Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2204/10.9TBTVD.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O princípio da eventualidade ou da preclusão consubstanciado no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, que implica que toda a defesa deva ser deduzida na contestação, radica em razões de lealdade na condução da lide e razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que os efeitos de uma sentença transitada em julgado sejam postergados, com base em novos argumentos que nessa acção poderiam ter sido invocados, e o não foram.
2. A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

“A” e “B”, residentes na Rua ..., n.º …, ..., Torres Vedras, instauraram contra:
1º. “C” e “D”, residentes na Rua ..., nº …, ..., Torres Vedras;
2º. “E” e “F”, residentes na Rua ..., nº …, ..., Torres Vedras;
3º. “G” e “H”, residentes na Rua ..., nº …, ..., Torres Vedras;

4º. “I”, residente na Rua ..., nº …, …, Torres Vedras e,
5º. “J”, residente na Rua ..., Lote …, …, Torres Vedras,
acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, através da qual pedem a condenação destes a reconhecerem que os Autores são os legítimos donos e proprietários, por o terem adquirido por usucapião, de um quarto indiviso do prédio rústico denominado “L”, sito no lugar do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ..., da Freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da secção ....

Fundamentaram os autores, no essencial, esta sua pretensão de seguinte forma:

1. Os 1.ºs e 2.ºs Réus instauraram, em 28 de Fevereiro de 2002, uma acção de preferência, contra os Autores e os 4.º e 5.º Réus, na qual solicitavam o reconhecimento do seu direito de preferência na venda de um quarto indiviso de um prédio rústico, vendido pelos 4.º e 5.º Réus aos ora Autores, por escritura de compra e venda, outorgada em 29 de Agosto de 1986, processo que correu termos, sob a forma de processo sumário, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, sob o n.º de processo .../2002;
2. No referido processo foi proferida Sentença na qual foi reconhecido à 1.ª R. mulher e aos 2.ºs RR. o direito de preferência;
3. Sucede que, quando os referidos Autores, ora Réus, intentaram a mencionada acção de preferência, já havia decorrido o prazo de usucapião de mais de 15 anos, sobre o prédio rústico em causa, razão de ser da presente acção;
4. Por contrato-promessa, datado de 25/06/1986, os 4.º e 5.º Réus prometeram vender ao Autor marido, ainda solteiro, pelo preço de 2.750.000$00/€13.716,94, um prédio com a área coberta de 192 m2 e descoberta de 1821 m2;
5. Apesar de não se encontrar discriminado e face às medidas constantes do logradouro, na realidade, o Contrato Promessa diz respeito a dois prédios, conforme consta na Escritura Pública de Compra e Venda;
6. No dia 29 de Agosto de 1986, o Autor marido comprou aos ora 4.º e 5.º Réus, “I” e “J”, por escritura pública, os seguintes prédios: a) Prédio urbano, então em construção, constituído de cave, rés-do-chão, terraço e logradouro, com a área coberta de cento e noventa e dois metros quadrados e descoberta de quatrocentos e oito metros quadrados, sito no lugar do ..., freguesia de ..., do Concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ...; e, b) Um quarto indiviso de um prédio rústico denominado “L”, sito no lugar do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ..., da Freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6º da secção ...; - Parte – ¼ - do prédio rústico referido encontra-se inscrito na matriz predial respectiva em nome do Autor marido e, não obstante o prédio se encontrar descrito na Conservatória, não se encontra aí inscrito, quer a favor dos Autores, quer dos outros comproprietários;
7. Em causa nesta acção está: um quarto indiviso de um prédio rústico denominado “L”, sito no lugar do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ..., da Freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6º da secção ...;
8. Os proprietários dos restantes três quartos indivisos do prédio atrás descrito são os 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus, pelo que cada um deles, Autores e 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus ocupa uma parte do prédio, correspondente à sua quarta parte, razão pela qual o prédio se encontra dividido em quatro partes e cada uma das partes se encontra delimitada com muros, vedações, construções e afins;
9. E numa das partes está edificada uma moradia e demais construções;
10. Delimitações essas feitas pelos próprios Réus, já após a aquisição do Autor marido da sua quarta parte;
11. Os Réus adquiriram as suas partes no prédio rústico antes do Autor, mas vedaram aquelas apenas após a compra por parte deste e foram aqueles que o fizeram, logo após a data da compra por parte do Autor marido e pediram consentimento para o efeito aos Autores;
12. Assim, os Autores ocupam a parcela correspondente ao quarto indiviso que adquiriram;
13. O Autor marido pagou a totalidade do preço, pela aquisição dos dois prédios;
14. Logo na data de assinatura do Contrato Promessa de Compra e Venda – 25 de Junho de 1986 – o Autor marido entrou na posse dos supra referidos prédios;
15. Após a Escritura Pública de Compra e Venda dos referidos imóveis, os Autores, que, de seguida, casaram, terminaram a construção do prédio urbano, cuja obra havia sido iniciada pelos vendedores ora 4.º e 5.º Réus e cuja implantação se encontrava parcialmente dentro do prédio rústico;
16. Os Autores, após a compra, limitaram-se a continuar a obra já existente, acabaram a casa e colocaram no referido prédio urbano a placa, o telhado e realizaram os acabamentos finais da obra, como reboco, pintura, etc;
17. Após a aquisição, os Autores plantaram no supra referido prédio rústico um pomar de pessegueiros, plantação à qual assistiram os 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus e comproprietários do prédio rústico;
18. O pomar durou cerca de 7/8 anos, durante os quais os Autores colheram os respectivos frutos, cultivaram e trataram as árvores de fruto, sempre à vista e com o conhecimento dos 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus, que residem junto ao prédio em causa;
19. Os Autores acabaram por remover os pessegueiros, mas continuaram a cultivar aquela parcela de terreno, nomeadamente semeando erva para o gado, sendo que para esse efeito o terreno era lavrado e a erva adubada e colhida;
20. Apesar de os Autores terem deixado de semear a erva, continuam a colher a que vai crescendo e continuam a lavrar o terreno e a mantê-lo sadio, sempre à vista dos 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus que ali residem e cultivam as parcelas contíguas à dos Autores;
21. Realidade que se mantém até hoje, não obstante ter decorrido a supra mencionada acção de preferência e ter sido proferida a respectiva decisão;
22. Deste modo, os Autores estão na posse do supra referido prédio rústico, desde Junho de 1986, comportando-se desde aí como seus proprietários, tanto assim é que os próprios vizinhos, ora 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs Réus, sempre que necessitam de aceder àquela quota parte do terreno, nomeadamente para efectuarem pinturas nos seus imóveis ou para repararem as vedações, solicitam sempre junto dos Autores consentimento para acederem ao terreno, pois sempre respeitaram a posse dos Autores;
23. Os Autores mantêm a posse pública e pacífica e de boa fé do supra referido prédio rústico, ou melhor de ¼ do mesmo, há mais de 15 anos face à data da instauração da referida acção de preferência e há mais de 24 anos face à data actual, tendo adquirido a mesma por usucapião.

Citados, os réus, “C” e “D”, “E” e “F”, “G” e “H”, apresentaram contestação, invocando que:

1. Os Autores pretendem que lhes seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade sobre 1/4 indiviso de um imóvel rústico, fundando-se essa pretensão em posse prescricional, limitada ao período de tempo decorrido entre 29 de Agosto de 1986 e 28 de Fevereiro de 2002, aquele a que nos devemos ater para apreciar o pedido formulado, pois num conjunto de factos ocorridos nesse intervalo de tempo se sustenta o seu direito reclamado;
2. A verdade é que, em 1981, os 1ºs, 2ºs e 3ºs Réus adquiriram o imóvel rústico identificado nos autos, em comum, em conjunto com os ora 4º e 5.ª Réus;
3. Reportando-nos à data da escritura, o vendedor mantinha havia já muitos anos o imóvel abandonado, não o cultivava agricolamente, não o usava para qualquer fim que fosse;
4. Logo em 1981 os 1ºs, 2ºs e 3ºs Réus procederam a uma definição de talhões no terreno, demarcando quinhões que passariam a ser de uso exclusivo de cada um deles;
5. Um dos casais ora Réu edificou inclusivamente um urbano nesse quinhão que acordaram que passaria a ser o deles;
6. Os 4º e 5ª Réus nunca fizeram a definição de qualquer talhão e também nunca usaram ou ocuparam, de qualquer maneira que fosse, qualquer parcela do imóvel rústico;
7. Mais tarde, em 1986, o ora 4.º Réu, por si e como procurador da 5ª Ré, outorgou a escritura de venda ao Autor marido da casa de habitação que estava a ser construída num lote de terreno desanexado desse prédio rústico e ainda de uma fracção indivisa do mesmo prédio rústico;
8. É o próprio Autor marido, agindo como comprador, na altura ainda solteiro, quem confirma, com a sua outorga dessa escritura, que essa edificação estava a ter lugar dentro do lote de terreno, sendo certo que se aceita que a construção tenha sido concluída pelos Autores;
9. Tal como os 4.º e 5.ª Réus não o haviam feito, também os ora Autores não procederam a qualquer ocupação de qualquer parcela do terreno rústico identificado;
10. Por outro lado, nunca poderiam os Autores reclamar estarem convictos de serem donos do imóvel, após uma aquisição como a que descrevem;
11. O Autor sempre soube que tal negócio estava sujeito ao direito de preferência dos ora Réus, nunca acautelou essa situação, nunca a preveniu, nunca confirmou se estes haviam sido notificados para efeito de exercerem o direito de preferência e se a ela haviam renunciado;
12. Nessas circunstâncias, nunca poderiam os Autores considerar-se proprietários, para além de não corresponderem à verdade os actos de posse alegados, que impugnam;
13. Por outro lado, a escritura de compra e venda que referem é a mesma que integra o negócio de compra e venda em relação ao qual alguns dos Réus exerceram o direito de preferência, que lhes foi reconhecido;
14. Ora, por força dessa decisão, foram os preferentes considerados os compradores e não os Autores, eles, agora Réus, são os legítimos adquirentes, ab initio, do direito transmitido através do negócio, pois que substituíram-se ao Autor, são os compradores e proprietários;
15. Afirmando os Autores que o seu direito se funda em factos reportados a um período anterior à interposição da acção de preferência dos autos, certo é que, nem aquando da sua contestação dessa acção, nem mesmo no decurso da mesma, a ser entendido que o poderiam fazer, os ora Autores levantaram essa mesma questão do reconhecimento de tal direito em sua defesa, contra o que deveriam ter feito, nos termos do disposto no artigo 493.º do Código de Processo Civil;
16. A prescrição, mormente a aquisitiva, era mesmo expressamente prevista como excepção na redacção primitiva do artigo 496.º do mesmo diploma;
17. Fazê-lo agora, em acção própria, sem que possam, designadamente, fazer a invocação de factos supervenientes, é extemporâneo, como resulta do disposto no artigo 489.º do Código de Processo Civil;
18. O que configura uma excepção dilatória, conduzindo à absolvição dos Réus da instância, o que deve ser reconhecido e declarado, ao abrigo do preceituado nos artigos 494.º e 288.º do citado diploma;
19. Por outro lado, a petição inicial deve ser considerada inepta, por contraditoriedade entre o pedido, que é expresso no sentido de serem declarados ambos proprietários, e a causa de pedir, cujos supostos factos integradores teriam tido início em momento anterior ao casamento dos Autores – alínea b) do n.º 1 do artigo 193.º do Código Processo Civil e devem os Réus ser absolvidos da instância;
20. Ou, caso assim não seja entendido, e a questão deva ser considerada antes como matéria de improcedência, devem, findos os articulados, e apreciada a excepção peremptória, ser os Réus absolvidos do pedido contra eles formulado pela Autora mulher – artigo 493.º do mesmo diploma;
21. Para o caso das excepções não serem julgadas procedentes, acresce que a transferência do direito real de propriedade sobre o imóvel rústico dos autos deu-se por efeito da escritura de compra e venda – n.º 1 do artigo 408.º e alínea a) do artigo 879.º, ambos do Código Civil - e em favor dos ora Réus que viram a sua preferência declarada e o seu direito reconhecido;
22. Mas a posse do mesmo não se transmitiu, nem para estes últimos, nem para os Autores, não se podendo invocar designadamente o constituto possessório – artigo 1264.º do Código Civil – dado que já se disse que nem o primitivo dono do imóvel nem os ora 4.º e 5.ª Réus estavam de posse do imóvel aquando dos negócios celebrados;
23. Acresce que os Autores fundam o seu reclamado direito numa forma de aquisição originária, que se rege por regras precisas;
24. A posse dos Autores, mesmo a ter ocorrido, o que não se aceita, como se disse, não se teria revestido, a atentar nas alegações dos Autores, das características definidas nos artigos 1287.º e 1293.º e segs. do Código Civil;
25. A posse dos Réus, a existir, não seria titulada, mas sim equiparada à que ocorra na falta de registo de título, prevista no artigo 1296.º do Código Civil e de má-fé;
26. A compra de uma fracção indivisa de um imóvel que o comprador sabe estar sujeita ao direito de preferência, sem ter sido acautelada devidamente essa situação, não transmite ao comprador a tranquilidade e a convicção de ser o verdadeiro proprietário;
27. É o caso dos Autores, que nunca poderiam legitimamente invocar essa convicção de serem proprietários, ao contrário do que fazem;
28. Logo, mesmo se praticados pelos Autores actos materiais de posse sobre o imóvel, ser-lhes-ia necessário o decurso do prazo de vinte anos para aquisição do direito, e não dos 15 que invocam no seu articulado;
29. E, tal como qualquer período de posse anterior teria de ser considerado perdido para o efeito que os Autores pretendem, também não aproveitaria aos Autores uma posse que se desenvolvesse no decurso do tempo ulterior à sua citação para a acção de preferência já referida e até termo desta, ou melhor, decorridos que foram cinco dias da interposição dessa acção, tudo por força do efeito interruptivo operado, conforme o teor das disposições conjugadas dos artigos 323.º, n.ºs 1 e 2, 326.º e 327.º. n.º 1, todos do mesmo diploma;
30. O trânsito em julgado da decisão final ocorreu há pouco tempo, cerca de 3 anos e, quanto a posse ulterior, nunca qualquer dos prazos exigidos estaria cumprido, nem nenhuma das condições necessárias estaria satisfeita;

Concluem, deste modo, pedindo a procedência das excepções invocadas, absolvendo-se os Réus da instância ou do pedido ou, caso assim não se entenda, a improcedência da acção, absolvendo-se os Réus do pedido.

Notificados, os autores apresentaram articulado de réplica no qual responderam às excepções, propugnando a improcedência das mesmas, invocando, em síntese, que:

1. Contrariamente ao alegado pelos Réus, os Autores não estavam obrigados a alegar a usucapião, ora em causa nos presentes Autos, na contestação da Acção de preferência intentada por aqueles, uma vez que o artigo 489.º do Código Civil aplica-se apenas no âmbito do processo que decorre e não a acções que venham a correr termos a posteriori.
2. Acresce que, só após várias buscas conseguiram os Autores encontrar o contrato promessa de compra e venda outorgado e junto aos Autos com a petição inicial e não estamos perante uma situação de prescrição porquanto o respectivo prazo é de 20 anos, pelo que, desde a data de aquisição da prescrição até à presente data não decorreram 20 anos, não se encontrando prescrito o prazo de alegação da usucapião por parte dos Autores.
3. No que concerne à excepção de ineptidão da petição inicial, quando o Autor marido celebrou a escritura de compra e venda em 29 de Agosto de 1986, já os Autores namoravam e estavam noivos e casaram em 6 de Setembro de 1986, ou seja, apenas 8 dias depois e foi já na constância do casamento que terminaram as obras do prédio, razão pela qual não se verifica a invocada excepção.
4. Quanto à falta de requisitos para a aquisição por usucapião, ao contrário do que os Réus tentam dar a entender, a posse dos Autores é uma posse titulada e de boa fé, pelo que o prazo de usucapião é de 15 anos e encontrava-se já decorrido no momento da instauração da acção de preferência.


Foi proferido o despacho saneador, no qual o Tribunal a quo julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir, bem como a ilegitimidade passiva dos 4.º e 5.º Réus.

Relativamente à excepção do caso julgado invocada pelos Réus contestantes, considerou o Tribunal a quo que, prosseguindo os preferidos, aqui Autores, no exercício de poderes de facto sobre o prédio abrangido pela preferência, apesar da procedência da acção, não podem considerar-se seus possuidores, mas meros detentores ou possuidores precários, pois que a posse radica, retroactivamente, desde a alienação, na esfera jurídica dos preferentes, também por força das regras do constituto possessório, independentemente da causa pela qual aqueles continuam a deter a coisa, razão pela qual declarou verificada a excepção dilatória de caso julgado, prevista no artigo 494.º, alínea i), do Código de Processo Civil e absolveu os Réus da instância, nos termos do artigo 493.º, n.º 2, do mesmo diploma.

Inconformados com o assim decidido, os autores “A” e “B”, interpuseram recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES dos recorrentes tão extensas quanto o corpo da própria alegação:
(…)

Os réus não apresentaram contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


***


II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO


Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 684º, nº 3 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.


Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a única questão a analisar reporta-se:

Û À EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO E Á AUTORIDADE DE CASO JULGADO.

***

III . FUNDAMENTAÇÃO


A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram dados como provados na decisão recorrida os seguintes factos:

1. Os aqui 1.ºs e 2.ºs Réus instauraram, em 28 de Fevereiro de 2002, uma acção de preferência, contra os Autores e os 4.º e 5.º Réus, na qual peticionavam o reconhecimento do seu direito de preferência na venda de um quarto indiviso de um prédio rústico, vendido pelos 4.º e 5.º Réus aos ora Autores, por escritura de compra e venda outorgada em 29 de Agosto de 1986, processo que correu termos, sob a forma de processo sumário, no 2.º Juízo deste Tribunal Judicial de Torres Vedras sob o n.º de processo .../2002.
2. No processo referido em 1. foi proferida Sentença, cuja cópia certidão se encontra a fls. 112 e que se dá aqui por reproduzida, na qual foi reconhecido à 1.ª R. mulher e aos 2.ºs RR. o direito de preferência.
3. A sentença referida em 2. foi confirmada, por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que transitou em julgado em 17.10.2007.
4. Na petição inicial, os Autores alegaram o seguinte: “Os 1.ºs e 2.ºs RR instauraram, em 28 de Fevereiro de 2002, uma acção de preferência, contra os ora Autores e os ora 4.º e 5.º RR”; “na qual solicitavam o reconhecimento do seu Direito de Preferência na venda de um quarto indiviso de um prédio rústico, vendido pelos 4.º e 5.º RR aos ora Autores”; “A referida venda ocorreu através de Escritura de Compra e Venda, outorgada em 29 de Agosto de 1986”; “O referido processo correu termos, sob a forma de processo sumário, no 2.º Juízo, do Tribunal Judicial de Torres Vedras, sob o n.º de processo .../2002”; “No referido processo foi proferida Sentença na qual foi reconhecido à 1.ª R. mulher e aos 2.ºs RR. o direito de preferência; ”Sucede que, quando os referidos AA., ora Réus, intentaram a mencionada acção de preferência, já havia decorrido o prazo de usucapião de mais de 15 anos, sobre o prédio rústico em causa”; “razão de ser da presente acção”.

***

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


DA EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO E A AUTORIDADE DE CASO JULGADO


O caso julgado visa dar concretização aos valores de certeza e segurança jurídica, assegurando o prestígio dos tribunais, que ficaria comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida num certo sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente.

Como refere MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 305-306, “seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença”.

A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica a outra anterior já decidida por sentença com trânsito em julgado e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior - v. artigo 497º do C.P.C.

O artigo 498º do C.P.C. não se limita a fazer coincidir o conceito de repetição da causa com o de identidade das acções. Acrescenta que a identidade há-de dizer respeito aos sujeitos, ao objecto e à causa de pedir, que são os requisitos da identificação das acções.

Na verdade, as acções caracterizam-se e individualizam-se pelos seus elementos essenciais, que são as pessoas, os bens ou coisas que se pretendem e o fundamento ou a causa por que se pretendem: duas acções só serão idênticas quando numa e noutra as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

A identidade jurídica dos litigantes nada tem a ver com a posição processual que elas ocupam. As partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta para o efeito da identidade jurídica é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial, e não a sua posição quanto à relação jurídica processual.

A exigência de identidade de sujeitos fixa os limites subjectivos do caso julgado. Mas, à identidade subjectiva acresce a identidade objectiva.

O artigo 498º do C.P.C. considera em separado identidade do objecto, ou seja, a identidade do pedido, a chamada identidade objectiva em sentido restrito e a identidade de causa de pedir.

Há identidade do objecto, diz o artigo 498º, nº 3 do C.P.C., quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, o qual se terá de determinar pelo pedido formulado pelo autor. Daí que, a identidade de objecto vem a traduzir-se na identidade de pedido.

Há, finalmente, identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, consistindo a causa de pedir, no acto ou facto jurídico donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer.

Por outro lado, e como dispõe o artigo 677º do C.P.C., a decisão considera-se passada ou transitada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos dos artigos 668º e 669º do mesmo diploma.

Tanto o caso julgado material, como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão.

O caso julgado material cobre a decisão proferida sobre o fundo ou mérito da causa, tem força obrigatória, não só dentro do processo em que a decisão é proferida, mas principalmente fora dele - artigo 671º, nº 1 do C.P.C.

O caso julgado formal aproveita às decisões de carácter processual e é gerado, em regra, por qualquer decisão judicial - cfr. artigos 671º e 672º do C.P.C.


O caso julgado material estabelece como indiscutível uma solução concreta, sendo a extensão daquilo que se torna indiscutível determinada por limites objectivos e subjectivos. Os primeiros têm a ver com o pedido e a causa de pedir e os segundos dizem respeito às partes - cfr. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, III, 279 e ss.

Assim, do ponto de vista do objecto do processo, o conteúdo do caso julgado é só a decisão final referente ao pedido e não também os fundamentos ou outras questões resolvidas pelo juiz na fundamentação.

Embora em regra excluídos do caso julgado, é ponto assente na doutrina e na jurisprudência que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença coberta pelo caso julgado - v. ANTUNES VARELA, Ac. S.T.J. de 17.01.80, anotado na R.L.J. 113º, 296 e ss.

O caso julgado material é, na expressão de M. TEIXIEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325º, 179 e ss., uma proibição de contradição de uma decisão de mérito num processo posterior que, em conjugação com uma permissão de repetição, gera a autoridade de caso julgado e que em ligação com uma proibição de repetição, origina a excepção de caso julgado.

No caso vertente, embora exista identidade de partes (elemento subjectivo), há diversidade de pedidos e de causas de pedir (elemento objectivo).

Não é, pois, a excepção de caso julgado que constitui impedimento à apreciação do mérito da presente acção.
Mas, diferentemente da excepção de caso julgado que tem em vista obstar à repetição de causas e implica a supra referida tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - a autoridade de caso julgado de sentença transitada constitui efeito distinto da mesma realidade jurídica, mas não se confunde com aquela, podendo actuar independentemente da tríplice identidade a que se aludiu, e implicar a proibição de novamente ser apreciada certa questão.
Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., 176, “Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

A autoridade do caso julgado abrange, pois, para além da componente decisória da sentença, as questões preliminares que constituam pressupostos lógicos e necessários indispensáveis à emissão da parte dispositiva do julgado – v. neste sentido, Ac. STJ de 29.06.76, anotado na R.L.J. 110º, 232.
É que, o trânsito em julgado de uma qualquer sentença de mérito é susceptível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger. Trata-se da eficácia preclusiva dos fundamentos de defesa que, em regra, se esgotam com o decurso do prazo para a dedução da contestação.
Por isso, em princípio, todos os fundamentos de defesa que não sejam apresentados na primeira acção ficam cobertos pela autoridade do caso julgado formado pela sentença - cfr. neste sentido Acs. do STJ, de 13.12.07 (Pº 07ª3739), de 23.11.11 (Pº 644/08.2TBVFR.P1.S1) e de 10.10.2012 (Pº 1999/11.7TBGMR.G1.S1).


Ora, no caso em análise, os aqui 1.ºs e 2.ºs Réus (“C” e “D”/”E”e “F”) instauraram, em 28 de Fevereiro de 2002, uma acção de preferência, contra os aqui Autores (“A” e “B”) e os 4.º e 5.º Réus (“I” e “J”), na qual peticionavam o reconhecimento do seu direito de preferência na venda de um quarto indiviso de um prédio rústico, denominado “L”, descrito na Conservatória do Registo Predial, efectuada pelos 4.º e 5.º Réus aos aqui Autores, “A” e “B”, por escritura de compra e venda, outorgada em 29 de Agosto de 1986, tendo sido reconhecido à 1.ª R. mulher “D” e aos 2.ºs RR. (“E”e “F”) o direito de preferência, por decisão de 16.05.2005, confirmado pelo acórdão do T.R.L. que transitou em julgado em 17.10.2007.

Na presente acção os autores (“A” e “B”), réus na acção de preferência, visam o reconhecimento do direito sobre o mesmo direito (1/4 indiviso do identificado prédio rústico), invocando que, aquando da mencionada acção de preferência, já havia decorrido o prazo de usucapião de mais de 15 anos, sobre o prédio rústico em causa.
Como é sabido, e resulta do preceituado no artigo 489º, nº 1, do CPC, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, normativo que emana do princípio da eventualidade ou da preclusão.
Ao aduzir as consequências mais importantes do aludido princípio, esclarece MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 382: “devendo os fundamentos da defesa ser formulados todos de uma vez num certo momento, a parte terá de deduzir uns a título principal e outros in eventu – a título subsidiário, para a hipótese de não serem atendidos os formulados em primeira linha
E, a razão de ser deste ónus deriva de razões de lealdade no combate judiciário, a que subjazem também razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que, tornada definitiva uma sentença, os seus efeitos sejam postergados com base em novos argumentos que em tal acção não foram - mas poderiam ter sido – invocados.
Como bem elucida MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., 324 “se a sentença reconheceu, no todo ou em parte, o direito do autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que poderia ter deduzido com base num direito seu (p. ex., ser ele, réu, o proprietário do prédio reivindicado)...”.

Também para MIGUEL MESQUITA, Reconvenção e Excepção em Processo Civil, 439, “o réu que se absteve de alegar direitos acaba por ver precludida a possibilidade de vir a obter uma futura decisão que afecte, na prática, o resultado anteriormente alcançado pelo adversário ou uma decisão que desfira um golpe fatal no direito reconhecido pela precedente sentença”.

E, colocando em questão se o direito de reconvir constitui uma mera faculdade ou um autêntico ónus, defende que o réu “necessita de reconvir para afastar o risco de futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor. O réu reconvirá para se livrar de um prejuízo futuro e eventual (não certo): o prejuízo de preclusão do seu direito”, ficando, inibido de propor uma contra-acção independente, baseando-se em factos anteriores deduzidos sem êxito ou que, podendo ter sido deduzidos em sua defesa, o não foram, já que proferida uma sentença favorável ao autor, a formação de caso julgado material, impede o réu de, através de uma nova acção, com base em factos anteriores, vir a afectar o teor da sentença antes proferida.

No caso em apreciação, a pretensão reivindicatória dos aqui autores poderia e deveria ter sido formulada em tal acção de preferência, porventura, mediante reconvenção, assente na alegação da titularidade do mesmo direito, já que não poderiam os ora AA. deixar de invocar,
ainda que subsidiariamente, a aquisição do mesmo direito de propriedade por via da usucapião, já que a invocação da aquisição da propriedade por usucapião apresentava-se, indubitavelmente, com natureza impeditiva do reconhecimento do direito de preferência invocado pelos ali autores, aqui réus na antecedente acção, o que os ora autores, ali réus, não fizeram.

Em princípio, o efeito preclusivo dos meios de defesa abarca o que constitui matéria de excepção, que integra factos modificativos ou extintivos opostos à pretensão do autor, excluindo as pretensões autónomas.

Mas, a verdade é que, os aqui autores, réus na acção de preferência, abstiveram-se de nela formularem, ainda que subordinadamente, o pedido de reconhecimento do mesmo direito, alegadamente adquirido por usucapião, formulando agora aquela mesma pretensão, fundada em factos materiais que, na ocasião, segundo invocam, já se haviam verificado mas que, todavia, nem sequer resultaram provados.

Como decorre da sentença de 16.05.2005, foi enumerado como factos não provados que: Desde há quase 16 anos, mais exactamente desde a escritura os réus “A” e esposa sempre usaram e ocuparam uma parte do prédio objecto dos presentes autos parte esta respeitante ao ¼, que compraram), não tendo sofrido tal factualidade qualquer alteração no Acórdão da Relação de Lisboa de 27.09.2007.

Esta actuação dos autores (réus na acção de preferência) constitui uma grave violação da estabilidade da relação jurídica definida pela sentença de 1ª instância, transitada em julgado, visto ter sido confirmada pelo mencionado Acórdão do T.R.L.

Com efeito, a admitir-se a nova pretensão dos autores consubstanciada na presente acção, a sentença preferida na acção de preferência poderia ser negativamente atingida pelos efeitos de nova sentença, assente na factualidade agora invocada, o que representaria, como se refere no supra referido Ac. STJ de 10.10.2012, a admissão pelo sistema, sem limites, da discussão eterna de questões jurídicas e que nem sequer as sentenças transitadas em julgado conferissem aos seus beneficiários direitos efectivos, ficando eternamente submetidas aos efeitos da litigiosidade (ou da chicana processual) promovida pela parte vencida.
Daí que, quer para contrariar o reconhecimento do direito de preferência, nomeadamente da ora 1ª ré, na primitiva acção, quer para o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, agora invocado pelos autores, tinham estes o ónus de trazer para o objecto da primitiva acção de preferência tudo quanto pudesse colidir com as pretensões ali formuladas, o que não fizeram.

Por conseguinte, mostra-se impedido o prosseguimento da acção, por via da autoridade de caso julgado projectada pela sentença judicial proferida na primeira acção, como muito justamente se concluiu na sentença recorrida.

Soçobra, por conseguinte, a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

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Os apelantes serão responsáveis pelas custas respectivas nos termos do artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

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IV. DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Condena-se os apelantes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 18 de Abril de 2013

Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Maria Martin Martins
Eduardo José Oliveira Azevedo
Decisão Texto Integral: