Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9533/2007-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
EXECUTADO
CÔNJUGE
BENS COMUNS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Em execução movida contra um dos cônjuges, por dívidas da sua exclusiva responsabilidade, pode nomear-se à penhora bens comuns, desde que seja pedida a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens.
II - Com a citação do cônjuge do executado torna-se inútil a dedução de embargos de terceiro.
III – A extinção do vínculo conjugal não altera, automaticamente, o regime de bens, pelo que os bens comuns do casal mantêm-se nessa qualidade até à partilha, pois só ela põe termo à comunhão.
IV – A retroacção dos efeitos patrimoniais no divórcio não determina, sem mais, a passagem do regime de comunhão de bens para o regime de compropriedade.
V – O divórcio do executado não inviabiliza que o credor se socorra do disposto no art.º 825, n.º1, do CPC
(G.A.)
Decisão Texto Integral:       Acordam os Juízes da 2ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.RELATÓRIO

 

      A deduziu os presentes embargos de terceiro contra o Exequente, “B, SA” e Executados, T e V, alegando que não é parte na execução, a fracção autónoma penhorada integra o património comum do casal que constituiu com o executado Vítor, de quem já está divorciada, não obstante o dito património ainda não ter sido partilhado, a dívida exequenda é incomunicável, e que a penhora realizada ofende o seu direito de propriedade, medida em que deve ser ordenado o seu levantamento.

      Foi proferido despacho de indeferimento liminar da petição de embargos.

      Inconformada, veio a Embargante agravar do despacho de indeferimento liminar.

      Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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    OBJECTO DO RECURSO:[1]

      Emerge das conclusões de recurso apresentadas por A, ora Agravante, que o seu objecto está circunscrito às seguintes questões:


      1.) A Recorrente alegou que já não é cônjuge do Executado V, uma vez que deste se encontra divorciada. Por isso, não há que proceder como se o continuasse a ser, ou seja, não há que aplicar as normas constantes no art. 835°, do CPCivil.

      2.) Com o divórcio finda o vínculo e a comunhão conjugal. Os ex-cônjuges passam a ser comproprietários dos bens que compunham o património comum do casal, aplicando-se as normas vertidas no Capítulo V, Secção I, do Código Civil, artigos 1403°, e ss..

      3.) A Recorrente é, assim, comproprietária do bem penhorado, na proporção resultante do disposto no n° 2, do art. 1403°, do CCivil.

      4.) A penhora abarca a totalidade do prédio, por isso, ofende o direito de propriedade da Recorrente, bem como a posse que esta sobre o mesmo exerce, o que a legitima à sua defesa, mediante embargos de terceiro, deduzidos à luz do disposto no art. 351°, do CPCivil.

      5.) A alegação destes factos é suficiente, em sede de embargos de terceiro, para fazer presumir a probabilidade séria da existência do direito invocado, o que é suficiente para o recebimento do incidente.

      6.) A Recorrente não está, por isso, amarrada a qualquer restrição formal decorrente do art. 835°, do CPCivil, que já não se lhe aplica por esta não ser cônjuge do executado, mas antes mera consorte comproprietária, juntamente com este, relativamente ao bem penhorado.

      7.) Há, por esta razão, um erro na determinação da norma aplicável ao caso em apreço, pois não deveria ter sido aplicado o disposto no art. 825° do CPCivil, mas antes as normas resultantes da conjugação dos art. 351° e 354°, do CPCivil, e 1403° e 1405°, do CCivil.

      8.) A decisão recorrida viola, ainda, a norma vertida no art. 354° do CPCivil, pois, tendo em conta os factos alegados pela Recorrente, na petição de embargos, conjugada com os elementos já existentes nos autos, e reproduzidos na sentença, o incidente não deveria ter merecido uma rejeição liminar, devendo, antes, ter sido recebido, ou pelo menos, terem sido ordenadas as diligências probatórias julgadas necessárias para a decisão prévia em causa, no caso de o juiz "a quo" ter dúvidas sobre a probabilidade séria da existência do direito invocado pela Recorrente.

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2.FUNDAMENTAÇÃO

    A.) FACTOS PROVADOS:

      1.) Encontra-se penhorada a fracção autónoma designada pela letra "C", correspondente à Cave Direita — Atelier, do prédio sito na Quinta dos Caniços.

      2.) A, foi citada em 14/05/07, como cônjuge do executado V.

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    B.) O DIREITO:

    1.) ADMISSIBILIDADE DE DEDUÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO POR PARTE DO CÔNJUGE DO EXECUTADO. 

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      Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, sejam penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, cita-se o cônjuge do executado para, no prazo de que dispõe para a oposição, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida – n.º 1, do art. 825º, do CPCivil.

      O art. 825º, do CPCivil aplica-se à execução originariamente “movida contra um só dos cônjuges” e nela admite, em consonância com o art. 1696, do CCivil, a penhora de bens comuns do casal.[2]

      Pelas dividas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns – n.º 1, do art. 1696.º do CCivil, com a redacção dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12.

      Por força de tal alteração normativa, enquanto no regime anterior, a responsabilidade dos bens comuns pelas dividas ficava sujeita a uma moratória forçada, no regime actual essa moratória foi suprimida, e os bens pertencentes a essa meação passam a responder imediatamente pela divida do cônjuge.

      Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro – n.º 1, do art. 351º, do CPCivil.      

      O cônjuge que tenha a posição de terceiro pode, sem autorização do outro, defender por meio de embargos de terceiro os direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência prevista no artigo anterior – art. 352º, do CPCivil.

      O cônjuge do executado pode opor-se à penhora, quer com a alegação de que, não sendo parte na acção executiva os seus bens próprios não devem ser penhorados, quer com o fundamento de que, não tendo sido pedida a sua citação para requerer a separação de bens, nela não podem ser penhorados bens comuns.[3]

      A supressão da moratória forçada não significa que, numa execução proposta contra um único dos cônjuges, passem a poder ser penhorados bens comuns. O que a nova formulação permite é que, qualquer que seja a natureza (comercial, civil ou outra) da divida, possam ser penhorados bens comuns, se o exequente, ao nomeá-los, pedir a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens.

      Concluindo, por força da alteração introduzida pelo DL n.º 329-A/95, o exequente pode nomear à penhora bens comuns, desde que peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens.

      Citado o cônjuge do executado, no momento e com as garantias a que se refere o art. 864º, pode ele, requerer a separação de bens, em processo de inventário, ou juntar aos autos certidão comprovativa da pendência de processo de separação de bens já instaurado.[4]

      Tendo o cônjuge do executado sido citado para requerer a separação de bens, os embargos de terceiro são inúteis, pois que, mesmo que pretendesse discutir a comercialidade da divida contraída pelo outro cônjuge, a natureza não comercial dela não impediria a penhora dos bens comuns.[5]

      Só caso tenha sido omitida a citação a que se reporta o n.º 1, do art. 825.º, do CPCivil na execução movida apenas contra um dos cônjuges, pode o outro deduzir embargos de terceiro para defender o seu direito à meação nos bens comuns.[6]

      Está provado que A, foi citada em 14/05/07, como cônjuge do executado V – facto provado n.º 2.

      Não omitindo a Embargada/Exequente a citação do cônjuge do executado para os termos do art. 825º, do CPCivil, isto é, para querendo, requerer a separação de bens, não pode a Agravante, Alice de Lurdes Lourenço Proença deduzir, como deduziu, embargos de terceiro.

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    2.) PROPRIEDADE DOS BENS QUE INTEGRAM O ACERVO COMUM DO CASAL DEPOIS DE DECRETADO O DIVÓRCIO E ANTES DE SE TER PROCEDIDO À SUA ADJUDICAÇÃO AOS EX-CÔNJUGES.

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      Alega no entanto a Agravante que com o divórcio finda o vínculo e a comunhão conjugal, e os ex-cônjuges passam a ser comproprietários dos bens que compunham o património comum do casal.

      Vejamos a questão.

      Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa – n.º 1, do art. 1403º, do  CCivil.

      As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um dele - art. 1404º, do CCivil.

      A compropriedade distingue-se da comunhão de bens, sendo esta sempre uma das suas modalidades. As regras daquela são, salvo algumas excepções, aplicáveis a esta. Entre as modalidades de comunhão de bens temos o património que é integrado pelos bens comuns do casal, afectado por lei ao

escopo de servir de suporte económico à sociedade conjugal.

      O que caracteriza a comunhão de mão comum e a distingue da compropriedade é, além do mais, o facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário.[7] 

      Não é, em princípio, permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados (art. 1714º, nº 1, do CCivil. Excepção a tal regra, nomeadamente a separação judicial de bens (art. 1715º, do CCivil). Isto na pendência do casamento.     

      Após a extinção do casamento, os bens comuns do casal mantém-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha, judicial (inventário) ou extrajudicialmente.

      Até lá aplicam-se-lhes todas as regras legais que os pressupõem, nomeadamente as insertas nos arts. 825º, nº 1, do CPCivil, que ora nos ocupam.

      Não é a simples extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento. A retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio (art. 1789º, nºs 1 e 2 do CCivil) não implica que o regime dos bens deixe de ser o da comunhão, se foi esse o adoptado, para passar ao da propriedade em comum, enquanto se não tiver procedido à partilha. O regime prescrito nos ditos normativos (art. 1789º, do CCivil) tem a ver com as relações entre os cônjuges e os respectivos e correlativos direitos/obrigações que não com terceiros.

      Só a partilha põe termo à comunhão podendo, ou não, dar lugar à compropriedade. Enquanto aquela não ocorrer, o regime legal de bens mantém a imutabilidade que lhe é natural, podendo terceiros valer-se das normas legais que o pressupõem, como é o caso do art. 825º, nº 1, do CPCivil.

      A solução adoptada no despacho recorrido é a única que respeita a aludida regra da imutabilidade dos regimes de bens e defende eficazmente terceiros que com algum dos membros do casal entraram em relacionamento jurídico-económico.

      Se a dívida é daquelas que nasceu num tempo, antes ou depois do divórcio, em que por ela respondiam os bens comuns do casal, assim continua a ser enquanto se não operar a divisão/partilha.

      A passagem, sem mais, ao regime de compropriedade, como efeito do divórcio, tornava a posição do terceiro credor instável e menos consistente, dificultando-lhe a realização prática do direito, tal qual, de resto, a pretensão da embargante pressupõe e deixa transparecer.

      Pelo menos e não é pouco, ficava-lhe vedado o acesso ao instrumento consubstanciado no aludido art. 825º, nº 1 do CPCivil, obrigando-o à penhora de metade indivisa do usufruto, sem que o ex-cônjuge não executado ficasse sujeito à consequência de não requerer a separação de bens, qual seja, prosseguir a execução nos bens comuns penhorados.

      Concluindo, pese embora a Agravante não ter feito prova que se encontrava legalmente divorciada do executado, o que torna desnecessária a sua notificação para o fazer, mas mesmo que o estivesse, o regime de bens não se alterava enquanto não estivesse feita a partilha de bens.

      Assim sendo, como a Agravante continua a ser comproprietária do bem penhorado, o Exequente podia pedir a sua citação para requerer a separação de bens, o que tendo feito, a impede, como se viu, de deduzir embargos de terceiro.

      Destarte, improcedem todas as conclusões da Agravante.

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3.DISPOSITIVO

        

    DECISÃO:

      Pelo exposto, Acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao Agravo e, consequentemente, em confirmar-se a decisão recorrida.    

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         REGIME DE CUSTAS:

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         Custas pela Agravante, porquanto a elas deu causa por ter ficado vencida - art. 446º, do CPCivil.

Lisboa,2008-01-10

(NELSON PAULO MARTINS DE BORGES CARNEIRO)

(ANA PAULA LOPES MARTINS BOULAROT)(dispensei os vistos)

(LÚCIA CELESTE DE SOUSA)

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[1] As conclusões das alegações do recorrente fixam o objecto e o âmbito do recurso – n.º 3, do art. 684.º e, n.º 1, do art. 690.º, do CPCivil.
  Todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
[2] LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, 3º vol., pág. 364.
[3] TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, pág. 301.

[4] LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, 3º vol., pág. 364.

[5] Ac's STJ de 1997.04.22 e 1998.06.02, Ac's STJ, Tomo 2.º, págs. 64 e 140, respectivamente.

[6] SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, pág. 189.
[7] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, anotação ao art. 1403º.
[8] Foram utilizados meios informáticos na elaboração e execução da presente peça processual – n.º 5 do art. 138.º doCPCivil.