Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
449/09.3YRLSB-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
DANO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2009
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO E APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADAS AS DECISÕES
Sumário: O âmbito dos recursos está limitado aos factos e às questões de direito que foram, ou deveriam ter sido, considerados na decisão recorrida.
O dano traduzido na perda de privacidade não se integra no círculo de interesses que a norma do art. 59.º do RGEU visa tutelar.
(FA)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Maria e José, casados, residentes no concelho de Santa Cruz, intentaram, a 23-05-2000, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra Imobiliária, Lda, com sede no Funchal, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhes a quantia de Esc. 14 500 000$00, ora de € 72.325,70, acrescida de juros legais, contados a partir da citação.
Alegaram, em síntese:
- Os Autores são proprietários do prédio misto, localizado em ….. freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, inscrito na matriz … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o nº …….. .
- A Norte deste imóvel está a ser construído pela Ré, um edifício constituído por seis pisos.
- Esse edifício tem, no mínimo, 16,20 meros de altura, pelo que, nos termos do art. 59.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), deveria estar afastado do prédio dos AA., pelo menos, 8,10 metros, sendo esse afastamento de, apenas, 7,20 metros.
- Assim, ao imóvel dos AA. não fica assegurado o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares.
- O imóvel dos Autores é composto por duas construções com a área total de 1 730 m2, sendo que o respectivo logradouro é um jardim.
- Esse jardim, com vários tipos de plantas, é um local onde os Autores e as suas visitas passam grande parte do seu tempo.
- A construção da Ré tem muitas janelas, portas e varandas viradas para o imóvel dos Autores.
- Que, assim, fica devassado.
- Deste facto advém um desconforto apreciável para os AA., retirando-lhe toda a privacidade, pelo que o imóvel dos AA. sofreu desvalorização patrimonial de, pelo menos, Esc. 10.000.000$00.
- As obras de construção do prédio da Ré deram causa à deterioração da pintura exterior e interior do prédio dos AA. e a fendilhação em diversas paredes e tectos, cuja reparação importa em Esc. 4.500.000$00.
Citada, a Ré contestou, opondo em síntese:
- A menor distância entre edifícios é de 8,20 metros e respeita a uma construção usada como adega/bar, tendo ainda a Norte/Poente uma estufa construída pelos Autores.
- A construção da Ré, situada a norte do prédio dos AA., nunca projecta sombra sobre ele, não prejudicando a sua iluminação natural, ou exposição solar, nem o arejamento.
Não é, pois, aplicável o art. 59.º do RGEU.
- Tal construção encontra-se afastada mais de um metro e meio do prédio dos AA., para além de que os dois prédios estão separados por um caminho público, estando respeitado o disposto nos art.s 1360.º e 1361.º do C. Civil.
- Nem a deterioração da pintura do prédio dos AA., nem as fissuras ali identificadas, são imputáveis à obra da Ré.
Concluiu pela improcedência da acção, pedindo ainda a condenação dos AA. por litigância de má fé. Requereu a realização de prova pericial antecipada, tendo por objecto a matéria por si alegada.
Realizada essa perícia, foi proferido despacho saneador tabelar e seleccionada a matéria de facto relevante para a decisão, já assente ou a submeter a prova, esta ampliada sob reclamação dos AA.
Foi realizada nova perícia, tendo por objecto a determinação da diminuição do valor do prédio dos AA. resultante da construção do prédio da Ré.
No seguimento, já no início da audiência de julgamento, os Autores ampliaram o pedido, na parte respeitante à desvalorização do seu prédio, para € 53.450,00.
O julgamento, realizado com registo da prova produzida, culminou com a decisão sobre matéria de facto que consta de fls. 267, com reclamação dos AA., que foi indeferida.
Seguiu-se a sentença onde se concluiu nos seguintes termos:

«Decisão
Os princípios legais antes relembrados, conjugados que os factos provados, permitem, na opinião do Tribunal Judicial de Santa Cruz, formular os seguintes juízos:
- A acção não se situa na área dos direitos de personalidade e sim, na violação da propriedade dos Autores;
- O poder dos Autores de, sem interferências de terceiros, mas com as restrições de direito público ou privado, realizar actos materiais de transformação da coisa ou de praticar actos jurídicos de disposição total ou parcial da mesma, não foi afectado pela conduta da Ré;
- As normas relativas à salubridade (arejamento e insolação) não visam tutelar interesses dos Autores, relacionados com o valor da sua propriedade.
Em síntese: não ocorrem os pressupostos do facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.
Pelo exposto, julgando a acção improcedente, por não provada, absolve-se a Ré do pedido
Inconformados, os AA. apelaram do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formulam as seguintes conclusões:
I - A distância entre o prédio dos recorrentes e da recorrida, é apenas de seis metros e vinte centímetros, sendo três e oitenta de caminho público e dois metros e trinta de "canteiro";
II - A recorrida construiu um edifício com seis pisos, com a altura mínima de dezasseis metros e vinte centímetros, quando a casa dos recorrentes, é uma moradia familiar, com apenas dois pisos;
III - De acordo com o artigo 59 do RGEU, o prédio da recorrida nunca poderia subir acima dos doze metros e quatro centímetros e, de acordo com o RSCIETA e o RMEU, não podia ser implantado apenas a dois metros e trinta do caminho público;
IV - Devido à construção levada a efeito pela recorrida, a propriedade dos recorrentes, ficou bastante devassada;
V - A desvalorização da propriedade dos recorrentes foi a de € 53.450,00;
VI - Na verdade, face aos relatórios da maioria dos peritos e das testemunhas, indicadas pelos recorrentes, a resposta a dar ao quesito 8° da base instrutória deve ser alterada, "dando-se como provado que a casa dos recorrentes sofreu uma desvalorização de € 53.450,00";
VII - Se eventualmente não estivessem preenchidos os requisitos do artigo 483º do CC, mas estão, a verdade é que com base no enriquecimento sem causa, a recorrida também devia ser condenada a indemnizar os recorrentes, pela desvalorização da casa destes;
VIII - Ao construir um edifício de seis pisos, com os correspondentes apartamentos, a recorrida viu o seu património enriquecido, enquanto que o património dos recorridos ficou cada vez mais desvalorizado, à medida que aquele prédio subia;
IX - Logo, a figura do enriquecimento sem causa, se outro enquadramento legal não existisse para responsabilizar a recorrida, teria toda a justificação e toda a razão de ser, no presente caso;
X - Ao absolver a recorrida, o tribunal a quo violou os artigos 18° e 25° da CRP, e 70°, 473°, 483°, 484°, 562 e 563 todos do C. C. , o artigo 59 do RGEU, bem como o disposto no RSCIETA e no RMEU.
Nestes termos,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença e condenando-se a recorrida a pagar aos recorrentes o montante de € 53.450,00, acrescido dos juros legais, contados desde o dia da citação e até integral pagamento, tudo com as legais consequências.
Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões está em causa nos presentes autos saber:
- Se deve ser alterada a resposta dada ao art. 8.º da base instrutória;
- Se estão verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil da Ré perante os AA., incluindo a existência de dano no montante de € 53.450,00, ou, ainda, fundada em enriquecimento sem causa.
Vejamos:
I - A resposta ao artigo oitavo da base instrutória.
Este artigo da base instrutória foi aditado na primeira data designada para a realização do julgamento, com a redacção do art. 12.º da p. inicial, a saber:
“Deste facto advém um desconforto apreciável para os AA, retirando-lhe toda a privacidade, pelo que o imóvel dos AA. sofreu desvalorização patrimonial de pelo menos, 10.000.000$00”.
Alegação que, como se referiu, foi alterada no início da audiência de discussão e julgamento para o valor de € 53.450,00, correspondente à avaliação de dois dos peritos, devendo entender-se que é esse o valor em discussão no referido ponto da matéria de facto, apesar de, formalmente, a sua redacção não ter sido alterada.
Está, assim, em causa determinar a medida da desvalorização do prédio dos AA. resultante da edificação do prédio dos RR, o que passa por saber quanto é que o dito prédio valia antes das obras e quanto é que ficou a valer depois delas.
Antes de prosseguir, importa ter em conta que a desvalorização a considerar é apenas a que resulta da perda de privacidade do prédio dos AA., sujeito a devassa a partir dos andares superiores do edifício construído pela Ré. Foi essa a única causa de desvalorização que foi oportunamente invocada, não podendo ser apreciadas, em via de recurso, questões que, não sendo de conhecimento oficioso, não foram oportunamente suscitadas perante o Tribunal recorrido. Nem, em qualquer caso, poderia ser aqui atendida matéria de facto nova, só alegada no âmbito do presente recurso.
É o caso da altura do edifício da Ré, que os AA. agora alegam ser de dezoito metros, e também as queixas de má vizinhança – níveis elevados do som produzidos por equipamentos de rádio e de televisão e os ruídos de discussões, procedentes do prédio da Ré – que só agora foram invocadas e, em relação às quais, não está fixado qualquer facto.
Posto isto, e apenas quanto à perda da privacidade, com especial incidência no que respeita ao gozo do logradouro do prédio dos AA., julga-se que poderá ser aceite a pretensão dos AA., no sentido de que dela decorre uma desvalorização do prédio na ordem dos € 53.000,00, conforme alegado no início da audiência de julgamento.
É nesse sentido que aponta o parecer de dois dos peritos chamados a pronunciarem-se sobre a questão, e também o relatório pericial que foi junto aos autos com a petição inicial e que, tudo o indica, serviu de base à alegação daquele facto no referido articulado. A diferença de valores entre aquele primeiro relatório e o laudo maioritário constante do segundo, sendo relativamente pequena, é parcialmente justificada com a desvalorização monetária verificada no período de mais de quatro anos que separam a elaboração desses dois relatórios.
E também é isso que resulta da prova testemunhal produzida, tendo sido ouvido nessa qualidade o autor do relatório pericial junto com a petição inicial e, ainda, da valoração directa daquilo que as muitas fotografias juntas aos autos revelam, feita à luz do senso comum. O próprio critério de valoração utilizado pelos senhores peritos – 10%, (ou apenas 5%) da avaliação do prédio, assenta em razões de bom senso, mais do que de ordem técnica, sendo, em qualquer caso, ostensivo que o valor do prédio dos AA. seria bem maior se estivesse salvaguardado contra a construção de edifícios como o da Ré.
Mas isto apenas significa que o prédio dos AA vale menos € 53.000,00 por estar sujeito a devassa a partir do prédio da Ré, ao que parece a partir dos quatro pisos superiores. Já não significa, segundo se julga, que o prédio dos AA. valesse mais € 53.000,00 antes de ter sido construído o edifício da Ré.
É que, como já acima se deixou sugerido, essa diferença de valor só seria de reconhecer se o prédio dos AA. estivesse salvaguardado contra quaisquer construções a norte do seu prédio, acima do segundo piso. Ou seja, antes da construção do prédio da Ré, e da perda de privacidade que daí resultou para o prédio dos AA., o valor deste prédio já se achava limitado pela potencialidade edificativa que foi reconhecida ao prédio da Ré. Assim, a desvalorização do prédio dos AA. resultou, fundamentalmente, da aprovação de construção com mais de dois pisos no terreno da Ré, e com janelas e varandas viradas a sul, variando pouco em função da concreta implantação do edifício no solo.
Como decorre dos termos em que a presente acção está instaurada, tudo o que os AA. censuram ao edifício da Ré é o facto de estar demasiado próximo do seu prédio – na petição inicial foi alegado que o afastamento era de apenas 7,20 metros quando deveria ser de 8,10 metros – ou de ter demasiada altura, tendo em vista aquela afastamento.
Mas, em termos de privacidade, e é só disso que aqui se trata, não se identifica diferença relevante entre a situação que resulta da matéria de facto e aquela que existiria se o afastamento entre edifícios fosse superior em um, dois, ou três metros. Na melhor das hipóteses a possibilidade de devassa ficaria limitada aos últimos três pisos.
Assim sendo, podendo dar-se como assente que o prédio dos AA. valeria mais € 53.000,00 se estivesse salvaguardado contra a possibilidade de edificação a norte, acima do segundo piso, já não se pode dar como assente aquela salvaguarda, nem, consequentemente, a medida em que a desvalorização do prédio dos AA. pode ser imputada à implantação da construção da Ré.
Por isso, se entende que não pode ser alterada no sentido pretendido pelos AA. a resposta dada ao artigo oitavo da base instrutória. Em conformidade com o acima exposto, a resposta a este artigo deverá ser antes alterada para:
Provado apenas que o prédio dos AA vale menos € 53.000,00 por estar sujeito a devassa a partir do prédio da Ré”.
Ainda em relação à matéria de facto, julga-se oportuno fazer algumas observações.
Assim, na resposta dada pelo Tribunal ao art. 1.º da base instrutória julgou-se provado que a distância entre o edifício da Ré e a parte urbana dos prédio dos Autores, que faz partilha com o caminho público, é de seis metros e dez centímetros (6,10 metros), sendo três metros e oitenta centímetros (3,80 metros) de caminho público e dois metros e trinta centímetros (2,30 metros) de canteiro.
Mas, na alínea D) dos factos considerados assentes no final dos articulados, e vertida no elenco dos factos assentes na decisão recorrida, consta que a distância entre esse edifício da Ré e o muro de partilha do imóvel dos Autores é de 6,20 metros.
Ou seja, fazendo a conjugação dos dois factos assim fixados, teríamos que uma parte urbana do prédio dos AA. estaria fora do muro de partilha do prédio.
Não sendo certamente isso que se pretendeu julgar provado, parece resultar desta resposta que a distância ali medida é também a que separa o edifício da Ré do muro de partilha do prédio dos AA. Ou seja, esta resposta teria alterado o que já estava assente por acordo das partes desde os articulados.
Aquela medida foi tirada na ocasião da inspecção judicial ao local, documentada a fls. 255, não vindo esclarecido se o Tribunal se fez acompanhar de alguém especializado nessa medição. Por isso, julga-se preferível continuar a confiar nas medidas tiradas pelos senhores peritos, que, de resto, confirmam os 6,20 metros já assentes por acordo das partes.
E, como quer que seja, aquela medida não releva para a decisão, nem era dela que o quesito tratava. O que ali se questionava era a distância do edifício da Ré ao edifício mais próximo implantado no terreno dos AA., edifício que não se confundia com o muro de partilha. A esse edifício respeitava o art. 7.º da base instrutória, a que o Tribunal respondeu julgando provado que:
“O prédio urbano dos Autores, aludido na resposta ao quesito 1.º, é usado como adega / bar, tem uma parede cega voltada para a construção da Ré e a Norte/Poente daquele os Autores construíram uma estufa”.
Ou seja, o edifício dos AA., que está mais próximo do edifício da Ré, nem sequer está encostado ao muro de partilha, distando dele o espaço que está a ser utilizado como estufa, espaço que, no “corte esquemático” que integra o relatório da segunda vistoria, a fls. 200 dos autos, tem a largura de dois metros.
Este espaço acrescido à distância que separa o muro de partilha do edifício da Ré aponta, assim, para uma distância da ordem dos 8,20 metros, entre a adega dos AA. e o edifício da Ré.
Devendo ser esta a resposta a dar ao art. 1.º da base instrutória.
A matéria de facto a considerar é, pois, a seguinte:
- Os Autores são proprietários do prédio misto, localizado no …., concelho de Santa Cruz, inscrito na matriz ……., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz……. .(alínea a) dos factos assentes);
- A Norte deste imóvel está a ser construído pela Ré, um edifício constituído por seis pisos (alínea b) dos factos assentes);
- Esse edifício tem, no mínimo 16, 20 meros de altura (alínea c) dos factos assentes);
- A distância entre esse edifício e o muro de partilha do imóvel dos Autores é de 6,20 metros (alínea d) dos factos assentes);
- A construção aludida na alínea b) tem muitas aberturas ou vãos ou janelas, portas e varandas e estão viradas para o imóvel dos Autores (alínea e) dos factos assentes);
- O imóvel dos Autores é composto por duas construções com a área total de 1 730 m2, sendo que o respectivo logradouro é um jardim (alínea f) dos factos assentes);
- Esse jardim, com vários tipos de plantas, é um local onde os Autores e as suas visitas passam grande parte do seu tempo (alínea g) dos factos assentes);
- A distância entre o edifício referido na alínea b) dos factos assentes e o edifício de adega dos Autores, é de oito metros e vinte centímetros (8,20 metros), sendo seis metros e vinte (6,20 metros) fora do prédio dos AA., ocupados por caminho público e canteiro, e dois metros dentro deste prédio, ocupados por estufa (resposta ao quesito 1.º, agora alterada);
- O prédio dos Autores, dada a vedação por estes construída à partilha Norte, que se encontra entrelaçada com plantas, e as árvores aí também plantadas, é devassado apenas por quem se encontre à varanda dos andares superiores do edifício construído pela Ré (resposta ao quesito 3º);
- O prédio urbano dos Autores, aludido na resposta ao quesito 1.º, é usado como adega / bar, tem uma parede cega voltada para a construção da Ré e a Norte/Poente daquele os Autores construíram uma estufa (resposta ao quesito 7º;
- O prédio dos AA vale menos € 53.000,00 por estar sujeito a devassa a partir do prédio da Ré;
O Direito
Aqui chegados, importa agora verificar se a Ré deve ser condenada a indemnizar os AA. pela desvalorização verificada no seu prédio, seja com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, seja com fundamento em enriquecimento sem causa.
Começando pelo fim, julga-se que pode ser liminarmente excluída a hipótese de fundar a responsabilidade da Ré em enriquecimento se causa.
Desde logo, porque esta questão apenas foi suscitada em via de recurso e, como é sabido, os recursos visam a reapreciação de decisões e não a prolação de decisões novas, estando o seu objecto limitado às questões que foram, ou que deveriam ter sido, apreciadas na decisão recorrida.
Dessa circunstância também decorre o facto de não ter sido alegada, nem estar provada, matéria de facto em que pudesse ser fundada a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa. Nem a questão seria facilmente equacionável nesses termos, parecendo-nos seguro que a sede própria da questão é aquela em que a mesma foi colocada, estando em causa a verificação da existência de responsabilidade civil extracontratual da Ré.
Mas também aqui não assiste, segundo se julga, razão aos AA.
Vejamos:
Na petição inicial os AA. imputaram à construção da Ré a violação do art. 59.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, (RGEU), por o seu afastamento em relação ao imóvel urbano dos AA. ser de, apenas, 7,20 metros, quando deveria ser de 8,10 metros, de que resultava prejuízo para o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares.
Ora toda a matéria assim alegada resultou não provada. A distância do prédio da Ré à adega do prédio dos AA. é de 8,20 metros e esta adega não tem qualquer abertura ou vão para o lado do prédio da Ré. Para além disso, também não ficou provado qualquer prejuízo para o arejamento, iluminação, ou exposição solar da moradia dos AA., não tendo igualmente ficado esclarecida a distância do prédio da Ré à fachada norte da moradia doa AA., sendo que era em relação a esta que se poderia pôr a questão da aplicabilidade do art. 59.º do RGEU.
Sem invocarem a violação de qualquer outra disposição legal, os AA. alegaram, de seguida, a devassa a que o seu prédio ficou sujeito a partir do edifício da Ré, valorizaram esse dano em Esc. 10.000.000$00 e peticionaram a sua reparação.
Mas, segundo se julga, o dano assim alegado não se integra no círculo de interesses que aquela norma visa tutelar. O que resulta da redacção do art. 58.º do RGEU, onde são enunciados os interesses que são tutelados pelo subsequente art. 59.º, aqui em discussão, e onde não se inclui a protecção da privacidade da utilização dos prédios vizinhos. E resulta ainda mais claramente do preceituado no art. 1360.º do C. Civil, onde a protecção da privacidade dos prédios vizinhos está limitada à imposição do afastamento de um metro e meio em relação a qualquer nova janela ou porta que deite directamente sobre eles, e no art. 1361.º, onde até essa restrição deixa de ser aplicável se os prédios em confronto forem separados por caminho público.
Como até é o caso dos autos.
Deste modo, não só não ficaram provados factos que permitam julgar verificada, no caso, a previsão do art. 59.º do RGEU, como se julga que a eventual violação desta norma legal não conferia aos AA. direito a ver reparado o dano de perda de privacidade, por estar em causa um interesse que não é tutelado por aquela norma, mas pelos art.s 1360.º e 1361.º do C. Civil.
Nas suas alegações de recurso os AA. ampliaram a sua alegação de ilicitude da obra da Ré, invocando a violação de mais duas disposições legais. Por um lado, teria sido desrespeitado o RSCIETA (Regulamento Segurança Contra Incêndios Edifícios Tipo Administrativo), uma vez que o edifício da Ré não ficou suficientemente afastado do caminho público para permitir a manobra de carros de bombeiros. E, por outro, teria sido desrespeitado o RMEU (Regulamento Municipal de Edificações Urbanas) que obrigará os prédios a recuar em medida igual à da largura do caminho público a fim de possibilitar a construção de passeios nos dois sentidos.
Ora, antes de mais, estamos perante mais duas questões novas, que só foram suscitadas em vias de recurso e que, segundo se julga, não são exclusivamente de direito. Não está provado, nem foi discutido, se o espaço disponível permite a manobra de veículos de bombeiros, e, diversamente, pode considerar-se assente que o espaço ocupado pelo canteiro – cerca de 2,20 metros – pode ser convertido em espaço para circulação de peões, se para tanto houver justificação.
Mas, fundamentalmente, a questão que se coloca é a mesma. Aquelas duas disposições legais não visam tutelar interesses privados dos AA., designadamente, a privacidade do seu prédio. Em qualquer dos casos está apenas em causa a protecção dos interesses públicos ali referidos e não a privacidade dos prédios vizinhos.
Em conclusão, e acompanhando nesta parte a decisão recorrida, julga-se que não pode ser considerada demonstrada a violação, no âmbito da construção do edifício da Ré, de qualquer norma legal destinada a proteger o interesse dos AA. em salvaguardar a privacidade do seu prédio.
O que determina, por si só, a improcedência da sua pretensão indemnizatória, devendo ser confirmada a decisão recorrida.
Termos em que se acorda em negar provimento ao agravo, mantendo-se o despacho agravado, e em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas, em cada recurso, pela parte recorrente.
Lisboa, 19-03-2009
(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins) – voto a decisão, por entender que é admissível a impugnação de decisão de 1ª instância quanto à matéria de facto, com a invocação de depoimentos de testemunhas que não se indicou com referência ao assinalado na acta.