Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARIA JOSÉ MACHADO | ||
| Descritores: | PRODUÇÃO DE PROVA ORDENADA PELO TRIBUNAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 02/07/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Sumário: | I. O processo penal não é um processo de partes em que exista o ónus da prova e o seu fim último é a procura da verdade material por forma a alcançar a realização da justiça. II. O artigo 340.º do Código de Processo Penal atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa consagrando, assim, no nosso sistema, o princípio da investigação ou da oficialidade. III. As novas provas para o artigo 340.º, terão de ser apenas pertinentes, legais, não supérfluas, relevantes e adequadas, no sentido de não serem de obtenção impossível ou duvidosa. IV. A absoluta necessidade e imprescindibilidade da produção de novos meios de prova não é critério geral para a sua admissão, nos termos do n.º 1 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, só sendo relevante para a já hoje revogada alínea a) do n.º 4 desse mesmo preceito. V. A ordem de produção de prova, constante do artigo 341.º do Código de Processo Penal, para além de ter um carácter geral e de ser meramente indicativa, não constitui limite à produção de novos meios de prova, que podem, inclusivamente, ter lugar mesmo no decurso das alegações orais, como resulta do n.º 4 do artigo 360.º do mesmo Código. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório 1. No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, supra identificado, em que são arguidos A, B, C, D e E, melhor identificados nos autos, foi proferido acórdão, a 25 de Fevereiro de 2022, mediante o qual foi decidido absolver os arguidos pela prática, em co-autoria e concurso efectivo, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do mesmo Código, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1 e n.º 4, por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código Penal e um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, dos quais vinham pronunciados. Mais foi decidido julgar improcedente a perda do produto do crime/vantagens, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 109.º e 111.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal e a perda ampliada de bens e liquidação, determinando-se, consequentemente, o levantamento in totum do arresto decretado nos autos. 2. Anteriormente, na sessão de julgamento que teve lugar a 25/10/2021, o Ministério Público requereu a inquirição de quatro testemunhas, ao abrigo do artigo 340.º do Código de Processo Penal, o que foi objecto de despacho de indeferimento pela Mma. Juíza Presidente, após deliberação do tribunal colectivo, nos seguintes termos: «no que diz respeito à inquirição das testemunhas, F, G e H, cuja inquirição o Digno Ministério Público pretende, indefere-se o aditamento destas três testemunhas ao abrigo do art.º 340.º nº 4 al. a) e c) do Código Processo Penal, porque se entende que, por um lado, já podiam ter sido indicadas anteriormente, conforme demonstram os momentos processualmente temporais, em termos de relevância, que o processo teve (constavam da originária acusação, mas não da pronúncia, aquando da remessa para distribuição e das sucessivas designações para a realização da audiência de julgamento) em que nada foi dito, e nada foi feito, pelo Digno Ministério Público no que diz respeito ao rol de testemunhas delimitado na pronúncia, e, por outro lado, entende-se que os meios de prova não têm adequação à sua finalidade, porque nenhuma destas testemunhas foi mencionada durante a audiência de julgamento, não denotando assim qualquer relevância para a boa decisão da causa, nem para a descoberta da verdade material, sendo certo que a testemunha I apenas consta como tendo sido quem estava presente numa diligência de busca, não se compreendendo em que que é o seu depoimento poderia ser indispensável ou necessário para a boa decisão da causa e da descoberta da verdade material, pelo que se indefere o requerido, além do mais, atenta a fase do processo, tal pretensão iria comportar uma obliteração efectiva e injustificável das garantias de defesa dos aqui arguidos, violaria a ordem de produção da prova e, os meios aqui em questão não são absolutamente necessários, nem são absolutamente imprescindíveis para a boa decisão da causa.». 3. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões: (transcrição) 1. O objecto do presente julgamento reporta-se aos factos da pronúncia, integradores dos crimes de peculato, falsificação agravada e burla qualificada. Em causa: a utilização e apropriação por parte dos arguidos de verbas transferidas ao abrigo de contratos de associação, destinadas a compensar o serviço público de educação que, por via dos mesmos, lhes competia prestar e administrar; a utilização das verbas por parte do grupo gerido pelos arguidos, incluindo para pagamentos em seu benefício através da emissão de facturas não correspondentes a serviços prestados, por um lado, e referentes ao pagamento de serviços de usufruto pessoal, por outro; e as circunstâncias em que foram indicadas, por ordem dos arguidos, horas de cargo que viriam a ser pagas com base em tal indicação pelo Estado no âmbito de tais contratos, correspondentes a horas prestadas por professores a ciclos de ensino e actividades extra-curriculares (AEC) não abrangidos pelos contratos de associação celebrados como se o fossem. 2. No decurso do julgamento, na sessão de 25.10.2021, quando ainda não estava esgotada a produção da prova, o Ministério Público requereu, ao abrigo do art.º 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, a inquirição de quatro testemunhas, por entender que seria de grande utilidade para a prova da factualidade sob julgamento, a descoberta da verdade e a boa decisão da causa: (i e ii) G e F, funcionários da DREL, que tinham conhecimentos sobre o modo como eram calculados os montantes a atribuir pelo Estado aos colégios administrados pelos arguidos, como era verificada pelos serviços a utilização das respectivas verbas e qual o seu destino legal; (iii) H, funcionária afecta ao Grupo gerido pelos arguidos que tinha conhecimento acerca do modo como eram emitidas, centralmente e por ordem dos arguidos, facturas em nome das suas empresas pessoais destinadas a serem contabilizadas e pagas pelos colégios; (iv) I, directora pedagógica de um dos colégios administrados pelos arguidos, presente na busca realizada e identificada no referido auto, que viu também ser buscado o seu gabinete, sendo de grande interesse para a boa decisão da causa ser confrontada com documentação aí apreendida e da sua lavra, com vista ao esclarecimento do esquema das horas de cargo fictícias. 3. O Tribunal indeferiu o requerimento apresentado pelo MP, ao abrigo do art.º 340.º nº 4 al. a) e c) do Código Processo Penal, por considerar que: (i) já podiam ter sido indicadas anteriormente; (ii) os meios de prova não têm adequação à sua finalidade, porque nenhuma destas testemunhas foi mencionada durante a audiência de julgamento, não denotando assim qualquer relevância para a boa decisão da causa, nem para a descoberta da verdade material; (iii) atenta a fase do processo, tal pretensão iria comportar uma obliteração efectiva e injustificável das garantias de defesa dos aqui arguidos, violaria a ordem de produção da prova; (iv) os meios aqui em questão não são absolutamente necessários, nem são absolutamente imprescindíveis para a boa decisão da causa. 4. O art.º 340.º do Código de Processo Penal consagra os poderes de investigação que o legislador entendeu cometer ao Tribunal na fase de julgamento, sustentados e balizados na razão de base de que o processo penal não é um processo de partes e que o propósito maior é a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa. 5. “O art.º 340º do CPPenal não impede que sejam inquiridas testemunhas, que já podiam ter sido arroladas na acusação ou três dias antes do início do julgamento, basta que a sua inquirição se apresente como necessária e indispensável para a boa decisão da causa; - Se a testemunha nada mais adianta em relação ao que foi dito por outras testemunhas não sabemos, o que não há dúvidas é que tudo leva a crer que a testemunha presenciou os factos e que é importante a sua inquirição em audiência a fim de se averiguar da credibilidade do seu depoimento, para o que contribuem de forma relevante os princípios da oralidade e da imediação, de que o tribunal ad quem está privado ao reapreciar matéria de facto" (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1.10.2013). 6. “No nº 1 do art.º 340º está, pois, expresso o poder vinculado do tribunal (o tribunal ordena), portanto de exercício obrigatório, verificado o condicionalismo nele previsto: que a produção dos meios de prova se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. (...) (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 15.3.2012) 7. O tribunal olvidou que, ao abrigo do poder conferido pelo art.340º do Código de Processo Penal, fundado em decisão destinada à descoberta da verdade e da boa decisão da causa, as garantias de defesa sempre estariam salvaguardadas, concretamente o princípio do contraditório. Sempre caberia nas competências do tribunal, ao abrigo dos art.ºs 323º e 327º do CPP, proceder à inquirição e determinar o contra-interrogatório, garantindo o contraditório (acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 11.4.2007, e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.3.2012) 8. O tribunal, agarrado a peias de natureza formal - o momento do oferecimento da prova, a ordem de produção da prova - desconsiderou as razões substanciais que presidiram ao requerimento formulado e o fim último que lhe impõe o referido normativo que é o da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa, proferindo decisão que não respeita, deste modo, "os princípios orientadores do direito processual penal português, e não garante, em nosso entender (e com o devido respeito pelo decidido no despacho recorrido), um processo justo, equitativo e próprio de um Estado de Direito, porquanto não curou de saber, como se impunha, se o depoimento da testemunha J... era, ou não, indispensável à descoberta da verdade e à boa decisão da causa." (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17.12.2020) 9. O tribunal incorreu em violação de lei, tendo feito errada interpretação da norma jurídica aplicável, não curando de ponderar, de forma séria, a essencialidade das diligências requeridas trazida ao julgamento, no seu decurso, na perspectiva da sua necessidade para efeitos de compreensão e prova dos factos e esclarecimento da verdade material, nos moldes aduzidos, decidindo de forma tabelar e errada. 10. Tal decisão, na medida em que corresponde a um poder vinculado, não está na discricionariedade do juiz, sendo sindicável por via do presente recurso, ao abrigo do art.399º e 400º a contrario do Código de Processo Penal 11. O tribunal a quo efectuou errada aplicação da norma contida nos art.º 340º do Código de Processo Penal, violando-a, pelo que deverá a decisão judicial proferida ser revogada e substituída por outra que autorize a produção da prova requerida, por indispensável e adequada à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa. 4. Tal recurso foi admitido para subir a final, nos próprios autos, com o recurso da decisão e com efeito meramente devolutivo. 5. Os arguidos responderam ao recurso defendendo a sua improcedência. 6. O Ministério Público interpôs recurso do acórdão, que absolveu os arguidos, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões: 1. O Tribunal absolveu os arguidos A, D, E, B e C da prática dos crimes de peculato, falsificação de documento qualificada e de burla qualificada, previstos e punidos pelos art.º 375º, nº 1, art.º 256º, nº 1 e) e nº 4, ambos por referência ao art.ºs 386º, nº 1 d), 217º, nº 1, 218º, nº 2 a), por referência ao art.º 202º b) do Código Penal, por que vinham pronunciados, tendo em consequência determinado o levantamento da apreensão, após trânsito em julgado do acórdão absolutório, e o levantamento imediato do arresto preventivo, decretados nos autos. 2. Como questão prévia, o Tribunal degradou o valor tarifado à prova pericial, considerando- a como documental, e submetendo-a às regras da livre apreciação da prova, o que fez, em sede de acórdão, após ter decidido, em julgamento, inquirir os peritos na qualidade de testemunhas. Assim decidindo, o Tribunal violou as normas contidas nos art.ºs 151º, 152º, 154º nºs 4 e 5 a), 157º, 163º, nºs 1 e 2, e 127º do Código de Processo Penal; 3. O Tribunal efectuou errada apreciação da prova, por não ter analisado com rigor e correcção os documentos e os relatórios periciais, de molde a apreender todo o seu teor e alcance, não procedendo ao confronto entre toda a prova produzida (documental, pericial e testemunhal) de forma correcta e, em consequência, por ter valorado erradamente os factos e as provas que, ao invés do decidido, revelam a prática dos crimes pelos arguidos. Antes optou por, de forma selectiva, parcelar e condicionada por uma visão própria que construiu do objecto do processo, analisar os elementos probatórios de forma a, assim, lhes retirar valor, consistência e coerência, e em consequência a não apreciar a conduta global e concertada dos arguidos. 4. O despacho do MP que, no inquérito, determinou a realização da perícia fundamentou- se, de direito, no art.º 154º, nºs 4 e 5 al. a) do CPP, e a realização da perícia foi cometida à UPFC com fundamento no disposto no art.º 20º do DL nº 42/2009, de 12.02. Este último diploma estabelece competências das unidades da Polícia Judiciária (como refere logo a sua epígrafe) e é o seu art.º 20º nº1 que determina que:“ A Unidade de Perícia Financeira e Contabilística, designada abreviadamente pela sigla UPFC, tem as seguintes competências: a) Realizar perícias financeiras, contabilísticas e bancárias, ordenadas pelas autoridades judiciárias e de polícia criminal; ...E no seu nº 2 refere que: "A UPFC goza de autonomia técnica e científica." 5. Como defende João Henrique Gomes de Sousa, a propósito do sistema de perícias português, "Consagrou-se, portanto, um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia.” 6. Daí que mal se compreenda as razões invocadas pelo Tribunal para, motu proprio, vir pôr em causa a neutralidade e imparcialidade da perícia, bem como a sua cientificidade. É um desvirtuamento absoluto do trabalho encetado por especialistas da UPFC de análise de natureza financeira e contabilística, de acompanhamento de fluxos financeiros e cruzamento com registos contabilísticos de 18 sociedades em relação de grupo. E é um trabalho isento assente em documentos que não foram inventados pelo MP nem pelos Peritos a seu pedido, antes foram apreendidos em buscas realizadas às sociedades em causa e solicitados às entidades oficiais suas detentoras. 7. O Tribunal, aderindo aliás ao entendimento do Mmº Juiz de Instrução a este propósito contido na decisão instrutória, ataca o despacho do Ministério Público por não ter determinado a notificação aos arguidos. Ataca depois o mesmo despacho por ter determinado a não notificação aos arguidos sem fundamentação. Primo, de acordo com o art.º 154º, nº4 e 5 a) do CPP, a notificação aos arguidos não era obrigatória. Secundo, o despacho proferido pelo MP é, em termos de fundamentação, auto-suficiente nos seguintes moldes: o inquérito está em curso, o inquérito está em segredo de justiça, como decorre do texto do despacho que determina a perícia e define o seu objecto e que conforma parte da actuação imputada aos suspeitos, e consequência: pelos anteriores fundamentos, o conhecimento da perícia ou dos seus resultados prejudicaria as finalidades da investigação. 8. Para contrariar a perícia, considerando o seu valor de prova reforçada, teria de ter sido (ou de ser) realizada uma nova perícia cujas conclusões, em termos probatórios, apontassem em sentido contrário ao da primeira. Tal perícia não existe, não foi determinada pelo Tribunal, não foi requerida pelos arguidos. 9. Por isso, a decisão simultânea de não valorar como tal perícia produzida pela UPFC, nos termos do art.º 154º nºs 4 e 5 al. a) do CPP e do art.º 20º do DL nº 42/2009, de 12.02, sem se ter realizado uma perícia alternativa, viola flagrantemente a lei processual penal e prejudica a prova, impedindo a descoberta da verdade material. 10. A propósito do princípio do contraditório, que o Tribunal entendeu não ter sido respeitado no despacho que ordenou a perícia, olvidou o mesmo Tribunal que, de acordo com o art.º 157º do CPP, a perícia não poderia ser contraditada no decurso do inquérito, apenas poderiam ser pedidos esclarecimentos. 11. A interpretação jurídica não pode servir para violar os preceitos legais respeitantes à prova processual penal e para não os aplicar, aproveitando para se questionar o trabalho e o papel das perícias oficiais (que a lei presume e defere, in casu, à UPFC), ou de notificação aos arguidos (que a lei não exige na fase de inquérito) ou a consequente falta de contraditório (que a lei, também, não impõe durante o inquérito). 12. O objecto dos autos reflecte um tipo de criminalidade económico-financeira, que merece a consideração de constituir uma matéria factual complexa para cuja análise e estudo é especialmente relevante uma visão aprofundada, e não meramente perfunctória, dos factos e das circunstâncias que os rodearam, a qual só pôde e só pode ser cabalmente executada com recurso a um exame dos factos auxiliado por técnicos nas respetivas matérias, peritos contabilísticos e financeiros. O Tribunal ignorou essa realidade quando se arrogou detentor de conhecimentos técnico-científicos suficientes para questionar, afastar e desmerecer os trabalhos e conclusões periciais, quando os transportou para o campo da livre apreciação da prova, quando inquiriu os peritos como testemunhas, valorando erradamente, designadamente quando deu como não provados factos que, ao invés, estavam sustentados em tal prova pericial e nos documentos que a suportaram. 13. Tal sucedeu, entre outros que foram sendo mencionados ao longo desta peça, quanto aos factos não provados J), N), P), T), W), II), JJ), LL), 00), RR), SS), UU), VV), WW), XX), YY), BBB), FFF), GGG), III), 000), factos que resultam da prova documental que suporta a perícia realizada, e que não foi contraditada nos moldes legalmente permitidos. 14. O Tribunal permitiu-se, pois, apreciar livremente os circuitos descritos na acusação, mantida pela pronúncia, e suportados na perícia, com base numa concepção própria de funcionamento de L que, ao contrário do que parece resultar do acórdão de que se recorre, não é apodada em nenhum passo daquela peça processual como ilegal, antes resulta da mesma que esse modelo de funcionamento, implementado no N, permitiu a circulação das verbas legalmente afectadas com desvio do seu fim legalmente definido, o que ficou demonstrado pelo balanço calculado entre aquilo que foi recebido pelos colégios beneficiários, e a eles destinados, e transferido para a GPS e a M e o que regressou - ou seja um montante inferior em 11,5%. E é o desvio que é relevante! 15. O Tribunal partiu de um pré-juízo na forma como encarou, produziu e conduziu a produção de prova no decurso do julgamento, qual fosse o de a limitar ao simples apuramento de uma suposta prestação efectiva do ensino e procurando conduzir a apreciação dos factos e da prova à lógica (que entendeu como) "normal" de funcionamento de sociedades privadas. 16. Olvidou o Tribunal o princípio da investigação reportado, em especial, à matéria de prova, que o vincula, conferindo-lhe o poder-dever de investigar os factos sujeitos a julgamento, indo para além dos contributos dados pelas partes (em especial, através da prova que estas carrearem para o processo), de modo a encontrar a verdade material dos factos e obter uma decisão mais justa no âmbito do processo penal, princípio que se manifesta, entre outros nos poderes plasmados nos artigos 323º, 327º e 340º do Código de Processo Penal. 17. Pré-juízo que perpassou todo o julgamento, a condução e a produção de prova, incluindo quando o Tribunal indeferiu a produção de prova requerida em audiência de julgamento, e perpassa, igualmente, todo o texto do acórdão. Pré-juízo esse que radica em errado entendimento da natureza jurídica dos contratos de associação e, em consequência, do thema probando. 18. Nas palavras das Professoras Maria João Estorninho e Alexandra Leitão, "Os contratos de associação visam a prossecução de um fim público e, mais ainda, de um fim de imediata utilidade pública, como decorre dos preceitos legais aplicáveis e subsumem-se, claramente, na parte final do nº 6 do art.º 1º do CCP, uma vez que, através dos mesmos, a prestação do cocontratante - no caso os estabelecimentos particulares e cooperativos - substitui, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. Efectivamente, com aqueles contratos visa garantir-se que os alunos que não tenham vaga nas escolas públicas possam frequentar estabelecimentos particulares e cooperativos de ensino em regime de gratuitidade, estando, por isso, o Estado obrigado a pagar a estes estabelecimentos um subsídio por aluno igual ao custo de manutenção e funcionamento também por aluno das escolas públicas de nível e grau equivalente (cf. art.º 14º, nº 2, e 15ºdo D.L. nº 553/80, de 21.11). O cocontratante está, por isso, a substituir- se à Administração na realização de uma função pública: a realização do direito à educação." 19. Os contratos de associação não são contratos de natureza privada, não são contratos cuja negociação esteja na disponibilidade das partes, não são contratos de prestação de serviços. Nos contratos de associação, o Estado não se comporta como particular e as regras a que está adstrito o particular que aceita ser contraparte são legalmente definidas e afectadas. O Estado não está a contratar um serviço de alimentação ou de aquisição de consumíveis, como resmas de papel, para suprir uma necessidade do seu funcionamento, está, isso sim, a fazer-se substituir numa função que é sua - a de assegurar escola pública, gratuita e universal - por um particular que aceita cumprir tal função. 20. Através da celebração de contratos de associação, o Estado faz-se substituir por uma entidade privada, na sua incumbência de garantir o direito à escola pública, que resulta das normas constitucionais a que correspondem os art.ºs 43º, nº 1, 73º, nº 1, 74º, nº 1 e nº 2 a) e 75º, nº1 da Lei Fundamental. Os contratos de associação revestem a natureza de contratos administrativos, cujo fundamento radica na criação de oferta pública escolar e em que os apoios financeiros entregues constituem uma compensação pelos custos incorridos. 21. O Tribunal, apesar de ter dado como provados os factos 1 a 32 da acusação, que descrevem o quadro legal dos contratos de associação (Lei nº 9/79, de 19.3, D.L. nº 553/80, de 21.11, Portaria nº 613/85, de 19.08, D.L. nº 108/88, de 31.3, despacho nº 256- A/ME/96, de 11.12.1996, do Ministro da Educação, despacho nº 19411/2003, despacho nº 11082/2008 do Secretário de Estado da Educação, D.L. nº 138-C/2010, de 28.12, Portaria nº1324-A/2010, de 29.12, Portaria nº 277/2011, de 13.10), acabou por reconduzir estes contratos a meros contratos de prestação de serviços, em que o pagamento por parte do Estado constituiria um preço que o contraente poderia gerir como lhe aprouvesse. 22. Conforme se decidiu no Acórdão do STA de 11.5.2004, (disponível em www.dgsi.pt Relator Conselheiro Rosendo José), "É certo que estamos aqui no domínio do contrato de associação ou de colaboração em que uma das partes uma escola particular se obriga a proporcionar à outra, o Estado, uma colaboração temporária no desempenho de atribuições administrativas (Cfr Sérvulo Correia, in Legalidade e Autonomia contratual nos Contratos administrativos, p. 420 e 421)..Nestes contratos a Administração surge numa acentuada posição de supremacia (...) A posição das partes no contrato de apoio financeiro em análise é praticamente a inversa da que é habitual num contrato de aquisição de bens e serviços pela Administração, porque nestes a alteração da prestação parte em princípio da iniciativa da parte pública e respeita em primeiro lugar ao fornecimento e só depois ao montante a pagar. No contrato de apoio financeiro que as partes celebraram opera-se um financiamento público da despesa do colégio e a alteração da prestação iniciou-se pela acção da parte privada que executou as despesas de forma diferente e por quantias diferentes das previstas de modo que a parte não executada ficou sem cobertura contratual e sem outra justificação para a transferência da correspondente quantia, pelo que a alteração da prestação da parte pública surge como resposta à diferente prestação do colégio.” 23. Não olvidamos que o campo administrativo não é o campo criminal, mas já entramos neste campo quando a actuação dos arguidos é projectada para a apropriação das verbas transferidas pelo Estado e colocadas ao seu dispor para determinado fim público e, em consequência, para preenchimento de crime de funcionário, não pode o julgador dispensar a natureza da relação jurídica que enquadra a actuação do contratante privado, susceptível de o investir em tal qualidade. 24. Os arguidos, enquanto responsáveis pela utilização dos montantes transferidos no âmbito dos contratos de associação, considerando que se estão a substituir ao Estado numa função essencial, assumem a qualidade de funcionário na acepção conferida pelo art.º 386º nº 1 d) do Código Penal. A parte que interessa é a seguinte: Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa. 25. Não nos suscitam dúvidas de que, por via do contrato de associação, o contratante privado é chamado a desempenhar uma função pública - a escola pública que compete ao Estado nas exactas condições em que este a presta - em regime de gratuidade e integrado na rede escolar pública. 26. O acórdão de uniformização de jurisprudência, no qual o Tribunal alicerçou a decisão de inaplicabilidade aos arguidos da qualidade de funcionário - Acórdão do STJ de 13.2.2020 - não se aplica ao caso em apreço. Tanto quanto lemos, o mencionado acórdão reporta- se às situações do último segmento do art.º 386º, nº 1 d), ou seja: ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar e, mesmo assim, apenas quanto a IPSS, entidades cujo estatuto de utilidade pública decorre do diploma legal que as criou e pelo facto de ser uma qualidade automática. 27. O Tribunal fez uma leitura extensiva do acórdão uniformizador de jurisprudência que constitui uma inadmissível interpretação ab-rogante ou revogatória da norma referida. Na verdade, tal entendimento esvazia de conteúdo a norma legal que consagra o conceito alargado de funcionário. E confunde dois conceitos: Uma coisa é uma função pública. Outra coisa é a função pública administrativa - a função do Estado. 28. Como se lê no voto de vencido do Conselheiro Júlio Pereira a este acórdão uniformizador “o que releva é a relação subjectiva entre o organismo e o agente. Tal significa que a abrangência do conceito de funcionário de quem desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar, não pode prescindir do desempenho ou participação no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional." 29. Ora, no caso que nos ocupa, está em causa precisamente uma situação de desempenho da função pública administrativa. A par da actividade de ensino particular desenvolvida pelo Grupo gerido pelos arguidos, vincularam-se os mesmos, por via dos contratos de associação celebrados com o Estado, a prosseguir uma função pública, assegurando escola pública, em regime de gratuitidade aos alunos abrangidos pelas turmas contratadas, a troco de uma verba legalmente afecta a suportar os custos com a lecionação, nos moldes estritamente calculados tal como previsto nos contratos e na lei. 30. O que se verifica é que os arguidos, no período considerado na acusação, entenderam desviar, e desviaram, dos colégios, contrapartes nos contratos de associação e recebedores dos montantes transferidos pelo Estado para os respectivos efeitos, verbas que canalizaram para fins distintos. Na orgânica do grupo empresarial que criaram, os arguidos montaram um modelo de empréstimos cruzados entre as sociedades mãe e as sociedades filha, nestas se incluindo os colégios beneficiários de contratos de associação, e vice-versa, de molde a justificar os fluxos financeiros em ambos os sentidos, com cobrança de juros recíprocos, ao contrário do que concluiu o Tribunal, aceitando que tudo foi feito numa lícita lógica estritamente privada de gestão. 31. Desconsiderou, deliberadamente, o Tribunal que também as sociedades mães faziam investimentos idênticos junto das filhas, facturando e cobrando juros. Em montante necessariamente mais baixo, porque, na verdade, receberam, pelo menos, 11,5 % mais do que deram/devolveram e porque isso lhes permitia, pelo aumento da estrutura de custos, fazer baixar o montante de imposto devido em sede de IRC. 32. Na lógica que o Tribunal seguiu de uma simples prestação de serviços, concluiu que os colégios prestaram o serviço e que, assim sendo, nenhuma lesão ou prejuízo estaria verificado para o Estado. Por outro lado, recebido o dinheiro pelos colégios, a gestão que os arguidos entendessem fazer apenas a eles dizia respeito. Nenhuma apropriação poderia haver, porque o "dinheiro era privado” e nenhuma apropriação houve. Mas ajuizou mal. 33. Os alunos tiveram aulas, receberam as avaliações, transitaram ou não transitaram de ano lectivo. Para tanto, os colégios receberam do Estado verba para suportar os custos com os professores, os cozinheiros, os funcionários, director pedagógico, psicólogo e um montante variável para pessoal não docente e despesas de funcionamento. 34. Conforme referiram as testemunhas ouvidas no julgamento, GM, MA, SP, LM, JR, professores que leccionaram nos colégios visados, não havia nos colégios condições para a educação física, para a música, nem autorização para ligar o aquecimento, apesar de o mesmo existir, aulas de físico-química sem acesso ao laboratório, apesar de ele existir e ter sido equipado pela MDL, empresa do N, conforme facturas emitidas e pagas e documentalmente demonstradas e consideradas na perícia. Havia falta de auxiliares, competindo as respectivas tarefas aos professores. 35. O Tribunal, porém, desvalorizou as descrições efectuadas pelas testemunhas acima referidas relativamente às condições de funcionamento dos colégios, considerando e apreciando positivamente todo o funcionamento dos colégios. Tal como desconsiderou relatórios inspectivos acerca de tais condições. 36. O que sucede é que tem que ser analisada a forma como foi utilizado o dinheiro concedido pelo Estado ao abrigo e para os fins previstos nos contratos de associação, não apenas ou não tanto por serem individualizadas carências ou falhas no funcionamento das escolas (o que, em todo o caso, não deixa de relevar para o enquadramento das condutas criminais sob apreciação e do dolo e da culpa dos seus agentes), mas para rastrear a aplicação desses fundos e enquanto indícios de uma actuação concertada e global. 37. E sublinha-se que as verbas provenientes do Estado ao abrigo de tais contratos foram rastreadas pela UPFC desde a operação de crédito nas contas bancárias individuais de cada colégio até às holdings, tais como foram, quanto a cada colégio e quanto a cada sociedade holding, identificados o peso das verbas entradas em termos de proveniência - contrato de associação ou outra proveniência, concluindo-se que no período considerado, a actividade do N estranha à abrangida pelos contratos de associação representa uma fatia residual. 38. O que fizeram, então, os arguidos às verbas provenientes dos contratos de associação, transferidas pelo Estado para as contas bancárias tituladas pelos colégios beneficiários? Transferiram-no para a L e, a partir de 2010, para a M, ao abrigo de empréstimos, justificados com necessidades de tesouraria destas, que, por sua vez, as fizeram circular por outras escolas do Grupo não abrangidas por contratos de associação, iam devolvendo parte delas aos colégios beneficiários quando necessário, designadamente para pagar facturas de todo o tipo de serviços prestados por outras sociedades do Grupo dedicadas, transportes, alimentação, limpeza, jardinagem, material didáctico, etc. (em muitos casos, facturas duplicadas, facturas sem descritivo, facturas emitidas por sociedades que sub-contratavam os serviços prestados por preços inferiores aos que cobravam, mensalmente, aos colégios beneficiários "nos termos contratuais"). 39. O que fizeram mais os arguidos com as verbas? Pagaram-se ordenados, dividendos por serem accionistas, pagaram suas despesas pessoais - refeições, vinho, viagens e estadias, pelos destinos e pelas datas essencialmente férias, bilhetes para eventos, decoração de interiores, colchão, roupa de cama, espelhos, papel de parede espreguiçadeiras, um seguro PPR, em que era segurado o arguido A, veículos automóveis de gama alta, que acabaram nas mãos dos arguidos ou de seus familiares, sem que nunca tenham sido pagos ou integralmente pagos. 40. A partir das contas bancárias dos colégios, mais ordenaram os arguidos pagamentos de facturas emitidas em nome de sociedades unipessoais por si detidas ou dominadas, emitidas apenas para justificação contabilística de saídas de valores, cujo descritivo é “consultoria”, 41. A partir da conta bancária do Colégio de ..., ordenaram os arguidos a saída de empréstimo à sociedade J, de que foi sócio o arguido B, nunca tendo sido reembolsado o valor 148.115,25€. 42. Ora, o Tribunal considerou provadas as aquisições e os destinos dos veículos e de todos os bens acima descritos, mas considerou que se encontram na “normal gestão privada", que, por isso ou apesar disso, nunca poderiam constituir uma apropriação “com ressonância criminai’, ignorando que as verbas com que o fizeram tinham um fim legalmente definido e que não se encontravam na disponibilidade da “normal gestão privada”, nem sequer questionando, mesmo na sua lógica de que o dinheiro era privado (que não é) se a utilização de dinheiros na esfera das sociedades para benefício pessoal próprio ou de terceiros não constituiria, em todo o caso, uma apropriação. 43. Para além das verbas consumidas directamente pelos arguidos, o modelo de circulação de verbas entre os colégios beneficiários de contrato de associação e a L e a M, acima referido, permitiu, além disso, a cativação nestas e sua utilização em outras sociedades do grupo - outras escolas não beneficiárias de contratos de associação e/ou sociedades com outros objectos sociais - de 11,5% do montante que foi proveniente dos contratos de associação celebrados com os colégios beneficiários. No período considerado entre estes e aquelas é desfavorável aos primeiros em 34.552.048,70€. 44. Aquilo que o Tribunal entendeu ser, estrita e erradamente, lucro, na lógica que seguiu na apreciação dos factos, corresponde, em nosso entender, ao desvio, à apropriação. Trata- se de dinheiro proveniente do Estado, ao abrigo de contrato de associação, entrado, individualmente, em cada colégio contratante, destinado ao ensino público que era seu objecto, e que acabou na esfera das sociedades de topo, por determinação dos arguidos e utilizado para os mais distintos fins por si designados. 45. Conforme foi dado como provado (artigos 425 e ss. do acórdão de que se recorre), em 27 de Dezembro de 2010 foi celebrado, entre a M e a Caixa BI (Grupo CGD), um contrato de financiamento denominado "Project Finance”. 46. O contrato está junto aos autos, foi merecedor de análise pericial, consta dos documentos que suportaram a perícia e permitiu compreender o impacto do Project Finance celebrado pelo N com a Caixa Geral de Depósitos: os montantes financiados pelo banco acabaram por circular pelas empresas do Grupo para acorrer a dívidas do Grupo e os montantes a receber em sede de contrato de associação e outros subsídios de fundos europeus serviram de penhor dado ao banco para garantir tais dívidas, para além de hipotecas sobre os imóveis em que estão instalados. 47. E assim foi porque o grande activo do Grupo gerido pelos arguidos são as verbas públicas que auferem por via de contratos de associação e, também, de projectos financiados por fundos europeus. Verbas afectadas e destinadas a compensar funções essenciais do Estado que foram, ademais, oneradas para suportar um financiamento que não era necessário nem beneficiou os colégios contratantes com o Estado, através dos contratos de associação. Anota-se, ainda, que todos os custos e encargos com a negociação e a execução desse project finance foram cobrados a cada um desses colégios, conforme o demonstram os relatórios periciais. 48. E que, ao contrário do que defenderam os arguidos, e que o Tribunal acolheu, dizendo que parte dos colégios tinham capitais próprios negativos e acumulavam dividas, incluindo aos bancos, que ascendiam a 23.094.320,05€, omitiram os arguidos, como convinha e como o Tribunal aceitou, que a empresa mãe acumulava ela própria, em relação aos colégios, dívida resultante dos montantes que deles recebeu de empréstimo, nos moldes supra descritos, em montante global de 23.205.313,80€. 49. Assim, seja pela leitura dos contratos de mútuo celebrados, em ambos os sentidos, entre os colégios beneficiários de contrato de associação e a M e L, seja pela leitura dos contratos que integram o project finance, seja pela análise pericial quer da documentação contabilística quer da bancária, o que se extrai é que quer as dificuldades de tesouraria quer os resultados negativos decorreram da gestão de interesses do Grupo, e dos seus próprios administradores, distintos dos colégios beneficiários de contratos de associação. 50. No que se refere às aquisições das participações sociais, como em todas as outras operações aliás, pretenderam os arguidos confundir, em sede de julgamento, registos contabilísticos com operações bancárias. É de grande importância relembrar que a contabilidade foi efectuada pelos serviços do Grupo, comandados pelos arguidos. O que releva, efectivamente, é a circulação de dinheiros, através das contas bancárias. 51. Em todo o caso, e a acrescer, o que foi dito na acusação, e acolhido na pronúncia, quanto à aquisição das participações sociais é que contabilisticamente foram registados o valor nominal e o valor registado por ocasião das aquisições, identificando-se a respectiva diferença. O certo é que, para além de contabilisticamente a conta (conta 275) ter sido saldada, a conta bancária reflecte saídas para as contas bancárias das sociedades detidas pelos arguidos individualmente e vendedoras das participações sociais nos anos de 2011 e 2012, no total de 1.919.258,37€, bem como saídas descritas a título de aquisição de colégios e empresas pelo Grupo no montante de 3.020.218,93€. 52. E esta constituiu (mais) uma das formas encontradas pelos arguidos de fazer chegar aos seus patrimónios pessoais dinheiro proveniente das receitas dos colégios beneficiários de contratos de associação. 53. Quanto ao papel dos arguidos - de todos os arguidos A, D, E, B e C - na dinâmica e na vida do Grupo, incluindo nos colégios - e o seu comprometimento com a prática dos factos imputados na acusação e na pronúncia, o Tribunal, mais uma vez, descartou a prova dos autos, embarcando pelo caminho mais fácil que lhe mostrou a defesa. Pelo caminho, contrariou-se entre os factos provados (artigos 33, 34 e ss., 57, 453), os não provados (ZZ), AAA)) e a fundamentação, quando afastou E do período temporal da acusação cujo início coloca em 2004/2005. 54. Ora, o Tribunal ignorou a documentação societária, mas especialmente os acordos parassociais que foram apreendidos na posse dos arguidos. Citamos, apenas, o mais relevante - acordo parassocial do L de 19.2.2004 - original, assinado e datado, apreendido em casa do arguido D - que consagra que as quotas detidas a título pessoal por D nas sociedades O, P e Q se consideram pertencentes à L para todos os efeitos. Mais se diz que o CA da L se obriga a nomear gerentes daquelas sociedades, entre outras e entre outros, E para as sociedades O e P, mais constando no último artigo desse documento - o mais importante para o efeito - que, “nesta data são nomeados administradores [da L]... e Dr. E". 55. Ignorou o Tribunal a relevância do acordo parassocial, figura prevista no art.17º do Código das Sociedades Comerciais, e destinada a vincular os sócios em termos de política interna, especialmente em sociedades anónimas. 56. Não pode, pois, compreender-se que o Tribunal se tenha atido à mera leitura das certidões permanentes da L e da M para concluir que E não geria os interesses do Grupo, quando a prova documental reunida nos autos está pejada das suas “impressões digitais’’ praticamente desde o início e, seguramente, desde o início do período factual com relevância nos autos. 57. Todos estes arguidos partilharam a intenção e tiveram a intervenção que a cada um e a todos coube na decisão e execução desse propósito. Perpassa, pois, dos documentos que instruem os autos que a administração dos destinos do GPS era efectivamente exercida em conjunto pelos cinco administradores arguidos nestes autos. Vejam-se, ademais, as suas participações sociais nas sociedades que compõem o grupo e as que são seus satélites, a sua intervenção directa e efectiva em cada uma das escolas a que estavam ligados, a administração participada nos destinos do GPS. Vejam-se os documentos societários, bancários, administrativos, apreendidos na sede do GPS, nas escolas, na residência dos arguidos, indicados no elenco da prova e nomeados no texto da acusação. 58. No que respeita às horas de cargo fictícias, o Tribunal laborou em quatro erros. O primeiro, erro de entendimento sobre o que são as “horas de cargo” - a saber: no modelo que esteve vigente até finais de 2010, para além dos vencimentos dos professores, incluindo horas lectivas e contribuições sociais, suportava, ainda, o Estado as denominadas “horas de cargo”, correspondentes a uma bonificação de, no máximo, oito horas/semana/turma, equiparadas a horas lectivas, que abrangessem horas referentes a desporto escolar, aulas de apoio e aulas de recuperação, e para o desempenho das funções pedagógicas de subdirector, assessores de direcção (cujas funções deviam ser especificadas), directores de ciclo, directores de turma, delegados de disciplina, responsáveis pelas bibliotecas, laboratórios e instalações, ou outras semelhantes, devidamente confirmadas e justificadas em conformidade com o projecto específico da escola. O Tribunal considerou a documentação junta pelos arguidos e o depoimento das testemunhas, para concluir que todo o trabalho lectivo e não lectivo dos professores era reconduzível às horas de cargo - assim considerou: reuniões de conselhos de turma, actividades de enriquecimento curricular (AEC, que apenas abrangem o 1º ciclo, excluído dos contratos de associação), visitas de estudo, feiras e exposições. A análise efectuada pelo Tribunal, neste conspecto, deixou de fora o cruzamento da documentação apresentada pelos arguidos, com aquela que foi apreendida e junta aos autos, designadamente o teor das comunicações efectuadas pelos colégios às DRE e o que foi por estas entidades considerado, calculado e pago. 59. Segundo erro: O número das horas de cargo e a sua especificação eram indicados pelos colégios à Direcção Regional da Educação respectiva, através de mapas próprios, referentes a encargos com o pessoal docente, abrangidos por Contrato de Associação. O Tribunal considerou que os arguidos nenhum papel tiveram na comunicação dessas horas, antes era tarefa que competia aos serviços de cada colégio. Ora, os arguidos, além de administradores, desempenharam, ao longo dos anos descritos na acusação, funções de directores nos colégios beneficiários de contratos de associação, estando, por isso, também presentes na vida desses colégios. A título de exemplo, B em Quiaios, C em Tremês, Caldas da Rainha, D e E, nos colégios que inicialmente lhes pertenciam, sendo que todos se deslocavam a todos os colégios. A documentação apreendida nos colégios em causa, nomeadamente a de ordem administrativa, revela tais presenças de forma clara. É que os serviços comunicavam como lhes era dito pelos arguidos quer nos próprios colégios quer através do departamento centralizado da GPS que organizava e controlava todos os colégios, conforme resulta da documentação apreendida na sede do Grupo. “Confirmado c/catarino”, aliás como anotado pelo Tribunal e que consta do documento de fls. 22 do apenso 4 J, volume XXXV, é isto que significa. 60. Terceiro erro: o Tribunal apreciou o mencionado documento de fls.22 do apenso 4J, volume XXXV, que esquematiza o modelo que os arguidos instituíram para a comunicação fraudulenta das horas de cargo, de forma parcial, selectiva e desgarrada dos horários dos professores considerados, com os períodos lectivos por eles assegurados noutros estabelecimentos e níveis de ensino que não os abrangidos por contrato de associação, optando por se eximir, ele próprio, ao “labor minucioso, detalhado e rigoroso" de análise da prova, como era seu mister. O Tribunal permitiu-se ver “um labor minucioso, detalhado e rigoroso no sentido de apurar as horas, os “cargos” e os professores" naquilo que, ao invés, revela o modo como eram, pelos responsáveis dos colégios, com o aval dos arguidos administradores, calculadas - sobre horários dos professores em outros estabelecimentos e níveis de ensino do grupo - as horas comunicadas ao Estado para serem processadas e pagas como horas de cargo. E concluiu que “se fosse um "esquema" astucioso não era necessário detalhar, individualizar, nem confirmar, efabulava-se simplesmente”. Erradamente, portanto, o Tribunal não viu a astúcia da actuação dos arguidos, designadamente que, os arguidos fizeram indicar ao Estado um descritivo de horas que não correspondia à realidade, antes se destinava a dar uma aparência de correcção, de modo a enquadrar a definição de horas de cargo, assim levando a que o Estado suportasse os custos de horas prestadas pelos docentes identificados em outros ciclos e outros cursos que, bem sabiam, não eram abrangidos por contrato de associação, em montantes que ascenderam, nos períodos e nos colégios indicados na acusação, a cerca de 800 mil euros. 61. Aliás, partindo do documento de fls.22 do apenso 4J, volume XXXV, podemos verificar, quanto, por exemplo à professora R, pelo confronto do mesmo com fls.56 desse apenso e fls.95 e 100 do apenso 5G, volume XIII, o seguinte: As horas de cargo, no total de 26, pagas pelo Estado, conforme indicadas pelo Colégio S, são as 26h que esta professora tinha no seu horário afectas à Escola T. Acresce que a mesma professora mantinha um horário no Colégio S de 4 horas lectivas. Somemos, então, 26 horas na Escola T, sita em Tremês, Santarém, 26 horas de cargo no CRDL, sito nas Caldas da Rainha, e 4 horas lectivas neste Colégio - teríamos um total de 56 horas semanais (mais de 11 horas por dia, fora o trabalho não lectivo - correcção de testes, preparação de aulas, etc. - e as pausas para as refeições). 62. Ou o caso do professor U que, no ano lectivo de 2007/2008, tinha um horário no Colégio V com 17 horas lectivas (três turmas do 7º ano e uma turma do 9º ano - fls.282 do apenso 4N, vol. X) e um horário na Escola T de 11 horas lectivas (2º e 3º TAL) e 2 horas como orientador educativo no 2º TAL (fls.283 do mesmo apenso e volume). No âmbito do contrato de associação celebrado com o CIS, foram indicadas 13 horas de cargo com o descritivo “Grupo Av, do Trab. Esc e Resp. Instai. Lab.". Se sobrepusermos os dois horários, verificamos que o professor tem aulas todos os dias, lecciona aulas no CIS e no ETPR no mesmo dia, algumas intercaladas. 63. Em ambos os casos, como noutros descritos nesta peça recursal e na acusação, as horas de cargo coincidem exactamente com as horas prestadas na ETPR ou em outro estabelecimento ou ciclo. 64. Quarto erro: que não era possível identificar nos mapas de pagamento das horas de cargo qual o valor hora do professor e qual o número de horas a ele imputadas. O valor da hora de cargo - calculado de acordo com o escalão remuneratório do professor em causa (permitindo perceber que professores com escalões mais altos apresentam, em regra, números mais elevados de horas de cargo, correspondendo a pagamentos de maior monta) - e o número de horas de cargo estão devidamente descriminados nos documentos, mapas recebidos e calculados pelas DRE constantes do apenso 5G, nos volumes e folhas indicados a propósito de cada professor na acusação - quanto ao número e valor da hora daquele professor na 6.ª coluna e quanto à descrição dos cargos na 8.ª. 65. Com a sua actuação, assim demonstrada, os arguidos levaram o Estado a contabilizar tais horas e a proceder ao respectivo pagamento, convencido de que se tratava de encargos devidos, auferindo deste modo, e à custa do Estado, que assim empobreceu, vantagens patrimoniais que, bem sabiam, não lhes eram devidas. Os erros de apreciação da prova por parte do Tribunal conduziram à errada decisão de absolvição dos arguidos da prática do crime de burla qualificada. 66. Quanto a este crime, e quanto aos demais nos moldes acima mais bem descritos, o Tribunal logrou comprovar a tese dos arguidos que, pelo estatuto que lhes assiste defendem o que lhes apraz, nela assentando, ao mesmo tempo que descredibilizou, desconsiderou e ignorou a prova pericial e documental e conduziu, limitada e isoladamente, a produção da prova que se fez em julgamento, trilhando, deste modo, o caminho para a conclusão da falta de verificação e de prova dos crimes. 67. À semelhança do que sucedeu no acórdão que esteve sub judicio no recurso que culminou no acórdão do STJ de 7.04.2011 (no qual foi relator o Conselheiro Santos Cabral), “Na verdade, e como se referiu, não são factos atirados a esmo que podem constituir uma base sólida para infirmar a força da prova indiciária, mas somente aqueles contra-indícios cuja força se imponha em função de regras de experiência. Significa o exposto que a decisão recorrida atribuiu aos contra-indícios uma força que estes, efectivamente, não têm. E atribui essa força ao arrepio de regras de experiência normal de vida.” 68. Porque a força dos indícios que, conjugados, suportam a prova indirecta dos factos foi afastada pelo Tribunal quando entendeu, na análise da prova pericial, documental e testemunhal, individualmente e de modo isolado, documento a documento, não ver "ressonância criminal” ou não "extrair valor probatório" de uma profusa vastidão de documentos cuja leitura só poderia, em termos lógicos, ser cruzada e conjugada. E alicerçada em conhecimentos técnico-científicos que o Tribunal, ab initio optou por desconsiderar e desmerecer. 69. Porque todos os factos dados como não provados pelo Tribunal, devem, ao invés, ser dados como provados, por sustentados em toda a prova produzida nos autos. 70. Em consequência da absolvição por não estarem verificados/provados os crimes por que os arguidos vinham acusados, o Tribunal não determinou a perda clássica nem a perda ampliada, antes determinando o levantamento da apreensão e do arresto preventivo que recaíam sobre os bens e objectos. Consequência da decisão de absolvição, é certo, mas com efeitos díspares e em moldes que, em nosso entender, violam as normas aplicáveis. 71. Em primeiro lugar, verifica-se que o Tribunal, na determinação dos factos provados e não provados, concretamente nestes últimos, e no que respeita à perda ampliada, considerou a partir da alínea KKKKKKK) como não provados os factos da liquidação no que respeita ao património incongruente. 72. Ora, o regime do artigo 7º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, tem como exclusiva finalidade definir o valor do património incongruente. Todo o travejamento da perda ampliada assenta precisamente nesse labor de identificação do valor da incongruência, que opera por referência à totalidade do património, por um lado, e ao rendimento lícito, por outro. 73. Ao Tribunal não competia, salvo melhor entendimento, entrar em apreciação dos demais pressupostos da perda, i.e. dos factos que constituem a incongruência patrimonial, sem haver condenação, donde, não podia, como fez, dar como não provada a variação patrimonial a que corresponde a incongruência. Porque esta respeita ao cálculo que corresponde à diferença entre o património declarado pelos visados e aquele que foi identificado como sendo sua propriedade. Na medida em que o Tribunal não condenou pela prática de crime de catálogo, deixando cair o primeiro dos pressupostos da perda ampliada, não poderia dar como provado ou não provado que o património global era incongruente. 74. No que concerne aos efeitos da não determinação da perda clássica e da perda ampliada, em termos de levantamento da apreensão e do arresto, constata-se que o Tribunal tratou desigualmente duas medidas de garantia patrimonial de semelhante natureza, sustentando a primeira a perda clássica, o segundo a perda alargada. 75. Não suscitou dúvidas ao Tribunal que o levantamento da apreensão apenas se efectivaria com o trânsito em julgado da decisão absolutória, mas não se extrai da fundamentação da decisão a razão pela qual o levantamento do arresto deveria ser imediato. 76. Na verdade, o art.º 11º, nº3 da Lei nº 5/2002, de 11.01, ao estatuir que “O arresto ou a caução económica extinguem-se com a decisão final absolutória”, não pode permitir uma leitura assistemática que dispense o trânsito em julgado dessa decisão. De outro modo, estaria a introduzir-se uma anomalia no sentido do que é a pacificação das decisões judiciais, sendo certo que, a não ser assim, nenhuma utilidade teria um recurso que obtivesse a reversão da decisão de levantamento imediato proferida. 77. O Tribunal fixou ao recurso interposto por declaração em acta quanto a este segmento decisório - o do levantamento imediato do arresto preventivo - o efeito devolutivo, considerando que o recurso interposto quanto a esta parte é incindível do recurso do acórdão absolutório de que, ora, se recorre. 78. Em nosso entender, o Tribunal incorre numa contradição, também neste ponto. Pois se era incindível, então, teria de ser coerente em matéria de efeitos. Tal não sucedendo, o efeito a impor ao recurso, sempre teria de ser devolutivo da decisão recorrida. Assim, violou tal decisão as normas conjugadas dos art.º 408º, nº 3, aplicável ex vi do art.º 407º, nº 1 do CPP. 79. Entende, pois, o Ministério Público que a decisão do Tribunal que recaiu, em sede de questões prévias, sobre o valor da prova pericial desconsiderando prova de valor tarifado levando-a para o campo da livre apreciação da prova, fez, errada interpretação, assim as violando, das normas contidas nos artigos 151º. 152º, 154º nº4 e 5 a), 157º, 163º. nº1 e 2. 350º. e 127º do Código de Processo Penal. 80. O Tribunal incorreu em erro na apreciação da prova dos autos, violando o acórdão recorrido as normas contidas no art.127º do Código de Processo Penal e nos art.375º, 256º, por referência ao art.º 386º, nº1 d) e nos art.217º, 218º por referência ao art.202º b), todos do Código Penal, por não ter analisado com rigor e correcção os documentos, de molde a apreender todo o seu teor e alcance, não procedendo ao confronto entre toda a prova produzida (documental, pericial e testemunhal) de forma correcta e, em consequência, por ter valorado erradamente os factos e as provas que, ao invés do decidido, revelam a prática dos crimes pelos arguidos. 81. O Tribunal efectuou errada qualificação jurídica sobre a imputação da qualidade de funcionário aos arguidos com repercussão na respectiva integração dos factos que lhes são imputados nos crimes de peculato e de falsificação qualificada, violando deste modo o acórdão recorrido as normas criminais que lhes são aplicáveis (art.ºs 375º e 256º, nº 4 do Código Penal) e as normas de enquadramento dos contratos de associação que as suportam (Lei nº9/79, de 19.3, D.L. nº553/80, de 21.11, Portaria nº 613/85, de 19.08, D.L. nº 108/88, de 31.3, despacho nº 256-A/ME/96, de 11.12.1996, do Ministro da Educação, despacho nº 19411/2003, despacho nº 11082/2008 do Secretário de Estado da Educação, D.L nº 138-C/2010, de 28.12, Portaria nº 1324-A/2010, de 29.12, Portaria nº277/2011, de 13.10). 82. Ao determinar o levantamento imediato do arresto preventivo decretado nos autos, a decisão recorrida fez errada interpretação, assim as violando, das normas contidas no art.º 11º, nº 3 da Lei nº 5/2Q22. de 11.01 e no art.º 628º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.4º do Código de Processo Penal. 83. O Ministério Público consigna que se mostra pendente a subida de recurso interposto nos autos, que recai sobre decisão que indeferiu requerimento probatório efectuado no decurso do julgamento, ao abrigo do disposto no art.º 340º do CPP, nele mantendo interesse (art.º 412º, nº 5 do CPP). 7. Os arguidos responderam ao recurso pedindo a sua improcedência. 8. Neste Tribunal da Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência dos recursos, remetendo para a motivação dos mesmos, ao que os arguidos vieram responder. 9. Foram colhidos os vistos legais e, após, foram os autos à conferência para os recursos aí serem julgados, cumprindo agora decidir. II. Fundamentação Uma vez que o recorrente indicou expressamente, nas conclusões da sua motivação do recurso da decisão final, a manutenção de interesse no recurso intercalar por si interposto, nos termos do artigo 412.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, cumpre começar por apreciar, em primeiro lugar, esse recurso. Está em causa a não admissão de produção de novos elementos de prova – inquirição de quatro testemunhas – requerida pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 340.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos: (transcrição do requerimento) «O Ministério Público ao abrigo do art.º 340º do Código Processo Penal vem requerer a inquirição das seguintes testemunhas: - FF, identificado a fls. 4591, apresentado como 18º do rol apresentado da acusação; - G, identificada a fls. 4590 da acusação. - H, identificada fls. 4593 do rol apresentada apresentado como 8º do rol da acusação; - PR, identificada fls. 1082 dos autos. Uma vez que os seus depoimentos se mostram imprescindíveis à descoberta da verdade material. A pronúncia debruça-se sobre a entrega de verbas do Estado aos colégios que os arguidos administraram em sede de contratos de associação que foram celebrados. Assume extrema relevância a compreensão do modo como os montantes em causa eram calculados, pagos e utilizados pelos arguidos na qualidade de representantes das contrapartes íntegras dos contratos com o Estado. A pronúncia comtempla, também, a utilização das verbas por parte do grupo gerido pelos arguidos incluindo para pagamento em seu benefício. Por último, os factos em apreciação neste julgamento envolvem o pagamento indevido de horas de cargo. Da análise da prova documental, anota-se a importância da inquirição da testemunha ... quanto à apreciação dos factos sobre análise, em nome da verdade material.» O tribunal indeferiu a produção de tal prova, com base no disposto no artigo 340.º n.º 4, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, indicando a seguinte ordem de razões: - quanto à inquirição das testemunhas F, G e H, por entender que já podiam ter sido indicadas anteriormente e não terem tais meios de prova adequação à sua finalidade, porque nenhuma das testemunhas foi mencionada durante a audiência de julgamento, não denotando por isso qualquer relevância para a boa decisão da causa, nem para a descoberta da verdade material; - quanto à testemunha I pela circunstância de apenas constar como tendo sido quem estava presente numa diligência de busca e não se se compreender em que é que o seu depoimento poderia ser indispensável ou necessário para a boa decisão da causa e da descoberta da verdade material; - quanto a todas as testemunhas, por considerar que a sua inquirição traduziria uma obliteração efectiva e injustificável das garantias de defesa dos arguidos, violaria a ordem de produção da prova e não serem meios absolutamente necessários, nem absolutamente imprescindíveis para a boa decisão da causa. Vejamos. Não sendo o nosso processo penal um processo de partes, em que exista o ónus da prova, e sendo o seu fim último a procura da verdade material por forma a alcançar a realização da justiça, o artigo 340.º do Código de Processo Penal, atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa consagrando, assim, no nosso sistema o princípio da investigação ou da oficialidade. Estabelecia esse preceito, na redação vigente à data da prolação do despacho: Artigo 340.º Princípios gerais «1. O Tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. 2. Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta. 3. Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis. 4. Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, excepto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa; b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.» A alínea a) deste n.º 4 foi, entretanto, revogada pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, passando este número a ter apenas as alíneas b), c) e d), como alíneas a), b) e c), respectivamente. O regime assim estabelecido pelo artigo 340.º do Código de Processo Penal é completamente diferente daquele que resultava do artigo 443.º do Código de Processo Penal de 1929, disposição que, embora não referida, parece, a determinado momento, subjazer ao despacho proferido. Estabelecia o corpo deste último preceito do Código de 1929 que «se durante a discussão da causa sobrevier o conhecimento de novos elementos de prova que possam manifestamente influir na decisão, poderá o tribunal ordenar que eles se produzam, adiando-se, se necessário for, a audiência pelo tempo indispensável». Para a produção de novos elementos de prova, era então necessário que a sua existência tivesse resultado da prova já produzida na audiência, exigência que não se encontra presente no artigo 340.º do Código de Processo Penal de 1987. Aquele artigo 443.º apenas permitia a produção de «novos elementos de prova» quando eles pudessem manifestamente influir na decisão enquanto que o critério contido no artigo 340.º do Código de Processo Penal de 1987 é mais amplo, permitindo a produção de novos meios de prova quando tal seja necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa. As novas provas, para o artigo 340.º, terão de ser apenas pertinentes, legais, não supérfluas, relevantes e adequadas, no sentido de não serem de obtenção impossível ou duvidosa. A esse propósito diz-se, em anotação ao artigo 340º, no Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição, p. 1063: «A prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável”. O requerimento que foi feito pelo Ministério Público - de inquirição de novas testemunhas - não constitui um aditamento ao rol de testemunhas, a que é aplicável o artigo 316.º do Código de Processo Penal, mas um requerimento de produção de novos meios de prova, a que é aplicável o artigo 340.º do mesmo diploma. A alínea a) do n.º 4 do artigo 340.º, com base na qual foi tal requerimento indeferido, relativamente a três das testemunhas, está hoje revogada. Ainda assim, há que dizer que o Ministério Público, em devido tempo, arrolou aquelas testemunhas, tendo a sua eliminação do rol da acusação resultado da decisão do juiz de instrução criminal. E se é certo que o Ministério Público poderia ter requerido o aditamento ao rol dessas testemunhas, o facto de não o ter feito não constituiria fundamento para o presente indeferimento com fundamento no indicado preceito. O fundamento para o indeferimento da inquirição dessas testemunhas à luz da alínea c) do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, hoje alínea b), é de todo insustentável na medida em que revela uma nítida incompreensão do sentido da inadequação. Inadequado é um meio de prova que não permite fazer prova sobre um determinado facto, nada permite demonstrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa (Oliveira Mendes in Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição, p. 1063), o que não é manifestamente o caso. A inadequação nada tem a ver com o facto de a existência desse meio de prova ter resultado ou não dos meios de prova já produzidos. No que se refere à inquirição da 4.ª testemunha (I), o tribunal parece ter fundamentado a decisão, embora não o diga, no n.º 1 do artigo 340.º do Código. Porém, não disse porque é que esse fundamento, da irrelevância para a decisão da causa, se verificava. Se o requerente nada disse a tal respeito, o tribunal deveria, então, tê-lo convidado a fundamentar a sua pretensão, não podendo, sem mais, indeferir o requerimento alegando incompreensão quanto à relevância da inquirição da testemunha. De todo o modo, essa relevância foi alegada no requerimento apresentado. Quanto ao último fundamento invocado no despacho recorrido, relativamente a todas as testemunhas, não se vislumbra, desde logo, em que é que a produção de novos meios de prova contende com as garantias de defesa, na medida em que será sempre assegurado o contraditório. Por outro lado, a ordem de produção de prova, constante do artigo 341.º do Código de Processo Penal, para além de ter um carácter geral e de ser meramente indicativa, não constitui limite à produção de novos meios de prova, que podem, inclusivamente, ter lugar mesmo no decurso das alegações orais, como resulta do n.º 4 do artigo 360.º do mesmo Código. Por fim, a absoluta necessidade e imprescindibilidade da produção de novos meios de prova não é critério geral para a sua admissão, nos termos do n.º 1 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, só sendo relevante para a já hoje revogada alínea a) do n.º 4 desse mesmo preceito. Termos em que se conclui que, no momento em que foi apresentado o requerimento pelo Ministério Público, de produção de novos meios de prova, não podia o tribunal considerar que a prova já não podia ser indicada ou era inadequada ou que não era absolutamente necessária nem imprescindível para a boa decisão da causa, razão pela qual não existia fundamento para o indeferir. Não estando em causa um meio de prova inadmissível, inadequado, nem de obtenção impossível, não sendo hoje requisito para a sua admissão, a indispensabilidade da sua produção, tendo o Ministério Público justificado a sua relevância para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa e estando em causa o depoimento de testemunhas que tiveram intervenção na investigação (sublinhado nosso), entendemos que se impunha ao tribunal, em obediência à necessidade da descoberta da verdade, proceder à inquirição das testemunhas que foram indicadas pelo Ministério Público, por forma a estar habilitado com todos os elementos que lhe permitam uma decisão justa. Assim sendo, pese embora a complexidade do presente processo e o atraso que esta decisão pode trazer para que se faça justiça em tempo razoável, não pode deixar de se revogar o despacho recorrido e de se determinar a inquirição das testemunhas indicadas pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 340.º do Código de Processo Penal. A procedência deste recurso determina a invalidade dos actos posteriormente praticados, ao despacho agora revogado, e obsta à apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público quanto ao acórdão, que fica, assim, sem qualquer efeito. III - Decisão Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Tribunal da Relação em: 1. Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho proferido na sessão de julgamento do dia 25.10.2021, revogando-se o mesmo e determinando-se que o tribunal recorrido proceda à produção da prova testemunhal por aquele indicada, o que acarreta a invalidade de todos os actos praticados subsequentes àquele despacho. 2. Não apreciar o recurso interposto pelo Ministério Público do acórdão. Sem custas. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2023 (Texto integralmente processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.) Maria José Costa Machado Carlos Manuel Espírito Santo Paulo Duarte Barreto Ferreira |