Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | NUNO GONÇALVES | ||
Descritores: | CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO CLÁUSULA PENAL SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA DANO DE PRIVAÇÃO DE USO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | - Em face do princípio do pedido, o tribunal está impedido de condenar em quantia superior ou em objeto diverso do que for pedido pela autora; - O pedido é um conceito que pode assumir várias acepções, mas que, no âmbito processual, se usa para designar a solicitação do autor de uma actuação judicial determinada (condenação, declaração, execução, arresto ou outra); - Em face da evolução legislativa, a concepção formal da actuação do tribunal é mitigada pelos poderes e deveres de adequação substancial desde que sufragada pelos princípios legalmente consagrados; - Peticionando a autora a condenação da ré a restituir um veículo automóvel e a imposição de cláusula penal pela não entrega, a decisão que fixa uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na restituição não ofende o princípio do pedido (condenação em quantia superior ou em objeto diverso do que for pedido); - A distinta qualificação jurídica entre “cláusula penal” e “sanção pecuniária compulsória” não impede o juiz de reconduzir a decisão em face da qualificação jurídica tida por correcta e que se adequa inequivocamente à pretensão material da autora; - A indemnização pela privação do uso da coisa deverá assentar na alegação de factos que evidenciem directamente ou façam presumir um dano concreto. A mera privação do uso, sem repercussão negativa no património do lesado não é susceptível de fundar qualquer obrigação de indemnização. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório. 1.1. A autora S, Lda., com sede (…) em Castro Verde, demandou a ré F, Limitada, com sede (…) em Lisboa, peticionando a procedência da acção nos seguintes termos: a) Condenando-se a Ré a restituir à Autora o veículo automóvel identificado no artigo 1 desta petição e mais bem identificado em registo automóvel, sem conceder que o valor do veículo indicado nesta P.I., poderá ser muito inferior ao preço de mercado, pelo que se requer seja imposta cláusula penal pela não entrega. b) Condenar a Ré, num valor diário por cada dia de incumprimento e privação da Autora de usufruir do bem, desde a data de 01 de outubro de 2018 (data de pedido de devolução da viatura e findo o prazo da prestação de serviços) até efetiva entrega. c) Condenar a Ré, em juros comerciais pelo incumprimento na entrega e privação de uso, à Autora. Alegou para o efeito que é proprietária do referido veículo, com o valor comercial de € 12.000, que entregou à ré para proceder à avaliação das necessidades de reparações e manutenção no prazo de 15 dias. A dada altura do mês de Setembro de 2018 pediu à ré a devolução da viatura, mas esta nega-se a devolvê-la. Pretende que seja determinada indemnização pelos danos causados, oficiosamente, tendo por comparação uma tabela de aluguer de veículos da mesma categoria por dia, usando fonte aberta em agências de aluguer de veículos, ou que se tenha por base um valor diário mínimo de 25€, desde a data de 30 de setembro de 2018. * 1.2. Por despacho proferido no dia 13/11/2023, foi rejeitada a contestação apresentada pela ré. * 1.3. De seguida, foi proferida sentença com a seguinte parte decisória: “Pelo exposto, julga-se totalmente procedente esta ação e: 1. Condena-se a ré a restituir o veículo à autora. 2. Fixa-se sanção pecuniária compulsória de €50,00 por cada dia de atraso na restituição. 3. Condena-se a ré a pagar à autora a quantia a liquidar posteriormente, correspondente a €2 5,00 por dia desde 1 de Outubro de 2018, até à restituição do veículo à autora, acrescida de juros comerciais, por privação do uso do veículo”. * 1.4. Contra a sentença, a ré insurge-se por meio do presente recurso de apelação em que formulou as seguintes conclusões: 1. Como é consabido, na observância do princípio do dispositivo, o tribunal está impedido de condenar em quantia superior ou em objeto diverso do que for pedido pela Autora. 2. Lê-se na sentença prolatada “Por forma a assegurar a efetividade da providência decretada, procede-se à requerida fixação de sanção pecuniária compulsória de €50,00 por cada dia de atraso, cf. artigo 829.º-A, do Código Civil.” 3. Compulsada a petição inicial, em lado nenhum a Autora peticiona a aplicação à Ré de uma sanção pecuniária compulsória e não se diga que na alínea a) do petitório - “Condenando-se a Ré a restituir à Autora o veículo automóvel identificado no artigo 1 desta petição e mais bem identificado em registo automóvel, sem conceder que o valor do veículo indicado nesta P.I., poderá ser muito inferior ao preço de mercado, pelo que se requer seja imposta cláusula penal pela não entrega” - Está implícito um pedido de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, pois uma cláusula penal não se assemelha, a uma sanção pecuniária compulsória. 4. A sanção pecuniária compulsória a que alude o artigo 829.º A do Código Civil, assume, assim, natureza judicial por ser determinada pelo tribunal a pedido do credor, estando vedado ao tribunal conhecer a mesma oficiosamente. 5. Não tendo sido requerida pela Autora a aplicação de sanção pecuniária compulsória, não a podia o Tribunal a quo oficiosamente determinar, pelo que com tal condenação feriu a sentença de nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 615.º, n. º1, alíneas d) e e) do CPC., o que se alega com todas as legais consequências. 6. Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido; 7. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outras situações, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa. 8. Tendo em consideração tal princípio, as regras da distribuição do ónus da prova a alegação feita pela Autora na sua petição inicial, e a confissão dos factos ocorrida por força da aplicação do n.º 1 do artigo 567º do CPC, entende a Ré que o Tribunal a quo deveria ter considerado como provado que o próprio Autor solicitou que não fossem realizadas quaisquer manutenções ou reparações no veículo – ponto 8 e 9 da PI. 9. Deverá constar da matéria de facto os seguintes pontos: 8. Nesta factualidade e dadas as relações de amizade que havia entre ambos, a Autora contactou o Réu pedindo-lhe a devolução do veículo automóvel identificado em 1, e objeto neste processo, no estado em que a mesma se encontra ou encontrava, solicitando que, uma vez que os serviços solicitados na viatura ainda não haviam sido iniciados/avaliados como necessários a prestar, que os mesmos não fossem realizados, …reclamando apenas a devolução do veículo; 9. … assumindo apenas e como prestado o serviço de avaliação das reparações a realizar, não autorizando a Autora qualquer reparação ou manutenção… o que diga-se, também não havia sido informado como necessário. 10. Não ignorando a Apelante o efeito cominatório do desentranhamento da contestação por apresentação extemporânea do articulado, isto é - a confissão dos factos articulados pela Autora, nos termos e para os efeitos dos artigos 566.º e 567.º, n.º 1, do CPC. 11. Tal não significa necessariamente a procedência total ou parcial do pedido formulado na petição inicial pela Autora. 12. Quando se consideram confessados os factos, por falta de contestação, a causa é julgada “conforme for de direito” (n.º 2, in fine, do artigo 567.º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da ação, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno - (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 630). 13. A sentença proferida faz uma errada aplicação do direito aos factos dados como provados. 14. No caso dos autos, o meritíssimo juiz a quo desconsidera factos alegados pela Autora e dados como provados e faz uma errada interpretação e aplicação do direito. 15. Toda a sentença foi redigida e pensada tendo por base a celebração entre as partes de um contrato de prestação de serviços de reparação de um veículo. 16. Em lado nenhum da Petição inicial, a Autora alega factos que levem o tribunal a concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e a Ré, nem da matéria de facto assente resulta a celebração de tal contrato. 17. Na verdade, conforme consta dos pontos n.º 2 e 5 dos factos provados, a Autora S pediu apenas à Ré um orçamento para reparação e manutenção do veículo identificado nos autos. 18. Tal comportamento não corresponde à manifestação de vontade de celebrar um contrato de prestação de serviços, mas a uma mera consulta de mercado, como se depreende da alegação feita ao longo da Petição inicial e designadamente dos artigos 4º, 8º, 9º, 15º. 18º da petição inicial. 19. Tanto assim que inexistiu qualquer sinalagma, na medida em que o Autor não alega nem prova a realização de qualquer pagamento, aliás, assume que não existiu qualquer pagamento nem lhe foi peticionado pela Ré qualquer montante. 20. Não se pode, pois, o Tribunal a quo concluir, como fez na sentença que da factualidade provada resulta que as partes celebraram um contrato de prestação de serviços, pelo qual a ré se obrigou, no âmbito da sua atividade, a reparar veículo da autora, no prazo de 15 dias, através de retribuição. 21. Com todo o respeito a própria petição inicial é contraditória na alegação dos factos que consubstanciam a causa de pedir, mas tal não deveria servir para dar como provada a celebração de um contrato de prestação de serviços que não existiu e que a própria Autora nega. 22. A Ré não se obrigou a reparar o veículo, como consta da sentença, a Autora pretendia um orçamento para posteriormente e eventualmente poder decidir se celebraria o contrato de prestação de serviços ou não - esta e a única conclusão que se retira dos factos alegados e que resultaram provados por confissão. 23. Não tendo ficado provada a celebração do contrato de prestação de serviços, o que ressalta a olhos vistos, falece, pois, toda a argumentação de direito expendida na sentença proferida, naufragando, ainda, a condenação da Ré feita no dispositivo da sentença. 24. Não existindo contrato de prestação de serviços, ou não tendo este ficado provado, não pode existir mora, incumprimento definitivo, resolução do contrato, ou condenação em indemnização por interesse contratual negativo. 25. Por maioridade de razão, não tem, ainda, aplicabilidade ao caso dos autos os artigos 798º e 799º do Código Civil, pois não estão reunidos os requisitos legais para a sua aplicação por falta de contrato celebrado entre as partes. 26. O mesmo se diga para a aplicação do artigo 801º do Código Civil que exige reciprocidade e sinalagma e no seu n.º 2 que o credor já tenha cumprido a sua obrigação, o que não vem alegado, nem resultou provado. 27. Que falece também a condenação da Ré no montante diário de 25,00€ por privação de uso da viatura. 28. Não sendo possível imputar à Ré incumprimento definitivo por falta de assunção de obrigação a que estivesse adstrita, não pode ser condenada a pagar indemnização por privação de uso. 29. Por todo o exposto é inegável que incorreu o meritíssimo juiz a quo em erro de julgamento. 30. É claro e evidente o erro de aplicação ao caso dos autos do regime do incumprimento definitivo e resolução de contrato e designadamente das normas contidas nos artigos 798º, 799º e 801º todos do Código Civil, pelo que deve a sentença ser revogada e substituída por outra que absolva a Ré do pedido. * 1.5. Não foram apresentadas contra-alegações. * 1.6. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte: - Invocada insuficiência da matéria de facto; - Arguida nulidade por violação do princípio do pedido; e, - Pressupostos para a indemnização por privação de uso. * 2. Fundamentação. 2.1. Foi julgado provado que: 1. O Autor é legítimo e exclusivo proprietário e possuidor de um veículo automóvel marca Citroen, matrícula (…), veículo que adquiriu em nome da autora na data de 23-08-2018, a que corresponde o modelo 2 CV (dois cavalos) 6 Club (AZKAOO), com o nº de quadro (…) e certificado de matrícula (…), ativa, que se encontra registado a seu favor, conforme documento anexo (Doc. 2). 2. Em Setembro de 2018, a autora entregou o identificado veículo à Ré, para esta, nos serviços que presta, realizar uma avaliação das necessidades de reparações e manutenção do veículo, de forma a preparar este para revisão anual a executar após avaliação, com o intuito de após reparação, realizar inspeção periódica, para poder a autora participar num encontro de veículos deste tipo e classe, “clube dois cavalos”. 3. Ficou acordado entre ambos que a Ré entregaria o veículo à Autora, logo que concluído o serviço, o que se calculou por 15 dias (15 dias não pela quantidade de serviço a prestar, mas, por desnecessidade de uso diário do veículo), mas nunca após o dia 20 de setembro de 2018, para que o Autor pudesse usar o veículo, como era sua intenção, no convívio de 2CV. 4. Sucede que a Ré não entregou o veículo automóvel ao Autor, na data que estava acordada. 5. A autora pediu à Ré a entrega da viatura, no estado em que se encontrava, ainda no decurso do mês de setembro de 2018. 6. A Ré não devolve a viatura, não informa qual o valor em dívida resultante do orçamento pedido, não responde ao pedido de devolução, não responde. 7. O valor diário da privação do veículo corresponde a €25,00, desde a data de 30 de setembro de 2018. * 2.2. A questão da insuficiência da matéria de facto. A ré considera que foram alegados outros factos pela autora e que interessam à boa decisão da causa, nomeadamente que não se procedeu a qualquer reparação no veículo e concluindo que inexistiu qualquer contrato de prestação de serviço. Sucede que os factos que a ré indica se traduzem basicamente numa repetição dos factos essenciais já fixados – particularmente nos números 2 e 5 – em que se alude à solicitação da avaliação das reparações a realizar e à exigência da devolução do veículo. Logo, o pretendido aditamento revela-se inútil, porque nada adianta para alterar o sentido ou o alcance da decisão. Além disso, a argumentação da apelante ignora duas circunstâncias relevantes, a saber: 1.º De acordo com a noção do art.º 1154.º, do Código Civil, a prestação do serviço a título oneroso importa para quem o presta a obrigação de proporcionar o resultado e para quem o recebe a obrigação de pagar a retribuição – art.º 1167.º, alínea b), ex vi art.º 1156.º, do Código Civil. Trata-se de um contrato bilateral, que importa para as partes obrigações sinalagmáticas. Pode revestir várias modalidades, tais como mandato, o depósito e a empreitada. Não se acompanha a sentença na parte em que afirma que a “a ré se obrigou, no âmbito da sua atividade, a reparar veículo da autora”, pois o que a autora alegou e resulta provado é que esta “entregou o identificado veículo à Ré, para esta, nos serviços que presta, realizar uma avaliação das necessidades de reparações e manutenção do veículo, de forma a preparar este para revisão anual a executar após avaliação, com o intuito de após reparação, realizar inspeção periódica, para poder a autora participar num encontro de veículos deste tipo e classe, “clube dois cavalos”. Pese embora a redacção do texto formulado pela autora não primar pela simplicidade e capacidade de síntese, o que daí se retira é que foi solicitada à ré a avaliação das necessidades de reparações e manutenção do veículo. A reparação seria algo a realizar em momento ulterior, sem que se explicite por quem ou em que condições. A própria redacção da autora procura deliberadamente separar a avaliação das necessidades de reparação da reparação propriamente dita, por razões que só aquela saberá. Ora, a avaliação das necessidades das necessidades de reparações e manutenção do veículo consubstancia em si um certo resultado. Não é incomum que se solicite um diagnóstico ou avaliação das necessidades de intervenção numa máquina – como sucede com um veículo automóvel -, eventualmente até acompanhada de um orçamento, antes de decidir qualquer intervenção ou reparação. Tal actividade de diagnóstico ou avaliação consubstancia um serviço ou resultado autónomo, independentemente da ulterior intervenção de reparação ou manutenção. Ou seja, os factos provados já revelam a celebração de um contrato de prestação de um serviço de avaliação das necessidades de reparações e manutenção do veículo; 2.º A causa de pedir apresentada pela autora é complexa e não se esgota apenas na prestação de serviços. Basta atentar que a autora alegou e demonstrou que é legítima e exclusiva proprietária e possuidora de um veículo automóvel. Ora, a lei tutela o direito de propriedade e sua defesa, facultando ao proprietário a faculdade de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence – art.º 1311.º, do Código Civil. Manifestamente, a ré não apresentou qualquer razão para obstar ao pedido de restituição formulado pelo proprietário e a factualidade que invoca não belisca minimamente o exercício do direito de propriedade da autora. Por conseguinte, entende-se que o aditamento sustentado pela ré se revela inútil. * 2.3. A arguida nulidade por violação do princípio do pedido. A apelante sustenta que, tendo a apelada peticionado a imposição de uma cláusula penal pela não entrega do veículo, a fixação na sentença de uma sanção pecuniária compulsória de € 50 por cada dia de atraso na restituição do mesmo consubstancia a violação do princípio do pedido. Concorda-se com a primeira conclusão apresentada nas doutas alegações de recurso em como, na observância do princípio do dispositivo, o tribunal está impedido de condenar em quantia superior ou em objeto diverso do que for pedido pela autora. É o que resulta taxativamente do artigo 609.º, n.º 1, do Código Civil, e que limita a condenação. A violação desta proibição importará na nulidade da sentença – vd. art.º 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. Aliás, tal regime decorre mais especificamente do princípio do pedido, pois o n.º 1, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil, consagra a necessidade do pedido: O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. Um dos requisitos da petição é precisamente a formulação do pedido – vd. art.º 552.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. Não obstante, cumpre também salientar que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. E ainda que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Porém, importa precisar o âmbito de actuação e de decisão do juiz, posto que, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/9/2022, nomeadamente invocando os ensinamentos de Teixeira de Sousa, “a concepção liberal do princípio do dispositivo, dominada pela passividade do juiz, em que às partes é concedido o controlo sobre o processo e sobre os factos relevantes para a resolução do litígio e que minimiza o papel do juiz e dos terceiros para essa resolução, em que a legitimação da decisão está unicamente dependente da observância das regras e dos pressupostos processuais, não tem presente o interesse público que subjaz a todo e qualquer processo, em que a finalidade última é a de dirimir um conflito com vista a alcançar a pacificação social entre os litigantes, em particular, e da sociedade em geral e que essa pacificação só será efectivamente alcançada quando o processo assegure a obtenção da verdade formal, intra processual, mas acautele também a verdade material e a consequente obtenção de decisões materialmente justas. De resto, essa concepção tradicional e liberal da figura do juiz enquanto “boca da lei” ignora que a actividade deste não é, sequer nunca foi, puramente neutra, uma vez que entre a lei e a respectiva aplicação se interpõe necessariamente uma actividade intermediadora do juiz, que é a actividade interpretativa da lei, a qual nunca é neutra, sequer imune a uma determinada ideologia, resultante da inserção do juiz na concreta comunidade histórica em que se insere. Deste modo, há muito que se abandonou a concepção liberal de processo, assente exclusivamente no princípio do dispositivo e se tem paulatinamente avançado para um sistema misto, em que aquele princípio tem vindo sistemática e progressivamente a ser mitigado pelo princípio do inquisitório, de que a Lei n.º 41/2013, de 26/06, é exemplo, ao dar passos decisivos no sentido dessa mitigação, ao libertar as partes e o juiz de espartilhos processuais, os quais acabam por promover a prolação de decisões de forma em detrimento das substantivas e reforçando os poderes do juiz. Agora, as partes repartem com o tribunal o domínio sobre o processo e elas próprias são consideradas uma fonte de informações relevantes para a decisão da causa; - as partes e terceiros estão obrigados a um dever de cooperação com o tribunal; - a legitimação da decisão depende da sua adequação substancial e não apenas da sua correcção formal; - as regras processuais podem ser afastadas quando não se mostrem idóneas para a justa composição do litígio” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 605/17.0 T8PVZ.P1.S1. O pedido é um conceito que pode assumir várias acepções, mas que, no âmbito processual, se usa para designar a solicitação do autor de uma actuação judicial determinada (condenação, declaração, execução, arresto ou outra) – vd. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, AAFDL, 1987, Volume 2, pág. 357. Ora, a autora alegou que tem reclamado a sua viatura desde início de 2019 e peticionou a condenação da ré na entrega do veículo. Além desse pedido, requer que seja imposta cláusula penal pela não entrega. Ou seja, há um outro pedido, expresso e autónomo, que exige a pronúncia do tribunal. Facilmente se percebe que a imposição de uma cláusula penal se traduz materialmente no pagamento pela ré à autora de uma importância pecuniária devida pela não entrega da viatura. Na verdade, a cláusula penal prevista no artigo 810.º, do Código Civil, é acima de tudo uma indemnização, fixada em dinheiro, a ser paga pelo devedor. Não se verificam os requisitos para a condenação da ré a pagar uma indemnização à autora a título de cláusula penal, porque as partes não a fixaram por acordo. No entanto, com vista à realização coactiva da prestação, a lei admite nalguns casos a condenação do devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso – art.º 829.º-A, do Código Civil. Atendendo ao raciocínio lógico evidenciado na petição inicial e no segmento em que foram deduzidos os pedidos, a pretensão da ré reconduz-se ao pagamento de uma quantia pecuniária pelo atraso no cumprimento da decisão de entrega do veículo. Assim, por muito que a apelante sustente que não se pode dizer que o pedido de imposição de cláusula penal não tem implícito um pedido de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, a realidade é que a autora pretende materialmente que a ré lhe pague uma importância pecuniária pela não entrega do veículo. A diferença entre os institutos jurídicos da “cláusula penal” e da “sanção pecuniária compulsória” é evidente para um jurista mediano, mas para o destinatário comum o efeito prático da decisão que condene numa ou noutra é o mesmo: o devedor pagará uma prestação pecuniária pela violação do dever de entrega do veículo automóvel. A designação e as especificidades do regime de um dos institutos não deverão afastar a requerida tutela jurisdicional, pois a decisão não implica qualquer surpresa ou indevida ingerência do juiz nas pretensões formuladas pelas partes. O juiz limitou-se a apreciar e a reconhecer o pedido da autora em face de um distinto instituto jurídico. “A norma jurídica do n.º 1 compadece-se com o poder de o juiz dar ao pedido uma qualificação jurídica diversa da que lhe haja sido dada pela parte que o deduziu” - Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2, 4.ª Edição, pág. 718. Há uma correspondência, em termos práticos ou concretos, entre o que a autora pediu e o que o juiz lhe concedeu, pois como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2022, publicado no Diário da República de 18 de outubro de 2022: “o juízo objectivado na referida decisão é o “determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objeto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor”. Por conseguinte, indefere-se a arguida nulidade da sentença por violação do princípio do pedido. * 2.4. A questão da indemnização por privação de uso. A apelante sustenta ainda “que falece também a condenação da Ré no montante diário de 25,00€ por privação de uso da viatura, não sendo possível imputar à Ré incumprimento definitivo por falta de assunção de obrigação a que estivesse adstrita, não pode ser condenada a pagar indemnização por privação de uso”. Em vista da factualidade apurada, afigura-se evidente que, ao contratar com a autora, a ré assumiu a obrigação principal de avaliar das necessidades de reparações e manutenção do veículo daquela. Mas o contrato também importa para a ré o dever acessório de restituir o veículo à autora, findo o prazo convencionado para a realização da avaliação – cfr. art.º 1161.º, alínea e), ex vi art.º 1156.º, do Código Civil. O incumprimento desse dever presume-se culposo e importa o dever de indemnizar – art.ºs 799.º e 483.º, do Código Civil. Mas o dever de indemnizar também pressupõe a verificação de um dano concreto e de um nexo causal entre o dano e o facto ilícito, neste caso o incumprimento da obrigação de entrega do veículo automóvel. No que diz respeito à tutela do dano pela privação do uso, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se consolidado o entendimento de que “a privação do uso representa um facto ilícito (art.º 1305º do CC), a obrigação de indemnização depende da existência de danos; e de um nexo de causalidade entre os mesmos e o facto, devendo a indemnização pecuniária ser medida em função da diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (art.º 566º, nº 2 do CC). A indemnização não prescinde, pois, do apuramento dos factos que revelam a existência de dano na esfera patrimonial da pessoa afectada. Assim, a mera privação do uso, sem repercussão negativa no património do lesado não é susceptível de fundar qualquer obrigação de indemnização”. (…) “O uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade (concreta) desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento do património; é nesta diferença patrimonial concreta e efetiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, em que consiste o dano da privação do uso” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/10/2023, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 19837/16.2T8SNT.L1.S1 A propósito da questão do dano, a sentença julgou provado que: “O valor diário da privação do veículo corresponde a €25,00, desde a data de 30 de setembro de 2018” – facto n.º 7. Porém, tal afirmação resulta apenas numa conclusão ou juízo de valor relativamente a uma importância pecuniária diária meramente abstracta, porque não concretiza a forma como se produziu esse dano (vg. perda de um rendimento da utilização do veículo; encargos com a substituição do veículo; etc.). A natureza abstracta dessa afirmação evidencia-se pelo uso da expressão “corresponde”. Quando referimos que algo corresponde, estamos a afirmar uma relação mútua entre, pelo menos, duas coisas ou ideias ("correspondência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/correspond%C3%AAncia). Ora, tal expressão não afirma a correspondência entre duas realidades concretas, mas meramente entre dois conceitos: o dano da privação abstractamente considerado e um valor pecuniário abstractamente alcançado (uma tabela de aluguer de veículos da mesma categoria por dia invocada pela autora). Além disso, essa afirmação vai além do que foi alegado na petição inicial, pois, em rigor, a autora apenas alegou que sofreu privação do uso [certamente por lapso, escreveu-se privacidade do uso no art.º 26.º, da p.i.] e que o dano deverá ser ressarcido tendo por comparação uma tabela de aluguer de veículos da mesma categoria por dia. A autora não afirma que a privação do uso lhe causa um prejuízo diário de €25, mas sim que a privação do uso deverá ser indemnizada por comparação a uma tabela de aluguer de veículos. E o valor que as empresas de aluguer cobram diariamente apenas revela o rendimento bruto e não o fruto ou provento da coisa, pois a esse valor haverá que subtrair os encargos com a aquisição dos veículos, impostos, taxas, manutenção, seguros, encargos com pessoal e despesas administrativas. Por outro lado, a autora não concretiza sequer qual é o uso que dava ao veículo, nomeadamente se o alugava. Pelo contrário, até constrói uma narrativa totalmente alheia ao uso comercial ou rentável da coisa (vg. invocando a oferta por um grupo de amigos e clientes ao sócio-gerente André Colaço; apelando ao “valor estimativo” e não à rentabilidade da coisa; referindo apenas como uso da coisa a sua participação num encontro de veículos deste tipo e classe, “clube dois cavalos”). A autora omite por completo a alegação de factos que permitam alcançar a conclusão directa ou por presunção do dano concreto da privação. Daí que a afirmação do facto n.º 7 se deva por ter como não escrita, em face da sua natureza conclusiva. Importa ainda considerar em termos de raciocínio lógico que a autora alegou que o valor comercial do identificado veículo é de aproximadamente € 12.000 – vd. art.º 2.º, da douta petição inicial. A atribuição de uma indemnização por privação de uso no valor diário de € 25, necessariamente pressupõe que o seu uso gera um rendimento anual líquido de € 9.125, ou seja uma rentabilidade anual líquida superior a 76%. Num momento em que o Estado remunera os certificados de aforro com uma taxa bruta anual de 2,5% e em que qualquer administrador de empresa cotada na bolsa cuja rentabilidade anual atinja reiteradamente os 8% é logo eleito como “Gestor do Ano”, parece que a autora acertou na fórmula mágica: comprar um veículo Citröen 2 CV por € 12.000 e usá-lo (?) de forma a obter uma rentabilidade anual líquida superior a 76%. Naturalmente, não se põe em causa que um negócio possa gerar consistentemente tão elevada rentabilidade ou que a ciência dos juristas não possa superar a dos economistas, mas a verdade é que os resultados excepcionais terão que se basear em factos igualmente excepcionais e devidamente concretizados. Para mais, quando se nota igualmente que a autora também admitiu que pretendia participar num encontro de veículos deste tipo e classe (“clube dois cavalos”) e que não havia pressa na prestação do serviço por desnecessidade de uso diário do veículo – cfr. artigos 4.º e 20.º da petição inicial. Tudo isto é contraditório, pois se a autora dispusesse de algo que lhe proporcionava uma rentabilidade anual líquida de superior a 76% seria de supor que exigisse a maior brevidade no período de imobilização. Pelo menos, tal é o objectivo das empresas que prosseguem o lucro. A privação do uso da coisa poderá ou não causar um dano, precisamente em função do uso que concretamente seja ou não dado a essa mesma coisa, seja em termos de rentabilidade (vg. aluguer), de comodidade (vg. proporcionar as deslocações regulares do proprietário e família) ou de despesas emergentes (vg. necessidade de alugar um veículo de substituição ou de utilizar transportes públicos). Por conseguinte, não tendo a autora alegado factos que permitam sequer afirmar que a privação do uso da viatura lhe causou algum dano concreto, concorda-se com a conclusão da apelante em como falece a condenação da Ré no montante diário de 25,00€ por privação de uso da viatura, devendo a sentença ser revogada nesta parte. * 3. Decisão: 3.1. Pelo exposto, acordam em: a) Revogar a sentença na parte em que decidiu condenar a ré a pagar à autora a quantia a liquidar posteriormente, correspondente a €25,00 por dia desde 1 de Outubro de 2018, até à restituição do veículo à autora, acrescida de juros comerciais, por privação do uso do veículo; e, b) Julgar improcedente a apelação quanto às demais questões e em confirmar a sentença na restante parte. 3.2. As custas são a suportar pela apelante e pela apelada, na proporção de 1/8 e 7/8, respectivamente, em vista do parcial decaimento de ambas. 3.3. Notifique. Lisboa, 12 de Setembro de 2024 Nuno Gonçalves Jorge Almeida Esteves Anabela Calafate |