Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO NOTIFICAÇÃO ARGUIDO AUTONOMIA MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/06/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NULIDADE DO PROCESSADO | ||
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Sumário: | I - Nos termos dos artigos 113.º, n.º 1, al. c), 196.º, n.º 3, al. c) e 283.º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal, o arguido deve ser notificado da acusação, contra si deduzida pelo Ministério Público, através de via postal simples, com prova de depósito, mediante carta enviada para a residência constante do Termo de Identidade e Residência prestado, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento. II - Apesar do Estado português ter procedido, através da lei 52/2023, de 28 de agosto, à transposição das Diretivas que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal, constata-se que não foram introduzidos no Código de Processo Penal normas processuais destinadas a acautelar os vícios relativos à violação das garantias de defesa consagradas nas referidas Diretivas. III - Fazendo uma interpretação conforme à jurisprudência do Tribunal de Justiça fixada no Acórdão do TJUE, no Proc. C-242/22 PPU, de 01-08-22, impõe-se afastar o regime previsto no artigo 120º do CPP, dado que este não só se mostra incompatível com o conteúdo das duas Diretivas aqui em causa, como neutraliza o conteúdo prático destas duas Diretivas. IV -A autonomia do Ministério Público refere-se à ação penal, investigação e acusação, e não à sanação de uma irregularidade por falta de notificação do conteúdo da acusação ao arguido. A obrigação de notificar a acusação compete precisamente ao Ministério Público como titular na fase processual de inquérito. V - A devolução dos autos ao Ministério Público para efeitos de sanação dos vícios processuais não viola o princípio do acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, como não viola a autonomia do Ministério Público (relativamente ao juiz) estabelecida igualmente na Constituição da República Portuguesa no artigo 219.º, n.º 2. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Nos autos acima identificados do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 4 foi proferida sentença, datada de 6-11-2024, de cuja parte decisória consta: Condenar o arguido AA, como autor material na forma consumada, em .../.../2024, de um (1) crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punível pela pelo art.º 256º nº1 als. e) e f) e nº3 , artigo 255.º, alínea c), artigo 14.º e artigo 26.º, todos do C.P., na pena de sessenta (60) dias de multa, à razão diária de cinco euros (€5,00), o que descontado um (1) dia por detenção, atento o disposto no n.º 2 do artigo 80.º do CP, perfaz a quantia global de duzentos e noventa e cinco euros (€295,00). No dia 6-11-2024, na sequência do requerimento de 30-10-2024, apresentado pela defensora do arguido a invocar a falta de notificação da acusação e do despacho que designou dia para julgamento, foi proferido o seguinte despacho: Admite-se a contestação apresentada pelo Arguido. Atendendo ao objeto do processo delimitado pela acusação pública deduzida, apesar do teor da contestação, resulta despicienda e dilatória a obtenção da informação requerida, na medida em que não tem virtualidade de demonstrar qualquer factualidade que possa influir no esclarecimento da verdade material, sendo irrelevante e supérflua, atenta a alínea b) e d) do n.º 4 do artigo 340.º do CPP, pelo que se indefere inerente requerimento probatório. Tendo o Arguido consentido o julgamento na ausência, cf. consta de fls. 40, o que releva para efeitos do disposto no artigo 334.º, n.º 2 e n.º 4 do CPP, está o mesmo representado para todos os efeitos pela ilustre Defensora, não relevando a sua efetiva notificação, não existindo legal obstáculo à realização do julgamento, mantendo-se a data anteriormente designada. *** Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição): A. Não se conformando com a sentença proferida pelo douto tribunal a quo, o recorrente vem interpor o presente recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho e sentença condenatória, proferidos em 06 de novembro de 2024, pois, no seu entender, os mesmos padecem de nulidade insanável, nos termos da alínea c) do artigo 119.º do CPP. B. Como resulta do n.º 10 do artigo 113.º do CPP, o arguido deve ser necessariamente notificado da acusação e da designação de dia para julgamento, juntamente com o seu defensor, ao contrário do que entendeu o despacho e sentença recorridas, que afirma que por estra representado por defensora, não era relevante a notificação do arguido. C. O dever de notificar o próprio arguido do despacho de recebimento de acusação e da data designada para a audiência está também expresso nos artigos 311.º-A, n.ºs 1 e 3, e 313.º, n.º 2 do CPP, nos quais existe referência à notificação ao arguido e seu defensor. D. A audiência de julgamento não pode ser realizada sem que o arguido esteja notificado do despacho para apresentação da contestação e da data da audiência, por ser este o momento em que o contraditório tem de ser exercido em toda a sua plenitude, conforme determinação legal e constitucional. E. Foi apresentado requerimento a constatar a falta de notificação do arguido, o qual foi ignorado pelo Tribunal a quo, que no dia da audiência de julgamento proferiu despacho a afirmar que o arguido tinha consentido na realização do julgamento na sua ausência, pelo que, estando representado por defensora, poderiam sem mais prosseguir os autos para o julgamento. F. As notificações enviadas ao arguido, por registo postal simples, foram endereçadas para morada diferente daquela que consta no TIR, sem que tal tivesse sido indicado pelo recorrente. G. A notificação da data de julgamento e para deduzir acusação, enviada para morada diversa daquela indicada pelo recorrente no TIR, foi devolvida com a indicação de “desconhecido, endereço inexistente”, do que o recorrente não pode ser imputado, por não ser responsável por essa morada. H. A prova da entrega de notificação da dedução de acusação, que foi enviada para morada distinta do TIR, foi junta aos autos em data posterior à sentença, nomeadamente em 21 de novembro de 2024, o que prejudicou que se conseguisse melhor aferir a violação dos direitos de defesa do recorrente. I-O recorrente foi prejudicado dos seus direitos, porque não foi notificado dos atos de mais extrema relevância para a concretização de sua defesa, sendo que a informação que recebeu ainda em fase de inquérito – por tradutor, o que deve ser considerado, pois sempre há parte da informação que pode ser perdida – foi que as notificações seriam realizadas na morada que indicou para constar no TIR, nos termos e obrigações que constam no artigo 196.º do CPP. J. Não podia o douto Tribunal enviar as notificações de atos que obrigatoriamente devem ser feitos também ao arguido para morada diversa do TIR, por via postal simples. K. A utilização de morada diversa daquela que o recorrente escolheu para ser notificado quando prestou o TIR foi completamente irregular e em desprezo das normas expressas no CPP, nomeadamente do artigo 113.º e 196.º do CPP, violando as garantias constitucionais do artigo 32.º do CRP por impedir que o arguido tivesse conhecimento dos atos e pudesse escolher estar presente no julgamento. L. A concordância que o julgamento fosse realizado na sua ausência, que foi dado na fase de inquérito, não pode ter como consequência que o arguido não precise ser mais notificado dos atos expressos no artigo 113.º, n.º 10 do CPP. M. O despacho e a sentença proferidos em 06 de novembro de 2024 violam o disposto nos artigos 113.º, 196.º, 311.º-A, n.ºs 1 e 3, e 313.º, n.º 2 todos do CPP, bem como as garantias constitucionais de defesa plasmadas no artigo 32.º da CRP. N. Como as notificações foram enviadas para morada diversa daquela indicada no TIR e por a notificação da data do julgamento ter sido devolvida, sem observância do artigo 113.º, n.ºs 2 3 e 4, não se pode considerar o recorrente devidamente notificado da acusação e do despacho que designa dia para julgamento. O. O despacho e a sentença recorridos são nulos, nos termos da alínea c) do artigo 119.º do CPP, pelo que deve ser considerado nulo todo o processado posterior à notificação da acusação, incluindo esta, que deve ser repetida. *** Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal respondeu o Ministério Público concluindo pela improcedência do recurso tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição): O arguido, em .../.../2024, prestou Termo de Identidade e Residência, indicando a seguinte morada para efeito de notificações: .... - No dia 13/05/2024, o arguido, foi pessoalmente notificado nos serviços da Procuradoria do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, que o julgamento sumário iria ser realizado no dia 28/05/2024, às 14 horas e 30 minutos e, nessa ocasião, indicou a seguinte morada para notificações: .... - Ainda nesse mesmo dia 13/05/2024, o arguido, juntou aos autos um requerimento, sob a referência citius 435443600 a pedir o seu julgamento na ausência, ao abrigo do disposto no artigo 334º, nº 2, do Código de Processo Penal. - No dia 04/06/2024 foi deduzido despacho de acusação em processo abreviado, com a referência citius 436072797. - Tal despacho de acusação e o despacho que a recebeu e designou a (s) data (s) da realização da audiência de julgamento, foram notificados ao arguido com referência à ultima morada por si indicada nos autos, isto é: .... - Daqui resulta, salvo melhor entendimento, que o arguido foi regularmente notificado para a última morada por si indicada nos autos. - Acresce que, o arguido em 10/10/2024, apresentou a sua contestação sob a referência citius 40689714. - Entendemos, assim, não existir qualquer nulidade. Termos em que, devem improceder os argumentos apresentados pelo recorrente, ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho e sentença recorridos, fazendo-se, assim, a tão costumada, *** Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. *** Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº colocou visto nos autos. *** Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão. Delimitação do objeto do recurso. Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a apreciar: Da irregularidade por falta de notificação da acusação. O despacho de 6-11-24 e a sentença recorridos são nulos, nos termos da alínea c) do artigo 119.º do CPP. III- Fundamentação Para o conhecimento do presente recurso importe considerar a seguinte dinâmica processual: O arguido, em 11/05/2024, prestou Termo de Identidade e Residência, devidamente traduzido para a língua do arguido, indicando a seguinte morada para efeito de notificações: Nas.... O arguido é cidadão … e não domina a língua portuguesa. No dia 13-5-2024 o arguido foi presente nos serviços do Ministério Público – secção de pequena criminalidade da instância local de lisboa - onde, por despacho do MP, foi determinada a sua notificação para efeitos de julgamento em processo sumário em 28-4-2024, bem como a nomeação de tradutor e interprete ao arguido, dado que este não domina a língua portuguesa e a nomeação de defensor ao arguido. Com a data de 13-5-2024 consta um requerimento, em língua portuguesa, com o timbre dos serviços do Ministério Público, assinado pelo arguido, onde consta que o mesmo autoriza que o julgamento tenha lugar na sua ausência ao abrigo do disposto no artigo 334º nº 2 do CPP. Com a data de13/05/2024, consta uma notificação, igualmente em língua portuguesa, da qual resulta que o arguido foi pessoalmente notificado nos serviços da Procuradoria do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, que o julgamento sumário iria ser realizado no dia 28/05/2024, às 14 horas e 30 minutos. Nessa mesma notificação consta, como morada do arguido a Avenida.... Não consta dos autos que esta notificação de 13-5-2024 tenha sido traduzida para a língua do arguido. O julgamento estava agendado para o dia 28-5-2024 a realizar em processo sumário. Por despacho do MP de 24-5-2024 o julgamento foi dado sem efeito. Em 4-6-2024 foi proferido despacho de acusação em processo abreviado no qual foi ordenado o cumprimento do no art.º 277º nº3, ex vi, 283º nº5 ambos do Código Processo Penal. Foi ordenada, em 9-7-2024, a notificação da acusação ao arguido para a seguinte morada: Avenida.... Não consta dos autos que a acusação tenha sido traduzida para a língua do arguido. Em 19-8-2024 foi expedida a notificação da acusação para a defensora nomeada ao arguido. Em 3-9-2024 os autos foram remetidos ao tribunal de julgamento. Foi proferido, em 12-9-2024, despacho de recebimento da acusação e a agendar o julgamento para o dia 8-11-2024. Não consta dos autos que este despacho tenha sido traduzido para a língua do arguido. Em 19-9-2024 foi expedida notificação à defensora do arguido quanto à data de julgamento. No dia 10-10-2024 o arguido, através da sua defensora nomeada, apresentou contestação. A carta de notificação ao arguido foi devolvida no dia 16-10-2024 com a informação de desconhecido e endereço inexistente. Não consta dos autos que a devolução da notificação da acusação ao arguido tenha sido comunicada à defensora do arguido. Em 30-10-2024 veio o arguido, através da sua defensora, invocar a nulidade por falta de notificação da acusação e do despacho que designou dia para julgamento. Por despacho de 6-11-2024, acima transcrito, foi a pretensão do arguido indeferida. Cumpre apreciar. O julgamento teve lugar na ausência do arguido ao abrigo do disposto no artigo 334º nº 2 do CPP. A norma processual penal de que regula a presença do arguido em julgamento é o segmento inicial do nº 1 do artigo 332º do Código de Processo Penal que preceitua “é obrigatória a presença do arguido na audiência”. Esta inequívoca regra de obrigatoriedade de presença do arguido visa prosseguir não apenas o processo justo e equitativo, que assegure todas as garantias de defesa do arguido, mas também o processo que viabilize a boa decisão da causa. A obrigatoriedade-regra da presença do arguido na audiência afirma-se sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 333º e nºs 1 e 2 do artigo 334º do CPP. Dispõe o nº 2 do artigo 334º do CPP que:” Sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência.”. Daqui resulta que o único direito processual que o arguido consentiu que fosse restringido é o direito de estar presente na audiência de julgamento e não, como parece resultar do despacho recorrido de 6-11-2024, todos os demais direitos relacionados com o exercício do direito de defesa, mormente o direito a ser notificado e a tomar conhecimento dos factos pelos quais se mostra acusado. Assim, desde já se antecipa que o facto de o arguido ter autorizado a realização do julgamento na sua ausência jamais poderá constituir fundamento legal para que seja dispensada a notificação da acusação ou o despacho que designa dia de julgamento e, nem esse requerimento, tem a virtualidade de, por si só, validar a omissão dessas notificações. *** Antes de mais, há que dizer que se mostra assente que o arguido tem nacionalidade indiana e que não conhece e nem domina a língua portuguesa, pois que é essa a verdadeira condição da nomeação de intérprete prevista no art. 92.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal. Com efeito, desde o início dos autos, conforme resulta do despacho do MP de 13-5-2024, constitui um dado assente que o arguido não domina a língua portuguesa. Consta dos autos que o Ministério Público, apesar de saber que o arguido é indiano e desconhece a língua portuguesa falada e escrita, deduziu acusação sem tradução e promoveu a notificação do arguido em língua portuguesa, através de carta enviada para uma morada distinta da que consta do TIR, sendo que não consta que essa outra morada tenha sido comunicada pelo arguido, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontravam a correr nesse momento. Assim, antes de analisarmos a irregularidade suscitada pelo arguido quanto à falta de notificação da acusação, cumpre verificar se se verifica algum vício processual pelo facto da acusação deduzida pelo MP, assim como o despacho que designou dia para julgamento em processo abreviado, não estarem traduzidos para a língua do arguido. Dispõe o artigo 92º do CPP, no seu nº 2, 3, 4 e 5 o seguinte: 2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada. 3 - A entidade responsável pelo ato processual provê ao arguido que não conheça ou não domine a língua portuguesa, num prazo razoável, a tradução escrita dos documentos referidos no n.º 10 do artigo 113.º e de outros que a entidade julgue essenciais para o exercício da defesa. 4 - As passagens dos documentos referidos no número anterior que sejam irrelevantes para o exercício da defesa não têm de ser traduzidas. 5 - Excecionalmente, pode ser feita ao arguido uma tradução ou resumo oral dos documentos referidos no n.º 3, desde que tal não ponha em causa a equidade do processo. Nos termos dos artigos 283.º, n.º 5, e 277.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, a acusação é comunicada às pessoas indicadas nesse n.º 3, entre elas o Arguido. Essa comunicação é feita nos termos do n.º 4 do referido artigo 277.º, pelo que, no que respeita ao arguido, a regra, é a de que o seja “por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada De acordo com o artigo 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal, a acusação, assim como ao despacho que designa de dia para julgamento, deve ser notificada ao arguido e ao seu defensor. Daqui resulta que o legislador, tendo em vista assegurar todas as garantias de defesa ao arguido, definiu as situações em que considera insuficiente a notificação exclusiva ao advogado ou defensor nomeado, exigindo que a notificação seja feita ao próprio arguido, por serem atos essenciais na economia do processo e ao exercício do direito de defesa. Nos termos dos artigos 113.º, n.º 1, al. c), 196.º, n.º 3, al. c) e 283.º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal, o arguido deve ser notificado da acusação, contra si deduzida pelo Ministério Público, através de via postal simples, com prova de depósito, mediante carta enviada para a residência constante do Termo de Identidade e Residência prestado, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento. Para além disso, resulta do artigo 61.º n.º1 al. j) do Código de Processo Penal que “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de: (…) tradução e interpretação, nos termos dos artigos 92.º e 93.º.” Da conjugação das normas acima citadas e aderindo aquilo que é dito no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora 55/2017.9GBLGS.E1, de 20.12.2018: “A previsão do artigo 113º, nº 10 do Código de Processo Penal, devidamente conjugado com a letra e espírito do artigo 6º, nº 3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, exigem, no caso de arguido que não entenda a língua portuguesa, que sejam devidamente traduzidas as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de cocção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil”. Como é sabido, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por força do artigo 8º nº 2 da CRP, vigora na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional e com um “valor superior às leis ordinárias”. Um pressuposto essencial do processo justo, consagrado no artigo 6º da Convenção, é que o acusado entenda o processo e todos os atos em que se desdobra. Com efeito, com vista a dar concretização prática ao “due process of law”, o nº 3 do artigo 6º da CHDH estabelece um catálogo de “minimum rights” do arguido, entre eles o direito a ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada. Estas garantias de defesa resultam, também, dos preceitos constitucionais portugueses, nomeadamente dos nºs. 1, 5 e 7 do artigo 32º da CRP. Daqui resulta não ser admissível a existência de atos de processo, nomeadamente a acusação, que não surjam como compreensíveis para o arguido, não podendo a barreira da língua constituir, jamais, um impedimento a essa total compreensão. Cumpre convocar aqui, também, os instrumentos jurídicos do direito da União, em especial a Diretiva n.º 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal a qual tem aplicação direta em Portugal desde 28-10-2013, bem como a Diretiva nº 2012/13/EU relativa ao direito à informação, igualmente com aplicação direta em Portugal desde 02-06-2014. A Diretiva n.º 2010/64/EU estabelece, por um lado, um catálogo de “minimum rights” de compreensão da linguagem falada e escrita no processo para qualquer cidadão confrontado com qualquer tribunal no espaço comunitário e impõe, por outro lado, um conjunto de obrigações mínimas comuns vinculando os Estados na disponibilização do direito à informação/interpretação/tradução de forma gratuita na UE. Conforme referem os considerandos 14 e 17 desta Diretiva: “A presente diretiva facilita o exercício daquele direito na prática. Para o efeito, a presente diretiva visa garantir o direito dos suspeitos ou acusados a disporem de interpretação e tradução em processo penal, com vista a garantir o respetivo direito a um julgamento imparcial.” e “(…) deverá garantir a livre prestação de uma adequada assistência linguística, possibilitando que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal exerçam plenamente o seu direito de defesa e assegurando a equidade do processo.”. Na parte que aqui releva, o n.º 1 do artigo 3º da Diretiva estabelece que “os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”. O conceito de documentos essenciais é densificado no n.º 2, referindo expressamente que, pelo menos, serão assim considerados: 1) as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, 2) a acusação ou a pronúncia, e 3) as sentenças. Estes documentos terão sempre, como regra geral, de ser traduzidos, não sendo suficiente uma interpretação oral dos mesmos, sob pena de violação da Diretiva. Por sua vez, a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu Artº 3, sobre o direito a ser informado sobre os direitos, a consagração, na sua al. d), do direito à interpretação e tradução. As Diretivas em referência – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal– apesar dos prazos de transposição terem terminado, respetivamente, em 27-11-2013 e 02.06.2014, apenas foram transpostas para o ordenamento jurídico português em 29 de agosto de 2023 através da Lei 52/2023, de 28 de agosto. Com efeito, inicialmente foi entendido pelo Estado português que a legislação nacional já cumpria com os mínimos da Diretiva, apesar do CPP prever apenas um artigo genérico sobre essa matéria – o artigo 92º do CPP referente à língua dos atos e a nomeação de intérprete. Tendo em conta todo o exposto, dúvidas não existem de que o arguido deveria ter sido notificado da acusação, como deveria ter sido notificado do teor do despacho de acusação na sua língua materna, o que não se verificou. Como é dito no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 “todos os atos processuais levados a efeito nas fases preliminares do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir”. Aqui chegados, importa agora saber se este quadro legal revela alguma nulidade e qual o seu regime, e ainda, se devem ser aplicadas as normas decorrentes do Direito da União Europeia, em função da sua produção de efeitos na ordem jurídica interna. Quanto ao regime das nulidades dos atos processuais, vigora entre nós o princípio da legalidade, definido no 118.º do Código de Processo Penal, cujo n.º 1 dispõe que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”, estatuindo o seu n.º 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”. Percorrido o Código de Processo Penal, em particular os artigos 119º e 120º, constata-se que não existe norma especial que comine expressamente com nulidade a omissão de entrega ao notificando estrangeiro de tradução da acusação na sua língua materna. Dispõe o artigo 120.º al. c) do n.º 2 do Código de Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição “a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória”, aqui se incluindo, naturalmente, todos os atos orais ou escritos que importe traduzir para a língua de algum dos intervenientes, em harmonia, de resto, com o estabelecido no acima referido artigo 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Apesar do Estado português ter procedido, através da lei 52/2023, de 28 de agosto, à transposição das Diretivas que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal, constata-se que não foram introduzidos no Código de Processo Penal normas processuais destinadas a acautelar os vícios relativos à violação das garantias de defesa consagradas nas referidas Diretivas. Com efeito, o legislador, com as alterações aos artigos 57.º, 58.º, 59.º, 61.º, 92.º, 93.º, 166.º e 336.º do Código de Processo Penal consagrou as garantias de defesa que já vigoravam no nosso ordenamento jurídico por efeito de aplicação direta das duas Diretivas em causa, desde 28-10-2013 e 02-06-2014, respetivamente, mas não procedeu a qualquer alteração quanto ao do regime de validade dos atos processuais, tal como se encontra previsto no CPP. Na verdade, tendo em conta a natureza dos direitos em causa, o primado do direito da União, o princípio da efetividade consagrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, o direito a um processo equitativo o qual constitui um principio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law) e que se mostra consagrado nas normas acabadas de citar, assim como no artigo o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conclui-se que o regime de sanação dos vícios, prazos de arguição e o seu não conhecimento oficioso, conforme previsto no artigo 120º do CPP, mostra-se incompatível não só com a natureza dos direitos em causa, bem como com as garantias consagradas nas Diretivas acima referidas, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na própria Constituição, bem como com a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça fixada no Acórdão do TJUE, no Proc. C-242/22 PPU, de 01-08-22. Com efeito, de há muito que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem estabeleceu que da Convenção não resultam para os Estados membros apenas obrigações de não ingerência mas também, porque a Convenção visa proteger direitos não teóricos ou ilusórios mas concretos e efetivos, obrigações positivas de adotar as medidas adequadas a assegurar a efetividade os direitos garantidos pela Convenção. Esta mesma obrigação de facere resulta das duas Diretivas acima mencionadas. Quer a Convenção, quer as Diretivas impõem aos Estados Membros uma tripla obrigação: de respeito (não violar o direito), de ação (tomar as medidas necessárias para assegurar a efetividade do direito) e de garantia (tomar as medidas adequadas para impedir que terceiros violem o direito). Por todo o exposto, fazendo uma interpretação conforme à jurisprudência do Tribunal de Justiça fixada no Acórdão do TJUE, no Proc. C-242/22 PPU, de 01-08-22, impõe-se afastar o regime previsto no artigo 120º do CPP, dado que este não só se mostra incompatível com o conteúdo das duas Diretivas aqui em causa, como neutraliza o conteúdo prático destas duas Diretivas. Deste modo, entendemos ser do conhecimento oficioso a violação do direito a um julgamento equitativo e a sua eventual reparação No que diz respeito à consequência da violação destas garantias de defesa, acompanhamos, por estamos em total acordo, a posição aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 quando diz o seguinte: “As obrigações positivas impostas às polícias, ao M.P e aos tribunais implicam a revogação de todas as normas do direito nacional – existentes ou a existir - que sejam contrárias ao estabelecido nas Diretivas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum. Aqui se incluindo um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado. Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a al. c) do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal”. “Assim, a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo citado artigo 120º, nº 3 do Código de Processo Penal, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47° e 48°, n° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2°, n° 1, e 3°, n° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3º, nº 1, da Diretiva 2012/13”. [neste sentido vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora de 8 de Março de 2022 e de 25 de Outubro de 2022, Processos nºs 53/19.8GACUB-B.E1 e 128/22.6GDFAR.E1]. Na verdade, decorre do Acórdão do TJUE, no Proc. C-242/22 PPU, de 01-08-22 na sequência de um pedido de decisão prejudicial apresentado pela Relação de Évora no âmbito do Processo nº 53/19.8GACUB.B.E1 que: O artigo 2°, n° 1, e o artigo 3°, n° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3°, n° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47° e do artigo 48°, n° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados”. Neste mesmo sentido, temos os acórdãos da Relação de Évora de 2-8-2022 no proc. Nº 53/19.8GACUN-B.E1, de 2-2-2024 no proc. Nº 428/21.2.GESLV.E1 e de 21-5-2024, no proc. Nº 399/22.8GESLV.E1. Na verdade, a aplicação do disposto no artigo 120º nº 1 al. c e 3 do CPP à situação em apreço, não permite assegurar o respeito pelos direitos de defesa do arguido e pelo direito a um processo equitativo garantidos pelas normas do Direito da União acima indicadas, bem como pelo CHDH. Dito de outro modo, o legislador nacional ao proceder à transposição das Diretivas da União não acautelou todos os mecanismos processuais com vista a dar efetividade e plena eficácia às normas recentemente introduzidas no CPP destinadas a garantir direitos fundamentais de defesa. Assim, atenta a natureza do vício processual o mesmo é de conhecimento oficioso motivo pelo qual aqui se declara. Em face do exposto, tendo em consideração as normas comunitárias convocadas, o seu primado sobre a norma interna e dando cumprimento a este Acórdão do TJUE, o qual vincula os órgãos jurisdicionais portugueses e no quadro do Direito da União Europeia que produz efeitos na ordem jurídica interna portuguesa e prevalece sobre o nosso direito interno - não aplicar o regime decorrente do art. 120º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal, mas antes, considerar o processado como nulo, desde a expedição da notificação do despacho de acusação, porque dele dependente, nulidade essa insanável, cabendo aos serviços do Ministério Público a correcção da nulidade por si cometida, procedendo à tradução da acusação para língua que o arguido domine e compreenda e a sua correspondente notificação ao arguido. *** Para além da acusação não se mostrar traduzida para a língua do arguido verifica-se, também, que a mesma não se mostra notificada ao arguido como impõe o artigo 113º nº 10 do CPP. Com efeito, da factualidade acima descrita resulta que a notificação da acusação foi expedida para uma morada distinta da morada que consta do TIR prestado pelo arguido, sendo que a mesma foi devolvida, no dia no dia 16-10-2024, com a informação de desconhecido e endereço inexistente. Em parte alguma dos autos o arguido prestou TIR indicando a morada Avenida... ou apresentou requerimento, entregue ou remetido, por via postal registada à secretaria onde os autos se encontravam a correr nesse momento a informar a sua nova morada como sendo a Avenida.... Não se argumente, como pretende o MP, que a irregularidade de falta de notificação da acusação está sanada em virtude da defensora nomeada ter apresentada, no dia 10-10-2024, contestação sem que tenha de imediato invocado a irregularidade de falta de notificação, pela simples razão que nessa data (10-10-2024), ainda não se mostrava junto aos autos a devolução da carta de notificação da acusação, a qual só teve lugar no dia 16-10-204. Deste modo, em 10-10-2024, a defensora nomeada jamais poderia saber que o arguido não se mostrava notificado. Tendo em conta o vício praticado e não prevendo os artigos 119º e 120º do CPP a forma incorreta como foi realizada a comunicação da acusação ao arguido como uma nulidade, estamos perante uma irregularidade a seguir o regime imposto pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal. Como refere Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado”, 7.ª edição, pág. 253, em anotação ao art.º 123.º, com o qual se concorda “Apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais. Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afetar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador.”. Ora, tratando-se a falta de notificação da acusação e do despacho que designa dia para julgamento de uma irregularidade e que a mesma não foi suprida quando os autos foram sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, estamos perante uma omissão que afeta a validade de todos os atos processuais posteriores. O recebimento da acusação, como aconteceu no caso concreto, no pressuposto de que esta foi devidamente notificada e a designação de data para julgamento sem a notificação do arguido conduziu à realização de uma audiência de julgamento à margem do arguido e sem culpa deste. Aqui chegados e identificado o vício processual a questão que se coloca é a quem incumbe sanar a irregularidade declarada. Quanto a esta questão, registam-se divergências a nível da jurisprudência, perfilando-se duas correntes distintas: uma, no sentido no sentido favorável à admissibilidade da devolução dos autos ao Ministério Público; outra, no sentido desfavorável à admissibilidade da devolução dos autos ao Ministério Público. Desde já assumimos que a devolução dos autos ao Ministério Público para efeitos de sanação dos vícios processuais não viola o princípio do acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, como não viola a autonomia do Ministério Público (relativamente ao juiz) estabelecida igualmente na Constituição da República Portuguesa no artigo 219.º, n.º 2. Com efeito, a autonomia do Ministério Público refere-se à ação penal, investigação e acusação, e não à sanação de uma irregularidade por falta de notificação do conteúdo da acusação ao arguido. A obrigação de notificar a acusação compete precisamente ao Ministério Público como titular na fase processual de inquérito. Para além disso, ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, o Tribunal mais não faz do que acolher essa autonomia, em questão que se prende com a estrita observância das formalidades legais (a notificação da acusação), a que o Ministério Público está sujeito, e não relativa a ato de inquérito que contenda com as finalidades deste previstas no artigo 262º do Código de Processo Penal. Neste sentido vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos: - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05.05.2015 [processo 1140/12.9TDEVR-A.E1.], com o seguinte sumário: «I.- A autoridade judiciária competente para notificar a acusação é o MºPº. II.- Se detetada, pelo juiz, no momento do art.º 311º do CPP, uma ilegalidade consistente na notificação irregular da acusação ao arguido, deve o juiz providenciar pela sua reparação, podendo ordenar a devolução dos autos ao MºPº para que proceda à sua notificação. III.- Esta prática não viola o acusatório e não interfere com a autonomia do MºPº, pois do que se trata é de viabilizar que o MºPº supra a irregularidade que cometeu e diligencie pela notificação da sua acusação, autonomamente elaborada.» Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.04.2014 [processo 650/12.2PBFAR-A.E1] e de 13.09.2022 [processo 64/20.0PBEVR.E1], extraindo-se do último o seguinte sumário: « I. O Código de Processo Penal prevê que final do inquérito o Ministério Público notifique a sua decisão, de acusação ou de arquivamento, aos envolvidos (artigo 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5, 284.º e 285.º). II. O processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (283.º, n.º 5). II. Inexistindo notificação da acusação e sendo vício de conhecimento oficioso deve o Tribunal devolver os autos ao Ministério Público para cumprir a função que legalmente lhe compete, não os recebendo enquanto a notificação da acusação se não mostre devidamente efetuada e decorrido o prazo para requerer a instrução, sem prejuízo da efetiva ocorrência de situação enquadrável na segunda parte do n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.» Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.11.2018 [processo 20/15.0IDFAR-A.E1], , com o seguinte sumário: «I – No âmbito do despacho de saneamento pode conhecer-se de qualquer irregularidade do processo, quando ela puder afetar o valor do ato praticado. II – A remessa dos autos ao Ministério Público “para os fins tidos por convenientes” implicitamente fundado na competência deste para reparação da irregularidade (falta de notificação da acusação), não contende com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do Ministério Público.» Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.10.2023 [processo 3126/22.6T9FAR.E1], com o seguinte sumário: «I. Cabe ao Ministério Público proceder à notificação da acusação ao arguido (artigo 283.º, n.º 5 CPP). II. Determina a lei que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – para a fase de julgamento – se os procedimentos de notificação que ao Ministério Público cabe realizar tiverem resultado ineficazes (segunda parte do n.º 5 do artigo 283.º CPP). III. Não é de somenos que essa notificação seja efetivamente realizada nos termos preconizados pela lei, como não é indiferente a fase processual em que o arguido é notificado da acusação, nem também a entidade que procede a essa notificação. IV. O que está em causa é a salvaguarda do direito de defesa do arguido - que pode querer requerer a abertura da instrução. V. Nessas circunstâncias o procedimento remetido a Juízo para distribuição não reúne os requisitos legais. Daí que quando o Tribunal profere despacho a conhecer e declarar oficiosamente a irregularidade não esteja ainda a aferir o recebimento ou a rejeição da acusação. VI. Não estando realizada a notificação ao arguido, nos termos previstos na lei, a pretensão recursiva do despacho judicial que assinalou essa irregularidade procedimental é manifestamente improcedente.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.07.2018 [processo 123/16.4PGOER.L1-3] com o seguinte sumário: «I. A omissão de notificação da acusação constitui irregularidade cuja reparação pode ser conhecida oficiosamente, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, afetando tal omissão o ato em si, de conhecimento da acusação, nos termos previstos no art.º 123º, nº 2 do CPP. II.- Dispõe o nº 5 do art.º 283º do CPP, por remissão para o nº 3 do art.º 277º do mesmo diploma, a obrigatoriedade de o Ministério Público notificar a acusação ao arguido e ao seu defensor, tendo a obrigação legal de tudo fazer para notificar o arguido. III.- O legislador só admitiu a possibilidade de o processo transitar para a fase de julgamento sem o arguido ser notificado da acusação na situação prevista no nº 5 do art.º 283º do CPP, ou seja, “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”. IV.- A devolução dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade por omissão de notificação da acusação, na situação em que se não mostram preenchidos os pressupostos do nº 5 do art.º 283º do CPP, em nada contende com a estrutura acusatória do processo.” Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.2023 [processo 169/20.8IDSTB.L1-9] e de 27.04.2023 [processo 1155/21.6PFSXL.L1-9] extraindo-se do último o seguinte sumário: «I. O envio, por parte do Ministério Público, para notificação de uma acusação a um arguido acusado, de uma carta simples (com prova de depósito) para uma morada incompleta face à constante do TIR prestado, e que teve como consequência a sua devolução com a indicação de “endereço insuficiente”, não tem a virtualidade de cumprir com os efeitos processuais e substantivos a que a carta se destinava. II. Tal notificação terá de ser julgada irregular, invalidade que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato e conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa do arguido (art.º 123º, n.º 2, do CPP), sendo equiparada nos seus efeitos a uma nulidade insanável. III. Essa irregularidade da notificação da acusação pode e deve ser conhecida pelo juiz do julgamento aquando do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, por obstar à apreciação do mérito da causa. IV. Em tal situação o juiz pode ordenar a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público para, querendo, proceder à correção do vício, dado que a competência legal para essa notificação é atribuída ao Ministério Público, o processo só deve ser remetido para julgamento quando a fase das notificações da acusação estiver completa (sem prejuízo do caso excecional previsto no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte do CPP), o processo continua num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento e não é indiferente para um arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito ou em fase de julgamento. V. Essa devolução do processo não viola os poderes de autonomia e de independência do Ministério Público. VI. A defesa da estrutura acusatória do processo penal e da autonomia do Ministério Público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências processuais que a este competem, em desrespeito do estrito ritual processual penal, não podendo aceitar-se como normal, no sentido de “normalizar ou banalizar”, a remessa de inquéritos para a fase de julgamento sem o regular cumprimento da fase das notificações da acusação, apesar da ilegalidade dessa prática, com os prejuízos que acarreta para os sujeitos processuais, em particular para os arguidos.». Em conclusão, no caso, o arguido não foi notificado da acusação, sendo que este vício constitui uma irregularidade impondo uma reparação oficiosa porquanto o ato inquinado (no caso, a ausência dele) inquinou também, como aconteceu, todos os atos subsequentes, incluindo o julgamento e a sentença. IV DECISÃO Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em: Considerar o processado como nulo, desde a expedição da notificação do despacho de acusação, incluindo o julgamento e sentença, porque dele dependente cabendo aos serviços do Ministério Público a correcção da nulidade por si cometida, procedendo à tradução da acusação para língua que o arguido domine e compreenda e a sua correspondente notificação ao arguido. Sem custas. Notifique. Lisboa, 6 de março de 2025, Ivo Nelson Caires B. Rosa Eduardo de Sousa Paiva André Alves |