade exclusivamente no depoimento da Testemunha H….
5. Tal conclusão não encontra albergue no depoimento da referida Testemunha, o qual afirmou nas suas declarações não saber afirmar acerca desta factualidade.
6. Não existiu mais qualquer prova a apontar no sentido deste segmento do ponto 2 da matéria de facto dada como provada, segmento este que nem constava da base instrutória.
7. Mesmo em caso de dúvida o ónus da prova nunca resolveria esta factualidade dando-a como provada, impondo sim a decisão inversa.
Sem prescindir,
8. A factualidade dada como provada pelo tribunal a quo nunca poderia sustentar uma aquisição por usucapião por parte da Autora.
9. A maior parte dos factos provados referem-se à pessoa de J… (avô do R. V…) e NÃO À AUTORA (Sociedade Comercial J… & FILHOS LDA).
10. É o que sucede, por exemplo, quanto aos pontos l. a 4. e 6. e 7. da matéria de facto provada.
11. Analisando a matéria de facto provada (ponto por ponto), verificamos que em lado algum foram dados como provados factos que revelem o corpus ou o animus da A. (sociedade comercial J… & Filhos Lda.).
12. Os factos dados como provados no ponto 6. em relação ao animus de J…, avô do R. V…, não constam da matéria assente em relação à Autora (Sociedade comercial J… & Filhos Lda.. NIPC …).
13. "No tocante ao animus, elemento intencional da posse, o mesmo presume-se, provada a materialidade dos actos possessórios; todavia o Autor não está dispensado de alegar tal facto." É bem certo que nos termos do disposto no artigo 1252º presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto; todavia tal não o isenta de alegar que exerce tal poder com o animus correspondente ao direito a que se arroga; apenas está dispensado de o provar caso detenha o poder de facto (elemento material)" - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, in Processo 361/04, de 02.10.2007, disponível em www.dgsi.pt.
14. "A não alegação do elemento volitivo da posse - que nada tem que ver com a sua presunção nos termos do art.° 1252, n° 2 do CC - não afasta a mera detenção referida no art.° 1253 do CC. De tal sorte que, sem essa invocação, nunca se pode ter por suficientemente excluído que o mencionado uso de uma (...), mesmo que público e duradouro, se tenha devido a mera tolerância dos donos do prédio em que foi tendo lugar, nem que os (...) tenham actuado sem intenção de agir como beneficiários do direito" - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, in Processo 1485/08.2TBMGR.C1, de 03.07.2012, disponível em www.dgsi.pt.
15. No presente caso, o animus da sociedade comercial que figura como Autora não foi dado como provado pela douta sentença recorrida (ao invés do animus de J…).
16. Independentemente do recurso ou não a presunções quanto à prova - o próprio Tribunal a quo não deu em lado algum como provado o elemento volitivo da posse da sociedade comercial aqui Autora.
17. A sentença não se pode fundamentar em factos (reveladores do animus e constitutivos da
posse) que - de forma presuntiva ou não - o próprio Tribunal não deu como provados.
18. Sem prescindir, e apenas por cautela de patrocínio, em qualquer caso, também nunca seria de aplicar à situação da Sociedade Comercial aqui Autora/Recorrida a presunção da dispensa de prova do animus presente no n.° 2 do artigo 1252° do Código civil, face à ressalva da parte final dessa norma ("em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.° 2 do artigo 1257°") e face à posse contrária de J… dada como assente.
19. Nos termos do n.° 2 do artigo 1257° do C. Civil " presume-se que a posse continua em nome de quem a começou".
20. Olhando para a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo ficou provado que um terceiro em relação à presente acção – J…, avô do R. V.. - começou desde 1960 a exercer uma posse (corpus e o animus) contrária/incompatível à alegada posse da A. em relação ao prédio em questão (vd. pontos l a 4, 6 a 8 da matéria de facto provada).
21. Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.
22. Não existem factos provados que indiquem que algum dia J… tivesse cessado a sua posse, iniciando-se uma alegada posse da A..
23. Olhando a matéria de facto assente temos pois demonstrada uma posse (a de J…) contrária/incompatível a uma alegada posse da A., e, pelo contrário, não temos factos reveladores de uma posse da A.
24. Não se pode confundir/identificar a posse de J… com uma posse da A., sem qualquer sustentação táctica, como se um (J…) e outra (J… & Filhos Lda.) fossem a mesma coisa.
25. Além de não ter resultado provada qualquer posse por parte da Sociedade Comercial aqui Autora, apenas por dever de patrocínio, dir-se-á sempre que nunca existiria acessão de posse.
26. Atendendo aos factos dados como provados pelo douto Tribunal a quo, já há muito estava constituída a aqui Autora - a sociedade comercial J… & Filhos Lda. - e ainda outra pessoa jurídica, J…, comerciante em nome individual – exercia a posse sobre os imóveis em questão (por exemplo a edificação só teria terminado em 1975-1980), o que fazia "na convicção de que exercia um direito seu e sem ofender direitos de terceiro" (cfr. ponto 7. matéria de facto provada).
27. Não se podem pura e simplesmente misturar os factos relativos à pessoa singular J…, e confundi-los com factos concernentes à Autora (sociedade comercial J… & Filhos Lda.).
28. Não tem qualquer sustentação factual a afirmação que consta da douta sentença a fls. 12. (parágrafo quatro) de que "não restam pois quaisquer dúvidas acerca da existência, em concreto, de actos materiais de posse por parte de J… e depois da A. (constituída em Outubro de 1971) sobre o imóvel a que se referem os autos, ocorrendo aqui uma sucessão de posse, nos termos do disposto no art. 1256°, n.º l do C. Civil, juntando a A. a sua à posse do antecessor, J…".---
29. Não existe o mais ínfimo fundamento para tal conclusão de "sucessão de posse" que consta da douta sentença recorrida.
30. A matéria de facto provada não responde quando é que se deu a alegada transmissão da posse entre J…. e a Sociedade Comercial Autora, de que forma, com que extensão, com que natureza, nem podia, porque tal transmissão nunca existiu.
31. Quanto à matéria do artigo 1256° do código civil, os Profs. Pires de Lima e A. Varela (in CCvA, em anotação ao artigo 1256°) dizem que "o legislador quis prever todo e qualquer acto translativo da posse. (...) Mas é necessário que haja um verdadeiro acto translalivo de posse para que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores" - apud Acórdão do Tribunal da relação de Lisboa, processo 5392/2006-1, com data de 12.12.2006 (disponível em www.DGSI.pt).
32. Nos presentes autos, ficando provados uma série de actos possessivos por parte de J…, não ficou provado qualquer acto jurídico através do qual tenha ocorrido uma translação da posse deste para a esfera jurídica da A.
33. In casu, não há título translativo da posse, não se verificando por isso os elementos necessários à figura da acessão na posse.
34. Não se conhece o mínimo relacionamento existente entre o património de J… e a Sociedade Comercial Autora, que, ao que se sabe, não é sua herdeira.
35. Para operar uma alegada acessão, seria necessário que ambas as posses fossem continuas, ininterruptas e do mesmo tipo.
36. Assim, em primeiro lugar não existe sequer matéria de facto provada que permita concluir que a Autora alguma vez foi possuidora de qualquer uma das garagens (e, de resto, nem poderia haver, pois a Autora nunca o foi), mas, além disso, muito menos existe factualidade provada que permitisse indagar que se tenha operado uma transmissão da posse entre J… e a Autora (a sociedade comercial J… & Filhos Lda.), e em que condições.
37. Não estão verificados os requisitos de que a lei faz depender a aquisição por usucapião a favor da A. de qualquer uma das garagens a que se reporta o ponto l. da matéria de facto provada.
Julgando-se como se julgou, violou-se o disposto nos artigos 1251°, 1252°, 1256°, 1257°, 1287° e 1290° do Código Civil
Deve, portanto, ser revogada a douta sentença recorrida, julgando-se a acção improcedente, com todas as legais consequências.
2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
2.4. São as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso:
- saber se a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode, no caso, ser alterada pela Relação, nos termos do art.712º, do C.P.C.;
- saber se da matéria de facto apurada resulta que a autora tenha alguma vez sido possuidora de qualquer uma das garagens em causa ou que se tenha operado uma transmissão da posse entre J… e a autora.
2.4.1. Segundo o recorrente, a prova produzida impunha uma decisão diversa quanto à matéria de facto dada como provada na resposta ao ponto 5º da base instrutória, no segmento onde se refere « … e outra parte foi adquirida pelo referido J… a um primo de nome P…».
Para o efeito, alega que o Tribunal fundamentou tal factualidade exclusivamente no depoimento da testemunha H…., a qual, no entanto, declarou não saber afirmar acerca dessa factualidade, não existindo mais qualquer prova a apontar no sentido do aludido segmento do ponto 5º da base instrutória, que nem sequer constava desta.
Entende a recorrida que o depoimento daquela testemunha é inequívoco no sentido do que veio a ser dado como provado.
O que se pergunta no aludido ponto 5º é o seguinte:
«O terreno onde está construído o prédio identificado em 1) chegou ao domínio de J… em 1960, através de acordo realizado entre aquele e J…?».
A resposta foi do seguinte teor:
«Provado que parte do terreno onde está construído o prédio identificado no quesito 1º chegou ao domínio de J… em 1960, através de acordo realizado entre aquele e J… e outra parte foi adquirida pelo referido J… a um primo de nome P…».
No despacho de fundamentação exarou-se o seguinte:
«A testemunha Hélder Manuel Raposo foi peremptória ao identificar o local onde foi implantada a segunda garagem como onde existia uma horta e que era pertença do P…, que vendeu a J….
Face à prova produzida, não restam dúvidas ao Tribunal em como as garagens foram implantadas em imóveis que tiveram origem diversa, embora ambos tivessem ido à propriedade de J…».
Acrescentando-se, mais à frente, que.
«H…, conhece o R. V… desde a infância, e declarou que se recorda da construção de ambas as garagens, afirmando que a mais antiga foi construída num terreno que pertencia inicialmente a um J… e que J… comprou. Relativamente à segunda garagem, o prédio inicialmente pertencia a outra pessoa e que foi também adquirido pelo referido J…, tratando-se de um prédio onde está implantada a casa de V…, filho de J… e sendo certo que atrás das garagens existiam bens da empresa, como a casa de gás».
Tendo este Tribunal da Relação reapreciado as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, com atenção ao conteúdo das alegações do recorrente e da recorrida, concluiu que se mostra justificada a convicção probatória a que chegou o julgador da 1ª instância. Na verdade, o art.396º, do C.Civil, consagra o princípio da liberdade de apreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas. O que significa que o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou, através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência (cfr. o art.655º, do C.P.C.).
Assim, vejamos.
Refira-se, antes do mais, que a testemunha H… foi indicada pelo réu, ora recorrente, e que, logo no início do seu depoimento, afirmou peremptória e espontaneamente, após perguntas feitas nesse sentido pelo ilustre mandatário do réu, que a garagem velha (a primeiramente construída e que na planta de fls.56 é designada pela letra «B») foi implantada no terreno que o Sr. J… comprou ao Sr. J.J.., enquanto que a segunda garagem (que na planta de fls.56 é designada pela letra «A») foi implantada no terreno que o Sr. J… comprou a P….
Entretanto, no decorrer do depoimento, quando foi perguntado à testemunha a quem pertencia «hoje em dia» este terreno, que antes era do P…, e quem o comprou a este, é que a testemunha respondeu que é do V… (V…, filho de J…) e que não sabe se foi o V… se o Sr. J… que comprou, isto é, se foi o pai ou o filho, desconhecendo quem fez o negócio.
A nosso ver, a contradição é mais aparente do que real. Note-se que está dado como provado (ponto 22º da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida) que o imóvel pertencente ao referido P… foi adquirido a este pelo tal V…, por escritura pública lavrada no dia 15/2/78. No entanto, antes desta data, em 1962, já o J… havia construído um armazém de paredes em pedra, com a área de cerca de 122 m2 (chamada garagem «B»), que tinha uma área descoberta de terra batida a poente (para o lado do prédio que pertencia ao tal P…) de cerca de 104 m2 (cfr. a resposta ao ponto 1º da b.i.). E já tinha aberto uma fossa de apoio e assistência mecânica às suas viaturas nessa área descoberta, que veio a ser cimentada em 1964 (cfr., também, a resposta ao ponto 1º da b.i.). Sendo que foi nessa área descoberta de cerca de 104 m2 que, entre 1975 e 1980, o J… construiu um armazém de blocos de cimento – a chamada garagem «A» (cfr., ainda, a resposta ao ponto 1º da b.i.).
O que significa que, antes de ser lavrada a referida escritura de 15/2/78, onde o V… figura como comprador e o P… como vendedor, já o J… fazia obras no prédio objecto daquela escritura, aí tendo construído a 2ª garagem (a chamada garagem «A»). Ora, segundo cremos, o que a referida testemunha quis dizer foi que, quando foi feita aquela garagem, o respectivo terreno pertencia ao J…, por o ter comprado ao P…, mas que, mais tarde, e, assim, «hoje em dia», tal terreno passou a pertencer ao V…, mas desconhecendo se foi ele ou o pai que fez o negócio. Isto é, a testemunha pareceu entrar em contradição em virtude de ter sido interrogada sobre factos ocorridos em momentos temporais diferentes.
Mas, no fundo, não há contradição. Até porque foram prestados vários depoimentos no sentido de que, apesar de o V… figurar como comprador na aludida escritura, quem verdadeiramente o comprou e depois o ofereceu àquele foi o seu pai J…. Por isso que não é de estranhar que a testemunha H…, quando interrogado sobre a pertença do prédio «hoje em dia», não tenha conseguido esclarecer se foi o pai ou o filho quem fez o negócio.
Assim, a testemunha A…, que foi motorista da autora durante 27 anos, referiu que dizem que o J… comprou o terreno do P… para o filho V…. O que é confirmado pelo depoimento da testemunha M…, que é sócia da autora e filha de J…, segundo o qual o seu pai é que comprou o terreno que é hoje do seu irmão V… . E pelo depoimento da testemunha J…, igualmente sócio da autora e filho de J…, segundo o qual foi o seu pai que comprou o terreno onde hoje está o seu irmão V…, tendo-o oferecido a este. E, ainda, pelo depoimento da testemunha L…, também sócio da autora e filho de J…, que referiu que o seu pai comprou o prédio verbalmente ao P… em 1963, pagando o respectivo preço, e que esse prédio é hoje do seu irmão V…, por figurar na escritura de compra e venda, mas que foi uma liberalidade feita pelo seu pai ao referido seu irmão.
Refira-se, ainda, que foram prestados depoimentos no sentido de que as garagens em causa foram construídas em prédios diferentes, sendo a 1ª (garagem «B») em prédio adquirido a J…, enquanto que relativamente à 2ª (garagem «A»), só a testemunha H… a identifica como construída em prédio adquirido a P….
Assim, a testemunha V…, que conheceu muito bem o J…, referiu que a 1ª garagem foi construída em terreno que pertenceu a J… e que a 2ª foi construída depois, mas em outro terreno que não do J…, não sabendo, contudo, de quem era. A testemunha P…, indicada pelo réu e que é amigo de infância deste e do pai, também referiu que as garagens estão construídas em terrenos de proprietários distintos.
Constata-se, pois, que a prova produzida não impõe uma decisão diversa quanto à matéria de facto impugnada, já que tal factualidade não se estriba exclusivamente no depoimento da testemunha H…, sendo que, de todo o modo, este merece credibilidade, resultando suficientemente apurada em face das circunstâncias concretas atrás referidas.
Haverá, assim, que concluir que, no caso, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto não pode ser alterada pela Relação, nos termos do art.712º, nº1, do C.P.C..
2.4.2. Segundo o recorrente, não existe matéria de facto provada que permita concluir que a autora alguma vez foi possuidora de qualquer uma das garagens e muito menos existe factualidade provada que permita indagar que se tenha operado uma transmissão da posse entre J… & Filhos, Ld.ª, e em que condições.
Alega a recorrida que é uma sociedade de cariz familiar, constituída pelo pai e pelos filhos, e que o conjunto das garagens foi inscrito na matriz em nome da sociedade, o que aconteceu em 1997 (artigo …), e não em nome de J…. Mais alega que, pela experiência da vida, todos sabemos que desde esta constituição societária todas as despesas com obras e reparações levadas a cabo nas garagens foram suportadas pela sociedade. Alega, ainda, que da parte de J… houve uma manifestação de vontade tácita de transmitir à sociedade a posse que tinha sobre o terreno e as duas garagens, seja por via da constituição da sociedade, seja por via da sua inscrição na matriz. Conclui, assim, a recorrida que a autora adquiriu por acessão a posse de J… e juntou a sua à dele e à dos anteriores possuidores, como a sentença recorrida reconhece.
Vejamos, antes do mais, a matéria de facto apurada que mais contende coma presente questão:
1. A construção a que se refere o prédio urbano composto por casa baixa telhada com duas divisões servindo de garagem, com superfície coberta de 225,972 m2 e área descoberta de 15,177m2, com área total de 241,149m2, confrontando a norte com estrada, a sul com F…, a nascente com servidão e a poente com V…, localizado nos…s, U…, inscrito na matriz urbana da freguesia da U… sob o art. …, foi edificada em três fases por J…, da seguinte forma:
a) a 1ª fase consistiu na construção de um armazém de paredes em pedra, com área de cerca de 122m2 e com uma área descoberta de terra batida a poente, de cerca de 104m2, o que ocorreu em 1962.
b) a 2° fase consistiu na abertura de uma fossa de apoio e assistência mecânica às suas viaturas nessa área descoberta, que veio a ser cimentada 1964.
c) a 3ª fase consistiu na construção de um armazém em blocos de cimento nessa zona descoberta e com área de cerca de 104 m2, o que ocorreu entre 1975 e 1980. (ponto 1º da b.i.)
2. Parte do terreno onde está construído a prédio identificado em l. chegou ao domínio de J… em 1960, através de acordo realizado entre aquele e J… e outra parte foi adquirida pelo referido J… a um primo de nome P…. (ponto 5º da b.i.)
3. Através desse acordo, J…. ficou com o terreno onde está construído parte do prédio a que se refere o ponto l. e J… com outro terreno localizado em local que não foi possível apurar concretamente. (ponto 6º da b.i.)
4. J…, quando iniciou as construções mencionadas em l. era comerciante em nome individual, tendo realizado tais construções para aí guardar e proceder à reparação dos autocarros que tinha e ao depósito de combustíveis que comercializava. (pontos 2º e 3º da b.i.)
5. Desde a construção e até ao momento, a A. dedica-se à exploração de transportes públicos na ilha de …. (ponto 4º da b.i.)
6. Logo após o acordo referido em 2. J… começou, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém:
a) a construir a garagem mencionada em l.
b) a granjeá-lo.
c) a colher frutos. ,
d) a pagar as contribuições do mesmo. (ponto 7º da b.i.)
7. Fê-lo na convicção de que exercia um direito seu e sem ofender direitos de terceiros. (ponto 8º da b.i.)
8. Depois de realizado o acordo mencionado em 2. J…, J… ou os herdeiros de ambos, jamais puseram em dúvida tal acordo. (ponto 9º da b.i.)
9. Desde 1962 a 2006, era nas construções mencionadas em l. que se guardavam, reparavam e mecanicamente se assistiam os autocarros da A., à vista de toda a gente. (ponto 10º da b.i.)
10. Desde 1962 até 2006, era em frente da garagem que os autocarros colhiam e deixavam os passageiros, o que faziam à vista de toda a gente. (ponto 11º da b.i.)
16. Todos os RR. tomaram conhecimento do acordo mencionado em 2. e 3. (ponto 13º da b.i.)
19. Desde 2006 a A. exerce a actividade de transportes noutras instalações. (ponto 21º da b.i.)
23. A A. mostra-se inscrita na CRComercial desde 12-10-1971, tendo como objecto o serviço de transportes colectivos e de passageiros e mercadorias, em carreiras regulares e em regime de aluguer, em carros pesados e ligeiros.
Face à referida matéria de facto, o que ressalta, desde logo, é que a maior parte dos factos relacionados com a posse das garagens se verificaram relativamente a J…, enquanto comerciante em nome individual. Assim, nos factos atrás enumerados de 1 a 4, 6 e 7, apenas se alude a actos materiais praticados por aquele. E quando se faz referência à sociedade autora é para se dizer que se dedica à exploração de transportes públicos na Ilha de … (ponto 5.) e que se mostra inscrita na Conservatória do Registo Comercial desde 12/10/1971, tendo como objecto o serviço de transportes colectivos e de passageiros e de mercadorias, em carreiras regulares e em regime de aluguer, em carros pesados e ligeiros (ponto 23.).
Ou, então, para se referir, como no ponto 9, que era nas garagens em questão que se guardavam, reparavam e mecanicamente se assistiam os autocarros da autora, à vista de toda a gente, desde 1962 a 2006. É certo que, em 2006, a autora passou a exercer a sua actividade noutras instalações (cfr. o ponto 19.). Todavia, em 1962, ainda não existia a sociedade autora, pois que só foi registada em 12/10/1971. Logo, entre 1962 e 1971, não poderia a autora guardar os seus autocarros nas referidas garagens ou pará-los em frente a elas para colher e deixar passageiros (cfr. o ponto 10.). Quando muito a partir de 1971, embora se desconheça a que título, porquanto a matéria de facto apurada nada esclarece a esse respeito.
Ora, tem-se entendido que o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, pois que, para que ela exista é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto, ou seja, é preciso que haja por parte do detentor a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa (cfr. o art.1253º, do C.Civil – serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem). Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.III, 2ª ed., págs.5 e 6, a aceitação da concepção subjectiva da posse levou o legislador, por motivos de equidade, a conceder excepcionalmente a defesa possessória em casos em que não existe posse por parte do detentor, por falta de animus possidendi. Um desses casos é o previsto no nº2, do art.1037º, nos termos do qual, «O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos arts.1276º e seguintes».
Assim, a causa de pedir, nas acções possessórias intentadas ao abrigo daquele preceito, não é a posse, mas antes a relação jurídica de mera detenção, no caso, locação, a que a lei estende a tutela possessória. A figura do detentor ou possuidor precário corresponde, pois, à situação daquele que, tendo embora o corpus da posse (a detenção da coisa), não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente. O que significa, no caso do inquilino de um prédio, que o mesmo habita a casa como se fosse proprietário, mas não o faz como tal, mas sim como locatário, apenas exercendo, em nome próprio, o direito obrigacional de arrendatário. Por isso que não age como beneficiário do direito de propriedade, sendo um possuidor em nome alheio, um representante do verdadeiro possuidor, que é o senhorio (cfr. as als.a) e c), do citado art.1253º). Estamos, deste modo, perante uma situação que tem por base um título do qual não resulta o direito real aparente, mas apenas o direito de reter a coisa e de a utilizar.
No caso dos autos, relativamente à autora sociedade, não foram apurados factos que permitam concluir que era possuidora das duas garagens, designadamente que tenha actuado por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (animus possidendi). É certo que o nº2, do art.1252º, estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus). No entanto, a parte final do mesmo artigo ressalva o caso de não ter sido ele o iniciador da posse, ao fazer referência ao nº2, do art.1257º, nos termos do qual se presume que a posse continua em nome de quem a começou. Ora, no caso, a posse começou em nome de J…. O que nos conduz à questão de saber se houve acessão da posse, nos termos do disposto no art.1256º.
Na sentença recorrida faz-se referência expressa a tal questão, nos seguintes termos:
«Não restam pois quaisquer dúvidas acerca da existência, em concreto, de actos materiais de posse por parte de J…o e depois da A. (constituída em Outubro de 1971) sobre o imóvel a que se referem os autos, ocorrendo aqui uma sucessão na posse, nos termos do disposto no art.1256º nº1 do C.Civil, juntando a A. a sua à posse do antecessor, J…».
E nada mais de diz a esse propósito. Todavia, o disposto no citado art.1256º exige uma mais larga indagação. Assim, resulta dos nºs 1 e 2 daquele artigo que a acessão da posse é a faculdade de, para efeitos designadamente de usucapião, o possuidor juntar à sua a posse do seu antecessor (nº1), e que, se a posse deste for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só ocorrerá dentro dos limites daquela que tiver menor âmbito (nº2). Daí que, por exemplo, o possuidor na qualidade de usufrutuário possa somar à sua posse a anterior do proprietário, já que no direito de propriedade se contém o usufruto. Ou que um possuidor de boa fé possa juntar uma posse anterior de má fé, ou vice-versa, embora em qualquer dos casos a posse seja considerada de má fé, por ser aquela que tem menor âmbito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.15).
A acessão é, pois, uma forma de aquisição derivada da posse, sendo que, como é sabido, as causas de aquisição da posse podem ser de duas espécies: aquisição originária e aquisição derivada.
Como refere Santos Justo, in Direitos Reais, pág.190, a aquisição originária decorre duma relação de facto entre o adquirente-possuidor e a coisa, sem a intervenção do antigo possuidor. Trata-se, assim, dum poder ex novo, já que a posse do adquirente não está dependente da posse anterior, nem quanto à existência, nem quanto à extensão. É na al.a), do art.1263º, que está prevista, em termos gerais, a aquisição originária da posse, referindo-se aí que a posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, enquanto que na al.d), do mesmo artigo, se prevê um caso especial de aquisição originária, referindo-se que a posse se adquire por inversão do título da posse (cfr.o art.1265º), isto é, através da conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse.
Por seu turno, a aquisição derivada está prevista, em termos gerais, na al.b), do mesmo artigo, onde se refere a tradição material ou simbólica, efectuada pelo anterior possuidor. Não se exige aqui, como se faz na al.a), a prática reiterada de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pois que a intervenção do antigo possuidor dispensa essa prática, bastando, para a existência do corpus, a entrega da coisa, material ou simbólica.
É o que acontece, como já se referiu, com a acessão da posse, nos termos do citado art.1256º. Mas já não no caso de sucessão por morte do possuidor, previsto no art.1255º,uma vez que aí não há aquisição de uma posse nova, sendo a posse do de cujus que continua no sucessor, independentemente da apreensão material.
Deste modo, ao contrário do que acontece na sucessão por morte, a acessão não dispensa, por parte do novo possuidor, o elemento material da posse, ou seja, o corpus. Segundo Henrique Mesquita, in Direitos Reais, Lições, pág.100, como a posse se adquire agora com o consentimento do possuidor anterior, o acto material integrador do corpus não tem de revestir a mesma intensidade que se exige para a aquisição originária, bastando uma entrega simbólica da coisa.
A junção ou acessão de posses, porém, não é arbitrária, antes está sujeita a certas regras que o Código Civil, no entanto, não menciona, mas que são assinaladas pelos autores (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.14, e Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 3ª ed., pág.251). Assim, as duas posses devem ser contínuas ou consecutivas, não podendo, pois, intrometer-se a posse de terceiro que inutilize a anterior. E devem ser, em princípio, homogéneas, não podendo, pois, aquele que tem a posse a título precário unir à sua detenção uma posse verdadeira, nem aquele que possui a título de proprietário unir à sua posse a daquele que haja possuído apenas como usufrutuário ou como titular de uma servidão.
Existe, no entanto, uma divergência doutrinal no que respeita à acessão da posse, que tem a ver com a questão de saber se será necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, formalmente válido. A resposta afirmativa foi dada por Manuel Rodrigues (cfr. ob.cit., págs. 252 e 253) e é seguida por Pires de Lima e Antunes Varela (cfr. ob.cit., pág.14).
Segundo Manuel Rodrigues, deve haver um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor, vínculo este que pode revestir várias modalidades: pode ser um negócio jurídico (venda, troca, dação em pagamento), mas pode ser uma expropriação, uma execução, etc.. Acrescentando que este vínculo deve ser válido.
Esta doutrina foi acolhida por Pires de Lima e Antunes Varela, que consideram ser necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores, a qual deve ser formalmente válida, o que não acontece, por exemplo, na venda de imóveis por mero acordo verbal.
Já Menezes Cordeiro entende que a afirmação de Manuel Rodrigues «choca pela falta de fundamentação e não tem qualquer paralelo em doutrinas estrangeiras que sejam do nosso conhecimento», e considera que «a transmissão da posse deve ser válida», mas que «não é preciso qualquer contrato válido: basta a tradição ou o constituto» e, ainda, que se «o Código Civil vigente admite a usucapião baseada na posse não titulada e de má fé, nestes casos nunca poderia haver acessão na posse (…) Seria um espantoso retrocesso histórico (que) não se pode ter por admitido».
Parecem-nos, estes últimos, argumentos de peso a ter em consideração quando houver necessidade de tomar posição expressa sobre tal questão. No entanto, no caso dos autos, segundo cremos, não há sequer necessidade de fundamentar uma qualquer tomada de posição. Na verdade, da matéria de facto apurada nada resulta no sentido de ter havido uma transmissão da posse, seja ela válida ou inválida. Aliás, tão pouco resulta que a autora tenha tido uma verdadeira posse, já que, quando muito, apenas se terá demonstrado o corpus. Sendo que, como já se referiu, aquele que tem a posse a título precário (no caso, a autora sociedade) não pode unir à sua detenção uma posse verdadeira (no caso, a exercida por J…).
Nota-se na presente acção que houve, desde o início, logo na petição inicial, uma grande promiscuidade, no que respeita à matéria de facto alegada, entre a detenção das garagens por parte do referido J…. e da sociedade autora, não se distinguindo devidamente quando acabou a primeira e quando começou a segunda, e muito menos se esclarecendo a que título a mesma teria sido transmitida. Confusão essa que perpassou ao longo de todo o processo, designadamente em sede de instrução, e que veio, a final, a inquinar a própria sentença recorrida.
Por isso que, face a essa indistinção, a recorrida teve necessidade de alegar, nas contra-alegações, que é uma sociedade de cariz familiar, constituída pelo pai, J…, e pelos filhos, e que houve, por parte daquele, uma manifestação de vontade tácita de transmitir à sociedade a posse que tinha sobre o terreno e as duas garagens, seja por via da constituição da sociedade (1971), seja por via da inscrição das garagens na matriz em nome daquela (1997). Tendo, ainda, apelado à experiência da vida para justificar que, após a constituição da sociedade, todas as despesas com obras e reparações efectuadas nas garagens teriam sido suportadas por ela.
Só que, nem a invocada manifestação de vontade tácita, nem a alegada experiência da vida, são susceptíveis de fundamentar uma qualquer transmissão da posse. Era necessário alegar, pelo menos, uma tradição das garagens, fosse através de uma actividade exterior que se traduzisse nos actos de entregar e receber (tradição material) ou fosse uma tradição simbólica. Isto para quem entenda não ser exigível, para a junção ou acessão de posses, a existência de um vínculo jurídico válido entre o novo e o antigo possuidor.
Haverá, assim, que concluir que da matéria de facto apurada não resulta que a autora tenha alguma vez sido possuidora de qualquer uma das garagens ou que se tenha operado uma transmissão de posse entre J… e a autora.
Deste modo, não é possível concluir, como se concluiu na sentença recorrida, que a autora é proprietária do prédio urbano reivindicado, por o ter adquirido por usucapião. Na verdade, falta desde logo o 1º requisito previsto no art.1287º, qual seja, a posse do direito de propriedade, uma vez que não logrou a autora demonstrar que possuía como proprietária.
A acção de reivindicação prevista no art.1311º é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela, embora nada impeça que o autor da reivindicação junte àqueles dois pedidos um pedido de indemnização.
A causa de pedir, na acção de reivindicação, é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade (art.498º, nº4, do C.P.C.), sendo que, no caso dos autos, a autora invocou a usucapião (e a acessão), pelo que precisaria de provar os factos de que emerge o seu direito. Não os tendo provado e recaindo sobre ela o respectivo ónus da prova (art.342º, nº1), não poderão deixar de ser desatendidas as pretensões da autora.
Procedem, assim, nesta parte, as conclusões da alegação do recorrente, devendo, pois, ser revogada a sentença recorrida, no que respeita aos seus pontos 5 a 8, atrás transcritos.

3 – Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a sentença apelada, nos termos atrás referidos.
Custas pela autora – apelada, em ambas as instâncias.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2013

Roque Nogueira
Pimentel Marcos
Tomé Gomes