Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2250/22.0T8TVD.L1-4
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: DESPEDIMENTO
SUBSÍDIO DE DESEMPREGO
DECLARAÇÃO DO EMPREGADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A declaração de cessação do contrato de trabalho, remetida pelo empregador à Segurança Social, não faz prova plena de que foi dirigida pelo empregador ao trabalhador declaração de vontade correspondente, posto que se trata de documento cujo destinatário não é o trabalhador, mas sim a Segurança Social, para efeitos atinentes à situação jurídica das partes em relação àquela entidade, nomeadamente no que toca a atribuição de prestações pecuniárias ao trabalhador.
2. Provando-se que o autor pediu ao mestre da embarcação onde trabalhava como pescador para continuar a trabalhar, ao que o segundo respondeu que não e entregou ao autor a sua cédula profissional, e que seguidamente o gerente da empregadora, também presente, propôs ao autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa, nas quais tinha falta de mão-de-obra, tal não equivale a despedimento.
(Sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
AA, patrocinado pelo Ministério Público, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra ..., alegando, em síntese, que em Março de 2020 celebrou com a Ré contrato de trabalho verbal e por tempo indeterminado para exercer as funções de auxiliar de pesca na embarcação ...», auferindo uma retribuição mensal variável em função do volume das vendas de pescado em lota, que em 2021 se traduziu na retribuição mensal média de € 2.885,43. No dia 30 de Dezembro, o Mestre BB, que agia por conta e no interesse da Ré, disse-lhe que era melhor ir-se embora e não trabalhar mais. No dia seguinte – 31-12-2021 -, quando se fizeram as contas para pagar o mês de Dezembro, o Autor pediu para continuar a trabalhar mas o BB disse-lhe que não era possível e que deixava de trabalhar para a Ré e entregou-lhe a cédula profissional. Nesse mesmo dia, a Ré comunicou à Segurança Social a cessação de contrato de trabalho com o Autor, indicando como motivo “caducidade de contrato a termo”, conduta que correspondeu a um despedimento ilegal sem justa causa nem procedimento disciplinar.
Conclui, peticionando que seja declarada a existência de um despedimento ilícito e que a Ré seja condenada a pagar-lhe:
- € 8.656,29 a título de indemnização por cessação ilegal de contrato de trabalho;
- as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, designadamente retribuições mensais e as referentes a férias e subsídios de férias e de Natal, sendo as devidas à data da instauração da acção no valor de € 2.885,43, correspondente à retribuição dos 30 dias anteriores;
- juros moratórios vencidos e vincendos sobre tais quantias, à taxa de 4% ao ano, desde o seu vencimento e até efectivo e integral pagamento.
A Ré apresentou contestação, alegando, em síntese, que no dia 30-12-2021 toda a tripulação da embarcação “...” recebeu ordens para se deslocar até à mesma uma vez que teria de ajudar nos trabalhos de limpeza e arrumação para que a mesma fosse colocada fora de água e encalhada para manutenção durante o mês de Janeiro de 2022, altura em que se encontra interditada a pesca. Nesse dia, o mestre da embarcação disse ao Autor que já não podia continuar a trabalhar naquela embarcação, que era por ele dirigida, dispensando-o da mesma, por diversas vezes o ter desautorizado, não acatando as suas ordens em frente à restante tripulação, não tendo dito que o Autor não podia continuar a trabalhar para a Ré, até porque não tinha poderes para isso. No dia 31-12-2021, quando foi feita a apresentação das contas do mês de Dezembro, o sócio-gerente da Ré propôs ao Autor que fosse transferido para uma das outras duas embarcações da empresa, nas quais tinha falta de mão-de-obra, o que o Autor recusou, declarando que se ia embora da empresa. No dia 07-01-2022, o Autor foi trabalhar para outra empresa. No dia 31-12-2021, a Ré declarou junto da Segurança Social a cessação do contrato de trabalho do Autor com efeitos a 30-12-2021, mas não por o ter despedido nem por este ter dito que se ia embora da empresa, pois que tal comunicação foi feita pelas 09h30m, ainda antes da referida apresentação das contas onde o Autor recusou a proposta de transferência para outra embarcação da Ré. Já no dia anterior a Ré havia comunicado a cessação dos contratos de trabalho de outros membros da tripulação da embarcação, pois é usual as entidades patronais darem baixa das respectivas tripulações no final de cada ano, uma vez que o mês de Janeiro é o mês do defeso do tipo de marisco que a embarcação “...” pesca, sendo habitual os trabalhadores da Ré usufruírem do subsídio de desemprego nesse mesmo mês e voltarem a ser admitidos ao serviço da Ré no mês de Fevereiro.
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto julgo a ação procedente, e, em consequência:
1) Declaro que o Autor foi ilicitamente despedido pela Ré com efeitos reportados a 30.12.2021;
2) Condeno a Ré a pagar ao Autor
a) … a quantia de € 8.656,29 (oito mil seiscentos e cinquenta e seis euros e vinte e nove cêntimos) a título de indemnização em substituição da reintegração, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30.12.2021 e vincendos até integral pagamento;
b) … as retribuições, incluindo subsídios de férias e de natal, no valor mensal (ilíquido) de € 2.885,43 (dois mil oitocentos e oitenta e cinco euros e quarenta e três cêntimos), que o Autor deixou e deixará de auferir, desde 06.11.2022 até ao trânsito em julgado desta decisão, acrescidas de juros de mora à taxa legal, vencidos desde o último dia do mês a que respeitam e dos vincendos até integral pagamento;
3) Condeno a Ré no pagamento das custas do processo.»
A Ré interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«A. A R. não se pode conformar com as conclusões da sentença a quo, e cuja reapreciação se suscita por fundamental e relevante no presente caso, nem aceita o julgamento da matéria de facto, pedindo a reapreciação da mesma, e bem assim os fundamentos dela extraídos para motivação da decisão a quo e justificação da presente condenação, o que, considerando toda a factualidade produzida nos autos, jamais justificaria a decisão condenatória, de que se recorre.
B. Analisada a matéria de facto constante dos autos, conclui-se que apesar de o Tribunal a quo ter dado como provado ( cfr “Factos provados”, pontos 8 e 9, pp. 4 e 7 de 18) que:
8) Na tarde desse mesmo dia 31.12.2021, em encontro para realização das contas para pagar o mês de dezembro o Autor pediu novamente ao BB para continuar a trabalhar ao que este respondeu que não e entregou ao Autor a sua cédula profissional;
9) Nesse mesmo encontro estava presente o sócio-gerente da Ré, CC, na sequência da conversa tida entre Autor e BB, propôs ao Autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão-de-obra;
C. Ou seja, não obstante ter sido dado por provado que o sócio-gerente da Ré tenha proposto ao A. que fosse para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão de obra, já que a situação na embarcação ...” era insustentável,
D. O Tribunal conclui pelo “reconhecimento indireto de que o contrato vigente tinha cessado pois que se assim não fosse (…) era simplesmente transmitir ao Autor que passava a prestar trabalho numa das outras embarcações e não fazer-lhe uma proposta dependente de aceitação”.
E. Assim, o Tribunal não atendeu à possibilidade de transferência de embarcação tal como prevista e admitida no regime jurídico do contrato individual a bordo das embarcações de pesca (artigo 11.º), segundo o qual
F. a actividade profissional para que o marítimo foi contratado será prestada a bordo de qualquer embarcação de pesca do armador, desde que tal não implique a mudança de porto de armamento e não cause prejuízo sério ao trabalhador.
G. Veja-se que o Tribunal reconheceu, e bem, como não provado que o mestre da embarcação tivesse dito ao autor que não era possível continuar a trabalhar para o empregador, e que deixava de trabalhar para a Ré, (cfr B – Discriminação dos factos que se consideram não provados, ponto 2, a pp 5 da sentença).
H. Contudo, já não andou bem o Tribunal recorrido ao não ter reconhecido na matéria dada por provada o facto de o Autor ter logo recusado a proposta de trabalhar noutra das embarcações da R.
I. Razão pela qual se requer a reapreciação da prova gravada, atendendo a que é dito pela testemunha, DD, a min. 12:57-13:40, da gravação 20230316102913_6181783_2871242, nomeadamente:
J. que presenciou a proposta do sócio-gerente da R., confirmando este que “(…) o patrão disse que não o estava a mandar embora da empresa(…)” 12:57;
K. que “(…) tinha mais dois barcos da mesma firma e um terceiro que tinha falta de pessoal, e ele tinha lugar nos outros barcos” 13:12 e
L. que “(…) o EE manteve-se calado e só dava à cabeça que não (…)” 13:19.
M. Assim, o facto 3 discriminado na sentença recorrida como não provado, ou seja, o facto de o Autor ter logo recusado a proposta de transferência para outra embarcação, deve passar a constar como facto provado,
N. Deve assim o facto de o A. ter dado à cabeça que não, ou seja, que não aceitava a transferência, recusando continuar a trabalhar noutra embarcação da Ré, ser dada como provada, nomeadamente na sequência do facto 9) dos factos dados por provados, que deve passar a ter a seguinte redação:
O. Na tarde do dia 31/12/2021, durante o encontro para a realização das contas para pagar o mês de dezembro, estava presente o Sócio gerente da Ré, CC, na sequência da conversa tida entre o mestre da embarcação “...”, que lhe devolveu a cédula por não ser sustentável a respetiva manutenção, propôs ao autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão-de-obra, e o A. abanou com a cabeça, recusando.
P. A recusa em continuar a laborar para o Armador, sócio-gerente da R., em qualquer uma das restantes embarcações da R., resulta também do facto de o A., durante e após o período de defeso, ter assumido funções em embarcações de outros armadores.
Q. O facto, provado pelo próprio A., de que iniciou funções noutra embarcação de outro armador a 07/01/2022, e novamente a 27/05/2022 (veja-se ponto 10, pp 4 e 7), associado à sua prévia recusa em aceitar a proposta de transferência, acentuam a demonstração da motivação do próprio Autor em não continuar a operar na respetiva empresa, sem que tenha sido a R. a fazer cessar o seu contrato de trabalho.
R. Aqui chegados, o Tribunal recorrido deveria ter dado por provada quanto consta do ponto 14 da contestação, ou seja, de que o Autor se recusou a aceitar a proposta de transferência para outra embarcação da Ré.
S. Tendo de resto ido embora da empresa já que, logo no dia 07/01/2022, estava ao serviço de nova entidade patronal, e assim se manteve após fevereiro, altura em que foi retomada a pesca do marisco pela R. e por todos os pescadores que se mantiveram ao serviço da Ré. Devem assim estes factos serem dados por provados, em conformidade com a prova produzida, o que se requer.
T. Ainda que assim não se considere, sempre constituiriam instrumentais essenciais para o julgamento da questão em litígio.
U. Lê-se na sentença que o Autor tinha sido contratado para exercer funções na Embarcação ..., pelo que o Tribunal a quo conclui, a nosso ver mal, que o facto de o mestre com poderes delegados comunicar que não pode trabalhar mais naquela embarcação configura um despedimento.
V. Na sequência da insustentabilidade da manutenção do A. Recorrido na embarcação ..., foi proposto ao A. que passasse a trabalhar numa das outras duas embarcações que o Armador detinha, o que de resto foi dado por provado.
W. O Tribunal a quo considerou, mal, esse facto como um reconhecimento indireto do despedimento,
X. E valorou apenas a opção de escolha dada pelo Armador quando exerceu tal comunicação, como uma cessação porquanto, segundo o Tribunal, não terá exercido tal proposta com a firmeza de quem estava imbuído do poder de organização e disciplina.
Y. Ora, aquele não é o estilo de liderança do sócio-gerente, que prefere ter equipas funcionais, e na sequência de uma coexistência insustentável entre elementos da companha, entendeu dar escolha ao trabalhador no sentido de perceber qual a companha com que mais se identificaria para continuar a operar.
Z. O Tribunal a quo, apesar de reconhecer que ao presente contrato se aplica a Lei n.º 15/97, de 31 de maio, não fez aplicação do artigo 11.º, segundo o qual a actividade profissional para que o marítimo foi contratado será prestada a bordo de qualquer embarcação de pesca do armador, desde que tal não implique a mudança de porto de armamento e não cause prejuízo sério ao trabalhador.
AA. Resulta da matéria provada, que o A. pura e simplesmente recusou a proposta de trabalho, em contexto similar, numa das outras duas embarcações da R. Recorrente em contexto similar.
BB. A atividade piscatória, exercida em ambiente físico limitado porque exercida numa embarcação, em pleno mar alto, requer, inclusive por razões de segurança, que todos os elementos da companha logrem criar um ambiente cordial, pacífico e cooperativo, o que por si só justifica a opção dada pela R., através do seu sócio-gerente.
CC. A criticidade da falta de não-de-obra no sector das pescas é um facto público, que tem tido sucessivos reflexos na comunicação social.
DD. E ainda assim, o Tribunal valorou a proposta de transferência para outra embarcação da Ré aqui Recorrente como uma reconhecimento indireto da cessação do contrato na primitiva embarcação, com a qual este não se pacifica, porquanto também padece desta escassez de mão-de-obra, como de resto ficou provado pelo facto de ter dito que havia falta de mão de obra nas outras embarcações.
EE. Pelo que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, devendo ser revogada, reconhecendo-se que a concordância do Réu na cessação do contrato, e por conseguinte a absolvição da Ré de todos os pedidos.
FF. Acresce que, conforme resultou provado que a comunicação para a segurança social da caducidade não resulta de impossibilidade do A. se manter a laborar na embarcação, mas antes do facto de que durante o mês de janeiro o tipo de pesca praticado pela R. encontra-se de “defeso”, para salvaguarda e sustentabilidade das espécies objeto de pesca pela R., conforme é público e exigido, nos termos da Portaria n.º 43/2006, de 12 de janeiro..
GG. O A. bem sabe desse facto, e nem chegou a usufruir do subsídio de desemprego na medida em que, tendo recusado continuar a trabalhar para a R., numa das outras duas embarcações aquando do levantamento do defeso, iniciou prontamente funções a 07/01/2022 para outra entidade patronal.
HH. A R. tratou de igual forma com todos os outros trabalhadores aliás, sendo uma vez mais demonstrativo o facto de a Ré querer manter o A. ao seu serviço, ainda que noutra embarcação.
II. Atento o exposto, também por esta razão a sentença recorrida padece de erro de julgamento, na medida em que este facto não configura nem é percecionado pelo A., nem pela R., nem por qualquer outro trabalhador da R. como um despedimento.
JJ. Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio, o Tribunal a quo não atendeu a matéria que se reputa essencial para a boa decisão da causa, nomeadamente no que respeita à dedução das retribuições auferidas nas sucessivas atividades profissionais que o A. assumiu depois de não pretender continuar a trabalhar para a R.
KK. Como resulta do teor da sentença, o Tribunal reconheceu que logo no dia 07/01/2022 o A. iniciou contrato de trabalho com outra entidade, e assim sucessivamente, a 17/03/2022, e consta inclusive do documento junto pelo A. que a 01/06/2022 iniciou novo contrato no navio ...
LL. A R. desconhece os valores que este auferiu desde novembro de 2022, contudo, sempre será reprovável a dupla captação de rendimentos, nomeadamente na presente atividade, em que não é conciliável a acumulação de prestação da atividade laboral numa e noutra embarcação.
MM. Seguramente que o A., após a audiência de partes continua a laborar para a mesma entidade patronal, pelo que sempre devem ser deduzidas as respetivas remunerações auferidas.
NN. A alegação efetuada pela R. de que o A. se encontrava a trabalhar para outra(s) entidade(s) desde 07/01/2022, deve ser suficiente para que seja relegado para liquidação de sentença o apuramento dos concretos montantes auferidos pelo A. durante o período de 06/11/2022 até à realização da audiência de partes e julgamento, até porque esta informação não é pública, nem a R. tem acesso à mesma.
OO. A al. a) do n.º 2 do artigo 390.º, do Código do Trabalho, determina que às retribuições que deixar de auferir deduzem-se as importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento.
PP. Ora, também aqui andou mal a decisão recorrida, devendo ser revogada e substituída por outra que reconheça que a dedução de tais quantias, que não são conhecidas pela R., deve ser relegada para liquidação de sentença, sob pena de violação do princípio da legalidade.»
O Autor não apresentou resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito suspensivo atenta a prestação de caução.
Remetidos os autos a esta Relação, e cumprido o previsto no art. 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes, por ordem de precedência lógica:
- alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- despedimento ilícito do Autor pela Ré;
- dedução de quantias auferidas pelo Autor nas retribuições intercalares.
3. Fundamentação
3.1. Os factos considerados provados são os seguintes:
1) Em Março de 2020 o Autor foi admitido ao serviço da Ré através de contrato de trabalho celebrado sob a forma verbal e por tempo indeterminado, para exercer as funções de auxiliar de pesca na embarcação ...», sendo acordado o pagamento de uma retribuição mensal que era variável em função do volume das vendas de pescado em lota;
2) As retribuições mensais auferidas pelo Autor oscilaram em 2021 entre € 570,00 e € 5.251,24, num total de € 34.625,21 pagos como remuneração base, perfazendo uma retribuição média mensal de € 2.885,43 em 2021;
3) Após ter trabalhado na embarcação ...» o Autor desembarcou da mesma a 23-12-2021;
4) No dia 30-12-2021, BB, que exercia as funções de Mestre daquela embarcação por conta e no interesse da Ré, telefonou ao Autor pedindo-lhe para se deslocar à embarcação a ..., pois queria falar com ele;
5) Quando o Autor chegou a ..., na embarcação, o Mestre BB, em discussão verbal relativa à prestação laboral do Autor, disse-lhe: “Assim não dá … o melhor é ires embora e não trabalhares mais”, ao que o Autor respondeu “Porquê? Não fiz mal nenhum”, tendo o Mestre BB retorquido “És bom trabalhador, mas assim não dá”;
6) Com tais expressões, BB reportava-se à impossibilidade do Autor continuar a prestar trabalho na embarcação “...”, na qual exercia as funções de mestre, pelo facto de se terem verificado situações em que o Autor não acatou as suas ordens, desautorizando-o em frente a outros tripulantes da embarcação, tendo efectuado tal comunicação ao Autor com prévio conhecimento e concordância do gerente da Ré;
7) No dia seguinte, 31-12-2021, pelas 09h30m, a Ré comunicou à Segurança Social a cessação de contrato de trabalho do Autor, com efeitos reportados a 30-12-2021, indicando como motivo “caducidade de contrato a termo”;
8) Na tarde desse mesmo dia 31-12-2021, em encontro para realização das contas para pagar o mês de Dezembro, o Autor pediu novamente ao BB para continuar a trabalhar, ao que este respondeu que não e entregou ao Autor a sua cédula profissional;
9) Nesse mesmo encontro estava presente o sócio-gerente da Ré, CC, que, na sequência da conversa tida entre o Autor e BB, propôs ao Autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão-de-obra;
10) No dia 07-01-2022, o Autor foi trabalhar para a embarcação “...”, propriedade da empresa “...”, da qual saiu no dia 15-03-2022, para ingressar no dia 17-03-2022 na embarcação “...”, propriedade da empresa “...”, onde trabalhou até ao dia 27-05-2022;
11) No dia 30-12-2021, a Ré comunicou à Segurança Social a cessação dos contratos de trabalho de outros membros da tripulação da embarcação “...”, incluindo o do mestre BB, e em 04-01-2022, mas também com efeitos a 30-12-2021, comunicou a cessação do contrato de trabalho do contra-mestre FF;
12) É usual no sector da pesca das espécies de marisco para a apanha das quais se encontra licenciada a embarcação ...», as entidades patronais “darem baixa” das respetivas tripulações no final de cada ano, uma vez que no mês de Janeiro essa pesca está interditada, sendo habitual os trabalhadores da Ré usufruírem do subsídio de desemprego nesse mês, voltando a ser admitidos ao serviço da Ré no mês de Fevereiro, altura em que é retomada a pesca do marisco, o que veio efetivamente a suceder em 01-02-2022.
3.2. Os factos considerados não provados são os seguintes:
1) No telefonema referido no ponto 4) dos factos provados BB disse ao Autor para se deslocar à embarcação para ajudar nos trabalhos de limpeza e arrumação para que a embarcação fosse colocada fora de água e encalhada, tal como fez com a restante tripulação;
2) Na sequência do pedido feito pelo Autor ao BB referido no ponto 8) dos factos provados, o BB disse ao Autor que não era possível continuar a trabalhar para o empregador e que deixava de trabalhar para a Ré;
3) O Autor recusou logo a proposta referida no ponto 9) dos factos provados declarando que se ia embora da empresa.
3.3. Cumpre apreciar, antes de mais, a impugnação que a Recorrente faz da decisão sobre a matéria de facto.
Estabelece o art. 662.º do CPC, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A Apelante pretende que seja alterada a decisão proferida quanto ao ponto 3) da factualidade dada como não provada, invocando o depoimento da testemunha DD, na parte em que declarou que presenciou a proposta do sócio-gerente da R., mormente que “(…) o patrão disse que não o estava a mandar embora da empresa(…)”, que “(…) tinha mais dois barcos da mesma firma e um terceiro que tinha falta de pessoal, e ele tinha lugar nos outros barcos” e que “(…) o EE manteve-se calado e só dava à cabeça que não (…)”.
Sustenta, assim, que aquele facto seja considerado como provado, nomeadamente na sequência do facto 9) da factualidade provada, que passaria a ter a seguinte redação: «Na tarde do dia 31/12/2021, durante o encontro para a realização das contas para pagar o mês de Dezembro, estava presente o sócio-gerente da Ré, CC, na sequência da conversa tida entre o mestre da embarcação “...”, que lhe devolveu a cédula por não ser sustentável a respetiva manutenção, propôs ao autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão-de-obra, e o A. abanou com a cabeça, recusando.»
Compulsada a motivação da decisão sobre a matéria de facto, constata-se que o aludido depoimento foi ponderado pelo tribunal recorrido, que, todavia, o considerou insuficiente para lhe atribuir o sentido de recusa pelo Autor da proposta apresentada pelo sócio-gerente da Ré.
Ora, por um lado, a invocada atitude / postura física é muitas vezes equívoca ou ambígua, pelo que tem muito peso o facto de o referido depoimento não estar corroborado por outros, ainda que não havendo motivos para questionar a idoneidade da testemunha. Acresce que as circunstâncias do caso, nomeadamente as descritas no ponto 12) da factualidade provada, não demandavam que o Autor formulasse e comunicasse imediatamente uma decisão de aceitação ou recusa, o que acentua a ambiguidade do seu alegado gesto.
Assim, tudo ponderado, entendemos que o meio de prova indicado é insuficiente para, por si só, impor – como requer o art. 662.º, n.º 1 do CPC – decisão diversa quanto ao ponto 3) da factualidade não provada. Note-se, aliás, que, nos termos do art. 414.º do CPC, a dúvida sobre a realidade dum facto deve ser resolvida contra a parte a quem aproveita, considerando-se o mesmo como não provado.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
3.4. Posto isto, importa apreciar a questão do despedimento ilícito do Autor pela Ré.
O despedimento configura-se como uma declaração de vontade unilateral, recepienda, vinculativa e constitutiva, dirigida pelo empregador ao trabalhador, com o fim de fazer cessar o contrato de trabalho para o futuro.
Como ensina Pedro Furtado Martins1, “[o] despedimento lícito pressupõe sempre uma declaração expressa da vontade patronal de pôr termo ao contrato de trabalho, a qual, para ser válida e eficaz, tem de obedecer ao formalismo legalmente exigido para as diferentes formas de despedimento, mais concretamente para a decisão de despedimento que culmina o respectivo procedimento - artigos 357.º, 363.º, 371.º e 378.º.
Contudo, para que exista um despedimento – ainda que ilícito –, basta que ocorra uma declaração de vontade tácita, isto é, um comportamento concludente do empregador de onde se deduza, com toda a probabilidade, a sua vontade de fazer cessar o contrato de trabalho para o futuro.”
Ou seja, o despedimento configura-se como uma declaração de vontade dirigida pelo empregador ao trabalhador no sentido de fazer cessar o contrato de trabalho para futuro, podendo tal declaração ser expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, ou tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (art. 217.º do Código Civil).
Essa declaração de vontade unilateral, expressa ou tácita, terá de ser enunciada em condições de não suscitar dúvida razoável sobre o seu verdadeiro significado; é, assim, necessário que o empregador declarante - por escrito, verbalmente ou até por mera atitude - denote ao trabalhador declaratário, de modo inequívoco, a vontade de extinguir a relação de trabalho. Exige-se, pois, que, havendo tal vontade por parte do empregador, este assuma um comportamento que a torne perceptível e inequívoca junto do destinatário, enquanto declaratário normal, tendo sempre presente que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (art. 236.º do Código Civil).
Quanto ao carácter receptício da declaração de despedimento, veja-se o art. 357.º, n.º 7 do Código do Trabalho, que rege sobre o despedimento por facto imputável ao trabalhador mas se limita a particularizar o princípio geral consignado no art. 224.º do Código Civil, por conseguinte aplicável a qualquer modalidade de despedimento, segundo o qual a decisão de despedimento determina a cessação do contrato logo que chega ao poder do trabalhador ou é dele conhecida ou, ainda, quando só por culpa do trabalhador não foi por ele oportunamente recebida.
Acresce que, por força do art. 342.º, n.º 1 do Código Civil, ao trabalhador compete fazer prova dos factos que integram o despedimento, e ao empregador, se for o caso, dos que demonstram que o mesmo assentou em justa causa e foi proferido na sequência de procedimento válido, por se tratar de factos que fundamentam os respectivos direitos.
Retornando à situação dos autos, cumpre salientar, em 1.º lugar, que o Autor alegou na petição inicial que foi objecto de despedimento verbal em 31 de Dezembro de 2021, que consistiu, em suma, no facto de o Mestre BB, que agia por conta e no interesse da Ré, lhe ter dito que não era possível continuar a trabalhar para a Ré e que deixava de trabalhar para a Ré, entregando-lhe a cédula profissional, tendo a Ré nesse mesmo dia – 31-12-2021 – comunicado à Segurança Social a cessação do contrato de trabalho com o Autor por motivo de «caducidade de contrato a termo».
Ou seja, não só o Autor não alegou factualidade adequada a fundamentar em que assentavam os poderes de BB, simples mestre de uma das embarcações, para despedi-lo da Ré, como omitiu que no momento do alegado despedimento estava presente o sócio-gerente da Ré, CC, que, na sequência da conversa tida entre o Autor e BB, se lhe dirigiu – ele sim – em nome da Ré.
Posto isto, cabe referir que o que se provou é que, no dia 30-12-2021, BB, que exercia as funções de mestre por conta e no interesse da Ré, comunicou ao Autor a impossibilidade de este continuar a prestar trabalho na embarcação “...”, por alegada má conduta profissional, o que fez com prévio conhecimento e concordância do gerente da Ré. Na tarde do dia 31-12-2021, o Autor pediu novamente ao BB para continuar a trabalhar, ao que este respondeu que não e entregou ao Autor a sua cédula profissional. Nesse mesmo encontro estava presente o sócio-gerente da Ré, CC, que, na sequência da conversa tida entre o Autor e BB, propôs ao Autor que fosse trabalhar para qualquer uma das outras duas embarcações da empresa nas quais tinha falta de mão-de-obra.
Conclui-se, pois, que a Ré nunca fez saber ao Autor, fosse por palavras, escritos ou outros factos concludentes, que considerava cessado o contrato de trabalho celebrado entre ambos, pelo contrário, a única declaração que o gerente da Ré lhe dirigiu significa e pressupõe a vontade de manutenção do contrato de trabalho. Relembra-se, aliás, que o Autor, na petição inicial, omitiu a presença e declaração do gerente da Ré no mencionado encontro, o que significa que não lhe deu qualquer relevância para efeitos de manifestação da vontade da Ré no sentido de despedi-lo.
Por outro lado, traduzindo-se o despedimento numa declaração receptícia, conforme se explicitou acima, só relevam declarações expressas ou tácitas dirigidas pela Ré ao Autor, pelo que é despiciendo que se tenha provado que no dia 31-12-2021, pelas 09h30m, ou seja, antes da conversa acima mencionada, a Ré tenha comunicado à Segurança Social a cessação do contrato de trabalho do Autor, com efeitos reportados a 30-12-2021, indicando como motivo “caducidade de contrato a termo”, uma vez que se trata de declaração dirigida à Segurança Social e não ao Autor.
Isto é, aquela declaração não tinha por finalidade levar ao conhecimento do Autor o que quer que fosse e, inclusive, este nem sequer alegou e provou que tivesse sabido da existência da mesma oportunamente, de modo a que pudesse ter contribuído para a sua percepção do sentido das palavras do Mestre BB (e não do gerente da Ré, cuja presença e intervenção no encontro omitiu, conforme acima salientado), sendo certo que os autos só dão conta da obtenção de conhecimento em 17-11-2022, já com vista à instauração da acção (cfr. documento n.º 3 junto com a petição inicial).
Sublinha-se que, por esta ordem de razões, a jurisprudência vem-se pronunciando sem divergências no sentido de que a declaração de cessação do contrato de trabalho, dirigida pelo empregador à Segurança Social, não faz prova plena do despedimento, nos termos do art. 376.º do Código Civil, posto que se trata de documento cujo destinatário não é o trabalhador, mas sim a Segurança Social2, para efeitos atinentes à situação jurídica das partes em relação àquela entidade, nomeadamente no que toca a atribuição de prestações pecuniárias ao trabalhador.
Acresce que, na concreta situação dos autos, se sabe que, no dia 30-12-2021, a Ré comunicou à Segurança Social a cessação dos contratos de trabalho de outros membros da tripulação da embarcação “...”, incluindo o do Mestre BB, e em 04-01-2022, mas também com efeitos a 30-12-2021, comunicou a cessação do contrato de trabalho do contra-mestre FF. Ficou ainda esclarecido que é usual, no sector da pesca das espécies de marisco para a apanha das quais se encontra licenciada a embarcação ...», as entidades patronais “darem baixa” das respetivas tripulações no final de cada ano, uma vez que no mês de Janeiro essa pesca está interditada, sendo habitual os trabalhadores da Ré usufruírem do subsídio de desemprego nesse mês, voltando a ser admitidos ao serviço da Ré no mês de Fevereiro, altura em que é retomada a pesca do marisco, o que veio efectivamente a suceder em 01-02-2022.
Ou seja, a referida declaração da Ré à Segurança Social, relativa ao Autor, insere-se num conjunto com outras, relativas a outros trabalhadores, com um propósito bem definido dirigido àquela entidade, não coincidente com a emissão de declaração de vontade de cessação dos respectivos contratos de trabalho por parte de qualquer um dos contraentes ao outro, sob pena de resultados absurdos, como a Ré ver-se na contingência de chegar ao dia de retoma da pesca do marisco sem ter tripulação para o efeito, ou – mais significativo para a apreciação do caso sub judice – ter de entender-se que, nos dias 30 e 31 de Dezembro de 2021, o Mestre BB já nem era trabalhador da Ré e, por conseguinte, eram completamente inócuas as declarações que o mesmo dirigiu ao Autor e que são as únicas em que este baseou a verificação de despedimento.
Em suma, entende-se que não se pode extrair da factualidade provada a conclusão de que o contrato de trabalho entre as partes cessou por despedimento do Autor pela Ré, ficando prejudicado o conhecimento da última questão.
Procede, pois, o recurso.

4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente e revogar a sentença recorrida, absolvendo-se a Ré do pedido.
Custas em ambas as instâncias pelo Apelado.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2023
Alda Martins
Maria Luzia Carvalho
Paula Doria C. Pott
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1. Cessação do Contrato de Trabalho, Princípia, Cascais, 2012, p. 151.
2. Neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 193/13.7..., o Acórdão da Relação do Porto de 10 de Outubro de 2016, proferido no processo n.º 1053/15.2..., e o Acórdão da Relação de Guimarães de 5 de Dezembro de 2019, proferido no processo n.º 234/19.4...-A.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.