Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3153/25.1T9LSB-A.L1-3
Relator: ANA RITA LOJA
Descritores: MEDIDAS DE COAÇÃO
PERIGO DE FUGA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: Sumário:
I-É consabido que nos termos do previsto no artigo 204º nº1 al. a) do Código de Processo Penal a fuga ou perigo de fuga pode fundar a aplicação de medidas de coação.
II- Mas a lei não presume o perigo de fuga demanda que o mesmo seja concreto pelo que não basta a mera probabilidade de fuga inferida de presunções genéricas e abstratas como a mera nacionalidade ou a gravidade do crime ou ainda a mera possibilidade de condenação futura.
III-Com efeito, nem sequer a condenação em pena de prisão, ainda, que elevada integra o perigo de fuga porquanto este deve fundar-se em elementos concretos e de facto que indiciem o referido perigo, designadamente por serem reveladores de uma concreta preparação da fuga.
IV-A obrigação de permanência na habitação, ainda, que com vigilância eletrónica confina a mobilidade física do arguido e sinaliza o incumprimento das restrições que decorrem de tal medida permitindo desencadear a intervenção das entidades que procedem ao seu controlo ou mesmo forças de segurança mas não impede que o arguido contacte e seja contactado, utilize telemóvel ou computador e a internet, ou seja, não obsta à continuação da atividade criminosa que indiciam os autos persiste há anos.
V-Ademais, também, não debela o perigo de perturbação de inquérito porquanto revelando os factos indiciados que o recorrente assume um papel de angariação e intermediação com indivíduos cuja identidade, ainda, não se apurou a conclusão lógica é que é conhecedor das suas identidades e pode contactar e ser contactado e, assim, contribuir para a dissipação de prova ainda não adquirida ou conservada e impedir que a prova seja adquirida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1-RELATÓRIO:
Por despacho proferido nos autos de inquérito com o nº3153/25.1T9LSB pelo Juiz 9 do Tribunal Central de Instrução Criminal foi decidido aplicar, ao que nos interessa e pela indiciada prática em coautoria material, na forma dolosa e consumada de um crime de branqueamento, punível pelos artigos 26.° e 368.°-A, n.°1, alíneas b) e c), n.°3 e 12 do Código Penal, por referência ao artigo 225.°, n.°1, alínea c) e n.°5 b) do Código Penal e artigos 3.°, n.°1 e 6.°, n.°1 e n.°3 da Lei n.°109/2009, de 15 de setembro e por se considerar verificada a existência dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito:
- ao arguido AA as seguintes medidas de coação:
Termo de identidade e residência que já prestou
Obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Proibição de contactar com os demais arguido BB e o suspeito CC.
-ao arguido BB as seguintes medidas de coação:
Proibição de contactar com os demais arguido AA e o suspeito CC.
Obrigações periódicas, 1 vez por semana no OPC, na sua área de residência.
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Inconformado recorreu do referido despacho o Ministério Público extraindo da motivação do seu recurso as seguintes conclusões:
1º. Está fortemente indiciada a prática, em coautoria, pelos arguidos AA e BB, de um crime de branqueamento, figurando o primeiro como recrutador e líder e o segundo como "mula".
2º. Em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, a Mma. JIC aplicou ao arguido AA, além do TIR, as medidas de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e proibição de contactar com o arguido BB e com o suspeito CC, por considerar existir perigo de perturbação do inquérito e perigo de continuação da atividade criminosa, ainda que mitigados. 
3º. A Mma. JIC fundou a sua decisão nas declarações do arguido, que disse ter agido sob ameaça de terceiros, atribuindo-lhes total credibilidade.
4º. As declarações prestadas pelo arguido não são credíveis, por chocarem frontalmente com o senso comum e por serem contrariadas por uma análise crítica da prova recolhida, da qual resulta que aquele ocupa uma importante posição de liderança na cadeia de branqueamento, recrutando mulas e enriquecendo com os lucros obtidos com a circulação de quantias provenientes de crime.
5º. Está verificado o perigo de fuga, porque o arguido é …, mantém relações com familiares no ... e tem disponibilidade financeira, designadamente a proveniente da atividade criminosa, para viajar até àquele País, sendo o presente inquérito e bem-assim outros nos quais aquele figura como suspeito/arguido uma forte motivação para abandonar o território nacional.
6º. Está verificado o perigo de perturbação do inquérito, porquanto o arguido está em posição de alertar os demais suspeitos (ainda não identificados) da existência deste inquérito, permitindo a destruição de prova.
7º. Está verificado o forte perigo de continuação da atividade criminosa, dado que o arguido não refreou a sua atividade criminosa mesmo depois da prisão preventiva, da acusação e da pronúncia de que foi objeto no processo-crime n.°743/21.5PZLSB, assume uma posição de liderança nesta atividade que lhe permite obtenção rápida e fácil de lucros e tinha na sua posse, aquando das buscas, documentação e cartões bancários titulados por terceiros, que atestam que continua a ter controlo sobre contas alheias.
8º. Em face dos perigos verificados, da forte indiciação e da pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido AA, somente a medida de coação de prisão preventiva se mostra adequada e proporcional, por ser a única que evita que aceda a contas bancárias (designadamente online) e que comunique com terceiros a quem dá ordens sobre como movimentar quantias obtidas ilicitamente.
9º. A Mma. JIC aplicou ao arguido BB, além do TIR, as medidas de coação de proibição de contactar com o arguido AA e com o suspeito CC e obrigação de apresentações periódicas, uma vez por semana no OPC da sua área de residência, por considerar existir perigo de perturbação do inquérito e perigo de continuação da atividade criminosa, ainda que mitigados.
10°. Além dos perigos de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa, há perigo de fuga.
11°. O arguido BB tem nacionalidade … e não estão comprovadas quaisquer relações familiares ou laborais ao território nacional, sendo certo que a pena que enfrenta no presente inquérito representa forte motivação ao regresso ao seu País, que não extradita os seus nacionais.
12°. O argumento usado pela Mma. JIC de que o ... é um País perigoso e que, por esse motivo, o arguido BB não quererá regressar ao mesmo é preconceituoso e ignora a situação concreta do arguido, sendo, portanto, um argumento irrelevante.
13°. Em face do perigo de fuga, deve ser aplicada ao arguido BB a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e …., a acrescer às demais medidas já aplicadas.
14°. Pelo exposto, o Ministério Público pugna pela procedência do presente recurso, devendo a medida de coação de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica a que foi sujeito o arguido AA ser substituída pela prisão preventiva, ao abrigo do disposto nos artigos 191.°, n.°1, 193.°, n.°1 a 3, 202 °, n.°1, alíneas a) e c) e 204.°, alíneas a) a c) do Código de Processo Penal, em cumulação com as outras medidas de coação já aplicadas.
15°. Pugna ainda que seja aplicada ao arguido BB a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e …, ao abrigo do disposto nos artigos 191.°, n.°1, 193.°, n.°1, 200.°, n.°1, alínea b) e 204.°, alínea c) do Código de Processo Penal, em cumulação com as outras medidas de coação já aplicadas.
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Admitido o recurso foi apresentada resposta pelo arguido BB extraindo da mesma as seguintes conclusões:
1-O arguido está indiciado de um crime de crime de branqueamento, punível pelo artigo 368° n.° 1 alíneas b), e c), e 12° do Código Penal, por referência ao artigo 225.° n.° 1 c) e n.° 5 b) do Código Penal, e do artigo 3º n°l, e 6º n.°s 1 e 3 da Lei n.° 109/2009, de 15 de Setembro.
2-O arguido prestou declarações que foram corroboradas pelo co-arguido.
3- Foi aplicada, e bem (no nosso entender), pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal ao arguido BB as medidas de coação:
-Termo de identidade e residência;
-Proibição de contactar com o arguido AA e com o suspeito CC;
-Obrigação de apresentações periódicas, uma vez por semana no OPC, na sua área de residência.
4-Medidas de coação que foram devidamente fundamentadas na decisão de que se recorre.
5-Não tendo sido aplicada a medida de proibição do arguido se ausentar do país, com a entrega de passaportes português e …, conforme havia sido requerido pelo MP em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
6-Não existe perigo de fuga do arguido porque está integrado, trabalha como … da ..., ganha por mês cerca de 1.400 Euros, é solteiro, não tem filhos e que a comunidade … vem para Portugal à procura de segurança.
7-Ou seja, a Meritíssima Juiz de Instrução fundamentou a sua decisão das medidas de coação que mandou aplicar, e fundamentou a não aplicação de outras medidas de coação.
8-Acresce que o arguido já adquiriu a cidadania portuguesa, encontrando-se a viver em Portugal há vários anos.
9-Pelo que se entende que as medidas de coação aplicadas estão bem fundamentadas, e que se consideram justas, adequadas e suficientes.
10-O arguido se quisesse teria, neste ínterim, já regressado ao seu país natal.
11-O que não o fez.
12-É, pois, nosso entendimento, que para além da questão da segurança de viver no nosso país, haver outra razão mais importante que é a questão do arguido ter trabalho e auferir mensalmente um vencimento de 1.400,00 euros, o que não acontecerá certamente no seu país natal.
13- Pelo que se entende que as medidas de coação aplicadas pela Meritíssima Juiz de Instrução são adequadas, suficiente e proporcionais ao crime de que o arguido está indiciado.
Termina pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção do despacho recorrido.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação foi emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto parecer em que acompanha a resposta do recorrente pela procedência do recurso em análise, revogando-se a decisão recorrida:
a) Quanto ao arguido AA, no segmento, referente à obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica, a qual deve ser substituída pela medida de coação prisão preventiva, nos termos dos Arts. 191º, n.º 1, 193º, n.º 1 a 3, 202º, n.º 1, alíneas a) e c) e 204º,
alíneas a) a c) todos do C. P. Penal, mantendo-se a aplicação das demais medidas impostas.
b) Quanto ao arguido BB, para além, das medidas de coação aplicadas a estas deverá acrescer a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e …, nos termos dos Arts. 191º, n.º 1, 193º, n.º 1, 200º, n.º 1, alínea b) e 204º alínea c) todos do C. P. Penal.
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Cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada foi aduzido.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso cumprindo, assim, apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz do que o recorrente arguido invoca nas suas conclusões as questões a apreciar são:
- se se verifica relativamente a ambos os arguidos em concreto perigo de fuga.
- se no caso do arguido AA a medida aplicada de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica deve ser substituída pela medida de coação prisão preventiva, nos termos dos arts. 191º, n.º 1, 193º, n.º 1 a 3, 202º, n.º 1, alíneas a) e c) e 204º nº1 alíneas a) a c) todos do C. P. Penal, mantendo-se a aplicação das demais medidas impostas.
- se no caso do arguido BB para além, das medidas de coação aplicadas deverá acrescer a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e …, nos termos dos arts. 191º, n.º 1, 193º, n.º 1, 200º, n.º 1, alínea b) e 204º nº1 alínea c) todos do C. P. Penal.
2.2-APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
No caso vertente os arguidos e ora recorridos foram sujeitos a 1º interrogatório judicial de arguido detido tendo-se procedido em complemento da análise do auto de interrogatório e uma vez que as declarações dos arguidos, promoção, contraditório e despacho estão gravados à sua audição.
Ora, antes de mais importa salientar que as medidas concretamente aplicadas aos arguidos e ora recorridos com exceção do Termo de Identidade e Residência prevista no artigo 196º do Código de Processo Penal e da medida de apresentações periódicas prevista no artigo 198º do aludido diploma legal apenas podem ser aplicadas perante a existência de fortes indícios da prática de crime resultando do despacho recorrido a afirmação da forte indiciação dos factos e do crime imputado em coautoria aos arguidos e ora recorridos.
Os factos imputados e cuja forte indiciação e qualificação jurídica não é colocada em causa no presente recurso são os seguintes:
1.Em data não concretamente apurada, mas anterior a ... de ... de 2024, indivíduos de identidade não concretamente apurada criaram um site idêntico ao do ... de …, com vista a que os clientes lhe acedessem como se fosse o verdadeiro site e, desse modo, captar as credenciais de acesso às páginas de homebanking daqueles e usá-las para efetuar transferências a débito para contas bancárias por si controladas.
2.Para alcançar tal propósito, os referidos indivíduos solicitaram ao arguido AA que angariasse contas bancárias para as quais pudessem transferir as quantias obtidas por meio do acesso não autorizado às contas bancárias de terceiros.
3.Assim, em data não concretamente apurada, mas anterior a ... de ... de 2024, o arguido AA contactou o suspeito CC e o arguido BB, solicitando-lhes que lhe indicassem contas bancárias por si tituladas, para aí receberem transferências provenientes de contas de terceiros ordenadas pelos ditos indivíduos de identidade não concretamente apurada, sem consentimento dos titulares das contas ordenantes.
4.Nesse contacto, o arguido AA disse ao suspeito CC e ao arguido BB que se aceitassem receber as referidas quantias nas respetivas contas bancárias e subsequentemente movimentá-las, poderiam conservar para si parte dos montantes creditados.
5.O suspeito CC e o arguido BB aceitaram a proposta do arguido AA.
6.Assim, em cumprimento do solicitado, o suspeito CC indicou ao arguido AA a conta bancária com o ..., domiciliada no banco …, da qual é o único titular e autorizado.
7.De igual modo, O arguido BB indicou ao arguido AA a conta bancária com o ..., domiciliada no …, da qual é o único titular e autorizado.
8.O arguido AA, por seu turno, indicou aos outros indivíduos de identidade não concretamente apurada os IBAN que lhe haviam sido transmitidos pelo suspeito CC e pelo arguido BB, a fim de permitir a concretização de transferências bancárias.
9.Em ... de ... de 2024, DD, gerente da sociedade ... acedeu ao site criado pelos ditos indivíduos de identidade não concretamente apurada, em tudo idêntico ao do ....
10.Uma vez nesse site, que era monitorizado pelos indivíduos de identidade não concretamente apurada, DD acedeu à página de homebanking da conta titulada pela sociedade ..., de que é gerente, a qual tem o ....
11.Para concretizar tal acesso à página de homebanking, DD introduziu o seu nome de utilizador e palavra-passe.
12.Após aceder àquela página, surgiu no ecrã do computador de DD uma janela pop-up, na qual constava a indicação de que deveria proceder à atualização de dados para manter a sua conta bancária segura.
13.Concomitantemente, mediante introdução do nome de utilizador e palavra-passe de que haviam tomado conhecimento imediatamente antes através do site por si criado, os indivíduos de identidade não concretamente apurada acederam ao homebanking da conta com o ..., titulada pela sociedade ..., no site oficial do ... de ….
14.Então, os indivíduos de identidade não concretamente apurada, através da conta titulada pela sociedade ... deram as seguintes ordens de transferência a débito, totalizando 86.808,00€ (oitenta e seis mil oitocentos e oito euros):
15.Ao darem as ordens de transferência acima indicadas através do sistema de homebanking, o ... de … enviou para a aplicação bancária de DD notificações de autorização.
16.Julgando que a autorização solicitada na aplicação era um passo necessário à atualização de dados da conta bancária, DD autorizou as operações, assim autorizando a realização das supramencionadas transferências.
17.A quantia de 29.000,00€ (vinte e nove mil euros) foi efetivamente creditada na conta com o ..., titulada pelo arguido BB, no dia ... de ... de 2024.
18.A quantia de 16.000,00€ (dezasseis mil euros) foi efetivamente creditada na conta com o ..., titulada pelo suspeito CC, no dia ... de ... de 2024.
19.No dia ... de ... de 2024, pelas 08h13, o arguido AA telefonou ao suspeito CC e instruiu-o a dirigir-se ao balcão da ....
20.Na mesma data, de modo ainda não concretamente apurado, o arguido AA deu iguais instruções ao arguido BB.
21.Assim, perto das 08h25 do dia ... de ... de 2024, os dois arguidos e o suspeito encontraram- se junto ao balcão da ..., no ….
22. Uma vez no balcão, seguindo instruções previamente dadas pelo arguido AA, o suspeito CC solicitou à funcionária daquela instituição a compra de 13.500,00 USD (treze mil e quinhentos dólares americanos).
23.A funcionária da ... realizou a operação pretendida e, pelas 08h27, o suspeito CC pagou o montante total de 13.100,00€ (treze mil e cem euros) com recurso ao cartão bancário associado à sua conta com o ....
24.Concluído o pagamento, o suspeito CC entregou o dito cartão bancário e o comprovativo de pagamento do TPA ao arguido AA, que os guardou.
25.A funcionária da ... colocou os dólares americanos comprados dentro de um saco de cor castanha e entregou-o ao suspeito CC.
26.Por seu turno, o suspeito CC entregou o saco de cor castanha ao arguido AA, que o guardou.
27.Enquanto decorria a compra de dólares americanos pelo suspeito CC e pelo arguido AA, o arguido BB encontrava-se a utilizar o ATM existente ao lado do balcão da ....
28.Nesse local, o arguido BB realizou os seguintes levantamentos em numerário, que totalizam 990,00€ (novecentos e noventa euros), com recurso ao cartão bancário associado à sua conta com o ...
a) Seis levantamentos de 150,00€ (cento e cinquenta euros) cada, totalizando 900,00€ (novecentos euros);
b) Um levantamento de 20,00€ (vinte euros);
c)Um levantamento de 70,00€ (setenta euros).
29.Findos os levantamentos em numerário, e seguindo instruções previamente dadas peio arguido AA, o arguido BB dirigiu-se ao balcão da ... e solicitou ao funcionário desta a compra de 23.000,00 USD (vinte e três mil dólares americanos).
30.O funcionário realizou a operação solicitada e o arguido BB pagou o montante de 22.000,00€ (vinte e dois mil euros) com recurso ao cartão bancário associado à sua conta com o ...
31.Concluído o pagamento, o funcionário entregou ao arguido BB o dinheiro adquirido e este guardou-o num envelope branco.
32.Depois, o arguido BB entregou o envelope branco contendo dólares americanos ao arguido AA, que o guardou.
33.Ato continuo, os dois arguidos e o suspeito abandonaram o ....
34.Ainda no dia ... de ... de 2024, cerca das 10h16, o suspeito CC a mando do arguido AA e com recurso aos dólares americanos anteriormente comprados, dirigiu-se a um balcão da ... e efetuou a compra de moeda, obtendo 1.369,60€ (mil trezentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos), mediante pagamento de 1.600,00 USD (mil e seiscentos dólares americanos).
35.Após, o suspeito CC entregou ao arguido AA a quantia que recebera em euros, conservando para si uma parte, de valor não concretamente apurado.
36.Igualmente no dia ... de ... de 2024, o arguido AA ou o suspeito CC procederam aos seguintes movimentos a débito, com recurso ao cartão bancário associado à conta com o ..., titulada pelo primeiro, que totalizam 2.599,57€ (dois mil quinhentos e noventa e nove euros e cinquenta e sete cêntimos):
a) Um levantamento em numerário da quantia de 2.000,00€ (dois mil euros);
b) Dois levantamentos em numerário de 200,00€ (duzentos euros) cada, perfazendo 400,00€ (quatrocentos euros);
c)Um pagamento de serviços no valor de 195,47€ (cento e noventa e cinco euros e quarenta e sete cêntimos);
d)Uma compra no valor de 4,10€ (quatro euros e dez).
37.Também no dia ... de ... de 2024, cerca das 06h30, o arguido BB efetuou as seguintes transferências a débito, que totalizam 6.000,00€ (seis mil euros),a partir da conta com o ...
a) Uma transferência de 5.000,00€ (cinco mil euros) para a conta com o ..., titulada pelo próprio junto do …;
b) Uma transferência de 1.000,00€ (mil euros) para o ..., em nome de BB.
38.Ainda no dia ... de ... de 2024, após crédito da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) na conta por si titulada com o ..., o arguido BB efetuou as seguintes transferências a débito:
a) Três transferências no valor de 1.000,00€ (mil euros) cada, perfazendo 3.000,00€ (três mil euros) para a conta … com o n.° 10012228, em nome de BB;
b) Uma transferência de 370,00€ (trezentos e setenta euros) para a conta com o ..., em nome de BB.
39. No dia ... de ... de 2024, cerca das 17h42, o suspeito CC, a mando do arguido AA e com recurso aos dólares americanos anteriormente comprados, dirigiu-se a um balcão da ... e efetuou a compra de moeda, obtendo 1.091,996 (mil e noventa e um euros e noventa e nove cêntimos), mediante pagamento de 1.300,00 USD (mil e trezentos dólares americanos).
40.Após, o suspeito CC entregou ao arguido AA a quantia que recebera em euros, conservando para si uma parte, de valor não concretamente apurado.
41.No dia ... de ... de 2024, pelas 10h54, o arguido AA telefonou ao suspeito CC e pediu-lhe que se encontrasse consigo no balcão da ..., em …, a fim de trocar dólares americanos por euros, comprometendo-se a entregar-lhe 50,006 (cinquenta euros).
42.O suspeito CC aceitou e, assim, pelas 11 h30 daquele dia, os dois encontraram-se no local acordado.
43.Aí, o suspeito CC efetuou a conversão de moeda, obtendo 841,31 € (oitocentos e quarenta e um euros e trinta e um cêntimos), mediante pagamento de 1.000,00 USD (mil dólares americanos).
44.Tendo o funcionário da ... entregado a quantia de 841,31€ (oitocentos e quarenta e um euros e trinta e um cêntimos) ao suspeito CC, este entregou a totalidade ao arguido AA.
45.Do dinheiro recebido, o arguido AA retirou a quantia de 50,00€ (cinquenta euros), que entregou de imediato ao suspeito CC.
46.Após, ambos abandonaram o local, levando consigo as quantias recebidas.
47.Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente.
48.Os arguidos AA e BB sabiam que as quantias de 16.000,00€ e 29.000,00€ creditadas nas contas bancárias deste último e do suspeito CC haviam sido obtidas nos termos supradescritos, ou seja, após indivíduos de identidade não concretamente apurada terem criado um site em tudo idêntico ao do ... e, através deste, tomarem conhecimento das credenciais de acesso ao sistema homebanking da sociedade ..., com recurso às quais ordenaram as transferências daqueles montantes, sem consentimento da titular da conta.
49.Os arguidos sabiam que os indivíduos de identidade não concretamente apurada, ao acederem à conta bancária titulada pela sociedade ... através do sistema homebanking, acediam a um sistema informático, sem autorização da respetiva titular, e que o faziam com vista a obter dados respeitantes a um dispositivo que permitia o acesso a meio de pagamento.
50.Sabiam igualmente os arguidos que os indivíduos de identidade não concretamente apurada, ao criar um site idêntico ao do ..., interferiam num tratamento informático de dados, produzindo dados não genuínos, com vista a que os mesmos fossem tidos por fidedignos e utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, com o propósito concretizado de provocar engano nas relações jurídicas.
51.Sabiam também os arguidos que os indivíduos de identidade não concretamente apurada, ao agir do modo descrito no artigo anterior, usavam os dados não genuínos produzidos com intenção de causar um prejuízo à sociedade ... e, concomitantemente, de obter um benefício ilegítimo, o que conseguiram.
52.Mais sabiam os arguidos que os indivíduos de identidade não concretamente apurada, ao criarem uma janela pop-up no site idêntico ao da instituição bancária com a advertência de que era necessário atualizar dados, dando instruções a DD para tanto, as quais, na verdade, serviram para autorizar a concretização das transferências a partir da conta bancária da sociedade ..., agiram induzindo aquela em erro, convencendo-a a praticar atos materiais que conduziram ao prejuízo patrimonial da referida sociedade.
53.Ao fornecer ao arguido AA as suas contas bancárias para aí receber as quantias referidas, que recebeu efetivamente, e ao proceder a levantamentos em numerário e a transferências a débito, seguindo as instruções daquele, o arguido BB agiu em comunhão de esforços com o arguido AA, na execução de um plano por todos aceite previamente.
54.Ao receber e movimentar do modo descrito as quantias recebidas nas sobreditas contas bancárias, agiu ainda o arguido com o propósito concretizado de facilitar a receção e transferência das quantias creditadas nas respetivas contas bancárias, com vista a dissimular a origem das mesmas e de evitar que os indivíduos não identificados fossem criminalmente perseguidos.
55.De igual modo, ao usar parte das quantias creditadas nas suas contas para comprar moeda estrangeira e depois usar esta para recomprar euros, os arguidos agiram com o propósito de concretizado de converter as quantias por si recebidas, com vista a dissimular a respetiva origem e de evitar que os indivíduos não identificados e o arguido AA fossem criminalmente perseguidos.
56.Os arguidos agiram sabendo que a sua conduta é proibida e punível por lei.
Ao agir do modo descrito, os arguidos AA e BB praticaram, como coautores materiais, na forma dolosa e consumada, um crime de branqueamento, punível pelos artigos 26.° e 368.°-A, n.° 1, alíneas b) e c), n.° 3 e 12 do Código Penal, por referência ao artigo 225.°, n.°1, alínea c) e n.° 5 b) do Código Penal e artigos 3.°, n.° 1 e 6.°, n.° 1 e n.° 3 da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro.
Insurge-se o Ministério Público relativamente ao despacho recorrido designadamente por não ter reconhecido a existência de perigo de fuga.
Neste particular impõe-se referir que o Ministério Público que teve intervenção no 1º interrogatório judicial dos arguidos e ora recorridos considerou que existia algum perigo de fuga, que tal perigo não tinha particular intensidade e sustentou tal perigo no caso do arguido AA na existência também de outro processo que está a ser julgado e em que foi sujeito a prisão preventiva que por decurso do seu prazo processual máximo cessou e em que é previsível que lhe venha a ser aplicada pena de prisão e ainda por ter nacionalidade … e familiares no ....
No que se reporta ao arguido e recorrido BB entendeu o Ministério Público com intervenção no referido 1º interrogatório judicial que era um perigo sem grande incidência e que existia algum perigo de fuga pelo arguido ter nacionalidade … pese embora também tivesse já adquirido nacionalidade portuguesa e se poder eximir à pena que ulteriormente lhe venha a ser aplicada nos autos.
Em suma, o Ministério Público com intervenção no 1º interrogatório judicial considerou existir algum perigo e sem grande incidência e assente na nacionalidade originária dos arguidos e na possibilidade de lhes vir a ser aplicada pena nos autos e no caso do arguido AA também noutros autos sendo esse o entendimento relevante porquanto é sobre tal promoção que incide o despacho recorrido.
É consabido que nos termos do previsto no artigo 204º nº1 al. a) do Código de Processo Penal a fuga ou perigo de fuga pode fundar a aplicação de medidas de coação.
Mas a lei não presume o perigo de fuga demanda que o mesmo seja concreto pelo que não basta a mera probabilidade de fuga inferida de presunções genéricas e abstratas como a mera nacionalidade ou a gravidade do crime ou, ainda, a mera possibilidade de condenação futura.
Com efeito, nem sequer a condenação em pena de prisão, ainda que elevada, integra o perigo de fuga porquanto este deve fundar-se em elementos concretos e de facto que indiciem o referido perigo, designadamente por serem reveladores de uma concreta preparação da fuga.
Os conceitos de fuga e de perigo de fuga traduzem “desaparecimento, debandada, desconhecimento de paradeiro, e devem estar associados ao incumprimento das obrigações de disponibilidade e comparência impostas pela lei processual penal”4.
Por outro lado, a nacionalidade …, por si só, nada permite inferir sobretudo quando se assume nos autos que o arguido BB já adquiriu nacionalidade portuguesa, aqui reside e aqui trabalha e que o arguido AA tem autorização de residência, é casado e tem um filho em guarda partilhada, residência e profissão em Portugal sendo que tais circunstâncias são reveladoras, em ambos os casos, de um vínculo não precário ou episódico com o território nacional.
Na ausência de qualquer facto à data em que o despacho recorrido foi proferido que indiciasse em concreto que os arguidos e ora recorridos se pretendiam furtar à ação da justiça e tendo por base a argumentação expendida pelo Ministério Público no referido 1º interrogatório não merece qualquer censura o despacho recorrido em considerar a não verificação de tal perigo.
Assim e, neste particular, soçobra o recurso do Ministério Público.
Entende, ainda, o recorrente que ao arguido AA deveria ter sido aplicada prisão preventiva e não a obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios de controlo à distância (não discordando das demais medidas de coação que lhe foram também aplicadas) e que relativamente ao arguido BB deveria ter, para além das medidas aplicadas, ainda a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e …, nos termos dos arts. 191º, n.º 1, 193º, n.º 1, 200º, n.º 1, alínea b) e 204º nº1 alínea c) todos do Código de Processo Penal.
Ora, para aplicação de medida de coação a aferição dos perigos é efetuada em concreto e no momento da sua aplicação e não se considerando que, em concreto e na data em que foi proferido o despacho recorrido, existisse perigo de fuga não se entende ser adequada, proporcional ou necessária a imposição ao arguido BB da medida de proibição a medida de coação de proibição de se ausentar do território nacional, acompanhada da entrega dos passaportes português e … pelo que se mantém também, neste particular, o despacho recorrido.
Por último, pugna o recorrente pela aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido AA por entender ser a única que poderá acautelar os perigos que se fazem sentir.
Decorre do artigo 191º nº1 do Código de Processo Penal na explicitação aí consagrada do princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coação que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coação e de garantia patrimoniais “são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias5”.
Estruturando-se o processo penal português no princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa6 toda e qualquer limitação à liberdade do arguido antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória tem, naturalmente, natureza excecional revestindo, por isso, as medidas de coação uma feição meramente cautelar e apenas podendo ser aplicadas (com exceção do Termo de Identidade e Residência) quando em concreto se verificarem por si só ou conjugadamente as circunstâncias expressamente descritas no artigo 204º do Código de Processo Penal: fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
A aplicação das medidas de coação exige ainda tal como decorre do artigo 192º nº6 do Código de Processo Penal que inexistam fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal sendo que tal isenção deve ser interpretada em sentido amplo de molde a abarcar, também, as causas de justificação ou de exclusão de ilicitude ou culpa com previsão nos artigos 31º a 39º do Código Penal.
Emanam do aludido princípio constitucional de presunção de inocência do arguido os demais princípios cuja observância é também exigida em matéria de aplicação de medidas de coação: princípio da legalidade, princípio da necessidade, princípio da adequação, princípio da proporcionalidade e princípio da subsidiariedade.
O princípio da legalidade das medidas de coação em concretização de normas constitucionais e de direito internacional7 impõe que apenas possam ser aplicadas medidas previstas nos artigos 196º a 202º do Código de Processo ou noutra legislação avulsa, em suma, apenas as legalmente previstas.
Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade presidem como decorre do artigo 193º do Código de Processo Penal à aplicação concreta da medida de coação, sendo que o princípio da necessidade verifica-se sempre que o fim que se visa atingir com a concreta medida de coação a aplicar não pode ser obtido por qualquer outro meio menos gravoso para os direitos do arguido.
Este princípio, também, preside à execução da medida de coação posto que exige o artigo 193º nº4 do Código de Processo Penal que a referida execução não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.
De acordo com os princípios da adequação e da proporcionalidade consagrados no artigo 193º nº1 do Código de Processo Penas as medidas de coação a aplicar em concreto devem revelar-se adequadas às exigências cautelares que o caso requer, e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Assim, a medida de coação a aplicar deve ser não só idónea a satisfazer as necessidades cautelares do caso concreto como na sua aplicação deve ser sopesada a gravidade do crime em causa e a sanção criminal que é previsível que venha ulteriormente a ser aplicada ao arguido.
O princípio da subsidiariedade exige que não seja aplicada medida mais grave do que aquela que no caso concreto seja idónea a debelar os perigos do artigo 204º que se verifiquem no caso concreto e tal princípio assume dimensão máxima no que tange às medidas de coação privativas da liberdade como decorre do artigo 193º nº2 do Código de Processo Penal, sendo tais medidas as de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação consagradas respetivamente nos artigos 202º e 201º ambos do aludido diploma.
As medidas de coação são suscetíveis de revogação, alteração, suspensão, extinção de acordo com o previsto nos artigos 212º a 218º do Código de Processo Penal de molde a que o estatuto coativo do arguido respeite ao longo das fases processuais penais os aludidos princípios e a natureza provisória e cautelar que as enforma.
A medida de coação de obrigação de permanência na habitação está prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal e traduz-se na obrigação do arguido não se ausentar, ou de se não ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde sendo aplicável quando existirem fortes indícios da prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos e forem inadequadas ou insuficientes as medidas de coação referidas nos artigos 196º a 200º do referido diploma.
É uma medida que exige uma ponderação da situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido podendo ser fiscalizado o seu cumprimento através de meios de controlo à distância como decorre do artigo nº3 do artigo 201º do Código de Processo Penal.
A medida de coação de prisão preventiva está prevista no artigo 202º do Código de Processo Penal, dependendo a sua aplicação da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal, devendo ser aplicada apenas como ultima ratio.
Assim, ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir como resulta do artigo 193º nº3 do Código de Processo Penal.
Ademais a e como decorre do artigo 202º nº1 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe a verificação da existência de fortes indícios da prática do crime imputado e que este se enquadre no elenco daqueles aí previstos:
“1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superiora 3 anos;
f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.
O despacho recorrido deu como verificados em concreto, os perigos a que se reporta o artigo 204º nº1 na alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, ou seja perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido que este continue a atividade criminosa e o perigo de perturbação do decurso do inquérito e nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
O despacho recorrido considerou fortemente indiciada a factualidade imputada ao arguido AA a qual integra objetiva e subjetivamente a prática de um crime de branqueamento punível pelos artigos 26.° e 368.°-A, n.°1, alíneas b) e c), n.°3 e 12 do Código Penal, por referência ao artigo 225.°, n.°1, alínea c) e n.°5 b) do Código Penal e artigos 3.°, n.°1 e 6.°, n.°1 e n.°3 da Lei n.°109/2009, de 15 de setembro que configura criminalidade altamente organizada bem como verificados em concreto os perigos supra aludidos tendo sujeito o arguido e ora recorrido, além do mais, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada por meios de controlo à distância, vulgo vigilância eletrónica.
Entende o recorrente que apenas a sujeição do arguido e ora recorrente a medida de coação de prisão preventiva evitará que o mesmo prossiga a sua atividade criminosa, designadamente, acedendo a contas bancárias online e comunicando com terceiros a quem pode fornecer instruções sobre como movimentar quantias obtidas ilicitamente e que tal medida de coação será proporcional à pena que lhe venha a ser ulteriormente aplicada.
« O perigo de continuação da atividade criminosa decorre da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, respeita apenas à continuação da atividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que se verificará com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros análogos ou da mesma natureza e não se analisa apenas em relação às vítimas nos autos mas também em relação a quem venha a estar em situações semelhantes»8.
Como ensina Germano Marques da Silva9 «o fundamento da medida de coação referido na alínea c) do art. 204° deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada. O perigo de continuação da atividade criminosa há de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade, tentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido pode ser de recear a continuação da atividade criminosa, o que importa evitar e a lei permite que para tal sejam aplicadas medidas de coação. Assim, por ex., se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pode justificar-se a prisão preventiva. A aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado».
No caso vertente o despacho recorrido considerou que os perigos que se faziam sentir ficariam acautelados com a sujeição do arguido AA à obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios de controlo à distância, vulgo, vigilância eletrónica assentando nas declarações do arguido que reputou de sinceras porque assumiu os factos tendo dado como explicação da sua prática ameaças sobre si e sua família no ... por determinada organização criminosa.
Trata-se de uma versão que, na nossa ótica, não merece credibilidade, desde logo, pela facilidade de recrutamento e adaptabilidade que qualquer organização criminosa detém e pela factualidade indiciada nos autos que revela que a atuação em presença é de liderança (ainda que intermédia) e tem persistido ao longo de anos e está inserida num plano mais vasto sendo este apenas um dos processos em que o arguido está envolvido e sendo todos referentes a factos da mesma natureza. Não estamos, pois, perante a utilização episódica do arguido AA e ora recorrido, mas perante uma indiciação de intervenção e colaboração ativa em criminalidade altamente organizada.
Ademais resulta, também, dos autos o que foi encontrado no interior das buscas realizadas evidenciando, além do mais, a posse pelo arguido de documentação e cartões bancários titulados por terceiros e, por isso, o acesso a contas que lhe são alheias e relativamente às quais exercia controlo.
A movimentação de contas bancárias pode ser feita online e a angariação de pessoas que permitam a sua utilização para dissipação de quantias monetárias ilicitamente obtidas como no caso do arguido BB pode ser feita online ou por contacto telefónico.
A obrigação de permanência na habitação, ainda, que com vigilância eletrónica confina a mobilidade física do arguido e sinaliza o incumprimento das restrições que decorrem de tal medida permitindo desencadear a intervenção das entidades que procedem ao seu controlo ou mesmo forças de segurança mas não impede que o arguido contacte e seja contactado, utilize telemóvel ou computador e a internet, ou seja, não obsta à continuação da atividade criminosa que indiciam os autos persiste há anos.
Ademais, também, não debela o perigo de perturbação de inquérito porquanto revelando os factos indiciados que o mesmo assume um papel de angariação e intermediação com indivíduos cuja identidade ainda não se apurou a conclusão lógica é que é conhecedor das suas identidades e pode contactar e ser contactado e, assim, contribuir para a dissipação de prova ainda não adquirida ou conservada e impedir que a prova seja adquirida.
Considerando os fortes indícios da prática dos factos imputados e as necessidades cautelares verificadas no caso concreto, conclui-se que assiste quanto a esta questão razão ao recorrente e que apenas a medida de prisão preventiva poderá debelar os perigos supra aludidos e a que se reporta a alínea b) e c) do nº1 do artigo 204º do Código de Processo Penal.
Tais perigos que configuram pressupostos transversais a todas as medidas de coação diferentes de TIR conjugados com a existência de fortes indícios da prática de crime doloso que configura criminalidade altamente organizada como decorre das alíneas a) e c) do artigo 202º do Código de Processo Penal por referência ao art. 1º al. m) do mesmo diploma legal como é o caso, permitem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
Ademais esta apesar de ter natureza excecional e subsidiária é a necessária, adequada às exigências cautelares que se fazem sentir e proporcional à gravidade do crime e as sanções penais que virão a ser aplicadas posteriormente ao arguido AA.
A situação sob análise mostra, pois, ser necessária a medida de compressão mais acentuada da liberdade do arguido AA, sendo que tal se mostra proporcional à necessidade de tutela preventiva, quer da eficácia do sistema de justiça e do respeito pelas suas decisões, quer dos valores jurídicos que a atividade criminosa aqui em causa desprezou.
Ademais, no caso, o que temos configurado é a prática de crime de exacerbada gravidade, quer pelos efeitos danosos aos bens jurídicos que visa proteger quer pelo seu concreto modo de execução.
Reitera-se que em face do que é conhecido neste momento é muito provável que ao arguido venha a ser aplicada uma sanção penal privativa da sua liberdade.
De qualquer forma os pressupostos e fundamentos, de natureza eminentemente indiciária, em que se estriba a determinação do estatuto coativo do arguido AA são de índole diversa daqueles, de muito maior exigência desde logo a nível de segurança probatória, em que assenta uma condenação criminal sendo que a decisão sobre os primeiros não pode influenciar a oportuna apreciação e valoração dos segundos à luz do já referido princípio da presunção de inocência.
O que está aqui em causa é a compressão cautelar da liberdade do arguido enquanto agente de determinados factos indiciados como configurando a prática de um crime e não de uma decisão de culpabilidade penal.
Com efeito, a prisão preventiva não se configura como uma antecipação da pena.
Neste caso concreto, é inevitável a consideração de que nesta fase só a medida de coação de prisão preventiva, e não qualquer das outras medidas previstas na lei mormente responde de forma adequada e suficiente às exigências cautelares que o caso reclama, sendo também proporcional à gravidade dos crimes indiciados e à sanção penal que, nesta fase, é previsível virem ulteriormente a impor-se àquele.
Em consequência impõe-se a revogação do despacho recorrido apenas no que se refere à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância eletrónica com a consequente sujeição do arguido AA a medida de coação de prisão preventiva (ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 193º, 202º nº1 als.a) e c) e 204º nº1 als.b) e c) todos do Código de Processo Penal) e sem prejuízo da manutenção das demais medidas de coação não privativas da liberdade que lhe foram aplicadas sobre as quais não incide este recurso.
Assim procede em parte o recurso do Ministério Público.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público revogando o despacho recorrido no que se refere à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância eletrónica aplicada ao arguido e recorrido AA e determinando a sua sujeição a medida de coação de prisão preventiva nos termos sobreditos mantendo no demais o despacho recorrido.
Sem custas.
Notifique.
Comunique eletronicamente aos autos principais de inquérito e Tribunal recorrido a fim de diligenciarem pelo cumprimento do determinado.
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 10 de setembro de 2025
Ana Rita Loja
Carlos Alexandre
Francisco Henriques
__________________________________________________
1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. – Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de fevereiro de 2009 proferido no processo 435/2009-9 de que é Relator GUILHERME CASTANHEIRA acedido em www.dgsi.pt
5. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 231/2.
6. E ainda no artigo 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no artigo 11º nº1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos bem como no artigo 6º nº2 da Convenção Europeia dos Direitos do Home
7. artigos 27º, 28º e 165º nº1 al.c) da Constituição da República Portuguesa e artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos
8. Vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-03-2023 proferido no processo 1070/22.6PBFIG-A.C1 de que é Relatora Helena Bolieiro
9. Curso de Processo Penal, II, 3a ed. revista e atualizada, 2002, págs. 268 e 269