Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | JORGE LEAL | ||
| Descritores: | RESPOSTAS AOS QUESITOS PROCURAÇÃO SIMULAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 06/14/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Sumário: | I – É admissível resposta a um quesito em que se supra deficiência de que este padeça por a sua redacção ficar aquém daquilo que havia sido alegado nos articulados, se dos autos resultar que o facto contido na resposta foi objecto de discussão na audiência e respeitado o contraditório. II – É terceiro, para os efeitos previstos no nº 3 do artigo 394º do Código Civil, a outorgante de procuração com base na qual o procurador celebrou contrato de compra e venda simulado, sem o conhecimento da representada. III – Também são terceiros, para o mesmo efeito, os filhos do vendedor na compra e venda simulada, herdeiros legitimários que intentam acção de declaração de simulação para o efeito de protegerem as suas legítimas. IV – É movido pela intenção de enganar terceiros o negócio de compra e venda mediante o qual se pretende criar a ilusão de que determinados imóveis, localizados em Portugal e objecto da venda simulada, deixaram de integrar o património do casal de portugueses que se divorciaram nos EUA e aí acordaram na partilha dos bens, mas não procederam à revisão da sentença respectiva em Portugal, ilusão que tem como destinatários um dos membros do casal, os filhos do casal e as autoridades que viessem a intervir na formalização e fiscalização da partilha dos bens do casal em Portugal. (JL) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO I S C S, L C C S, L M S e M I C S intentaram no Tribunal Judicial de S. Roque do Pico a presente acção declarativa, na forma ordinária, contra A L S. Alegaram, em síntese, que a autora Irene foi casada com M, casamento que, nos Estados Unidos da América, veio a ser dissolvido por divórcio. Nessa data, o casal vivia naquele país e tinham um procurador na ilha do Pico que era conhecedor de toda a situação, bem como que o M, entretanto, tinha casado com a ré, nos Estados Unidos da América. Pressionado pelo M, o procurador deste e da autora Irene outorgou, em representação deles, uma escritura de compra e venda a favor da ré, de um prédio urbano e 4/10 de um prédio rústico identificados nos autos, na qual se declara ter o preço respectivo sido já pago. Alegam ainda os autores que, por acordo entre estes intervenientes na escritura pública, os prédios deveriam ser posteriormente vendidos pela ré de novo ao M, assim prejudicando a autora, pelo que tal escritura foi simulada, bem como o pagamento do preço. Concluem os autores pedindo que se declare a nulidade da escritura celebrada relativa aos prédios identificados nos autos, com o consequente cancelamento dos registos efectuados. A Ré contestou, alegando que a realização da escritura que se invoca como simulada foi feita de acordo com a vontade da autora, à semelhança de outra escritura celebrada nos mesmos termos. Impugnou também os factos alegados pelos autores e concluiu pela improcedência da acção. Foi proferido despacho saneador e organizadas a especificação e a base instrutória, que se fixaram sem reclamações. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi dada resposta à matéria de facto constante da base instrutória, sem reclamações. Oportunamente foi proferida sentença que julgou a acção procedente e consequentemente declarou a nulidade, por simulação, da referida compra e venda e ordenou o cancelamento dos registos efectuados em consequência da escritura; mais condenou a Ré na multa de dez UC, por litigância de má fé. A Ré apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões: 1. O artigo 653°, n° 2, do Código de Processo Civil, impõe ao juiz que, por um lado, fundamente as respostas aos quesitos, inclusivamente as negativas, e, por outro lado, que proceda a uma análise crítica das provas, devendo, assim, explicitar, perante a produção de determinado meio de prova, designadamente um depoimento testemunhal que aponta em determinado sentido, porque razão não o considerou para fundamentar uma resposta positiva a um determinado quesito, ou, no caso de depoimento de testemunha, porque não acreditou nela (Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2° volume, Coimbra, 2001, pág. 627); 2. Na fundamentação da resposta negativa ao quesito 9° da base instrutória verifica-se que o Senhor Juiz a quo ignorou, por completo, o teor do depoimento da testemunha M inquirida por carta rogatória expedida para as Justiças dos Estados Unidos da América do Norte, devidamente traduzida de folhas 223 a folhas 226 dos autos; 3. Por isso, o julgador de 1ª instância não fez o exame crítico desta prova testemunhal, não dizendo, como lhe competia, porque razões não tomou em consideração este depoimento na resposta ao quesito 9° da base instrutória ou porque motivo não acreditou nesta testemunha, não se ficando sequer a saber, pela leitura do despacho de fixação da matéria de facto, em especial da sua fundamentação, se o Senhor Juiz a quo apreciou esta prova testemunhal, ficando sempre a incerteza quanto à resposta que ele daria àquele quesito se, com toda a certeza, tivesse apreciado este meio de prova; 4. O Senhor Juiz a quo, por ser evidente a deficiência e a insuficiência na análise crítica dos meios de prova, designadamente do depoimento da testemunha M, recolhido por Rogatória, e por ser, por conseguinte, deficiente a fundamentação à resposta ao quesito 9° da base instrutória, violou o disposto no artigo 653°, n° 2, do Código de Processo Civil; 5. Por se tratar de facto essencial para o julgamento da causa, deve, na sequência do provimento deste recurso, ordenar-se, nos termos do artigo 712°, n° 5, do Código de Processo Civil, a baixa dos autos ao Tribunal a quo para os efeitos consignados em tal norma; 6. São partes na(s) compra(s) e venda(s) impugnada(s) não só a apelante, que nela(s) figura como compradora, mas, também o M e, consequentemente, os filhos dele, AA. nos presentes autos, por serem seus herdeiros e não estarmos perante a hipótese do artigo 242°, n° 2, do Código Civil; por outro lado, a apelada IRENE, representada na compra e venda, é parte, não é terceiro; 7. O negócio a que os autos se reportam não se encontra viciado por simulação; 8. Desde logo, porque, apesar de se ter dado por provado que, "com a celebração da escritura referida em 6, M, H e a ré sabiam que a I ficaria excluída da titularidade de bens que lhe pertenciam por partilha em virtude do divórcio referido em 3." (n° 20 da fundamentação de facto da sentença), não sendo a IRENE terceiro, não se verificaria, aqui, a intenção de enganar terceiros, nem, consequentemente, simulação ex vi do artigo 240° do Código Civil; Por outro lado, 9. Não se percebe, em face da matéria de facto constante dos autos, como se pode dizer que há divergência entre a vontade declarada e a vontade real quando o resultado do negócio era, afinal de contas, a execução de dois actos a cujo cumprimento ambos os vendedores – e, designadamente, a apelante IRENE – estavam vinculados: a sentença do Tribunal Superior do Estado da Califórnia, Concelho de Santa Clara, bem como o "acordo decisivo de propriedade", de 6.12.1989. Pelo menos não se percebe, em face destes actos, que a ora apelante tivesse declarado uma coisa e querido outra; 10. Acresce que não se pode dar como provado que foi acordado que a ré transmitiria o direito de propriedade sobre os bens constantes da escritura pública, quando tal matéria (agora no ponto 19. da fundamentação de facto da sentença), resulta do excesso de resposta ao quesito 6° da base instrutória, e constitui matéria de facto não alegada, com violação do disposto nos artigos 666° e 264° do Código de Processo Civil; 11. Não se verificando nenhum dos respectivos pressupostos – divergência bilateral entre a(s) declaração(ões) e a(s) vontade(s) reais, pactum simulationis e animus dicipiendi –, não ocorre simulação, razão pela qual, ao considerá-la existente, o Senhor Juiz a quo violou o artigo 240° do Código Civil; 12. Acresce que as partes do contrato simulado não podem prová-lo por testemunhas ou por presunções naturais, por a tal se oporem os artigos 351° e 394°, n° 2, do Código Civil; 13. Por isso, não podia o Senhor Juiz de 1ª instância ter dado por provados, com recurso à prova testemunhal, os factos eventualmente configuradores de simulação e, designadamente, os referidos nos n°s 18, 19 e 20 da fundamentação de facto da sentença apelada, sem que qualquer outro meio de prova, por si só, designadamente confissão ou documento, impusesse a prova de tais factos; 14. O Senhor Juiz a quo violou, assim, frontalmente os artigos 351° e 394° do Código Civil; 15. O abuso de representação só é relevante se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso, ou seja, a discrepância entre os poderes de representação e as instruções dadas ou a ausência delas; 16. Não está provado nos autos que a ora apelante soubesse dessa desconformidade, nem se pode dizer – tendo em conta até a existência e o conteúdo da sentença do Tribunal Califomiano e do "Acordo Decisivo de Propriedade" — que a mesma ora apelante devesse conhecer a ausência de instruções da vendedora/representada; 17. O Senhor Juiz a quo violou, por isso, o artigo 269° do Código Civil; 18. Nada há nos autos que nos habilite à conclusão de que a recorrente (que é estrangeira), com má-fé ou negligência grave, deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que alterou a verdade dos factos, razão pela qual o Senhor Juiz a quo, ao condená-la como litigante de má-fé, em multa de 10 UC, violou o preceituado no artigo 456°, n°s 1 e 2, a) e b), do Código de Processo Civil; 19. Termos em que deve ser provida a presente apelação e, em consequência, a) ordenar-se a baixa do processo à primeira instância para os fins indicados no artigo 712°, n° 5, do Código de Processo Civil; b) e, caso assim se não entenda, deve revogar-se a sentença apelada, absolvendo-se a R., ora recorrente, do pedido. Não houve contra-alegações. Foram colhidos os vistos legais. Oportunamente foi proferido acórdão em que se julgou a apelação procedente, quanto à alínea a), e consequentemente determinou-se que o tribunal a quo fundamentasse devidamente a decisão sobre a matéria de facto, mencionando expressamente em que termos o depoimento da testemunha M influenciou a sua decisão, maxime quanto ao quesito 9º. O tribunal a quo supriu a referida omissão. A apelante, notificada do “esclarecimento” proferido pelo tribunal a quo, veio ampliar o objecto do recurso, pedindo que se altere a decisão da matéria de facto, no que concerne ao quesito 9º da base instrutória, devendo dar-se por provada a matéria que nele se contém. As partes contrárias, notificadas do despacho e do requerimento da apelante, nada disseram. Por despacho do relator, foi admitida a ampliação do objecto do recurso. Foram colhidos os vistos legais. FUNDAMENTAÇÃO As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: se deve ser modificada a resposta à matéria de facto, no que concerne ao quesito 9º; se houve excesso na resposta ao quesito 6º; se não era admissível o recurso à prova testemunhal para a prova de factos alegadamente configuradores de simulação, nomeadamente os referidos nos nºs 18, 19 e 20 da fundamentação de facto da sentença apelada; se não ocorrem os pressupostos da simulação; se não existe abuso de representação relevante; se não existe má fé processual por parte da apelante. Primeira questão (modificação da resposta ao quesito 9º da matéria de facto) Pelo tribunal a quo foi dada como provada a seguinte Matéria de Facto 1 - L, L e I são filhos de M; 2 - I e M casaram entre si em 22.05.1965; 3 - I e M divorciaram-se nos Estados Unidos da América do Norte em 05.10.89; 4 - M faleceu em 16.10.1995, na Califórnia, Estados Unidos da América do Norte; 5 - H ao outorgar uma escritura pública a pedido de I e M, em 05.06.1992 , declarou que "os representados foram casados um com o outro na comunhão geral de bens e ainda não procederam à partilha do seu património comum"; 6 - No dia 23.06.1994, H, na qualidade de procurador de M e de I , outorga escritura pública de compra e venda em que declarou que "(...) por esta escritura e pelo preço de oito mil e novecentos contos que já recebeu da segunda, a esta vende os seguintes bens que aos seus representados pertencem: 1 - Prédio urbano , sito na Estrada Regional na referida freguesia de Santo António, inscrito na matriz no artigo 521°, com o valor patrimonial de quatrocentos trinta oito mil quatrocentos cinquenta e três escudos e o atribuído de oito mil e quinhentos contos , descrito na conservatória do registo predial de São Roque do Pico sob o número e lá inscrito a favor do seu representado marido sob o número Quatro décimos de um prédio rústico, sito no lugar de Fajãs , na mesma freguesia, inscrito na matriz no artigo 704° com valor patrimonial correspondente à fracção de dezanove mil quatrocentos e catorze escudos descrito na mesma conservatória sob o número da aludida freguesia de Santo António e lá inscrito, na mencionada fracção de quatro décimos, a favor da sua representada mulher sob o número atribuindo-lhe o valor de quatrocentos contos (...)." Só agora tive a coragem necessária para confessar o meu acto e também por saber que os filhos do falecido Miguel vêm ao Pico e naturalmente irão descobrir que a casa não está em nome dos pais. Esta declaração vai ser feita em quadruplicado e será entregue à Irene e aos seus três filhos." . 12 - Por sentença proferida pelo Tribunal Superior do Estado da Califórnia, Concelho de Santa Clara, não revista e não confirmada em Portugal declara-se no ponto 6 , do Anexo 4-F que`(...) a requerente e o Defensor ficam obrigados a vender a casa e terras sitas nos Açores" . 13 - Em 06.12.1989 M e I subscreveram o documento intitulado "Acordo Decisivo da Propriedade", com o seguinte teor : "As partes concordam em modificar a o Julgamento de Dissolução , caso no. 677823 , registado a 20 de Novembro de 1989 como se segue: O réu M, concorda em transmitir por contrato todo o seu interesse a casa situada em 1635 East San Fernando Street, San José Califórnia , conjuntamente com os móveis para a requerente , Irene . Em troca , a requerente , Irene , concorda em transferir todo o seu interesse a casa e as terras nos Açores para o réu, M. Ainda, a requerente, Irene , pagará a importância de USD6 10,000.00 (dez mil dólares americanos) para igualar a divisão das propriedades em comum para o réu, M, dentro de 3 anos. Requerente e réu deverão assinar todos os documentos necessários para efectuar este acordo."; 14 - Por procuração datada de 05.08.1992, outorgada por Irene em notário, declarou esta constituir sua procuradora M e que "esta procuração revoga e anula as que foram passadas anteriormente a favor de H (...) ficando estes sem poderes para representar a outorgante"; 15 - Irene não comunicou o teor da procuração referida em 14 a H; 16 – M insistiu várias vezes junto do H para que este outorgasse a escritura pública referida em 6; 17 - Tal escritura pública foi realizada sem o prévio conhecimento de I; 18 - Os termos da escritura pública referida em 6 foram combinados entre M , a ora ré e H; 19 - O acordado era a ré, depois, transmitir o direito de propriedade sobre os prédios constantes da escritura pública referida em 6 para o M; 20 - Com a celebração da escritura referida em 6, M , H e a ré, sabiam que a I ficaria excluída da titularidade de parte dos bens que lhe pertenciam por partilha em virtude do divórcio referido em 3. O Direito A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no artº 712º do Código de Processo Civil. Nos termos do nº 1 desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou. No quesito 9º da base instrutória perguntava-se se o preço dos prédios identificados na escritura objecto destes autos foi pago directamente a Miguel Sarmento pelos pais da Ré. A resposta foi “não provado”. A convicção do tribunal a quo, conforme resulta da fundamentação dada no primeiro despacho, conjugado com o esclarecimento proferido na sequência do acórdão desta Relação, assentou, no que concerne à generalidade dos quesitos (neles se incluindo, por conseguinte, o quesito 9º), no depoimento das testemunhas H e L, o qual, no que diz respeito especificamente ao quesito 9º, prevaleceu sobre o depoimento da testemunha ouvida por carta rogatória, M. Não existem nos autos quaisquer elementos que imponham decisão diversa. Por outro lado, os depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento não foram gravados, pelo que não é possível invocar o teor desses depoimentos para modificar a matéria de facto. Por conseguinte o recurso improcede nesta parte. Segunda questão (se houve excesso na resposta ao quesito 6º) No quesito 6º perguntava-se o seguinte: “A Ré pretendia depois transmitir o direito de propriedade sobre os bens identificados na escritura pública a M?” A resposta foi a seguinte: “Provado apenas que o acordado era a ré, depois, transmitir o direito de propriedade sobre os prédios constantes da escritura pública referida em F para o M”. A resposta efectivamente vai além daquilo que é perguntado. No quesito apenas se questiona a intenção da Ré. Na resposta vai-se mais além, afirma-se uma comunhão de intenções, orientadas no mesmo sentido, entre os intervenientes na escritura. Porém, a verdade é que a redacção do quesito é deficiente, pois não reflecte aquilo que havia sido alegado na petição inicial e configurava, aliás, questão central na acção. O que foi alegado na petição inicial não foi o intuito exclusivo da Ré, mas a intenção conjunta de M, do procurador H e da Ré (artigos 10º, 14º, 15º, 17º, 22º da petição inicial). Não é, pois, verdade o que se diz na alegação do recurso, ou seja, que se deu como provada matéria não alegada pelas partes. A resposta ao quesito corrige a referida deficiência, demonstrando que na audiência de discussão a questão foi abordada com a amplitude devida. Não há sinais de que a amplitude da resposta tenha constituído surpresa para as partes, ou que sobre essa matéria não foi produzida prova ou não foi possibilitado o exercício do contraditório. Se a decisão sobre a matéria de facto tivesse reflectido a deficiência de que padecia a redacção do quesito, teria este tribunal ad quem de a anular, para que se procedesse à necessária ampliação da matéria de facto, nos termos do art.º 712º nº 4 do Código de Processo Civil. Entende-se, pois, que deve manter-se o nº 19 da matéria de facto, correspondente à resposta dada ao quesito 6º. Terceira questão (se não era admissível o recurso à prova testemunhal para a prova de factos alegadamente configuradores de simulação) A apelante entende que não era admissível a prova da alegada simulação por recurso a prova testemunhal ou a presunções naturais, por a tal obstarem os artigos 394º e 351º do Código Civil. Isto porque relativamente ao negócio em causa os Autores e a Ré não são terceiros, mas partes. Vejamos. Nos termos do disposto no art.º 394º nº 2 do Código Civil, no caso de contrato celebrado por documento autêntico (e bem assim de documentos particulares providos de força probatória plena), utilizado para proceder a uma simulação, os simuladores não poderão servir-se de prova testemunhal (ou de prova por presunções – art.º 351º) para demonstrarem o acordo simulatório e o negócio dissimulado. A mesma proibição não se aplica a terceiros (art.º 394º nº 3 do Código Civil). Nos termos alegados pelos AA., e que se provaram, a A. Irene Sarmento não teve conhecimento da escritura em causa. Esta resultou da iniciativa do seu falecido marido, M, que pressionou o procurador H, para a realizar em sua representação e ainda fazendo uso da procuração que a Irene anos antes lhe havia outorgado. Assim, a A. Irene não foi alegadamente parte na simulação, sendo terceiro para os efeitos previstos no nº 3 do art.º 394º nº 3 do Código Civil (neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.3.1981, BMJ 305, pág. 261, com nota de concordância de Luís Carvalho Fernandes, in “Estudos sobre a simulação”, Quid Juris, 2004, pág. 78, nota 21; no mesmo sentido, o recentíssimo acórdão do STJ, de 29.5.2007, publicado na internet, dgsi-itij, processo nº 07A1334). Quanto aos autores L e M, filhos do falecido M, apresentam-se como herdeiros legitimários deste último (artigos 2156º e 2157º do Código Civil), que intentam a acção para proteger as suas legítimas, prejudicadas pelo negócio, pelo que para este efeito são também terceiros (cfr. Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 367). Pelo exposto, não há fundamento para não dar como provados os números 18 a 20 da fundamentação da matéria de facto. Quarta questão (se não ocorrem os pressupostos da simulação) O art. 240º do Código Civil dispõe o seguinte: “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.” Os elementos integradores da simulação, conforme ressalta daquela disposição, são os seguintes: - Divergência intencional entre a vontade e a declaração; - Acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório); - Intuito de enganar terceiros. Quanto ao terceiro elemento (intuito de enganar terceiros), não deve ser confundido com o intuito de prejudicar. Pegando nas palavras do Professor Manuel de Andrade, “enganar quer dizer iludir. E pode ter-se em vista enganar terceiro não para prejudicá-lo, mas para se defender um legítimo interesse próprio ou até para beneficiar esse terceiro” (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Almedina, 1983, página 170). “O que constitui elemento de simulação é, pois, o intuito de enganar ou iludir (animus decipiendi) e não o intuito de prejudicar, isto é, de causar um dano ilícito (animus nocendi)” (obra citada, pág. 171). Está provado que em 05.10.1989 a A. Irene e M divorciaram-se nos E.U.A.. No âmbito desse divórcio acordaram que a casa e os móveis sitos na Califórnia ficariam para a Irene e as terras e a casa sitas nos Açores seriam para o Miguel, devendo ainda a Irene pagar ao Miguel a quantia de dez mil dólares americanos para igualar a partilha. A validade, em Portugal, do divórcio, e consequentemente da partilha de bens, dependia da revisão da sentença de divórcio por parte do competente Tribunal da Relação (art.º 1094º do Código de Processo Civil). Daí que, face à ordem jurídica portuguesa, Irene e Miguel continuavam unidos pelo casamento celebrado em 22.5.1965, em São Roque do Pico, em regime de comunhão geral de bens (cfr. fotocópia certificada de assento de casamento, junta a fls 30 e 31, doc nº 2 junto com a p.i.), sendo certo que, atenta a nacionalidade portuguesa dos nubentes, a substância e efeitos do regime de bens são definidos pela lei portuguesa (art.º 24º do Código Civil de 1867 e art.º 53º nº 1 do Código Civil de 1966), não havendo qualquer possibilidade de desarmonia a esse respeito no que concerne aos imóveis situados em Portugal, atento o disposto no art.º 46 nº 1 do Código Civil (o regime da propriedade e demais direitos reais é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas). A alienação dos imóveis carecia do consentimento de ambos os cônjuges (art.º 1682º-A nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 496/77, de 25.11), o qual deve ser especial para cada acto (art.º 1684º nº 1 do Código Civil, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 496/77), sob pena de anulabilidade a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros (art.º 1687º do Código Civil, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 496/77). Não se mostra que a A. I consentiu na realização do negócio de venda dos imóveis referida no nº 6 da matéria de facto. Pelo contrário, está provado que tal escritura pública foi realizada sem o seu prévio conhecimento (nº 17 da matéria de facto). E foi realizada em 23.6.1994, ou seja, quase cinco anos após o divórcio ocorrido na América, sem que ao longo desse tempo qualquer um dos cônjuges tivesse tomado a iniciativa de o fazer validar em Portugal. Assim, e tendo em vista o disposto no art.º 259º nº 1 do Código Civil (falta ou vícios da vontade e estados subjectivos relevantes na representação), conclui-se que a vontade de I não teve relevo na celebração do negócio, não havendo que a considerar para efeitos de nulidade da declaração. As únicas vontades a ter em conta são as de M, H e da Ré. Provou-se que, contrariamente ao declarado na escritura, e conforme era do conhecimento do H, nem M nem Irene pretendiam transferir para a Irene o direito de propriedade sobre os bens identificados naquele documento (nºs 18 e 19 da matéria de facto). A transferência era aparente, pois estava acordado que depois a Ré transmitiria o direito de propriedade sobre os prédios constantes da escritura para o M. Aliás, apesar dos esforços da Ré nesse sentido, não se provou que foi paga qualquer quantia a título de preço. Os intervenientes na escritura criaram uma situação ilusória, ou seja, a de que os referidos imóveis, localizados nos Açores, não integravam o património comum do casal formado pela I e pelo Mi. Assim, no caso de o divórcio ser revisto em Portugal, na partilha dos bens não seriam considerados tais imóveis, havendo tão só que considerar como bens a partilhar os sobrantes, entre os quais os localizados na América, dessa forma se violando a regra da “metade”, plasmada no artigo 1730º nº 1 do Código Civil. Trata-se de uma ilusão que engana, para além da A. Irene (que eventualmente acreditaria estar-se perante um mero caso de venda sem o seu consentimento, cuja anulabilidade estaria sujeita ao apertado prazo de três anos de caducidade após a realização do negócio, previsto no art.º 1687º nº 2 do Código Civil), os filhos do casal e as autoridades que porventura devessem intervir na formalização e fiscalização da partilha (por exemplo, o tribunal, em caso de partilha por meio de processo por inventário – art.º 1404º e seguintes do Código de Processo Civil). Verificam-se todos os pressupostos da simulação, com a consequente nulidade do negócio simulado (art.º 240º nº 2 do Código Civil). Quinta questão (abuso de representação) Face ao supra exposto, inútil se torna abordar a inexistência de abuso de representação relevante, vício que tão só poderia acarretar a ineficácia do negócio simulado em relação à A. Irene (art.º 269º do Código Civil). Mesmo que a Ré julgasse, sem motivo de censura, que a A. tinha conhecimento da venda simulada, não se podendo por isso invocar contra a Ré a ineficácia do negócio face à A., permaneceria o vício, mais grave, da nulidade inerente à simulação: a A. saberia da realização da venda, mas não que esta era uma encenação. Sexta questão (má fé processual por parte da Ré) Nos termos do disposto no art.º 456º nº 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. A actual redacção do preceito, introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12, visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”. O tribunal a quo entendeu que a Ré agiu com má fé substancial, pois sempre negou que tivesse ocorrido qualquer acto simulado e no entanto ficou provado ter efectivamente ocorrido simulação no negócio, do qual a Ré foi interveniente de conluio com os restantes intervenientes. Vejamos. No caso destes autos, a conclusão a que se chegou, de existência de simulação, não foi o resultado de um caminho percorrido sem dúvidas ou hesitações, em que os meios de prova apontaram unanimemente no sentido da ocorrência do aludido vício e da convicta participação da Ré na sua concretização. Pelo contrário, houve que pesar e medir os elementos contraditórios carreados para os autos, com recurso à experiência normal da vida e às regras do ónus na produção da prova. O desfecho final não traduz uma certeza inelutável da sem razão da Ré, e menos ainda de que a mesma agiu no processo movida pelo intuito de faltar à verdade ou de obstar a que se fizesse justiça. Afigura-se-nos, pois, mais prudente e adequado isentar a Ré de tal labéu. Nesta parte, o recurso é procedente. DECISÃO Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e consequentemente altera-se a sentença recorrida, revogando-a na parte em que condena a Ré no pagamento de multa como litigante de má fé e mantendo-a no demais. As custas na primeira instância são a cargo da apelante e nesta Relação são a cargo de ambas as partes, na proporção de 98% pela apelante e 02% pelos apelados.
Lisboa, 14.6.2007
Jorge Leal Américo Marcelino Francisco Magueijo |