Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
268/24.7T8PDL.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OBJECTO DO PROCESSO
INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO CASAL
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
DOAÇÃO PARA CASAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1- Para efeitos do art.º 615º nº 1 al. d), 2ª parte, a sentença é nula– idem quanto aos despachos por força do art.º 613º nº 3 do CPC – quando se verifique uma das seguintes situações: i)- o juiz extravasa o objecto do processo colocado pelas partes; ou ii)- o juiz vai para além do pedido que lhe foi solicitado; iii)- ou, o juiz decide sobre questão relativamente à qual tinha esgotado o seu poder jurisdicional (por efeito do art.º 613º nº 1).
2- Quando se refere que o juiz não pode extravasar o objecto do processo ou quando vai para além do que lhe foi pedido, essa análise afere-se em função do concreto processo, designadamente da respectiva finalidade.
3- O processo de inventário a que se refere o art.º 1133º do CPC, tem por função ou finalidade principal obter a partilha dos bens comuns do casal e, acessoriamente, tem por finalidade a liquidação do património comum do casal, isto é o pagamento das dívidas comuns e o recebimento de créditos comuns, bem como a liquidação das compensações entre o património comum e os patrimónios próprios de cada (ex-)cônjuge (art.º 1689º do CC).
4- Se foi reclamado, como crédito próprio, pela (ex-)cônjuge mulher, um valor correspondente a doacções em dinheiro, feitas na pendência do casamento, pelos seus pais, não constitui nulidade do despacho saneador a decisão que, ao abrigo do art.º 1791º nº 1 do CC, considera essas quantias como crédito dos doadores sobre o património comum do ex-casal, visto que essa decisão se limitou a qualificar, de modo diverso, os factos alegados e decidiu nos limites do poder que lhe confere o art.º 5º nº 3 do CPC.
5- Na verdade, o art.º 1791º nº 1 do CC determina a caducidade de todas as liberalidades, em vista do casamento, que tenham por beneficiário um ou ambos os cônjuges e a sua reversão automática ao património do autor da liberalidade, tratando-se de norma com natureza imperativa que não pode ser afastada por manifestação de vontade concordante entre beneficiente e beneficiário, nem por acto unilateral do doador e, por isso, a reversão automática dos bens à esfera jurídica do disponente, impõe-se-lhe, mesmo que seja contrária à sua vontade.
6- Assim sendo, os doadores de quantias monetárias na pendência do casamento, tornam-se credores dos bens comuns do dissolvido casal.
7- No processo de inventário, para que a partilha produza o seu efeito útil normal é necessária a presença, em juízo, tanto dos interessados directos como de todos os interessados secundários, designadamente dos credores, portanto, numa situação de litisconsórcio necessário natural (art.º 33º nºs 2 e 3 CPC).
8- Deste modo e à luz do que determina o dever de gestão processual, nos termos do art.º 6º nº 2 do CPC, o juiz deve providenciar pela intervenção, no processo, dos credores do património comum, ordenando as respectivas citações com a advertência do art.º 1088º nº 2 do CPC.
9- A intervenção no processo de inventário dos interessados secundários, credores, pode ter lugar até à Conferência de Interessados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO.

1- Nestes autos de inventário para partilha do património comum, após divórcio, do dissolvido casal formado pelo cabeça de casal MBP e, requerida SCG, veio esta reclamar da relação de bens, invocando:
a) a sonegação de bens móveis (coluna de som, três berbequins, diversas ferramentas de carpintaria, uma tulipa com diversas ferramentas, uma motosserra, uma máquina de cortar relva e uma multicultivadora);
b) o aditamento à relação de bens de três créditos:
i) de 15.000€, da requerida sobre o cabeça de casal, (correspondentes a doação feita pelos seus pais, à requerida, para aquisição de veículo automóvel);
ii) de 50.000€, da requerida sobre o cabeça de casal, (resultante de doação dessa quantia pelos pais da requerida, a esta, para amortização de dois créditos hipotecários para aquisição de habitação do então casal;
iii)- de 12.500€, da requerida sobre o cabeça de casal, (resultante do pagamento feito pela requerida, a seus pais, dessa quantia, que estes haviam emprestado ao casal para aquisição de veículo automóvel e, que a requerida, entretanto, após dissolução do casamento, pagou a seus pais).
c) a discordância com os valores atribuídos pelo cabeça de casal aos bens móveis, descritos nas verbas n.ºs 2, 3, 4 e 6.

2- O cabeça de casal veio responder à reclamação da relação de bens invocando, em síntese:
a)- Quanto à invocada falta de relacionação de bens:
- ter o casal acordado que a requerida prescindia da sua metade em tais bens móveis, como compensação pelos bens próprios e pessoais do cabeça de casal, que ela destruiu;
b)-  Quanto ao invocado crédito da requerida sobre o cabeça de casal e bens comuns:
- que as quantias de 15.000€, de 50.000€ e de 12.500€, foram doadas ao casal, pelos pais da requerida, tanto que foram efectuados por meios de depósitos ou transferências em conta bancária comum do casal;
c)- Quanto aos valores atribuídos aos bens:
- Pugna que se mostram correctos.

3- Na audiência prévia, o cabeça de casal, no essencial, manteve o que referiu no requerimento de resposta ao requerimento da requerida.
Foram solicitadas informações bancárias e notificada a requerida para juntar documentos demonstrativos de ter sido ela a provisionar a conta bancária com fundos para pagamento aos seus pais da quantia de 12.500€.

4- Com data de 17/06/2024 foi proferida decisão, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto e em conformidade julgo a presente reclamação à relação de bens parcialmente procedente, porque provada, e em consequência decido:
a) Aditar à relação de bens:
- Uma coluna de som portátil, da marca JBL;
- Três berbequins;
- Diversas ferramentas de carpintaria (dez escopos, seis lixadeiras, serra de recorte tic tic, uma garlopa multifunções, uma serra circular de esquadria e outras ferramentas diversas);
- Uma tulipa com diversas ferramentas;
- Uma motosserra;
- Uma máquina de cortar relva, composta por 3 conjuntos;
- Uma multicultivadora;
b) Aditar ao passivo da relação de bens os créditos, nos valores de 15.000,00€, 50.000,00€ e 12.500,00€, referentes a doações feitas ao casal pelos pais desta interessada, que caducaram com o divórcio, a cargo do património comum e a favor de JCG e MCG, pais da Requerida SCG;
c) Relegar para sede de conferência de interessados a fixação do valor dos bens móveis, descritos nas verbas n.ºs 2, 3, 4 e 6;
d) Notificar os pais de SCG (JCG e MCG), em morada a indicar por esta em 5 dias no processo, para na qualidade de credores reclamarem o pagamento dos créditos mencionados em b), podendo em alternativa, se for esta a sua vontade, declarar nos autos pretenderem que estes créditos, no valor total de 77.500,00€ revertam em exclusivo, a título e doação, a favor da interessada SSG.

Custas pelo cabeça de casal e Requerida, na proporção, respetivamente, de 2/3 e 1/3.”

***

5- Inconformado, o cabeça de casal interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1 - Aplicando nos presentes autos o regime constante no artigo 1791º do C. Civil, o Tribunal a quo decidiu que, independentemente de se tratarem apenas de doações à requerida/reclamante ou ao casal, a verdade é que tais doações caducaram por força da dissolução do casamento, revertendo automaticamente ao património do doador.
2 - Em consequência do assim decidido, e sem qualquer suporte de facto e de direito, o Tribunal a quo decidiu, ainda, que os pais de SCG são credores do património comum, da quantia de € 77.500,00 (correspondente à soma das ofertas em dinheiro), divida a aditar à relação de bens como passivo, pelo que determinou a notificação deles para, na qualidade de alegados credores (?), reclamarem o pagamento dos créditos mencionados (a aditar à Relação de Bens como passivo??), podendo, em alternativa, se for essa a sua vontade, declarar nos autos pretenderem que estes créditos, no valor total de €. 77.500,00, revertam em exclusivo, a título de doação a favor da interessada SCG.
3 - Todavia, ainda que se entenda que a perda de benefícios a que alude tal norma, opera ipso iure, tal não pode significar, de forma alguma, que estamos perante uma norma imperativa (no sentido de imposição de conduta), pois não se vislumbra, em lado algum do regime jurídico, que exista um impedimento legal a que, ainda que o casamento tenha sido causa da liberalidade, o doador possa abdicar da reversão do bem doado. E, muito menos, que o Tribunal, no âmbito de um processo de inventário, com vista à partilha de bens comuns do ex-casal, possa, por sua iniciativa, transmutar essa perda de benefício/reversão em dívida do casal para com os autores da doação, que não são intervenientes no processo
4 - Para além disso, também não se vislumbra que a interessada/reclamante, ou o Tribunal, por sua iniciativa, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, tenha legitimidade substantiva ou processual para fazer valer essa perda contra o ex-marido e, ainda por cima, fazer revertê-la em proveito da ex-mulher.
5 - O entendimento generalizado, senão mesmo unânime, na doutrina e na jurisprudência é exactamente o contrário. Trata-se de um assunto que, a existir litígio, só pode ser resolvido no confronto com os doadores, em acção própria, e não entre os dois cônjuges, em acção de inventário (negrito nosso).
6 - Os doadores não são parte nestes autos, não tendo, por isso, deduzido qualquer pretensão ao Tribunal a quo, nem o poderiam fazer, por a acção não ser a própria.
7 - Nessa medida, o Tribunal a quo ao ter decidido, sem que a questão lhe tenha sido submetida, nem ser de conhecimento oficioso, (existência de dívida comum do casal para
com os pais da interessada), aditar à relação de bens uma alegada dívida do casal (cuja justificação reside unicamente na perda do benefício da liberalidade, transmutada pelo Tribunal a quo em dívida comum do casal), forçoso se torna concluir que a sentença recorrida é nula, nesta parte, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo
615º, nº 1, al. d) do C. P. Civil.
8 - A assim não se entender, o que se admitindo em tese, respeitosamente não se concede,
a interpretação do Tribunal a quo, de que a norma tem carácter imperativo e, como tal, pode a coberto dela, obter a condenação de uma ou de ambas as partes, a favor de um terceiro não interveniente no litígio (que não deduziu, nem podia, qualquer pretensão), é
manifestamente inconstitucional por violação do princípio a um processo justo e equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 20º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o Recorrente (beneficiário da liberalidade, mas
tornado devedor pelo Tribunal a quo), não pôde exercer as suas garantias de defesa perante os alegados credores.
9 - Por outro lado, o Tribunal a quo ao decidir que, por parte dos doadores (que não são
parte na acção), existe o direito de decidirem que tais quantias revertam a favor da interessada, ressalvado o devido respeito, está a inventar uma espécie de “direito de acrescer”, que não existe na lei.
10 - Por último, sempre importará dizer que a perda de benefício ou caducidade, prevista
no artigo 1791º do C. Civil, não possui efeitos retroactivos, pelo que não se pode aplicar aos bens (dinheiros) que já não existem, pois, tais bens foram gastos na pendência do casamento, já não pertencendo a nenhum dos cônjuges.
11 - Assim, face à inexistência, tais bens sempre estariam excluídos da aplicação do mecanismo do artigo 1791º do C. Civil. Por ser assim, forçoso se torna concluir que a alegada caducidade não pode operar e produzir os efeitos que o Tribunal a quo decidiu.
12 - O Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, violou, entre outros, o disposto nos artigos 1791º do C. Civil, 615º, nº 1, al. d) do C.P. Civil e artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Por todo o exposto, revogando a Sentença recorrida, na parte objecto deste recurso.

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6- A requerida contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1. A douta Decisão recorrida não merece censura devendo ser mantida;
2. O recorrente confunde o que são exceções de conhecimento oficioso do que é a aplicação do Direito aos factos alegados;
3. Isto é, não era matéria aqui controvertida o facto de essas doações terem sido feitas, discutindo-se apenas se foram feitas apenas à recorrida ou se ao casal, pela circunstância de serem casados;
4. Pelo que, andou bem o Tribunal a quo quando entendeu que, perante tais factos que foram alegados, a Lei era clara para ambas as situações, isto é: Nos termos do artigo 1791.º do CC, essas doações caducam automaticamente, revertendo para a esfera do doador.
5. Ora, essas doações revertem para o doador ipso iure, ou seja, sem que tal dependa de qualquer manifestação, quer do doador, quer do donatário e sem que o mesmo tenha sequer de ser parte no processo.
6. Assim, perante os factos que foram alegados, o Tribunal a quo limitou-se a aplicar o Direito, pois não estava sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação do Direito;
7. Pelo que, não se trata aqui de um excesso de pronúncia, mas apenas a correta aplicação do Direito pelo Tribunal a quo, que entendeu que o crédito existente não era da aqui recorrida, mas um crédito a favor dos seus pais (doadores);
8. Por outro lado, se estas quantias revertem a favor dos doadores é apenas natural que estes assumam a qualidade de credores do património comum dos aqui interessados;
9. E nessa medida, andou bem o Tribunal quando decidiu notificá-los para, nessa qualidade e querendo, reclamar esses créditos, tal como pode reclamar créditos, qualquer credor deste património durante a pendencia do inventário;
10. De igual forma, como o artigo 1971.º do CC confere aos doadores a facultade de determinar que esse benefício reverta para os filhos do casamento – a aqui recorrente, o Tribunal a quo limitou-se a informá-los dessa faculdade;
11. É no processo de inventário que, por regra, devem ser suscitadas, apreciadas e resolvidas todas as questões que importem à exacta definição do acervo patrimonial a partilhar, máxime as que são objecto de reclamação de relação de bens;
12. Sendo que, o Tribunal só deve relegar essas questões para os meios comuns quando as mesmas ofereçam especial complexidade, nos termos do artigo 1105.º, nº 3 do CPC, como é não é o caso.
13. Por fim, como resulta da simples leitura do artigo 1791.º do CC, a doação caducou e, por isso, reverte automaticamente para a esfera dos doadores tudo o que tiver sido doado.
14. Pelo que, quer tenha sido “gasto” esse valor ou não, responderá sempre o património comum do casal.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, devendo, em consequência, manter-se a Decisão Recorrida.

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II- FUNDAMENTAÇÃO.

1- Objecto do Recurso.

1- É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- Nulidade do despacho;
b)- Revogação da decisão na parte em que determinou que a verbas doadas pelos pais da requerida integrem o passivo da herança, a reclamar por estes que, em alternativa, podem declarar que as quantias doadas podem reverter, em exclusivo, para a ex-cônjuge, filha deles.

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2- Factualidade Relevante.

Para a apreciação e decisão das questões que se colocam no recurso, importa ter presente a factualidade referida no RELATÓRIO acima.

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3- As Questões Enunciadas.

3.1- A Nulidade do Despacho.
Alega o cabeça de casal/apelante que a decisão ora sob impugnação é nula, nos termos do art.º 615º nº 1, al d) do CPC, porque o tribunal decidiu questão que não lhe foi submetida, ao decidir transmutar, a perda dos benefícios em dívida comum do casal, a favor dos doadores que não são parte no processo.
Padecerá, a decisão em causa, da nulidade apontada?
Nos termos do art.º 615º nº 1 al. d), 2ª parte, a sentença – idem quanto aos despachos por força do art.º 613º nº 3 do CPC – é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Trata-se no preceito, do excesso de pronúncia. E, em termos simples, pode ocorrer em três situações: i)- quando o juiz extravasa o objecto do processo colocado pelas partes; ii)- quando o juiz vai para além do pedido que lhe foi solicitado; iii)- quando o juiz decide sobre questão relativamente à qual tinha esgotado o seu poder jurisdicional (por efeito do art.º 613º nº 1). Ou seja, o juiz não pode ocupar-se de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes nem pode voltar a apreciar questão que já tenha sido decidida.
Quando se refere que o juiz não pode extravasar o objecto do processo ou quando vai para além do que lhe foi solicitado/pedido, essa análise afere-se em função do concreto processo, designadamente da respectiva finalidade.
No caso do processo de inventário a que se refere o art.º 1133º do CPC, tem por função ou finalidade principal obter a partilha dos bens comuns do casal na sequência do trânsito em julgado da sentença de divórcio; e, acessoriamente, este tipo de inventário especial, rectius, para casos especiais, tem por finalidade a liquidação do património comum do casal, isto é o pagamento das dívidas comuns e o recebimento de créditos comuns, bem como a liquidação das compensações entre o património comum e os patrimónios próprios de cada cônjuge (art.º 1689º do CC)Cf. Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes, Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, 2020, pág. 155.
Se assim é, uma das finalidades/objecto do processo de inventário especial para partilha de bens comuns do extinto casal consiste, precisamente, na identificação e pagamento das dívidas comuns.
A esta vista, somos a entender que a decisão em causa, ao determinar que as quantias de 12.500€, de 50.000€ e de 15.000€, constituem dívida do casal que tem como credores os pais da ex-cônjuge, mais não fez que identificar e quantificar a dívida e quem são os respectivos credores e, por isso não extravasa o objecto do processo.
Além disso, igualmente, entendemos que a decisão sob impugnação não extravasa o “pedido” formulado pela requerida. Na verdade, a pretensão dela consistia em ser reconhecida credora do património comum por crédito compensatório. Em termos simples, digamos que a requerida/ex-cônjuge reclamou créditos.
Pois bem, em face da factualidade alegada – de resto impugnada pelo cabeça de casal em termos de, embora não negando as entregas daquelas quantias pelos pais da requerida, afirmar que se trataram de doações ao casal e não, exclusivamente à requerida – o tribunal, dentro da finalidade do processo, limitou-se a qualificar, de modo diverso, os factos alegados e decidiu – digamos que indeferindo implicitamente a pretensão da requerente ser credora do património comum (por isso, condenou a requerente parcialmente em custas) -, dentro do poder que lhe confere o art.º 5º nº 3 do CPC (ius novit curia), tratar-se de dívida comum e quem são os respectivos credores – os quais, de resto, terão de ser citados com a advertência expressa do art.º 1088º nº 2 do CPC: que devem reclamar os seus direitos sob pena de, tendo sido citados pessoalmente, ficarem inibidos de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns.
Acrescente-se que a dedução, pelo citado para o inventário, de qualquer oposição, impugnação ou reclamação não constitui um incidente do inventário, traduzindo-se, antes e apenas, no exercício do direito de defesa dos seus interesses que é processado nos próprios autos e inserido na tramitação normal e típica do processo de inventário. (Cf. Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes, Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário…cit., pág. 86). Deste modo, não se pode falar num “pedido”, ainda que incidental, no sentido e para os efeitos do art.º 615º nº 1, al e) e 609º nº 1 do CPC.
A esta vista, somos a entender que o tribunal não extravasou o “pedido” da ex-cônjuge. Simplesmente, o tribunal, para decidir, usou fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pela ex-cônjuge (Cf. Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, Vol. I, pág. 89.)
Do que fica exposto conclui-se que o despacho sob impugnação não padece da pretendida nulidade por pronuncia excessiva.

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3.2 - Revogação da decisão na parte em que determinou que a verbas doadas pelos pais da requerida integrem o passivo da herança, a reclamar por estes que, em alternativa, podem declarar que as quantias doadas podem reverter, em exclusivo, para a ex-cônjuge, filha deles.

Esta questão, assim enunciada, deve ser dividida em duas:
i)- uma relativa à parte da decisão que determinou que as verbas doadas pelos pais da requerida integram o passivo da herança;
ii)- outra, acerca da atribuição da “faculdade” (alternativa) de os pais da requerida poderem reverter as quantias doadas a favor da filha.

Assim, separemos as duas questões e analisemo-las.
Deste modo:

3.2.1- Revogação da decisão na parte em que determinou que a verbas doadas pelos pais da requerida integrem o passivo da herança, a reclamar por estes.
O cabeça de casal/apelante entende que a decisão que determinou que as verbas doadas pelos pais da requerida integram o passivo da herança, a reclamar por estes, deve ser revogada porque, defendem: i) nem a requerente nem o tribunal têm legitimidade para fazer valer a perda do benefício a favor dos pais da requerida que não são partes no processo; ii) a decisão viola o art.º 20º nº 4 da CRP por não ter sido dada oportunidade ao cabeça de casal de poder exercer as garantias de defesa perante os credores.
Será assim?
Vejamos.
Começando por uma afirmação: a relação entre a partilha e a liquidação dos bens comuns é intrínseca dado que, antes de mais, importa satisfazer o passivo e, só depois é possível partilhar os activos sobrantes.
Ao inventário, com a função de partilha de bens comuns do casal, aplica-se o estabelecido no art.º 1133º e, segundo o estatuído no art.º 1084º nº 2, o disposto nos artºs 1097º a 1130º e, em tudo o que não estiver especificamente regulado, o regime definido para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária.
Pois bem, à luz do art.º 1085º, pode dizer-se que em processo de inventário existe a legitimidade processual (legitimatio ad causam) que define quem tem legitimidade para ser parte principal no processo de inventário e, a legitimidade para a prática de actos processuais (legitimatio ad actum), isto é, define os actos processuais que podem ser praticados pelos interessados nele referidos.
De entre estes, salientam-se os credores (art.º 1085º nº 2, al. b). Não se tratando, propriamente, de terceiros em relação ao processo de inventário, apenas têm legitimidade para a prática de alguns actos no processo e, por isso, podem designar-se como partes secundárias ou interessados secundários. Os interessados secundários têm legitimidade para intervir no processo, para defesa dos seus interesses, porque não podem ser afectados nos seus direitos pela partilha a realizar entre as partes principais.
Por outro lado, embora os interessados secundários não tenham legitimidade para requerer o inventário, tanto podem ser demandados ab initio como podem ter intervenção ou ser chamado ao processo posteriormente. (Cf. Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pinheiro Torres, O Novo Regime…cit., pág. 28).
Por outro lado, ainda, noutra perspectiva, no processo de inventário, além de ser necessária a presença de todos os interessados directos, o inventário também requer a presença de todos os interessados secundários, isto é, todos aqueles que não tendo legitimidade para requerer o inventário, são titulares de posições que podem ser afectadas pela partilha. “Isto significa que, para que a partilha produza o seu efeito útil normal é necessária a presença em juízo tanto dos interessados directos como de todos os interessados secundários (art.º 33º nºs 2 e 3)” (Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pinheiro Torres, O Novo Regime…cit., pág. 30).
Há, assim, um litisconsórcio entre as partes principais e as partes secundárias.
Ora bem, o art.º 1088º regula a intervenção dos interessados secundários no processo de inventário. Assim, mesmo que os seus créditos não tenham sido relacionados pelo cabeça de casal, os credores podem reclamar os seus créditos até à conferência de interessados (nº 1). E, sendo identificados – ab initio ou posteriormente, como vimos - são citados para reclamarem os seus créditos, com a expressa advertência de, não o fazendo, ficarem inibidos de exigir o cumprimento do seu crédito através dos meios judiciais comuns (nº 2).
Pois bem, disto resulta que, contrariamente ao que defende o cabeça de casal/apelante, os créditos (dos pais da requerida sobre os bens comuns) tem de ser exercido no inventário e não, somente, mediante acção comum.
Se se verifica uma situação de litisconsórcio, entre os interessados directos e entre estes e os interessados secundários (credores), significa que, quer qualquer dos interessados directos, quer o próprio interessado secundário pode, rectius, deve intervir no inventário. E, como se referiu, pode intervir ab initio ou posteriormente até à Conferência de Interessados, seja por iniciativa própria, seja por indicação de qualquer das partes principais, seja, até pelo juiz, no uso de poderes de gestão processual, se se aperceber, pelos elementos trazidos ao processo, que existe interessado no inventário que não está no processo. É o que decorre, directamente, do art.º 6º nº 2 do CPC. Reitere-se que a participação de interessado, mesmo que secundário, no processo de inventário, constitui uma situação de litisconsórcio. Nada impede, antes aconselha, a que o juiz sane essa omissão de presença no processo.

Por outro lado, contrariamente ao que o apelante invoca, não corresponde à verdade que a decisão viola o art.º 20º nº 4 da CRP por não ter sido dada oportunidade, ao cabeça de casal, de poder exercer as garantias de defesa perante os credores.
Com efeito, o cabeça de casal foi notificado do requerimento da interessada e opôs-se a ele.
Além disso, se os interessados credores vierem aos autos reclamar os seus créditos sobre os bens comuns, como é evidente, o cabeça de casal pode impugnar esses créditos nos termos gerais dos artºs 1104º a 1106º.

Por outro lado, em termos substantivos.
Estabelece o art.º 1791º do CC, com epígrafe “Benefícios que os cônjuges tenham recebido ou hajam de receber”, que:
1 - Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.
2 - O autor da liberalidade pode determinar que o benefício reverta para os filhos do casamento.”
 Ora, resulta do art.º 1791º nº 1 do CC que a dissolução do casamento importa a caducidade de todos os benefícios que qualquer dos cônjuges tenha recebido, designadamente de terceiro em consideração do estado de casado. “O decretamento do divórcio funciona, por força da lei, como uma condição resolutiva da eficácia dos actos produtores daqueles benefícios, com cláusula de reversão dos mesmos para o património do doador. (…) Os benefícios sobre que se produzirá o efeito extintivo serão todas as liberalidades que tenham por beneficiário um ou ambos os cônjuges, independentemente do momento da sua celebração, desde que a mesma se conexione, causalmente, com a relação matrimonial.” (Rute Teixeira Pedro, CC anotado, AAVV, coord, Ana Prata, vol, II, 2017, pág. 697).
A perda dos benefícios abrangidos pelo referido art.º 1791º do CC, opera ipso iure, sem que seja necessária a manifestação de vontade das partes nesse sentido (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, apud Paula Távora Vítor, CC Anotado, Livro IV, Direito da Família, AAVV, coord. Clara Sottomayor, 2ª edição, pág.).
O preceito determina a caducidade dos benefícios e a sua reversão automática ao património do autor da liberalidade. Trata-se de norma com natureza imperativa que não pode ser afastada por manifestação de vontade concordante entre beneficiente e beneficiário, nem por acto unilateral do doador (ressalvada a hipótese do nº 2). Daqui decorre que “…a reversão do bem à esfera jurídica do disponente, impõe-se-lhe, mesmo que seja contrária à sua vontade. O acto caduca ope legis…” (Rute Teixeira Pedro, CC anotado, cit., pág. 697). Aliás, neste sentido, vejam-se, entre outros, acórdão TRC, de 15/11/2016 (Jorge Arcanjo, Proc. 185/14); ac. TRC, de12/07/2017 (Maria João Areias); ac. STJ, de 12/12/2023 (Maria João Vaz Tomé, Proc. 2800/20).
À vista do que se expôs, resta concluir que não há fundamento para revogar a parte da decisão que determinou que a verbas doadas pelos pais da requerida integrem o passivo da herança, a reclamar por estes.

3.2.2- Quanto à parte da decisão que atribuiu da “faculdade” (alternativa) de os pais da requerida poderem reverter as quantias doadas a favor da filha.

Quanto a esta questão, entendemos que não pode permanecer esta decisão.
Na verdade, resulta do nº 2 do art.º 1791º do CC, como vimos acima, “O autor da liberalidade pode determinar que o benefício reverta para os filhos do casamento”. Trata-se da única situação em que o autor da liberalidade pode travar a reversão automática dos bens doados ao seu património. Ou seja, da norma decorre que o disponente somente pode impedir a reversão automática, ipso iure, do bem doado para o seu património se determinar que reverta para os filhos nascidos do casamento. Como refere Rute Teixeira Pedro (CC anotado, II Vol. Cit., pág. 697 e seg.)Trata-se de uma possibilidade difícil de concretizar, na medida em que a declaração no sentido da reversão a favor dos filhos do donatário deverá correr antes da produção do efeito condicionante da caducidade. Se tal declaração não for feita antes da produção dos efeitos do divórcio, a reversão opera automática e necessariamente para a esfera do doador… Se quiser beneficiar os filhos do casamento terá, então, que celebrar nova liberalidade.”
Ou seja, os autores da liberalidade não têm a faculdade de declarar que atribuem à donatária as quantias doadas.
A esta luz e sem necessidade de outros considerandos, resta concluir que este trecho da decisão deve ser revogado.

O recurso procede parcialmente.

***

III- DECISÃO.

Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência: mantém a decisão recorrida quanto aos pontos a), b), c) e 1ª parte do ponto d) e, revogam a 2ª parte do trecho da decisão do ponto d), concretamente, na parte em que concede, em alternativa à reclamação de créditos, a possibilidade de declararem, nos autos, pretenderem que estes créditos, no valor total de 77.500,00€ revertam em exclusivo, a título e doação, a favor da interessada SCG.

Custas na instância de recurso, na proporção de metade para o apelante e metade para apelada.

Lisboa, 06/02/2025
Adeodato Brotas
Cláudia Barata
Eduardo Petersen Silva