Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2131/21.4T8AMD.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
IMPUGNAÇÃO DE DELIBERAÇÕES
LEGITIMIDADE PROCESSUAL DO CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: As acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser intentadas contra o condomínio, que será representado pelo seu administrador ou por quem a assembleia designar para esse efeito.

(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

JR propôs acção declarativa com processo comum contra o condomínio (representado pelos seus administradores, FS e JL), pedindo que sejam anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral extraordinária de condóminos que teve lugar em 28/9/2021.
Citado o condomínio R., veio apresentar contestação onde, para além do mais, invoca a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, por entender, em síntese, que são os próprios condóminos que devem ser pessoalmente demandados quando estão em causa deliberações das assembleias de condóminos, e sem prejuízo de deverem ser representados em juízo pelo administrador ou por quem a assembleia de condóminos designar para o efeito.
O A. exerceu o contraditório, sustentando a legitimidade processual do condomínio R., com a improcedência da excepção dilatória em questão.
Em audiência prévia foi proferido despacho saneador onde foi julgada procedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual do condomínio R., com a sua absolvição da instância.
O A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1- O Autor recorrente intentou em Novembro de 2021 acção de anulação das deliberações da assembleia de condóminos do Prédio onde reside contra o Condomínio do mesmo prédio, representado pelos seus administradores, perfilhado o entendimento de que quem deve figurar como parte passiva nas acções de impugnação das deliberações condominiais é o condomínio e não os condóminos que votaram favoravelmente as deliberações anulandas.
2- Nesta data eram, no essencial, duas as teses em presença relativamente a quem possui legitimidade passiva para estas acções - se o condomínio representado pelo seu Administrador, como resulta da análise conjugada dos artigos 12º, al. e) do CPC, 1437º e 1436º, nº 1 al. h), fazendo apelo aos critérios interpretativos do artigo 9º nº 3, todos do CC ou se os condóminos que votaram a favoravelmente a deliberação cuja anulação se pretende, conforme artigo 1433º nº 6 do CC, cabendo a sua representação judiciária ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar.
3- A favor de qualquer uma das teses em presença se pronunciou, vastamente, a jurisprudência e também a doutrina, havendo argumentos válidos e consistentes a abonar cada um dos entendimentos, como consta das sínteses feitas nos diversos arestos citados.
4- No entanto, à data da apresentação desta acção, já se prefigurava como entendimento maioritário aquele que considerava que - a acção de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos deve ser instaurada contra o condomínio, por só ele ter legitimidade passiva, embora representado pelo administrador, conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-05-2021, p.3107/19.7T8BRG.G1.S1, Relator Conselheiro Fernando Samões, proferido em sede de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 672º nº1 al. a) e b) do CPC, havendo muitos outros no mesmo sentido, quer do STJ quer da Relação de Lisboa, do Porto, Coimbra, Guimarães e Évora.
5- Na verdade, a redacção do nº 6 do artigo 1433º, anterior nº 4 do mesmo artigo na versão anterior ao DL 267/94, de 25-10, data de um período em que o Condomínio não detinha personalidade judiciária, que só lhe foi conferida pela extensão operada pelo artigo 6º al. e) do CPC, na revisão que resultou da alteração legislativa de 1995/1996, correspondendo ao actual artigo 12º al. e), alteração esta que veio permitir que o Condomínio, que representa o conjunto do condóminos, pudesse passar a ser demandado em juízo, sendo citado na pessoa do seu legal representante, o administrador, conforme artigo 231º nº 1 do CPC de 1961, actual artigo 223 nº 1 do CPC e representado em juízo pelo respectivo administrador, de acordo com o artigo 1437º CC, dispositivo que lhe atribui legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.
6- Daí que, face à atribuição de personalidade judiciária ao condomínio, Miguel Mesquita, na obra citada, fale na necessidade de levar a cabo uma interpretação actualista do nº 6 do artigo 1433º do CC, e outros interpretes, em que o legislador incorreu nalguma incorrecção de expressão, dizendo menos do que queria, já que o que se visava era a entidade colectiva, o Condomínio, vinculado pelas deliberações impugnadas, devendo assim o nº 6 do artigo 1433º do CC passar a ser interpretado extensivamente, vendo nele escrito que «a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem as acções são propostas», uma vez que o condomínio é o conjunto organizado dos condóminos.
7- De acordo com o artigo 12º nº 6 do CPC, o condomínio tem personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, compreendendo-se nestes poderes os de executar as deliberações da assembleia, de acordo com o artigo 1436º nº 1 al. h) do CC [actual al. i)], pelo que, por igualdade de razão, cumpre‑lhe igualmente sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.
8- A deliberação tomada em assembleia de condóminos, exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados, assumindo autonomia própria, autónoma da vontade individual de cada um dos condóminos presentes na assembleia, sendo que a decisão judicial que a venha a anular será oponível ao condomínio, como ente colectivo.
9- Por outro lado, sendo os condóminos pessoas singulares ou colectivas, detentores de personalidade jurídica, mal se compreende que tenham que ser representados em juízo pelo administrador.
10- O entendimento que melhor serve o ordenamento jurídico é o que considera que é o condomínio parte legítima na acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos, representado em juízo pelo seu administrador, porque é o que resulta da conjugação das normas que regem a propriedade horizontal e as normas processuais civis, sendo igualmente o que permite um exercício mais ágil e célere do direito de acção, valores primordiais que o processo civil não deve olvidar.
11- Este entendimento não foi posto em causa pela alteração legislativa introduzida aos artigos 1436º e 1437º do CC pela Lei nº 8/2022, 10-01, antes pelo contrário, o mesmo ficou agora consagrado na nova redacção conferida ao artigo 1437º, que visou clarificar e pôr termo à divergência doutrinal e jurisprudencial que se verificava, conforme exposição de motivos do diploma e entendimento de quem foi chamado a pronunciar-se sobre o projecto de diploma, como seja o Conselho Superior do Ministério Público, e como também já é o entendimento da jurisprudência.
12- O artigo 1437º, cuja epígrafe deixou de ser “Legitimidade do administrador” e passou a ser “Representação do condomínio em juízo”, e que entrou em vigor no dia seguinte ao da publicação da Lei, prevê expressamente a representação do condomínio em juízo, sendo o condomínio a parte legítima, que demanda e é demandado, representado pelo administrador, e que o administrador age em juízo não só no exercício das funções que lhe competem, mas também como representante da universalidade dos condóminos, conforme nºs 1 e 2 do preceito.
13- A nova redacção do artigo 1437º confere legitimidade ao condomínio, enquanto parte, na leitura actualista do artigo 1433º nº 6, e dispõe sobre a sua representação em juízo, resolvendo assim a contenda existente, podendo ser considerado que assume a natureza de lei interpretativa.
14- O facto de o artigo 1433º nº 6 não ter sido alterado, não infirma o entendimento de que a contenda está ultrapassada e no sentido que vinha sendo o maioritário, pois o artigo 1437º foi alterado passando a consagrar que o administrador representa o condomínio e age como representante da universalidade dos condóminos, precisando assim o sentido que já se considerava ínsito na redacção do artigo 1433º nº 6 do CC.
15- A douta decisão recorrida não faz assim correcta interpretação da lei aplicável, violando o disposto no artigo 1437º do CC, na sua redacção actual, introduzida pela Lei nº 8/2022, de 10.01, que é de aplicação imediata, conforme artigos 8º e 9º da mencionada Lei, bem assim como também do artigo 12º al. e) do CPC e artigos 1433º nº 6 e 1436º nº 1 al. h), actual al. i), ambos do CC.
O condomínio R. apresentou alegação de resposta, aí sustentando a manutenção da decisão recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso, tal como se encontra delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se com a verificação da legitimidade processual do condomínio R.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Na decisão recorrida ficou assim sustentada a falta de legitimidade processual do condomínio R.:
É profunda a divergência doutrinal e jurisprudencial no que se refere à legitimidade passiva nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos.
De um modo geral, são duas as teses existentes:
1) A tese que pugna pela legitimidade do Condomínio, representado pelo respectivo Administrador, ao abrigo do preceituado no artigo 12.º, alínea e), do CPC, conjugado com o disposto nos artigos 1437.º, n.ºs 1 a 3, e 1436.º, alínea h), e apelando aos critérios interpretativos do art.º 9.º, n.º 3, todos do CC; e
2) A tese segundo a qual a acção deve ser interposta contra todos Condóminos que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende, ainda que representados pelo Administrador ou por pessoa que a Assembleia designe para o efeito, atendendo a que o n.º 6 do artigo 1433.º do Código Civil afirma sem dúvidas a legitimidade dos condóminos, afastando a legitimidade do próprio condomínio pois a letra da lei reporta-se aos “condóminos contra quem são propostas as acções”, não referindo o legislador a representação judiciária do condomínio contra quem é intentada a acção incumbe ao administrador, mas, que este representa os condóminos contra quem são propostas as acções.
A primeira tese obteve particular adesão na doutrina e na jurisprudência e contém argumentos de primordial relevo e interesse. Salienta-se desde logo a simplicidade processual que a demanda do condomínio oferece à acção e a interpretação actualista do preceito considerando a posterior atribuição de personalidade judiciária ao Condomínio propriamente dito.
Contudo, na presente data, as teses em discussão devem ser ponderadas à luz da recente alteração legislativa ao regime da propriedade horizontal, introduzida pela Lei n.º 8/22, de 10 de Janeiro.
Conforme destaca o A., a Lei n.º 8/22 alterou o artigo 1437.º, circunstância que, segundo advoga, reforça a legitimidade do condomínio.
Ora, entendemos precisamente o contrário, uma vez que, segundo o disposto no artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil, o interprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Só assim não será se o pensamento não possuir a mínima correspondência com a letra da lei (artigo 9.º, n.º 2 do CC).
Nesta perspectiva, a interpretação deve observar o sentido literal da norma ponderado pelo pensamento legislativo e pelas circunstâncias que envolveram a criação da norma.
No caso concreto, a Lei n.º 8/2022 veio rever o regime jurídico da propriedade horizontal, em particular, clarificando situações onde é discutida a regularidade da representação do condomínio.
Em face da ratio deste diploma e dos termos em que veio alterar o regime jurídico da propriedade horizontal consagrado no Código Civil, julgamos não ser possível continuar a defender uma interpretação actualista do artigo 1433.º, n.º 6 do CC.
Com efeito, ciente das divergências conceptuais que emergiram em torno da legitimidade em acções referentes a assuntos que envolvem Condomínios, o legislador sentiu necessidade de rever o regime vigente e actualizar as normas regulativas da temática em apreço.
Fê-lo, com especial incidência, no que se refere ao artigo 1437.º do Código Civil.
No que respeita às funções do administrador, restringiu os respectivos poderes executivos às deliberações não impugnadas – cfr. al. i) do n.º 1 do artigo 1436.º do Código Civil.
Manteve inalterado o artigo 1433.º, em especial, o nº 6 do Código Civil.
Ora, segundo cremos, observado o contexto legislativo da lei em apreço, concluímos não ser possível atribuir a este silêncio um sentido sem a mínima correspondência com a letra da lei.
O n.º 6 do artigo 1433.º do Código Civil dispõe sobre a representação dos Condóminos contra quem são propostas as acções. E não sobre a representação do Condomínio. Assim, porque relativos a matérias diferentes, não é possível estender o regime do artigo 1437.º ao artigo 1433.º, ambos do Código Civil.
Ao consagrar o regime expresso no actual artigo 1437.º, mantendo inalterado o regime do artigo 1433.º, n.º 6 do CC, entendemos que o legislador tomou uma posição expressa na querela acima apresentada, assumindo a legitimidade passiva dos Condóminos.
Caso o legislador pretendesse espelhar a posição que propunha uma interpretação actualista do preceito considerando o posterior reconhecimento da personalidade judiciária ao Condomínio, certamente teria aproveitado a oportunidade legislativa concedida pela Lei 8/2022 para o fazer de forma explícita, à semelhança do que ocorreu com o artigo 1437.º do CC.
Certo é que não o fez. E se não o fez, tendo-se pronunciado expressamente sobre temas conexos e, certamente consciente da supra indicada querela, entendeu o legislador que a letra da lei, expressa no artigo 1433.º, n.º 6 do CC, consagra o seu pensamento actual e válido.
Segundo cremos, actualmente, é esta a interpretação da norma consentânea com o espírito legislativo e com as regras da hermenêutica jurídica consagradas no artigo 9.º do CC.
Acrescentamos em abono da mesma, se é certo que o Condomínio expressa e representa, em princípio, a vontade do conjunto de Condóminos, não é menos verdade que os interesses comuns que emergem do regime da propriedade horizontal não se confundem nem suprimem os interesses individuais dos Condóminos individualmente considerados. Em Assembleia de Condóminos, estes exercem um direito de voto individual, próprio, representativo da sua própria manifestação de vontade. O facto de determinada decisão carecer da deliberação da Assembleia de Condóminos não dilui a responsabilidades dos Condóminos individualmente considerados pelas consequências que advêm da mesma.
Compreendemos a razoabilidade e a pertinência das vantagens da demanda do Condomínio em detrimento dos Condóminos que votaram favoravelmente, contudo, hoje parece-nos evidente que não foi essa a vontade do legislador.
Por tudo quanto se expôs, somos do entendimento que a legitimidade passiva em acção de impugnação de deliberações tomadas em Assembleia de Condóminos pertence aos Condóminos que votaram favoravelmente tal decisão”.
Confrontando o teor da fundamentação acima reproduzida com os argumentos apresentados por cada uma das partes nas suas alegações, verifica-se que não sofre qualquer controvérsia a afirmação da existência de divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a questão da legitimidade passiva nas acções de impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos.
Também não sofre qualquer controvérsia que é maioritário o entendimento jurisprudencial (e doutrinário) de que neste tipo de acções deve ser demandado o condomínio, e não o conjunto de condóminos. Aliás, basta atentar na identificação de decisões dos tribunais superiores apresentadas na decisão recorrida (e em cada uma das alegações das partes) para concluir pela referência a um número assaz superior de decisões em que é afirmado que é o condomínio quem deve ser demandado, relativamente ao número de decisões em que é afirmado que é o conjunto de condóminos que aprovaram a deliberação impugnada que deve ser demandado. E tal entendimento jurisprudencial maioritário é igualmente reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, como no seu acórdão de 4/5/2021 (relatado por Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pelo A. na sua alegação de recurso), quando aí se afirma que “ao nível da jurisprudência, encontrámos acórdãos dos Tribunais Superiores nos dois sentidos, sendo que nos pareceu, das buscas que efectuámos, haver uma tendência maioritária para a referida primeira tese, ou seja, no sentido de atribuir legitimidade ao condomínio”.
Todavia, o argumento decisivo utilizado pelo tribunal recorrido para sustentar que quem deve figurar na acção como parte passiva são os condóminos que aprovaram a deliberação, e não o condomínio, prende-se com a tomada de posição do legislador nessa divergência, expressa nas alterações introduzidas ao regime jurídico da propriedade horizontal através da Lei 8/2022, de 10/1.
Assim, afirma-se na decisão recorrida que a circunstância de ter sido alterado o art.º 1437º do Código Civil sem que, ao mesmo tempo, haja sido alterado o nº 6 do art.º 1433º do Código Civil, significa que tal silêncio legislativo, relativamente a este último preceito, corresponde a uma tomada de posição expressa, no sentido de não mais se interpretar tal preceito de forma actualista, mas antes de forma literal, no sentido de conferir legitimidade passiva aos condóminos que aprovaram a deliberação que é objecto de impugnação judicial.
Sendo necessário convocar o disposto no art.º 9º do Código Civil, daí resulta que a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da mesma, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, estando todavia vedado ao intérprete considerar um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Ou seja, “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, pág. 58 e 59).
Neste sentido, importa desde logo atentar que a alteração do regime jurídico da propriedade horizontal introduzida pela Lei 8/22, de 10/1, teve na sua génese o projecto de lei 718/XIV/2 (publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, de 5/3/2021), em cuja exposição de motivos se pode ler que “o diploma pretende ainda contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo (…), a legitimidade processual activa e passiva no âmbito de um processo judicial (…)”.
Ou seja, torna-se inequívoco que o legislador, colocado perante a referida controvérsia jurisprudencial relativamente à legitimidade processual passiva no âmbito de um processo judicial, pretendeu tomar posição sobre a mesma, no sentido da pacificação dessa controvérsia, o que desde logo indicia a adopção de uma solução conforme a um ou a outro dos entendimentos jurisprudenciais.
Assim, e na medida em que um dos entendimentos jurisprudenciais em questão fosse manifestamente maioritário, fazendo apelo à presunção que emerge do nº 3 do art.º 9º do Código Civil logo se alcança que a solução mais acertada a adoptar seria aquela que se apresentava conforme ao entendimento jurisprudencial maioritário.
Pelo que, tendo presente a existência de uma tendência jurisprudencial maioritária, no sentido da atribuição de legitimidade passiva ao condomínio, nas acções de impugnação das deliberações condominiais, poder-se-á concluir que aquilo que o legislador teve em mente, com as alterações ao regime jurídico da propriedade horizontal introduzidas pela Lei 8/22, de 10/1, foi consagrar positivamente essa tendência.
Isso mesmo, aliás, foi já afirmado jurisprudencialmente, como no acórdão do tribunal da Relação do Porto de 10/3/2022 (relatado por Paulo Duarte Teixeira, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pelo A. na sua alegação de recurso), quando aí se refere “que dos trabalhos preparatórios é claro, e evidente, que essa redacção [do art.º 1437º do Código Civil] visou consagrar a posição jurisprudencial denominada maioritária ou pacífica”.
E, do mesmo modo, também este Tribunal da Relação de Lisboa afirmou, no acórdão de 28/4/2022 (relatado por Vera Antunes, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pelo A. na sua alegação de recurso) que “com a redacção conferida ao art.º 1437.º do Código Civil pela Lei n.º 8/2022, de 10/01 se considera que a questão [da controvérsia jurisprudencial] estará ultrapassada e no sentido que agora se defende [da atribuição de legitimidade passiva ao condomínio, nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos]”.
Por outro lado, e continuando ainda a perscrutar a intenção legislativa, importa recordar o que, a este respeito, ficou expresso no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 11/7/2019 (relatado por Gabriela Cunha Rodrigues e onde o ora relator figura como segundo adjunto, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pelo A. na sua alegação de recurso), nos seguintes termos:
A tese negatória da legitimidade passiva do condomínio encontra arrimo forte na redacção do artigo 1433.º, n.º 6, do Código Civil, norma expressamente dedicada à «impugnação de deliberações».
E, de facto, a letra da lei reporta-se aos «condóminos contra quem são propostas as acções» (negrito e sublinhado nossos).
O legislador não afirma que a representação judiciária do condomínio contra quem é intentada a acção incumbe ao administrador, mas, ao invés, que este representa os condóminos.
Sem embargo, a redacção deste preceito deriva do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25/10, e foi redigida num momento histórico em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte activa ou passiva num processo cível.
Só com a Reforma de 1995/1996, o artigo 6.º, alínea e), do CPC de 1961 estendeu a personalidade judiciária ao condomínio.
E o artigo 231.º, n.º 1, do CPC de 1961 (actual artigo 223.º, n.º 1, do CPC de 2013), cuja redacção resulta da mesma Reforma, acrescentou que o condomínio é citado ou notificado na pessoa do seu legal representante (o administrador).
Chegados a este ponto, verificamos que a actividade interpretativa reclama, em particular neste caso, uma hermenêutica sistémica das disposições legais, na unidade do sistema jurídico.
Baptista Machado, repudiando por completo o positivismo jurídico, não deixa, no ponto concreto da interpretação, de lançar mão de todos os pontos evidenciados no artigo 9.º do Código Civil para alcançar o desideratum voluntas legislatoris.
Realça que o texto é o ponto de partida (tendo mesmo uma função negativa, de afastamento ou eliminação de sentidos sem qualquer apoio; mas também positivo quando vários sentidos sejam possíveis nela colher), passando pelo elemento teleológico («o conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (...) em que a norma foi elaborada»), pelo elemento sistemático (o que significa «a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda» (...) «é oportuno referir aqui a descoberta da “geneologia” ou “linhagem jurídico‑sistemática” da norma»), mas também o elemento histórico, nele considerando a evolução do instituto, as chamadas fontes da lei e os trabalhos preparatórios, considerando como ponto mais importante de tarefa a busca da unidade do sistema (cf. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, pp. 181 e ss).
Numa linha de pensamento muito próxima, Francesco Ferrara refere que «o jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe conseguir. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a esta finalidade, e portanto, em toda a plenitude que assegure tal tarefa» (apud voto de vencido do Juiz Conselheiro Urbano Dias, no acórdão do STJ de 24.6.2008, p. 08A1755, in www.dgsi.pt).
Também Castanheira Neves ensina que o «problema jurídico-normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos. Uma "boa" interpretação não é aquela que, numa pura perspectiva hermenêutica-exegética, determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto» (Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, ed./reimpressão 2013, p. 84)”.
Ou seja, aquilo que se verifica é que a redacção do nº 6 do art.º 1433º do Código Civil carecia de ser interpretada com recurso a uma interpretação actualista desde que entrou em vigor a reforma do Código de Processo Civil de 1995/1996, com a qual passou a ser conferida personalidade judiciária ao condomínio (isto é, a susceptibilidade de figurar como autor ou réu).
Nesta medida, a necessidade de tal interpretação não deixa de se verificar pela entrada em vigor das alterações decorrentes da Lei 8/22, de 10/1, na exacta medida em que tal diploma não alterou a redacção do referido art.º 1433º do Código Civil (desde logo o seu nº 6), mas apenas (no que aqui releva) a redacção do art.º 1437º do Código Civil, para que este preceito legal não mais se referisse à representação em juízo do condomínio (isto é, à sua capacidade judiciária) como se se tratasse do pressuposto da legitimidade processual do seu administrador.
Aliás, por isso é que o legislador substituiu a epígrafe “legitimidade do administrador” pela epígrafe “representação do condomínio em juízo”, na medida em que deixou (há muito) de estar em causa que o condomínio não pudesse estar em juízo (activa ou passivamente), enquanto conjunto organizado dos condóminos e, por isso, carecendo de ser estabelecida a sua representação orgânica, em juízo. Ou, dito de outra forma, por não estar em causa a actuação do administrador do condomínio, em nome próprio, mas apenas no exercício dessas funções de representação, nenhum sentido fazia falar da legitimidade processual do administrador, já que tal pressuposto processual havia de se reportar à entidade com personalidade judiciária (o condomínio, segundo o art.º 12º do Código de Processo Civil), e sendo aferida nos termos do art.º 30º do Código de Processo Civil.
E como da nova redacção do nº 2 do art.º 1437º do Código Civil resulta que tal representação do condomínio em juízo corresponde à representação da universalidade dos condóminos, esclarecida passou a estar, através da acção do legislador e por esta via interpretativa autêntica, a dúvida sobre quem deve ser demandado nas acções a que respeita o art.º 1433º do Código Civil, tomando o mesmo legislador “partido” no sentido de dever ser o condomínio, entidade com personalidade judiciária e correspondente ao universo de condóminos, representado pelo seu administrador (ou pela pessoa que a assembleia de condóminos designar).
É exactamente isso que decorre da jurisprudência subsequente à publicação da referida Lei pela Lei 8/22, de 10/1, não só a já referida, como igualmente a que resulta do acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28/4/2022 (relatado por Ana de Azeredo Coelho, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pelo A. na sua alegação de recurso), ao concluir que a referência do “artigo 1433.º/6 do Código Civil aos condóminos deve ser interpretada como reportando-se à pluralidade que a expressão condomínio [representa], atribuindo ao administrador a função de defesa em juízo das deliberações da assembleia e a consequente legitimidade para as acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos”, e mais concluindo que “a lei 8/2022 manteve intocada a justeza da referida interpretação”.
Em suma, ao contrário do afirmado na decisão recorrida, da Lei 8/2022, de 10/1, não se retira a opção do legislador pela tese de que as acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser intentadas contra os condóminos que as aprovaram, mas antes a opção pela tese de que tais acções devem ser intentadas contra o condomínio (representado pelo seu administrador ou por quem a assembleia designar para esse efeito), por residir no mesmo condomínio o interesse (em contradizer) do conjunto de condóminos que representa.
Assim, na procedência das conclusões do recurso do A. há que revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual passiva, declarando o condomínio R. parte legítima.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão que julgou verificada a falta de legitimidade processual do condomínio R. e o absolveu da instância, a qual se substitui por esta outra em que se julga improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual passiva e se declara que o condomínio R. detém legitimidade processual.
Custas pelo condomínio R.

Lisboa, 27 de Outubro de 2022
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento