Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ROSÁRIO GONÇALVES | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO ARRENDATÁRIO MORTE TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO LEI APLICÁVEL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/29/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | - A Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), nos termos dos seus artigos 26º a 28º, estabeleceu um regime de normas transitórias aplicáveis a contratos celebrados anteriormente mas ainda subsistentes à data da sua entrada em vigor em 28 de Junho de 2006. - Por força do disposto no nº 4 do art. 57º do NRAU, a transmissão do arrendamento para habitação, a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos da al.a) do nº 1 do preceito. ( Da responsabilidade da Relatora ) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa 1-Relatório: Os autores, A , B e C , intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra a ré, D , pedindo a condenação desta no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores e na restituição do rés-do-chão do prédio, livre e desocupado de pessoas e bens e no pagamento da quantia de € 400,00 mês, desde a data da citação até à entrega efectiva do imóvel. Para tanto, alegaram ser proprietários do prédio urbano sito na Rua ..., nº 00, Lisboa, tendo o rés-do-chão do mesmo, sido arrendado em 27.02.1942, a Hugo ….. . Após o seu falecimento continuou a habitar no locado a sua mulher I. Pinto ….., que faleceu a 30.07.1989, passando o locado para o seu filho Óscar ……, marido da Ré, que veio a falecer a 23.11.2007. Após o falecimento deste o imóvel continuou a ser ocupado pela Ré, sem qualquer título para o efeito e sem consentimento dos Autores. Regularmente citada a Ré, não contestou, embora tenha requerido a concessão de apoio judiciário que lhe foi concedido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. Nos termos dos artigos 784º.e 484º., nº 1 do Código de Processo Civil, foram julgados reconhecidos os factos alegados na petição inicial, os quais foram dados por reproduzidos. Veio a ser proferida decisão com o seguinte teor: «Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência, condeno a Ré: - A entregar aos Autores o rés-do-chão do prédio sito na Rua ..., nº 00, Lisboa, descrito na 1ª.Conservatória do Registo Predial sob o nº. 0000/00000000 freguesia de ... e inscrito na matriz sob o artigo 000, reconhecendo-os como proprietários do imóvel. Absolvo a Ré do mais peticionado». Inconformada recorreu a ré, concluindo nas suas alegações: 1. Entende a Recorrente que a sentença que agora se impugna não podia ter tal sentido, ainda que não tenha contestado a alegação dos Recorridos que se limitava a estrita matéria de direito e não de facto. 2. Não se admitindo a sua confissão entende a Recorrente que o tribunal recorrido devia ter extraído consequências diferentes da situação jurídica relatada. 3. Os Recorridos, alegam que a Recorrente não pode permanecer na habitação na génese do presente diferendo. 4. Que o direito ao arrendamento caducou por morte de seu marido Óscar …… . 5. Que a Recorrida não é, por essa razão arrendatária; e 6. Que o seu falecido marido outorgou acordo com o senhorio em que afirmava que não ocorreria qualquer transmissão do arrendamento. 7. No entanto, os pais de Óscar … - Hugo ….. — celebraram com José ……, em 1942 contrato de arrendamento relativo ao rés-do-chão direito do n°00 da então denominada Rua ... (hoje Rua ...). 8. Rigorosamente o direito ao arrendamento apenas se transmitiu (em sentido técnico-jurídico) por óbito de I.Pinto …., em 1989, a favor de seu filho Óscar ….. e D . 9. Dispõe o artigo 1732°.do CC que se for acordado o regime da comunhão geral de bens, o património comum é constituída por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei (vide nesse particular o artigo 1733 ° do CC). 10. O arrendamento tem um conteúdo, eminentemente patrimonial, constituindo um dos activos passíveis de integrarem o património conjugal, confirmando-o o artigo 1068.° do CC; o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente. 11. Nessa medida, quando ocorreu a transmissão do direito ao arrendamento para Óscar ….., esse mesmo direito integrou não a esfera jurídica deste, mas sim o património conjugal do casal. 12. Tal solução, atendendo ao princípio da unidade do ordenamento jurídico, é a que melhor se compagina com o respectivo quadro constitucional vigente, que, ordenando ao legislador ordinário a adopção de especiais medidas de protecção à casa de morada de família, vê na mesma pedra angular para a consagração do seu principio basilar: a dignidade da pessoa humana. 13. A supracitada ideia do critério constitucional de protecção da dignidade da pessoa humana, com particular expressão na preservação da habitação, tem afloramento no artigo 1106° do CC, prescrevendo que o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva cônjuge com residência no locado. Trata-se de norma imperativa e que não pode ser afastada por qualquer estipulação das partes de sinal contrário, sob pena de conduzir a resultados perversos. 14. Sem prescindir do que se deixa dito precedentemente, chamamos à colação o disposto no artigo 1056°.do CC, que, preconiza a solução da renovação automática do contrato de arrendamento pelo prazo (mínimo) de um ano, não obstante a caducidade do contrato, se o locatário se mantiver no gozo da coisa locada pelo lapso de um ano sem oposição do locador. 15. Conclui-se, assim, inevitavelmente, pela vigência do presente arrendamento, revelando-se desprovida de sentido a sentença que se impugna. Por seu turno, contra-alegaram os autores: a) Tendo ocorrido a efectiva caducidade do contrato, não detém a recorrente título que legitime a ocupação do imóvel objecto dos presentes autos, o que a constitui na obrigação do o restituir, atento o disposto no art. 1311°, nºs 1 e 2 do Cod. Civil. b) Não interferindo na efectiva caducidade o regime de casamento do falecido marido da recorrente, aplicando-se ao caso o art. 1111°, nº 5, do Cod. Civil, situação reforçada pela superveniente moldura legal vertida sobre casos análogos. e) A sentença recorrida aplicou de forma cabal o direito aos factos provados e assentes, não merecendo qualquer censura. Foram colhidos os vistos. 2- Cumpre apreciar e decidir: As alegações de recurso delimitam o seu objecto, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 660º, nº2, 664º, 684º e 685º-A, todos do CPC. A questão a dirimir consiste em aquilatar, se existe título que legitime a permanência no imóvel. A matéria de facto delineada na 1ª.instância consistiu nos factos alegados na petição inicial, os quais foram julgados reconhecidos, nos termos constantes dos artigos 784º e 484º, nº 1 do CPC. Vejamos: Insurge-se a recorrente relativamente à sentença proferida, dado entender que não obstante não ter apresentado contestação, a questão é de estrita matéria de direito, pelo que, a factualidade admitida não permite a solução jurídica adoptada. Com efeito, a sentença recorrida entendeu que a ré não possuía título que legitimasse a sua ocupação do imóvel, pelo que teria de o entregar aos autores, reconhecendo-os como seus proprietários. Porém, o destino da acção terá de ser diferente, na medida em que a interpretação da factualidade assente conduz a um outro enquadramento jurídico. Ora, como resulta dos factos, em 27 de Fevereiro de 1942 foi celebrado um contrato de arrendamento relativo ao rés-do-chão direito do prédio sito na Rua ..., nº 00, em Lisboa, entre a então proprietária Severina …..e Hugo ….. Tal arrendatário foi casado com Isaura …., ficando esta como arrendatária após a sua morte. A Isaura ….faleceu a 30 de Julho de 1989, transmitindo-se o arrendamento ao filho Óscar ….., o qual veio a falecer em 23 de Novembro de 2007. O Óscar ….. era casado com a ora ré D , como se constata do teor documental de fls. 54 e 55 dos autos. Com efeito, o contrato de arrendamento primitivo data de 1942 e subsistiu até à morte do Óscar ….. ocorrida em 23 de Novembro de 2007. O Novo Regime do Arrendamento Urbano, denominado NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, só é aplicável aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, a qual operou em 28 de Junho de 2006, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, como dispõe o nº 1 do art. 59º do NRAU. Na situação em apreço, existe uma relação contratual constituída anteriormente, mas que subsistia após a entrada em vigor da actual Lei, dado que o óbito do arrendatário ocorreu após 28 de Junho de 2006. Ora, nos termos consagrados no art. 27º das Disposições Gerais do NRAU, as normas do capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro. E, logo dispõe o art. 28º das mesmas disposições gerais que, aos contratos a que se refere o presente capítulo, se aplica, com as devidas adaptações, o regime previsto no art. 26º. Dispõe o aludido art. 26º que: 1- Os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes. 2- À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57º e 58º. Assim, o regime constante do art. 57º do NRAU, aplica-se aos contratos de arrendamento para fim habitacional existentes à data da entrada em vigor daquela Lei, quer tenham sido celebrados antes ou durante a vigência do RAU e, por conseguinte, aplicável à situação sub judice. Por seu turno, estabelece o art. 57º do NRAU, sob o título, transmissão por morte no arrendamento para habitação: 1- O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado. … 4- A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do nº1 ou nos termos do número anterior. No âmbito do RAU, estipulava o seu art. 85º, os casos de transmissão do arrendamento por morte do primitivo arrendatário. O artigo em causa era imperativo no sentido de que não podia ser afastada a sucessão dos familiares que constavam das várias alíneas do nº 1 e pela ordem que aí eram mencionados. A transmissão de arrendamento, por morte do arrendatário, para cônjuge, parente ou afim, não configurava situação de novo arrendamento mas, sim, subsistência da mesma locação, com outro titular (cfr. Ac. da R.L de 20/10/1994, in Col. Jur. XIX, 4, 123, citado a fls. 555 de Arrendamento Urbano, Aragão Seia, 6ª. ed., Almedina). O primitivo arrendatário, ali referido, não seria, necessariamente, o primeiro arrendatário do prédio, mas aquele que se tornou arrendatário através de um contrato de arrendamento. Como refere Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, vol. II, 4ª. ed., Almedina, pág.604 «Falava-se de primitivo arrendatário para exprimir que, em função das sobrevivências enumeradas nas alíneas, a não caducidade só operava, em princípio, em um grau, isto é, para o arrendatário primeiro falecido. Aquele que fosse arrendatário, por ter sucedido a este em função de uma das alíneas, quando por sua vez falecesse, já não abriria margem à não caducidade, excepto se se tratasse do seu cônjuge sobrevivo, pois esta situação estava expressamente ressalvada no nº 4 do art. 85º do RAU». No âmbito do NRAU, incumbe analisar o regime transitório do citado art. 57º, por remissão dos seus artigos 26º, 27º e 28º. Como refere Pinto Furtado, na obra supra citada a fls. 608 a 610 «Para este caso específico da morte do arrendatário habitacional e relativamente aos contratos que subsistiam à data da sua entrada em vigor, em 28 de Junho de 2006, editou a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), no seu art. 57, um regime transitório muito específico, que contempla algumas alterações relativamente ao que se encontrava em vigor. Quando tudo indicaria que, em relação aos contratos antigos, já que para eles se conserva o vinculismo, só restaria manter o regime de transmissão por morte do arrendatário habitacional consagrado no RAU, preferiu o legislador estabelecer um novo regime transitório, a pautar-se pelo disposto no art. 57º. Segundo se dispõe no nº 4 deste art. 57º, a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 ou do nº 3. A transmissão num máximo de dois graus, que era tradicional entre nós, ao longo de todo o vinculismo, passou assim, em Direito Transitório, a agravar-se em mais um ou dois graus». O regime decorrente do art. 57º não tem paralelo no RAU nem na disciplina da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro. Este regime transitório acaba por facilitar a transmissão por morte, do arrendamento para fim habitacional nos casos em que a admite, passando a ser possível, em determinadas situações, como as dos nºs. 3 e 4, uma nova transmissão do arrendamento, ao invés do que previa o nº4 do art. 85º do RAU (cfr. Arrendamento Urbano, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, QJ., pág.97). Do que se acaba de dizer, resulta que a ora ré, na qualidade de cônjuge do Óscar Afecto, o qual era o titular do arrendamento do imóvel dos autos aquando do seu óbito, ocorrido em 23/11/2007, beneficia da transmissão daquele arrendamento após o óbito de seu marido, por força da aplicação de uma norma transitória consagrada no NRAU. A solução em apreço, não resulta de qualquer comunicabilidade do arrendamento, consagrado no art. 1068º do Código Civil, como o aflorou a recorrente. O princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, de acordo com o regime de bens vigente, a que se reporta aquele preceito, trata-se de uma norma inovadora, apenas aplicável aos contratos celebrados na vigência da nova Lei, o que aqui não é o caso, já que o arrendamento dos autos lhe é anterior. Resta-nos concluir que na situação vertente, a factualidade reconhecida não se coaduna com a subsunção jurídica efectuada, neste específico circunstancialismo. Com efeito, não obstante os autores serem reconhecidos como proprietários do imóvel, sucede que a ré, na qualidade de sua arrendatária, dispõe de título que lhe permite a manutenção no mesmo, impedindo a respectiva entrega. Destarte, assiste razão à recorrente, pelo que, se revoga a sentença proferida, nesta parte, absolvendo-se a ré da entrega aos autores do rés-do-chão do prédio sito na Rua ..., nº22, Lisboa. Em síntese: - A Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), nos termos dos seus artigos 26º a 28º, estabeleceu um regime de normas transitórias aplicáveis a contratos celebrados anteriormente mas ainda subsistentes à data da sua entrada em vigor em 28 de Junho de 2006. - Por força do disposto no nº 4 do art. 57º do NRAU, a transmissão do arrendamento para habitação, a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos da al.a) do nº 1 do preceito. 3- Decisão: Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença na parte em que condena a ré a entregar aos autores, o rés-do-chão do prédio sito no nº 22 da Rua ..., em Lisboa, do que se absolve a mesma. Custas a cargo dos apelados. Lisboa, 29 de Maio de 2012 Maria do Rosário Gonçalves Maria da Graça Aráujo José Augusto Ramos |