Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9630/17.0T8LSB.L2-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ENTREGA JUDICIAL
LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I – Um dos requisitos da providência cautelar de entrega judicial prevista no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24-06 (Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira) é o termo do contrato de locação financeira, quer por resolução, quer por decurso do prazo sem que o locatário tenha exercido o direito de compra do bem, sendo que, como resulta do art. 17.º, n.º 1, desse diploma legal, o contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte.
II – Resultando das regras gerais constantes dos arts. 432.º, n.º 1, 436.º, n.º 1, e 808.º do CC, bem como do expressamente previsto nas condições gerais do Contrato em apreço, que o mesmo poderia ser resolvido pela locadora mediante prévia interpelação admonitória da locatária para pagamento das rendas em mora e que a resolução se poderia fazer mediante declaração à outra parte, para a sede deste última tal como identificada no Contrato, é ainda indispensável aferir da eficácia de tais comunicações (ambas a realizar por carta registada com a/r) à luz do disposto no art. 224.º do CC.
III – Desse preceito, conjugado com o art. 342.º do mesmo Código resulta ainda que: se uma carta contendo uma interpelação admonitória ou uma comunicação para resolução do contrato não chega a ser entregue ao destinatário, tal interpelação/comunicação só será eficaz, se o destinatário foi o exclusivo culpado da não entrega; tendo a parte interessada em prevalecer-se da resolução contratual alegado e provado o envio de carta registada com a/r para esse efeito, incumbirá à parte contrária, interessada na manutenção da vigência do contrato, alegar e provar os factos dos quais resulte não ter sido por culpa sua que a não recebeu.
IV – No caso, não se pode considerar que tenha sido por culpa exclusiva da Requerida que as cartas enviadas pela Requerente (em 09-12-2015 e 15-01-2016) não foram entregues, quando, em face do contexto fáctico (indiciariamente) provado, se verifica que o motivo pelo qual a locatária, Requerida, não rececionou tais cartas (e que era, aliás, do conhecimento da Requerente) foi o facto de o único sócio e gerente da Requerida - então domiciliado numa morada distinta da indicada no Contrato para sede desta sociedade - estar sujeito (por força de decisão datada de 05-12-2015) às medidas de coação de prisão preventiva, de suspensão do exercício de funções de gerente da sociedade Requerida e de proibição de contactos com todos os funcionários dessa sociedade, medidas de coação essas que só mais tarde vieram a ser revogadas.
V – No procedimento cautelar de entrega judicial de imóvel previsto no art. 21.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, não pode ser decretada a inversão do contencioso, apenas tendo cabimento legal a figura da antecipação do juízo da causa principal; perante o indeferimento da providência requerida, por não se poder considerar que o direito à resolução do Contrato tenha sido validamente exercitado, não está a Requerente dispensada de peticionar, em sede de ação declarativa, o reconhecimento desse direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
A …, S.A. interpôs o presente recurso de apelação da decisão final que julgou improcedente a providência cautelar de entrega judicial do imóvel identificado nos autos (objeto de contrato de locação financeira) que instaurou contra B …, LDA..
No Requerimento inicial, apresentado em 21-04-2017, o Requerente peticionou que fosse decretada:
i. A restituição imediata ao Requerente da fração que identifica, livre e devoluta de pessoas e bens, e em bom estado de conservação;
ii. A procedência da referida providência cautelar sem precedência de audiência prévia da Requerida, sob pena de colocação em risco do fim e eficácia da mesma providência.
Alegou, para tanto, o seguinte (omite-se apenas o que foi alegado no sentido da dispensa da audiência prévia):
1. O Requerente tem por objeto a atividade bancária com a latitude consentida pela lei, como resulta da respetiva certidão comercial permanente, a qual é acessível através do código …-…-… e cuja cópia se junta (cf. documento n.º 1).
2. O Requerente e a Requerida celebraram contrato de locação financeira, ao qual foi atribuído o n.º …, com produção de efeitos a partir de 14/10/2003, pelo qual o Requerente cedeu à Requerida a utilização da fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao Escritório Três-A, no piso três, e à qual pertencem os lugares de estacionamento …, … e … no piso menos cinco e arrecadação n.º … no piso menos cinco, pertencente ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa da …, …-…, …-…, …, …-… e …-…, e Largo Rafael Bordalo Pinheiro, …, Lisboa, descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º … da freguesia de Sacramento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia, da qual o Requerente é dono e legítimo proprietário, imóvel este identificado na Cláusula 1.ª das Condições Particulares do referido contrato, que ora se junta como documento n.º 2.
3. O ora Requerente é, assim, dono e legítimo proprietário da fração autónoma dada em locação e referida supra, a qual foi adquirida por indicação da Requerida (cf. certidão de registo predial, que ora se junta como documento n.º 3).
4. Acordaram as ora Requerente e Requerida que o contrato de locação financeira mencionado supra teria a duração de quinze anos.
5. Estipularam ainda contratualmente o pagamento mensal e antecipado das rendas, aos dias sete do mês a que respeitassem, vencendo-se a primeira à data da celebração do referido contrato, em 14/10/2003, no valor de € 82.225,00, e as restantes no valor mensal de € 2.403,69, indexadas à Euribor Mensal acrescida de uma margem de 2,75%, a qual se estipulou ser arredondada para o 0,125 de ponto percentual imediatamente superior.
6. Sucede que, apesar da obrigação contratual assumida pela Requerida de cumprimento mensal das rendas, a mesma não procedeu ao pagamento das rendas vencidas a 07/10/2015, no valor de € 282,09; a 07/11/2015, no valor de € 2.514,68; e a 07/12/2015, no valor de € 2.514,68; a que acresciam juros de mora no montante de € 67,48, calculados até 08/01/2016.
7. A Requerida foi assim notificada da situação, por parte do Requerente, por carta registada com aviso de receção, datada de 09/12/2015, e enviada para a morada conhecida como sendo a sede da Requerida, na sua qualidade de locatária, sita na Travessa da …, n.º …, …, 1200-469, Lisboa, bem como para a morada constante do próprio contrato de locação financeira, sita na Avenida …, n.º …, ….º Esq., 1050, Lisboa (cf. documentos n.º 4 e 5).
8. Na referida carta, e no seguimento do estipulado no Art. 11.º das Condições Gerais do contrato, o ora Requerente advertiu que a situação de incumprimento temporário se converteria em incumprimento definitivo se não fosse cessada a mora, no prazo de 30 dias a contar da data de emissão da notificação.
9. Foi igualmente notificado da mesma situação de incumprimento o garante das obrigações pecuniárias emergentes do contrato mencionado supra, o Sr. C …, que exercia ainda o cargo de gerente único da sociedade Requerida, sendo enviadas as cartas respetivas para ambas as moradas indicadas supra, também (cf. documentos n.º 6 e 7).
10. Não obstante as notificações mencionadas supra, até à presente data, a Requerida e o referido garante Sr. C … não cumpriram voluntariamente as obrigações vencidas e, consequentemente, não regularizaram a situação de incumprimento das obrigações contratuais de pagamento das rendas.
11. Pelo contrário, ainda se venceu, em 07/01/2016, nova renda, no valor de € 2.514,68, a qual não foi igualmente paga.
12. E em função da ausência de regularização da situação de incumprimento e consequente conversão da mora em incumprimento definitivo, o ora Requerente, nos termos contratualmente estipulados no Artigo 11.º das Condições Gerais do contrato em causa, e atendendo às relevantes disposições legais aplicáveis, em particular o Art. 17.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, na redação que resultou da alteração produzida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, resolveu o contrato de locação financeira.
13. Para o efeito, o Requerente interpelou, por carta registada com aviso de receção, datada de 15/01/2016, quer o locatário, quer o garante das obrigações contratuais assumidas pela Requerida, assim dando cumprimento ao que se encontrava contratualmente estipulado (cf. documentos n.º 8, 9, 10, 11 e 13).
14. Na mesma comunicação, o ora Requerente solicitou à Requerida a restituição da fração locada, no prazo de 8 dias a contar da data da receção da carta.
15. Sublinhe-se que a comunicação obedeceu às disposições legais e contratuais relevantes e aplicáveis e foi enviada, por correio, para a morada constante do contrato, bem como para a sede atual da Requerida, ambas mencionadas supra.
16. Aliás, apesar de tudo terem feito para obviar ao conhecimento destas cartas relativas à resolução do contrato de locação financeira, o certo é que a Requerida e o Sr. C …, no artigo 232.º da Petição Inicial apresentada no processo n.º …/…, que corre termos no Juiz … do Juízo Central Cível de Lisboa, confessam ter tomado o devido conhecimento de tal resolução (cf. documento n.º …).
17. Consequentemente, a declaração do Requerente é plenamente eficaz, em face do disposto no Art. 224.º/2 do Código Civil, na medida em que, tendo sido remetida para duas moradas distintas, a constante do contrato e a da sede da Requerida, sempre se poderia concluir pela culpa do destinatário, in casu a Requerida, pelo facto de a declaração a resolver o contrato em causa não ter chegado ao seu poder.
18. Assim, não pode ser oposta ao Requerente a ineficácia de declaração de resolução, devidamente dirigida pelo mesmo à sociedade ora Requerida, pelo que, sendo a declaração eficaz, está resolvido o contrato de locação financeira.
19. Ainda em cumprimento da conjugação dos Arts. 17.º/2 e 21.º/1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, na redação resultante das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, o ora Requerente procedeu à apresentação do pedido de cancelamento do registo da locação financeira,
20. Estando o registo cancelado desde 28/09/2016 (cf. documento nº 3).
21. Sucede, no entanto, que a Requerida ainda não procedeu à entrega voluntária da fração locada, apesar de instada a fazê-lo, na sequência da resolução do contrato.
22. O Requerente vem, assim, por este meio, recorrer à via judicial, de modo a que lhe seja restituído o referido bem imóvel, para o efeito requerendo o decretamento da providência cautelar especificada, prevista no Art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
23. Resulta, outrossim, do previamente exposto a verificação cumulativa, no caso concreto, dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora.
24. Assim, as notificações enviadas à Requerida e ao garante das obrigações por ela assumidas, no referido contrato, nomeadamente a última notificação, declarando a resolução do contrato, por parte do Requerente, e preenchendo os pressupostos contratuais aplicáveis, demonstram a cessação do contrato e consequente atribuição de um direito ao Requerente em recuperar o imóvel locado e do qual é legítimo proprietário.
25. Quanto ao periculum in mora, reforce-se que a resolução do contrato de locação financeira foi comunicada à locatária, ora Requerida, a 15/01/2016, tendo o imóvel locado sofrido desvalorização no tempo que mediou entre a referida data e o presente, o que comporta eminentes prejuízos para o Requerente, legítimo proprietário do imóvel.
Em 02-06-2017, a Requerida deduziu Oposição, em que se defendeu por impugnação motivada, de facto e de direito, bem como por exceção - invocando a litispendência (posto que a Requerente, antes de propor a presente providência cautelar, havia sido citada para a ação n.º …/… que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, cujo duplicado da PI juntou) e a invalidade da resolução -, pugnando pela improcedência do procedimento cautelar; mais deduziu reconvenção, para o caso de ser “admitida inversão do contencioso”, pedindo que fosse:
a) Decretada a anulação da resolução do contrato de locação financeira n.º …, e reconhecido que a Requerida é credora da Requerente no montante de 320.955,68 €, sendo efetuada a compensação entre os recíprocos créditos e condenada a Requerente no pagamento da quantia remanescente no valor de 226.414,73€, a que acrescem os juros vincendos, bem como declarado cumprido o referido contrato de locação financeira pela Requerida, ordenando-se o averbamento definitivo da aquisição do direito de propriedade a favor da Requerida na competente conservatória do registo predial;
b) Como primeiro pedido alternativo, a não proceder o pedido anterior, declarada a suspensão do contrato de locação financeira n.º …, pelo período e enquanto durarem as limitações do sócio-gerente da Requerida C … decorrentes do processo n.º …/…, porquanto para isso contribuíram decisiva e exclusivamente os atos ilícitos dos responsáveis da Requerente, diferindo-se o cumprimento/conclusão do contrato (pagamento das rendas vencidas e vincendas) para 14-10-2018, acrescido do tempo de suspensão;
c) Como segundo pedido alternativo, no caso de não procederem os anteriores, reconhecido e, consequentemente, condenada a Requerente a pagar à Requerida o crédito no valor de 591.412,91 €, respeitante à parte do preço pago a título do valor de aquisição do imóvel e respetivos juros e ainda no valor do IMI suportado pela Requerida e que à data não quantifica, a que acrescem os juros vincendos após citação;
d) E como terceiro e último pedido a improceder qualquer dos anteriores, sem conceder, ser condenada a Requerente a entregar à Requerida a diferença que se apurar entre o valor da venda, com o valor mínimo de 1.100.000,00 € e o valor em dívida no citado contrato de locação financeira imobiliário n.º ….
O Requerido alegou designadamente, na sua Oposição, o seguinte:
«(…) o requerente apresentou uma denúncia criminal imputando àquele a prática de crime de peculato, fraude fiscal e branqueamento de capitais e que deu origem ao processo …/… da ….ª do DIAP.
32º. A latere se diga, como fizemos naqueloutra ação, que o requerente sabia que tal denúncia não só foi truncada, como era, ou podia ser, infundada, na medida em que (i) tendo assumido a autoria material dos factos, embora imputando o elemento volitivo ao sócio-gerente da requerida, reivindicou a propriedade do dinheiro e sabe que o peculato não protege a sua propriedade nem os atos dos seus empregados; (ii) tinha conhecimento de que a conduta que então imputava ao ali denunciado era punível com coima, nos termos dos artigos 12.º n.º 2 e 19.º n. 2 da Lei 22/2013 de 26.02 e (iii) que com a desjudicialização da insolvência em 2003 acentuou-se o caráter privado das funções do administrador da insolvência, pelo que não lhe devia ter sido imputada a prática de um crime de peculato.
33º. Certo é que, e retornando à questão da receção da declaração de resolução, o processo-crime teve um andamento no enquadramento jurídico que o requerente lhe deu e o sócio-gerente da requerida C …, foi detido no dia 04.12.2015 tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, posteriormente convolada no dia 14.12.2015 para obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica situação que se manteve até ao dia 08.03.2017.
34º. O requerente teve conhecimento da mencionada detenção e medidas de coação aplicadas ao sócio-gerente da requerida, posto que acompanhou a par e passo o mencionado processo-crime, onde, aliás, se constituiu assistente, como outrossim pelo fato de tal detenção e medidas de coação terem sido amplamente difundidas na imprensa.
35º. O Ministério Público deduziu acusação no dia 05.12.2016, não considerando haver indícios do crime de fraude fiscal nem de branqueamento de capitais, mas imputando um crime de falsificação de documento e um de peculato, libelo do qual o sócio-gerente discorda em absoluto e por isso mesmo requereu abertura de instrução estando o processo nesta fase.
36º. Como do exame aos já referidos documentos 4 a 7 resulta, vemos que o requerente envia tais “comunicações” datadas de 09/12/2015, ou seja, 3 dias úteis depois da detenção do sócio-gerente da requerida e para uma morada que sabia que ali não se encontrava, pois estava no EPL de Lisboa, o que não só era público como também sabia por conhecimento direto, dado acompanhar por advogado o processo-crime.»
Com a sua Oposição, a Requerida juntou cópia do pedido de apoio judiciário, datado de 01-06-2017.
A Requerente, no seguimento de despacho que a convidou a pronunciar-se, apresentou articulado de Resposta, pugnando pela improcedência da exceção de litispendência.
Em 17-07-2017, foi proferido despacho que indeferiu a apensação do presente procedimento cautelar ao proc. n.º …/…, referindo-se, além do mais, que, nessa ação não é peticionada a restituição definitiva da fração em causa, tendo sido verificado, pela consulta, via Citius, da contestação junta a esses autos, que não havia sido deduzido pedido reconvencional.
Realizou-se audiência final, com produção de prova testemunhal, tendo, no decurso da sessão realizada em 07-08-2017, sido deferido o requerimento da Requerida no sentido da «retificação ou alteração de artigos da oposição, bem como ampliação do “pedido reconvencional subsidiário” deduzido no ponto V al. c), também da mesma oposição».
Em 12-10-2017 foi proferida a Decisão final (recorrida), que julgou improcedente o procedimento cautelar, por considerar, em síntese, que a resolução do contrato de locação financeira não tinha operado válida e eficazmente, atenta a devolução da carta enviada para o efeito; mais tendo decidido que, em face da improcedência total da providência, resultava prejudicada a apreciação da exceção de litispendência, bem como a apreciação do pedido reconvencional, deduzido condicionalmente à inversão do contencioso, que, naturalmente, não se decretava.
Inconformada com esta decisão, veio a Requerente, em 03-11-2017, interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Há processos judiciais em que a uma das partes assiste, inequivocamente, toda a razão; ora, este processo é um deles.
2. Vem o presente Recurso interposto da Decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar de entrega judicial intentado pelo Requerente.
3. Compulsados os autos e aplicado o devido Direito, não se percebe por que razão declarou o Tribunal a quo que “encontra-se em crise o requisito do termo do contrato, por resolução do mesmo por parte do requerente”.
4. Ao decidir-se pelo indeferimento da providência cautelar, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 21.º, n.ºs 1, 2, 4, 7 e 8 do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, pelo que é a Decisão errada, injusta e ilegal.
5. Apesar de, globalmente, a matéria de facto se encontrar correctamente julgada pelo Juiz a quo, o certo é que o Tribunal a quo cometeu um grave erro de julgamento ao julgar não indiciado que: “5. O gerente da requerida tenha tido conhecimento das cartas descritas em G. a M..”
6. De facto, decorre da documentação que consta destes autos, em particular, do documento n.º 27 da Petição Inicial apresentada pela Requerida contra o ora Requerente no processo que corre termos no Juiz … do Juízo Central Cível de Lisboa sob n.º …/… –
7. Documento n.º 27 este que foi, inicialmente, junto a fls. 123 a 125 do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória instaurado previamente à referida acção com o n.º …/…, e a esta acção apensado –,
8. Petição Inicial essa também junta pelo Requerente ao aqui Requerimento Inicial como documento n.º 12, e da qual fazem parte integrante os documentos por sua vez àquela juntos, os quais, por isso, integram também o presente procedimento cautelar e, como tal, deverão ser tidos em conta pelo julgador (tanto mais quando se trata, realce-se, de documento junto pela própria Requerida),
9. Que o sócio-gerente da Requerida teve acesso, pelo menos desde 5 de Janeiro de 2015, ao conteúdo da missiva remetida pelo Requerente a 9 de Dezembro de 2015 com interpelação para cumprimento.
10. Daí resulta que, pelo menos em 5 de Janeiro de 2015, a Requerida, através do seu sócio-gerente, teve conhecimento de que o Requerente havia accionado os mecanismos legais em reacção ao incumprimento contratual daquela, e, bem assim, do prazo para a conversão da mora em incumprimento definitivo, cuja consequência última a Requerida sabia, seja por força do contrato em si, seja do teor da carta de 9 de Dezembro de 2015, ser a resolução contratual, tendo, por isso, nessa ocasião, a oportunidade para, querendo, regularizar a situação de mora.
11. O sócio-gerente C … poderia – aliás, deveria se, alegadamente, se encontrava impossibilitado de acompanhar a vida da Requerida – ter indicado procurador para agir em sua representação, bem como poderia ter nomeado outro gerente ou adoptado qualquer outro mecanismo que assegurasse o recebimento das comunicações, o que não fez por forma a tentar furtar-se às comunicações do Requerente e, em claro abuso de direito e má-fé, obviar à eficácia da resolução efectuada pelo Requerente.
12. Não colhe, por isso, a motivação que serviu de base à decisão de considerar não indiciado o ponto 5 da matéria de facto, pelo que, em face do exposto, deverão V. Exas., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, alterar a Decisão Recorrida considerando indiciado e, mais, provado, que: “5. O gerente da requerida tenha tido conhecimento das cartas descritas em G. a M..”
13. Quanto à apreciação jurídica da causa pelo Tribunal a quo, esta assentou em pressupostos fácticos errados, pelo que se deve considerar desacertada a conclusão (de Direito) de que “encontra-se em crise o requisito do termo do contrato, por resolução do mesmo por parte do requerente”.
14. Independentemente da procedência da presente impugnação da matéria de facto, sempre, pelas razões de Direito vertidas infra, deverá o Recurso ser julgado procedente por V. Exas..
15. Os requisitos de que o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira faz depender o decretamento da providência em causa são o fim do contrato (neste caso, por resolução) e a não restituição, pelo locatário, do bem dado em locação, os quais se encontram verificados no caso concreto.
16. As partes celebraram contrato de locação financeira de fracção autónoma da legítima propriedade do Requerente, cuja obrigação de pagamento integral das rendas mensais a Requerida deixou de cumprir em Outubro de 2015.
17. Nessa sequência, foi a Requerida notificada, pelo Requerente, por carta registada com aviso de recepção, da situação de mora em que se encontrava, e, bem assim, foi o sócio-gerente C … notificado dessa mesma situação de mora, a qual se converteria em incumprimento definitivo no prazo de 30 dias, tudo em conformidade com o acordado pelas partes.
18. Não obstante as notificações mencionadas, a Requerida e o sócio-gerente C … não cumpriram voluntariamente as obrigações vencidas e, consequentemente, não regularizaram a situação de incumprimento; pelo contrário, venceu-se ainda, em 7 de Janeiro de 2016, nova renda, a qual não foi paga.
19. Perante a ausência de regularização da situação de mora e consequente conversão em incumprimento definitivo, o Requerente, nos termos estipulados no artigo 11.º das Condições Gerais do contrato, e atendendo às relevantes disposições legais aplicáveis, resolveu o respectivo contrato.
20. Para o efeito, o Requerente notificou, por carta registada com aviso de recepção, datada de 15 de Janeiro de 2016, quer o locatário, quer o respectivo sócio-gerente C …, assim dando cumprimento ao que se encontrava contratualmente estipulado, mais solicitando a restituição da fracção pela Requerida, à qual não houve lugar.
21. O Requerente procedeu, ainda, ao cancelamento do registo da locação financeira, estando o mesmo averbado desde 28 de Setembro de 2016.
22. Ora, ainda que o Requerente tenha tomado conhecimento das medidas de coacção aplicadas em 5 de Dezembro de 2015 ao sócio-gerente da Requerida C …, o certo, porém, é que, nem tal tomada de conhecimento, nem o simples facto de as aludidas cartas terem sido devolvidas com a menção “não atendeu”, obstam à validade e eficácia das comunicações remetidas pelo Requerente – quer para efeitos de interpelação ao cumprimento, quer para efeitos de resolução contratual –, pois que mais não fez o Requerente se não dar perfeito cumprimento ao contratualmente estipulado, em conformidade, aliás, com as demais disposições legais aplicáveis.
23. O Contrato de Locação Financeira determina, em primeira linha, que: “A resolução far-se-á por simples declaração do Locador dirigida ao Locatário, por carta registada com aviso de recepção”.
24. Nessa medida: “As notificações ou comunicações entre Locador e Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efectuadas para os respectivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados neste Contrato”, vindo a Requerida aí identificada como B …, Lda., com sede na Avenida …, n.º …, ….º Esquerdo, São Sebastião da Pedreira, Lisboa.
25. Não só o Requerente remeteu as referidas comunicações – por carta registada com aviso de recepção – para a morada que identifica a Requerida, indicada pela própria, e constante do contrato, como o fez, adicionalmente, para a morada da actual sede da Requerida e situação do prédio locado, e ainda em duplicado, endereçadas quer à Requerida, quer ao respectivo sócio-gerente C …, conduta esta que, na senda da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mormente a do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação de Lisboa, atribui plena eficácia às referidas declarações, independentemente de estas cartas terem sido devolvidas sob a menção “não atendeu”.
26. Não obstante, decidiu o Tribunal a quo, sem qualquer fundamento, que tais comunicações deveriam antes ter sido remetidas para o domicílio pessoal do referido sócio-gerente, na Rua …, n.º …, em Lisboa.
27. Se assim tivesse sucedido, aí sim careceriam as comunicações de eficácia, pois nesse caso mostrar-se-ia incumprido, pelo Requerente, o firmado pelas partes e, por isso, a própria máxima da pontualidade no cumprimento contratual.
28. Era sobre a Requerida que recaía o especial dever de diligenciar no sentido de encetar o que se revelasse necessário para assegurar o imediato recebimento e conhecimento das comunicações do Requerente, o que a Requerida, para tanto tendo a oportunidade, dolosamente e com o intuito de prejudicar o Requerente, não fez.
29. Não podia a Requerida ignorar a situação de incumprimento em que se encontrava, nem as respectivas consequências, mormente a respectiva sujeição à resolução do contrato, pelo que não pode esta ter constituído uma surpresa.
30. O impedimento do sócio-gerente tal como vertido na Decisão Recorrida – decorrente de processo-crime totalmente alheio ao contrato subjacente ao presente procedimento cautelar – não pode constituir “carta-branca” para que a Requerida se furte ao cumprimento das duas obrigações.
31. O que se expôs é tanto mais evidente quando é sabido que a Requerida e o respectivo sócio-gerente confessam, na Petição Inicial junta como documento n.º 12 do Requerimento Inicial apresentado nestes autos, ter conhecimento quer da aludida situação de incumprimento, quer da resolução efectuada pelo Requerente.
32. A declaração do Requerente é, pois, plenamente eficaz, em face do disposto no artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil, na medida em que, tendo sido remetida para duas moradas distintas, a constante do contrato e a da sede da Requerida, sempre se poderia concluir pela culpa do destinatário, in casu a Requerida, pelo facto de a declaração de resolução não ter chegado ao seu poder.
33. Está absolutamente legitimada a conduta seguida pelo Requerente, a única, em bom rigor, susceptível de assegurar o exercício do seu direito, não podendo, portanto, ser-lhe oposta a ineficácia da declaração de resolução.
34. Em suma, resolvido que foi (e está) o contrato de locação financeira, e cancelado o respectivo registo, tem o Requerente direito à restituição do bem.
35. No caso sub judice, não só se presume como se encontra demonstrado o periculum in mora no decretamento da providência, porquanto o mesmo – traduzido no perigo de desvalorização e degradação do bem pelo tempo decorrido entre a resolução do contrato e o momento da restituição do prédio locado ao seu legítimo proprietário – é inerente à sua própria natureza.
36. É, assim, de concluir que deve a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente o presente procedimento cautelar.
37. Encontram-se, igualmente, verificados os pressupostos de que depende o decretamento da inversão do contencioso.
38. Com efeito, esta providência tende a ser definitiva, visto que, uma vez decretada, o locador goza do direito de dispor livremente do bem, o que consubstancia o efeito prático pretendido pelo Requerente.
39. Mesmo que se entendesse – o que se crê não ser o caso – que é aplicável o número 4 do artigo 376.º do CPC, deve a inversão do contencioso ser decretada, por estarem verificados os respectivos pressupostos: a convicção segura acerca da existência do direito e a natureza da providência adequada à convolação da mesma em definitiva.
40. De um lado, da prova produzida – consistente, credível e que sempre seria a mesma a produzir em sede de acção principal – resulta inegável o direito do Requerente à restituição imediata do bem do qual é legítimo proprietário.
41. Do outro, como vimos, a providência cautelar requerida, uma vez decretada, substitui-se à tutela definitiva que o Requerente poderia solicitar na acção principal.
42. O pedido reconvencional deduzido pela Requerida, além de processualmente inadmissível no contexto de um procedimento cautelar desta natureza (tendo, além do mais, sido deduzido extemporaneamente), é absolutamente improcedente, indo, desde já, impugnada pelo Requerente toda a matéria, de facto e de Direito, aí expendida.
43. Tudo visto e ponderado, é, assim, de concluir que deve a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que decrete a providência cautelar de entrega judicial, e, ainda, a inversão do contencioso, condenando-se a Requerida, a título definitivo, na imediata restituição do bem locado ao Requerente.
Terminou a Apelante requerendo que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, a decisão recorrida revogada e substituída por outra que decrete a providência cautelar requerida e, bem assim, a inversão do contencioso, condenando-se definitivamente a Requerida na restituição imediata do imóvel supra identificado à Requerente, devendo, ainda, ser, desde já, julgado totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Requerida.
Em 22-11-2017, a Requerida apresentou requerimento de interposição de recurso subordinado e respetiva alegação (vindo a efetuar depois o pagamento da multa devida por ter sido apresentado no 1.º dia útil após o fim do prazo – cf. art. 139.º, n.ºs 5 e 6, do CPC), em que terminou, requerendo que “caso venha a ser conhecido o presente recurso subordinado, então deve ser concedido provimento ao mesmo, julgando-se procedente a exceção de litispendência, absolvendo-se a recorrente da instância, ou, quando assim se não entenda, deve ser devolvido o processo à primeira instância para admissão do documento e julgamento da matéria da reconvenção e ainda a produção de prova definitiva e não indiciária”.
A Requerida apresentou ainda alegação de resposta em 04-12-2017.
Em 12-12-2017, a Requerente apresentou alegação de resposta ao recurso subordinado, defendendo a inadmissibilidade legal do mesmo.
Em 18-12-2017, a fls. 464, foi proferido despacho de admissão de ambos os recursos (incluindo o subordinado interposto pela Requerida), em que se referiu ainda o seguinte:
“Cumpre proferir despacho ao abrigo do disposto no art.617º do CPCivil.
Conforme da leitura da sentença se há-de concluir, a mesma encontra-se devidamente fundamentada, inexistindo omissão, ambiguidade ou fundamentação oposta à decisão.
V.Exas porém, melhor decidirão.
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, concluídas se mostrem as legais formalidades.”
De seguida, em 21-12-2017, os autos foram novamente conclusos, informando o Sr. funcionário judicial que, ao pretender cumprir o despacho de 18-12-2017, verificou que com a mesma data e após prolação do aludido despacho, tinha dado entrado ofício da Segurança Social comunicando a rejeição liminar do pedido de apoio judiciário formulado pela Requerida, vindo a ser proferido despacho determinando que fosse cumprido o disposto no art. 570.º, n.º 3, do CPC e que, oportunamente, se decidiria da admissão do recurso da Requerida.
A referida decisão da Segurança Social, datada de 12-12-2017, na qual se refere ter o mesmo pedido sido apresentado em 02-06-2017 (com a Ref.ª APJ …/…), foi impugnada judicialmente pela Requerida B …, Lda, dando origem ao apenso A (no qual veio a ser proferido, em 23-03-2018, despacho de indeferimento, por intempestividade).
Notificada a Requerida em 03-01-2018, para pagar as taxas de justiça relativas à alegação de recurso subordinado e alegação de resposta, acrescidas das respetivas multas, a Requerida veio então, em 16-01-2018, reclamar deste ato e subsidiariamente impugnar judicialmente a decisão da Segurança Social (alegando não ter sido notificada da mesma – cf. apenso A) e requerer que lhe fosse reconhecida a isenção de custas prevista no art. 4.º, al. u), do Regulamento das custas Processuais.
Em 05-02-2018, foi proferido despacho que indeferiu esse requerimento de isenção de pagamento de custas ao abrigo do art. 4.º, al. u), do RCP e determinou que se oficiasse à Segurança Social solicitando informação sobre a data da notificação à Requerida da decisão de indeferimento do apoio judiciário. Inconformada com a decisão de indeferimento do pedido de isenção de custas, a Requerida interpôs recurso, em 26-02-2018, tendo a alegação de resposta sido apresentada em 15-03-2018.
Em 21-02-2018, foi notificada a Requerida para pagar as taxas de justiça acima referidas (relativas ao recurso subordinado e à alegação de resposta) e multas, bem como a taxa de justiça relativa à oposição e multa (sem ter sido considerado o requerimento de interposição de recurso e respetiva alegação de 26-02-2018), tendo esta apresentado, em 06-03-2018, reclamação/requerimento, pedindo a anulação das guias e também a notificação da aludida decisão da Segurança Social.
Em 23-03-2018, no aludido apenso A de impugnação judicial da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, foi proferido, conforme acima indicado, despacho que não admitiu tal impugnação, com fundamento na sua intempestividade. Deste despacho foi interposto recurso pela Requerida, mediante requerimento apresentado em 11-04-2018, o qual não foi admitido por despacho de 08-05-2018, com fundamento na irrecorribilidade da decisão. Contra este despacho foi apresentada reclamação, que deu origem ao apenso B, em que foi proferido o acórdão da Relação de Lisboa de 11-12-2018, o qual manteve a decisão singular de 05-09-2018, que desatendeu a reclamação e manteve o despacho reclamado. Deste acórdão foi interposto, sem sucesso, recurso para o Tribunal Constitucional, com efeito suspensivo, tendo o apenso B baixado à Relação em 24-06-2019 e definitivamente à 1.ª instância em 03-07-2019.
Foi proferido, no processo principal, em 23-03-2018, despacho que determinou o desentranhamento dos atos praticados pela Requerida dependentes do pagamento de taxas de justiça, tendo a Requerida, em 10-04-2018, interposto recurso (com efeito suspensivo) desse despacho, o que deu origem ao apenso C.
No apenso C, por decisão sumária de 11-07-2019, a Relação de Lisboa concedeu parcial provimento ao recurso e decidiu revogar o despacho que mandou desentranhar os atos processuais praticados pela Requerida e determinou, em substituição que esta fosse notificada para efetuar o pagamento das respetivas taxas de justiça em singelo e, caso o mesmo não fosse efetuado, ser notificada nos termos dos artigos 570.º e 642.º do CPC, sob cominação do seu desentranhamento.
Em 23-04-2020, no seguimento de reclamação para a conferência da decisão singular, a Relação de Lisboa proferiu acórdão (em que se teve em consideração, além do mais, que o presente recurso interposto da sentença ainda não havia sido julgado, pelo que não existia caso julgado formado) que deferiu parcialmente a reclamação, alterando a decisão reclamada, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e se decide:
a) revogar o despacho recorrido na parte que mandou desentranhar a oposição da requerida recorrente, devendo esta ser notificada para pagamento da respectiva taxa de justiça acrescida de multa nos termos e para os efeitos dos artigos 570º e 642º do CPC, sob cominação de, não fazendo, ser desentranhado o articulado de oposição;
b) manter o despacho recorrido na parte que determinou o desentranhamento das contra-alegações da requerida recorrente e do seu recurso subordinado.”
Foi julgada improcedente a arguição de nulidade desse acórdão e admitido (em 14-07-2020) o recurso de revista do mesmo interposto para o STJ, que, por acórdão de 12-11-2020, decidiu não admitir o recurso. Antes havia sido interposto, do referido acórdão da Relação de Lisboa (sem que este tivesse transitado em julgado) recurso (com efeito suspensivo) para o Tribunal Constitucional, o qual foi rejeitado por decisão sumária de 27-01-2021. Ainda nesse apenso C foi, em 14-07-2022, proferido acórdão que decidiu indeferir a reclamação contra a decisão singular que declarou esgotado o poder jurisdicional do TRL quanto à prolação do acórdão de 23-04-2020, “já transitado em julgado”.
Em 21-08-2019, foi pela Segurança Social deferido novo requerimento de apoio judiciário (na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo) o qual havia sido, entretanto, apresentado pela Requerida (com a Ref.ª APJ …/…), mediante correio registado expedido em 27-05-2019.
A Requerente impugnou judicialmente essa decisão de deferimento do apoio judiciário, o que deu origem ao apenso D, no qual foi proferida, em 21-10-2019, decisão judicial que declarou a nulidade da mesma, decisão que foi mantida por despacho de 20-11-2019, julgando-se improcedente a arguição de nulidade. Desta decisão veio a ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional pela Requerida B …, Lda, que determinou que fosse ouvida a mesma, o que foi feito, tendo sido, em 01-09-2020, proferida nova decisão que anulou a decisão de concessão do apoio judiciário.
Em 14-01-2021, a Segurança Social proferiu nova decisão de deferimento do pedido de apoio judiciário, a qual veio a ser, de novo, em 12-02-2021, impugnada pela Requerente, defendendo o indeferimento do requerimento de proteção jurídica.
Em 01-02-2021, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Comunique ao apenso C a decisão do apenso B e a decisão de deferimento do apoio judiciário constante de fls. 156 e ss. do apenso D.
Cumpra-se o despacho de fls. 464.”
Após os autos terem sido distribuídos neste Tribunal da Relação, veio a ser proferido, em 05-03-2021, despacho que determinou que os autos baixassem à 1.ª instância, tendo em conta o processado descrito.
Em 21-04-2024, no apenso C, foi proferido acórdão cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Pelo exposto se decide:
a) qualificar como manifestamente infundado o incidente suscitado pela requerida recorrente e considerar transitados em julgado os acórdãos de 23/4/2020 e de 14/7/2022;
b) ordenar a extração de traslado, que ficará neste Tribunal da Relação de Lisboa, contendo: as decisões do tribunal recorrido de 23/3/2018 (fls 153 e 164 verso deste apenso), o acórdão de 23/4/2020, a decisão do TC do processo 27/2021 (fls 501 a 508), as decisões do TC do processo 692/20 (479 a 485, fls 523 e 524 e fls 539 a 540), o acórdão de 14/7/2022, as decisões do TC do processo 863/22 (fls 591 a 600, fls 636 a 665, fls 674 a 679 e fls 714 a 725), o requerimento da recorrente de 13/4/2023, a resposta do recorrido de 27/4/2023, o despacho de 4/1/2024, a reclamação para a conferência de 18/1/2024, a resposta de 1/2/2024 e o presente acórdão de 21/3/2024.
c) ordenar a remessa imediata dos autos ao Tribunal de 1.ª instância para aí prosseguirem os seus termos até final;
d) determinar que a decisão a proferir no traslado, sobre o requerimento de 13/4/2023 e reclamação para a conferência de 18/1/2024, apenas terá lugar depois de contadas as custas a final e de a recorrente ter pago as que forem da sua responsabilidade (sem prejuízo do apoio judiciário concedido, no período em que é aplicável), bem como as multas e indemnizações que, eventualmente, hajam sido ou venham a ser fixadas pelo tribunal.
e) determinar que o traslado aguarde o cumprimento dos procedimentos referidos na alínea anterior, abrindo-se conclusão assim que o mesmo se verifique e seja dado a conhecer no processo e sem que, até lá, sejam admitidos requerimentos da requerida recorrente que ponham em causa o trânsito em julgado dos referidos acórdãos.
Custas do incidente pela requerida recorrente, 3 (três) UCs de taxa de justiça (artigo 7º, nºs 4 e 8, do RCP).”
Após ter baixado à 1.ª instância o apenso C, veio a ser, em conformidade com os acórdãos aí proferidos, determinada a notificação da Requerida para pagar a taxa de justiça relativa à oposição, acrescida de multa, sob cominação de, não fazendo, ser desentranhado esse articulado.
Em 26-06-2024, o Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho:
«Compulsados os autos resulta que em 23-04-2020, no seguimento de reclamação para a conferência da decisão singular, pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão que deferiu parcialmente a reclamação, alterando a decisão reclamada, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e se decide:
a) revogar o despacho recorrido na parte que mandou desentranhar a oposição da requerida recorrente, devendo esta ser notificada para pagamento da respectiva taxa de justiça acrescida de multa nos termos e para os efeitos dos artigos 570º e 642º do CPC, sob cominação de, não fazendo, ser desentranhado o articulado de oposição;
b) manter o despacho recorrido na parte que determinou o desentranhamento das contra-alegações da requerida recorrente e do seu recurso subordinado.”
Por despacho datado de 16 de Abril de 2024 foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 570º do Código de Processo Civil.
A requerida procedeu ao pagamento da taxa de justiça acrescida de multa, motivo pelo qual, atento o teor do referido Acórdão, a oposição apresentada pela requerida se mantém nos autos.
Aqui chegados, e ainda em conformidade com o Acórdão proferido, tendo sido ordenado o desentranhamento das contra-alegações da requerida recorrente e do seu recurso subordinado, cumpre proceder à prolação de despacho quanto ao recurso interposto da decisão final que julgou improcedente a presente providência.
Assim, por estar em tempo, a parte ter legitimidade e terem sido respeitados os demais requisitos legais, admito o recurso interposto pela recorrente.
O recurso é de apelação e sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo – arts. 629º, nº1, 631º, 638º, 644º, nº1, a), 645º, nº1, a) e 647º, nº3, al. d) do Cód. Proc. Civil.
*
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
Notifique.»
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto (quanto ao ponto 5. do elenco dos factos não indiciariamente provados);
2.ª) Se é de considerar que operou (válida e eficazmente) a resolução do contrato de locação financeira, pelo que deve ser decretada a providência de entrega judicial da fração objeto do mesmo;
3.ª) Se deve ser determinada a inversão do contencioso, não se admitindo ou julgando-se improcedente o pedido reconvencional.
Dos factos
Na decisão recorrida, foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos (acrescentámos o que consta entre parenteses retos, em E. e S., por estar plenamente provado):
A. O Requerente tem por objeto a atividade bancária.
B. O Requerente e a Requerida celebraram contrato de locação financeira, ao qual foi atribuído o n.º …, com produção de efeitos a partir de 14-10-2003, pelo qual o Requerente cedeu à Requerida a utilização da fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao Escritório Três - …, no piso três, e à qual pertencem os lugares de estacionamento …, … e … no piso menos cinco e arrecadação n.º 1 no piso menos cinco, pertencente ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa da …, …-A, …-B, …, …-C e …-D, e Largo Rafael Bordalo Pinheiro, …, Lisboa, descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º … da freguesia de Sacramento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da mesma freguesia, da qual o Requerente é proprietário, imóvel este identificado na Cláusula 1.ª das Condições Particulares do referido contrato
C. A fração autónoma dada em locação e referida supra, foi adquirida por indicação da Requerida.
D. Acordaram as ora Requerente e Requerida que o contrato de locação financeira mencionado supra teria a duração de quinze anos.
E. Estipularam ainda contratualmente o pagamento mensal e antecipado das rendas, aos dias sete do mês a que respeitassem, vencendo-se a primeira à data da celebração do referido contrato, em 14-10-2003, no valor de 82.225,00 €, e as restantes no valor mensal de 2.403,69 €, indexadas à Euribor Mensal acrescida de uma margem de 2,75%, a qual se estipulou ser arredondada para o 0,125 de ponto percentual imediatamente superior [estando ainda estipulado, no art. 11.º das condições gerais do contrato, além do mais, que:
1. Para além dos demais casos de resolução decorrentes da lei e do presente Contrato, este poderá ser resolvido em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do Locatário se este, interpelado para o efeito, por carta registada com aviso de recepção, não suprir a sua falta no prazo de trinta dias a contar da data de emissão daquela notificação.    
(…) 3. A resolução far-se-á por simples declaração do Locador dirigida ao Locatário, por carta registada com aviso de recepção.
E no art. 14.º que As notificações ou comunicações entre Locador e Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efectuadas para os respectivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados neste Contrato ou que, posteriormente, sejam informados, por escrito, à outra parte.”]
F. Sucede que a Requerida não procedeu ao pagamento das rendas vencidas a 07-10-2015, no valor de 282,09 €; a 07-11-2015, no valor de 2.514,68 €; e a 07-12-2015, no valor de 2.514,68 €; a que acresciam juros de mora no montante de 67,48 €, calculados até 08-01-2016.
G. O Requerente enviou carta registada com aviso de receção à Requerida, datada de 09-12-2015, e enviada para a morada conhecida como sendo a sede da Requerida, na sua qualidade de locatária, sita na Travessa da …, n.º …, …, 1200-469, Lisboa, bem como para a morada constante do próprio contrato de locação financeira, sita na Avenida …, n.º …, …º Esq., 1050, Lisboa.
H. Na referida carta o ora Requerente advertiu que a situação de incumprimento temporário se converteria em incumprimento definitivo se não fosse cessada a mora, no prazo de 30 dias a contar da data de emissão da notificação.
I.  Foi igualmente enviada carta com o teor similar, ao gerente único da Requerida, C …, para ambas as moradas indicadas supra.
J. Todas as cartas descritas nos três pontos anteriores foram devolvidas, com a menção aposta pelos serviços postais, de «não atendeu».
K. Ainda se venceu, em 07-01-2016, nova renda, no valor de 2.514,68 €, a qual não foi igualmente paga.
L. Em 15-01-2016, o Requerente enviou à Requerida e ao respetivo gerente, novos escritos, «considerando resolvido o contrato de locação financeira» em causa nestes autos e concedendo novo prazo de 8 dias para pagamento das prestações vencidas e não pagas e para entrega do bem, mediante cartas registadas com aviso de receção.
M. Também todas estas cartas foram devolvidas, com a menção de «não atendeu» aposta pelos serviços postais.
N. O ora Requerente procedeu à apresentação do pedido de cancelamento do registo da locação financeira, estando o registo cancelado desde 28-09-2016.
O. A Requerida não procedeu à entrega voluntária da fração locada.
P. A Requerida e o seu gerente, C …, interpuseram contra o ora Requerente e contra D … e outros, ação judicial, que corre termos com o n.º …/… no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz …, peticionando: 1 - Decretada a anulação da resolução do contrato de locação financeira n.º …, e reconhecido que a autora B …, Lda é credora do 1.º réu no montante de 299 501, 55€ e efetuada a compensação entre os recíprocos créditos condenado o 1.º réu no pagamento da quantia remanescente no valor de 204 958,60€, a que acrescem os juros vincendos, bem como declarado cumprido o referido contrato de locação financeira pela autora B …, Lda, Lda., ordenando-se o averbamento definitivo da aquisição do direito de propriedade a favor da autora B …, Lda. na competente conservatória do registo predial; … - Como primeiro pedido alternativo, a não proceder o pedido anterior, o que não se concede, que seja declarada a suspensão do contrato de locação financeira n.º …, pelo período e enquanto durarem as limitações de liberdade do autor C …, porquanto para isso contribuíram decisiva e exclusivamente os atos ilícitos dos réus; 3 - Como segundo pedido alternativo, no caso de não procederem os anteriores, o que outrossim não se concede, seja reconhecido e, consequentemente, seja condenado o 1.º Réu a pagar à Autora B …, Lda. o crédito no valor de 569 958,98€, respeitante à parte do preço pago pela autora a título do valor de aquisição do imóvel e respetivos juros e ainda no valor do IMI suportado pela autora B …, Lda.  e que nesta data não se consegue quantificar, a que acrescem os juros vincendos após citação; 4 - E como terceiro e último pedido a improceder qualquer dos anteriores, sem conceder, ser condenado o 1.º réu a entregar à autora B …, Lda. a diferença que se apurar entre o valor da venda, com o valor mínimo de 1 100 000,00 € e o valor em dívida no citado contrato de locação financeira imobiliário n.º ….
Q. O Requerente foi citado para os termos dessa ação, em data anterior à interposição do presente procedimento cautelar.
R. Em 05-12-2015 e na sequência de interrogatório judicial realizado no âmbito dos autos crime n.º …/…, foi o único gerente da Requerida, domiciliado na Rua …, n.º …, Edifício …, ….º …, em Lisboa, sujeito às medidas de coação:
i) de prisão preventiva;
ii) de suspensão do exercício de funções de administrador de insolvências, com a consequente e imediata comunicação à CAAJ, substituição nos processos onde ainda se encontra nomeado e proibição de movimentação das respetivas contas bancárias;
iii) de suspensão do exercício de funções de administrador e gerente da e da B …, Lda. e de,
iv), proibição de contactos com todos os funcionários da … e da B …, Lda.
S. Por decisão proferida em 08-03-2017, foi decidido revogar as referidas medidas de coação [mais precisamente, foi decidido revogar as medidas de coação a que o arguido se encontrava então sujeito, sendo que, a essa data, o arguido já não se encontrava em prisão preventiva, mas sujeito à medida prevista no art. 201.º do Código de Processo Penal de obrigação de permanência na habitação – cf. certidão junta com o ofício junto aos autos em 07-08-2017], ficando o referido gerente a aguardar julgamento em liberdade, sujeito a obrigação de apresentação periódica três vezes por semana, no OPC da sua área de residência e de se ausentar do território nacional.
T. O Requerente foi notificado do teor das medidas de coação aplicadas ao gerente da Requerida, supra descritas, sendo a primeira decisão notificada em 05-12-2015.
U. Foi a Requerida que pagou a Sisa devida pela aquisição da fração por parte do Requerente, pelo valor de 23.725,00 €, em 10-10-2003.
V. A Requerida suportou ainda o custo das obras de construção civil, necessárias à fruição do locado, pois esta encontrava-se em tosco.
W. A fração em questão foi avaliada, em 2012, no valor de 770.000,00 €.
Foram considerados não indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Entre novembro de dezembro de 2015, foram efetuados depósitos na conta da Requerida, para regularização dos valores em dívida.
2. O Requerente ainda mantém bloqueadas as contas da Requerida e do seu gerente.
3. As obras de construção civil suportadas pela Requerida tenham tido o custo de 128.007,43 €.
4. O Requerente tenha conhecimento do domicílio pessoal do gerente da Requerida, desde data anterior à notificação referida em T..
* 5. O gerente da Requerida tenha tido conhecimento das cartas descritas em G. a M..
Da modificação da decisão da matéria de facto – ponto 5.
Na decisão final consta, a respeito do ponto 5. do elenco dos factos não indiciariamente provados, a seguinte motivação:
“Quanto à factualidade não indiciada, não se produziu sobre a mesma qualquer meio de prova que permitisse a formação de convicção positiva, face ao desconhecimento revelado pelas testemunhas inquiridas a esse respeito e à insuficiência da documentação apresentada aos autos para a sua demonstração.
Acrescente-se que o ponto 5. da factualidade não indiciada não resulta confessado no art. 232º da petição inicial apresentada pela ora requerida e pelo seu gerente, no processo nº …/…, ao contrário do alegado no art. 16º do requerimento inicial, pois no referido artigo (copiado a fls. 151) não é expressa a data do alegado reencaminhamento por correio electrónico do teor das referidas cartas, para além do que a situação de prisão preventiva do gerente da requerida impedia naturalmente o acesso ao referido correio electrónico.”
A Apelante pretende que seja alterada a decisão da matéria de facto, no sentido de se considerar indiciariamente provada a factualidade vertida no ponto 5., ou seja, que: O gerente da requerida tenha tido conhecimento das cartas descritas em G. a M..
Invoca, para tanto e em síntese, o documento n.º 27 da Petição Inicial apresentada pela Requerida contra o ora Requerente na ação que corre termos no Juiz … do Juízo Central Cível de Lisboa sob n.º …/…, documento esse que diz ter sido inicialmente junto a fls. 123 a 125 do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória instaurado previamente à referida ação e à mesma ação apensado, petição inicial essa também junta pelo Requerente com o seu Requerimento Inicial como documento n.º 12, e da qual fazem parte integrante os documentos por sua vez àquela juntos, os quais, por isso, integram também o presente procedimento cautelar e, como tal, deverão ser tidos em conta pelo julgador; no seu entender, desse documento resulta que o sócio-gerente da Requerida teve acesso, pelo menos desde 5 de janeiro de 2015, ao conteúdo da missiva remetida pelo Requerente a 9 de dezembro de 2015 com interpelação para cumprimento, o que significa que, pelo menos desde 5 de janeiro de 2015, a Requerida, através do seu sócio-gerente, teve conhecimento de que o Requerente havia acionado os mecanismos legais em reação ao incumprimento contratual daquela, e, bem assim, do prazo para a conversão da mora em incumprimento definitivo, cuja consequência última a Requerida sabia, seja por força do contrato em si, seja do teor da carta de 9 de dezembro de 2015, ser a resolução contratual, tendo, por isso, nessa ocasião, a oportunidade para, querendo, regularizar a situação de mora; ademais, o sócio-gerente C … poderia – aliás, deveria se, alegadamente, se encontrava impossibilitado de acompanhar a vida da Requerida – ter indicado procurador para agir em sua representação, bem como poderia ter nomeado outro gerente ou adotado qualquer outro mecanismo que assegurasse o recebimento das comunicações, o que não fez por forma a tentar furtar-se às comunicações do Requerente e, em claro abuso de direito e má-fé, obviar à eficácia da resolução efetuada pelo Requerente.
Vejamos.
É verdade que com o seu Requerimento Inicial (melhor dizendo, com o requerimento de junção documental de 24-04-2017) a Requerente juntou, como documento 12, uma cópia simples de uma petição inicial, resultando da sua análise que foi intentada em 2017 pela ora Requerida e por C … contra, entre outros, A …, S.A., uma tal ação (cf. P. do elenco dos factos indiciariamente provados), constando dessa petição inicial, além do mais, as seguintes alegações de facto:
“228º. (…) a autora SOC.FITADO celebrou no ano de 2003 com o 1.º réu um contrato de locação financeira imobiliária n.º …, pelo período de 15 anos, tendo por um objeto uma fração do Edifício Novochiado, sendo que o seu términus ocorre em 2018.
229º. Porém, pela situação acima descrita, faltam pagar as rendas de Novembro 2015 a Janeiro de 2016 no total de 11 188,808.
230º. Sendo que o valor referente à liquidação, i. e., rendas vencidas e vincendas do contrato era de 94 542,958, conforme informação prestada pelo 1.º réu em 26/ 01/ 2016 (Doc. 26).
231º. Como os autores não procederam ao pagamento das rendas acima referidas no artigo 215.º, pela situação provocada pelos réus, o l.º réu enviou carta registada e expedida a 9/ 12/2015, com a advertência de que a mora se convertia em definitiva no prazo de 30 dias.
232º. A cópia de tais cartas foram reencaminhas por correio electrónico pelo gestor de conta E …, na sequência de um email enviado pelo autor C … questionando o ponto da situação (Doc. 27).
233º. E como se vê de tais cópias, o 1.º réu enviou tal comunicação para o domicilio e sede dos autores quando sabia que não estava lá ninguém, posto que o autor C …Travessa  estava detido o que, aliás, foi divulgado pela comunicação social, tendo inclusive o 1.º réu bloqueado as contas dos autores com tais notícias (Doc. 28 a 31).
234º. Revelador da má-fé do 1.º réu é ainda o fato de endereçar urna via de tais comunicações para um anterior domicílio do autor C …, na Avenida …, em Lisboa, quando sabe, por lhe ter sido comunicado, que o mesmo já não é desde 2003.
235º. E essa comunicação para uma morada que sabe já não ser, não é inocente, pois o que se vê é que o 1.º réu pretende obter o a / r assinado para, assim, cancelar o contrato de locação financeira na conservatória do registo predial.
236º. Ora, os réus tinham, e têm, plena consciência que a situação que levou ao atraso nas rendas de Novembro e Dezembro de 2015 deve-se CO fato do autor C … ter sido detido na sequência da denúncia que efetuaram.
(…) 238º. E assim se compreende que as notificações tenham sido expedida 4 dias após a detenção do autor C ….
239º. Ora, o bem em causa (fração de 200 m2 do edifício Novochiado) tem um valor comercial atual de cerca de 1 100 000,00 €.
240º. Aliás, no ano de 2012, a pedido do banco BIC a avaliação apontou para um valor de venda de 700 000,006, sendo que como é sabido os bens imóveis valorizaram-se bastante desde então na zona nobre do Chiado (Doc. 32)
241º. Conforme infra melhor se demonstrará a autora B …, Lda. é credora do 1.º réu, crédito esse resultante do contrato de locação financeira sub specie.”
Porém, mesmo que o documento 27 referido no art. 232.º possa ter sido junto na referida ação - o que não está demonstrado nos presentes -, o certo é que se desconhece em absoluto o teor desse documento, precisamente porque tal documento 27 não consta do presente processo, não tendo sido junto com o aludido documento 12.
Nem as alegações de facto constantes da referida petição inicial podem ter valor confessório na presente ação - não se trata de confissão nos termos e para efeitos do disposto no art. 355.º, 356.º e 358.º do CC e art. 465.º, n.º 2, do CPC, por maioria de razão.
Na verdade, o que se retira de tais alegações é precisamente que as cartas aí referidas - cujo teor também se desconhece (pois não acompanham o documento junto com o Requerimento Inicial) - não foram oportunamente rececionadas, só posteriormente, em data que se desconhece, tendo o referido C … tido conhecimento das mesmas por correio eletrónico.
Assim, mantem-se inalterada a decisão da matéria de facto.
Da resolução do contrato de locação financeira
Na decisão recorrida, teceram-se as seguintes considerações de direito:
“Estabelece o art. 368º do Código Proc. Civil, em relação ao procedimento cautelar comum, que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundamentado o receio da sua lesão.
Para o decretamento de providência comum basta que sumariamente - summaria cognitio - se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado ou aparência do direito - fummus bonus juris - e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação, ou perigo de insatisfação desse direito - periculum in mora.
No mesmo sentido veja-se Alberto dos Reis, CPC anotado, vol.I, 620; Acórdão da Relação de Évora de 16/5/1991, CJ III, 287 e Acórdão do STJ de 23/1/1986, BMJ 353, 376.
Contudo, no caso em apreço encontramo-nos perante providência especificada, prevista no art. 21º do Dec.-Lei 149/95, de 24/6, que define que, se findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.
O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria de verificação apenas daqueles requisitos.
Como refere António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV, 303, A providência de entrega judicial que foi especificamente criada para enfrentar situações de «periculum im mora» relacionadas com o incumprimento de obrigações do locatário emergentes de contratos de locação financeira revela-se uma das mais evidentes demonstrações do efeito antecipatório potenciado pelas medidas cautelares. (...) O legislador optou por proporcionar ao credor um instrumento de natureza jurisdicional que, malgrado ter natureza provisória, acaba por conduzir, na prática, a resultados definitivos que, em princípio, apenas deveriam emergir dos meios comuns.
Continuando a citar este Autor, pg. 305, O regime jurídico vigente acaba por dar resposta satisfatória aos diversos interesses que se encontram presentes. Por um lado, os do locador, naturalmente desejoso de uma rápida resolução do diferendo, como forma de alcançar a cobrança do crédito ou a livre disponibilidade de um bem que ainda não se encontra na sua titularidade. Quanto ao locatário, a medida não deixa também de lhe trazer algumas vantagens, considerando que, a partir da retirada do bem da sua esfera de actuação, o risco do seu perecimento ou da sua degradação acaba por ser suportado pela contraparte. (...) A medida cautelar destina-se tão só a tutelar antecipadamente o cumprimento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado derivada da extinção do contrato por uma das seguintes vias: a caducidade ou a resolução.
Vistos os fundamentos deste procedimento, torna-se perfeita a conclusão a que este Autor chega, a pgs. 307, À semelhança do que ocorre com a providência cautelar de apreensão de veículo, não se exige a alegação e prova do «periculum in mora», o qual resulta implícito da natureza do contrato e da natural e previsível degradação do bem na pendência da acção definitiva. Por isso basta ao requerente alegar os factos que, de acordo com a situação verificada, legitimem a entrega imediata do bem: a extinção do contrato em consequência da resolução ou da caducidade., bem como, a pgs. 309, O legislador presumiu que a continuação do bem locado na esfera do locatário, depois de extinto o contrato, era susceptível de afectar relevantemente os interesses do locador, o que justifica a recuperação dos seus poderes.
Veja-se também o Ac. da Relação de Lisboa, de 28/1/1999, CJ, I, 97, no sentido de que aquele requisito (periculum in mora) presume-se, juris et de jure, a partir da resolução do contrato e da não restituição do bem.
No caso, encontra-se em crise o requisito do termo do contrato, por resolução do mesmo por parte do requerente; senão, vejamos:
Face ao incumprimento da obrigação e pagamento das prestações emergentes do contrato, o requerente enviou cartas de interpelação, concedendo prazo – à requerida e ao seu gerente - de 30 dias para regularização da situação, para duas moradas: a da sede da requerida e a indicada no contrato.
De seguida e mantendo-se o incumprimento, enviou cartas de resolução do contrato para as mesmas pessoas e para as mesmas moradas.
Sucede que, sem excepção, todas as cartas foram devolvidas, com a menção de «não atendeu» aposta pelos serviços postais.
E a razão é simples: o gerente da requerida encontrava-se em prisão preventiva desde data anterior à primeira das cartas e o requerente tinha conhecimento da aplicação dessa medida de coacção.
Assim como tinha também conhecimento do domicílio efectivo desse mesmo gerente, distinto de qualquer um dos locais para onde enviou as mesmas cartas, de interpelação e de resolução.
Ou seja, encontrando-se o contrato de locação financeira em questão a ser executado desde 14/10/2003 e face ao incumprimento do valor de € 282,09, em 7/10/2015, em 07/11/2015, no valor de € 2.514,68 e em 07/12/2015, no valor de € 2.514,68, relativamente às prestações emergentes do mesmo contrato, o requerente interpelou a requerida e o seu único gerente, para o pagamento desses valores e comunicou a resolução subsequente do contrato, mediante cartas, bem sabendo, face à devolução das mesmas com a menção de «não atendeu», que tal devolução se devia à prisão preventiva a que se encontrava sujeito o referido gerente.
Bem como sabia, o mesmo requerente, da residência efectiva desse gerente – constante do respectivo Termo de Identidade e Residência -, distinta de qualquer uma das moradas para onde enviou aqueles escritos.
Ou seja, encontramo-nos face a um quadro factual que demonstra, em nosso entendimento, a evidente falta de culpa da requerida e do seu gerente, pelo não recebimento das referidas comunicações.
Desse modo, se há-de considerar que a devolução postal dos mesmos escritos impede a eficácia das declarações de interpelação e de resolução, emitidas pelo requerente, na medida em que essas mesmas declarações não chegaram ao conhecimento dos seus destinatários, repete-se, sem qualquer culpa dos mesmos – cfr. art. 224º, nºs e 1 e 2 do Cód. Civil.
Do que se conclui, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência total da providência requerida”.
A Apelante defende que deve ser decretado o procedimento cautelar requerido, argumentando, em síntese, que: o Requerente notificou, por carta registada com aviso de receção, datada de 15-01-2016, quer o locatário, quer o respetivo sócio-gerente C …, para a morada daquela constante do contrato e para a morada da atual sede da Requerida e situação do prédio locado; o  Requerente procedeu, ainda, ao cancelamento do registo da locação financeira; nem o facto de a Requerente ter tomado conhecimento das medidas de coação aplicadas em 05-12-2015 ao sócio-gerente da Requerida C …, nem o facto de as aludidas cartas terem sido devolvidas com a menção “não atendeu”, obstam à validade e eficácia das comunicações remetidas pelo Requerente – quer para efeitos de interpelação ao cumprimento, quer para efeitos de resolução contratual –, pois que mais não fez o Requerente se não dar perfeito cumprimento ao contratualmente estipulado, em conformidade, aliás, com as demais disposições legais aplicáveis; era sobre a Requerida que recaía o especial dever de diligenciar no sentido de encetar o que se revelasse necessário para assegurar o imediato recebimento e conhecimento das comunicações do Requerente, o que a Requerida dolosamente e com o intuito de prejudicar o Requerente, não fez; o impedimento do sócio-gerente – decorrente de processo-crime – não pode constituir “carta-branca” para que a Requerida se furte ao cumprimento das duas obrigações; tanto mais quando a Requerida e o respetivo sócio-gerente confessam, na petição inicial junta como documento n.º 12 do Requerimento Inicial apresentado nestes autos, ter conhecimento quer da situação de incumprimento contratual, quer da resolução efetuada pelo Requerente; resolvido que foi o contrato de locação financeira e cancelado o respetivo registo, tem o Requerente direito à restituição do bem.
Vejamos.
Importa ter presente o disposto nos n.ºs 1 a 4 do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24-06 (Regime jurídico do contrato de locação financeira):
“1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.
2 - Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições técnicas o permitam, por via electrónica.
3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
Conforme tem vindo a ser unanimemente entendido pela generalidade da jurisprudência, no procedimento previsto no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, não é exigível o requisito do justo receio nem há que ponderar os prejuízos que possam resultar da providência, ao contrário do que acontece no procedimento cautelar comum. A lei presume “juris et de jure” o “periculum in mora”, resultando tal presunção do facto de ter findado o contrato e de não ter sido restituído ao locador o bem locado. Os requisitos da providência cautelar de entrega judicial são apenas e tão só os seguintes:
a) a existência de um contrato de locação financeira;
b) o termo do contrato quer por resolução, quer por decurso do prazo sem que o locatário tenha exercido o direito de compra do bem;
c) a não restituição do bem pelo locatário ao locador;
d) a probabilidade séria de existência do direito.
Preceitua o art. 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24-06, que o contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte. Aplicam-se, pois, à resolução do contrato de locação financeira as regras gerais constantes dos arts. 432.º, n.º 1, e 436.º, n.º 1, do CC, do que resulta, por um lado, a admissibilidade da cláusula resolutiva expressa (que visa evitar que uma situação de mora tenha de ser convertida em definitiva nos termos do art. 808.º do CC) e, por outro lado, que a resolução, fundada na lei ou em contrato, se pode fazer mediante declaração à outra parte.
Preceitua o art. 224.º do CC, sob a epígrafe “Eficácia da declaração negocial”, que:
“1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.
2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
3. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz.”
Assim, se uma carta contendo uma interpelação admonitória ou uma comunicação para resolução do contrato não chega a ser entregue ao destinatário, tal interpelação/comunicação só será eficaz, se, como estabelece o citado n.º 2 do art. 224.º, o destinatário foi o exclusivo culpado da não entrega.
Do disposto no art. 224.º do CC conjugado com o art. 342.º do mesmo Código resulta ainda que, tendo a parte interessada em prevalecer-se da resolução contratual alegado e provado o envio de carta registada com a/r para esse efeito, incumbirá à parte contrária, interessada na manutenção da vigência do contrato, alegar e provar os factos dos quais resulte não ter sido por culpa sua que a não recebeu. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 20-04-2006, proferido no processo n.º 1827/2006-6, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário citamos, pelo seu interesse:
«1 - A resolução do contrato traduz-se na extinção ou destruição da relação contratual, por uma das partes, em regra com efeito retroactivo e pode ser “fundada na lei ou em convenção” e fazer-se “mediante declaração à outra parte”.
2 - Quanto “à declaração à outra parte” há-de consistir numa comunicação à parte contrária do exercício do direito de resolução. Comunicação para a qual não se exige forma especial, podendo até ser feita verbalmente. Contudo, tratando-se de uma declaração receptícia, a sua eficácia está dependente da sua chegada ao conhecimento do seu destinatário.
3 - Tendo sido celebrado contrato de locação financeira, não é o Requerente que tem que provar a culpa do Requerido no não recebimento da carta, mas, ao invés, é ao Requerido/declaratário que lhe cabe o ónus de prova de ausência de culpa da sua parte no não recebimento dessa carta.
4 - Destarte, não tendo o Agravante feito essa prova, tendo incorrido em mora, e não a tendo feito validamente cessar, preenchido se acha o fundamento resolutivo em questão, com a produção dos respectivos efeitos: o contrato tem-se por resolvido por incumprimento das obrigações assumidas pelo Agravante.
5 - E como este não restituiu a fracção objecto do contrato, reunidos estão os pressupostos legais estabelecidos na lei para o decretamento da presente providência cautelar, nos termos do art. 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 149/95, com a redacção introduzida pelos Decretos-Leis nº 265/97, de 2 de Outubro e nº 285/2001, de 3 de Novembro.»
No caso em apreço, foi expressamente previsto no art. 11.º das condições gerais que o contrato poderia ser resolvido em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações pelo Locatário se este, interpelado para o efeito, por carta registada com aviso de receção (interpelação admonitória), não suprisse a sua falta no prazo de trinta dias a contar da data de emissão daquela notificação; mais se estipulou que a resolução se faria por simples declaração do Locador dirigida ao Locatário, por carta registada com aviso de receção. Por sua vez, nos termos do art. 14.º das condições gerais, as notificações ou comunicações entre Locador e Locatário seriam consideradas válidas e eficazes se fossem efetuadas para os respetivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados no Contrato ou posteriormente informados, por escrito, à outra parte.
É indiscutível que a Requerida se encontrava em mora no pagamento das rendas (cf. factualidade vertida em F.), mas, para que a resolução do contrato pudesse ter lugar, era indispensável que a Requerente, locadora, interpelasse a Requerida no sentido de proceder à regularização da dívida, conforme estipulado art. 11.º das condições gerais do contrato, em linha com o disposto no art. 808.º do CC. Tanto essa comunicação, como a atinente à resolução do contrato, deveriam ser enviadas para a sede da sociedade Requerida tal como identificada no Contrato, ou seja, a Avenida …, n.º …,….º esquerdo, Lisboa (não havendo notícia de que outra morada tenha sido, posteriormente, informada, por escrito, à outra parte).
A Apelante defende a eficácia das comunicações que enviou (em 09-12-2015 e 15-01-2016) e sustenta que, por isso, a resolução do contrato, fundada na falta de pagamento de rendas, operou validamente, não obstante o facto de não ter sido rececionado pela Requerida nenhuma das cartas enviadas para o efeito.
Sucede que foi alegado e demonstrado (indiciariamente) o motivo pelo qual a Requerida-Apelada não rececionou tais cartas, motivo esse que era, aliás, do conhecimento da Requerente: aquando do envio dessas cartas, o único sócio e gerente da Requerida - então domiciliado na Rua …, n.º …, Edifício …, ….º B, em Lisboa - estava sujeito, por decisão proferida em 05-12-2015, às medidas de coação de prisão preventiva, de suspensão do exercício de funções de gerente da B …, Lda.  e de proibição de contactos com todos os funcionários da B …, Lda.; somente por decisão proferida em 08-03-2017, foi decidido revogar as referidas medidas de coação [sendo que a prisão preventiva havia sido substituída pela obrigação de permanência na habitação, na referida morada].
Ora, a nosso ver, esta situação não configura um caso de culpa exclusiva da Requerida - na pessoa do seu único sócio gerente - para o facto de as cartas não terem sido entregues, pelo que, no contexto fáctico indiciariamente apurado (e outro não foi demonstrado pela Apelante), se impõe concluir que as comunicações enviadas não chegaram a ter eficácia, não se podendo, pois, considerar que o direito à resolução tenha sido validamente exercitado pela Requerente.
Não se diga em contrário que o sócio gerente da Requerida deveria ter diligenciado no sentido de assegurar a continuidade da atividade societária, mormente a receção da correspondência. Efetivamente, isso até poderia fazer algum sentido se estivesse em causa o cumprimento de pena de prisão efetiva, mas não perante a aplicação de medidas de coação que, de súbito, impactaram de forma muitíssimo significativa a atividade societária da Requerida, uma sociedade unipessoal limitada, ao ponto de a prática pelo seu sócio gerente de quaisquer atos relacionados com a atividade da Requerida poder vir a ser considerada como uma violação das outras medidas de coação.
A Requerente, conhecedora desta situação, poderia, querendo, recorrer à via judicial, para exercício do seu direito à resolução do contrato (incluindo mediante reconvenção na ação que foi intentada pela Requerida), ao invés de se bastar com o envio de cartas que sabia de antemão que não poderiam chegar oportunamente ao conhecimento do único sócio gerente da Requerente. Também por isso, a entender-se, por mera hipótese, que lhe assistia o direito à resolução do contrato, considerando-se eficaz a interpelação admonitória, sempre o mesmo teria sido exercido abusivamente (cf. art. 334.º do CC).
Da inversão do contencioso
O Tribunal recorrido decidiu que, em face da improcedência total da providência requerida, resultava prejudicada a apreciação da exceção de litispendência “bem como a apreciação do pedido reconvencional, deduzido condicionalmente à inversão do contencioso (que, naturalmente, não é decretada).”
A Apelante defende que se encontram verificados os pressupostos de que depende o decretamento da inversão do contencioso; e que, mesmo que se entendesse ser aplicável o art. 376.º, n.º 4, do CPC, deve a inversão do contencioso ser decretada, por estarem verificados os respetivos pressupostos, por se ter alcançado uma convicção segura acerca da existência do direito, sendo a natureza da providência adequada à convolação da mesma em definitiva; considera ainda que o pedido reconvencional deduzido pela Requerida, além de processualmente inadmissível no contexto de um procedimento cautelar desta natureza (tendo sido deduzido extemporaneamente), é improcedente.
Vejamos.
Começamos por fazer uma nota prévia: sendo a litispendência uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obstaria ao conhecimento do mérito do procedimento cautelar, é evidente que caso se verificasse nos presentes autos não teríamos tomado conhecimento do objeto do recurso.
De igual modo não se justifica, em nosso entender, aludir à inversão do contencioso, figura prevista no art. 369.º do CPC e que não tem aplicação no procedimento cautelar previsto no citado art. 21.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, nem sequer ex vi do art. 376.º, n.º 4, do CPC. Na verdade, apenas teria cabimento legal a figura da antecipação do juízo da causa principal, nos termos do n.º 7 daquele artigo 21.º, cujo teor é o seguinte: “Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.Como a providência não foi decretada, nada mais havia que determinar, mormente a audição das partes tendo em vista decidir sobre a eventual antecipação do juízo sobre a causa principal.
Assim, é óbvio que não pode ser decretada a inversão do contencioso, não estando a Requerente dispensada de peticionar, em sede de ação declarativa, o reconhecimento do direito que se arroga no presente procedimento cautelar.
Tudo ponderado, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.
Vencida a Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 12-09-2024
Laurinda Gemas
Rute Sobral
Arlindo Crua