Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | AMÉLIA SOFIA REBELO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/01/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – O incidente de qualificação da insolvência tem a estrutura de uma causa que é disciplinada e regulada por regras processuais próprias especificamente previstas para a sua tramitação e por outras do regime geral para as quais expressamente remete e, conforme dispõem os arts. 17º, nº 1 do CIRE[1] e 546º, nº 1 do CPC, pelas regras gerais do CPC em tudo o que não esteja especialmente previsto e desde que não contrarie as disposições do CIRE, o que impõe as devidas adaptações. II - Após a apresentação dos pareceres de qualificação da insolvência do AI e do MP abre-se uma nova fase processual na tramitação do incidente correspondente a uma de duas vias: ou de prosseguimento do incidente e da fase dos articulados através da citação dos indicados à afetação para, querendo, deduzirem oposição ao incidente; ou de julgamento do incidente se, debruçando-se sobre o mérito das alegações e dos pareceres e/ou da relevância de outros factos que resultem dos autos, o juiz entender que uns e outros não são suscetíveis de preencher os pressupostos da insolvência culposa, caso em que, fundamentadamente, profere decisão final de qualificação da insolvência como fortuita. III - Não obstante o sentido que a literalidade do art.º 188º, nº 8 do CIRE também comporta - o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido -, impõe-se concatenar e compreender o âmbito e sentido das ‘possibilidade’ e ‘imediatez’ que nesses termos prevê, não como admissão legal de uma decisão acrítica (de preceito) por osmose com a proposta coincidente dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e (por isso) com dispensa de qualquer ato processual prévio, mas por contraposição com a possibilidade alternativa (à prolação de decisão final nesse sentido e nessa fase inicial do incidente), de ordenar o prosseguimento dos autos através da prolação de despacho de citação dos indicados à afetação. IV - A possibilidade de ser proferida decisão final de qualificação da insolvência como fortuita logo na sequência dos pareceres concordantes do administrador da insolvência e do Ministério Público nesse sentido, não corresponde ao exercício de uma opção arbitrária ou discricionária do juiz pela proposta dos pareceres, mas sim ao resultado da apreciação, valoração e enquadramento jurídico da factualidade alegada e de outra eventualmente disponível nos autos, a partir da qual o juiz deverá fundamentar juridicamente a qualificação da insolvência em sentido divergente ao que eventualmente tenha sido requerido por credor ou outro interessado. V - Sendo o credor legalmente admitido a requerer a abertura do incidente, requerendo-a e formulando pedido em conformidade, assume a qualidade de parte do incidente. VI - Apesar da regulação da tramitação especialmente prevista pelo CIRE não prever a notificação dos pareceres do AI e do MP ao credor requerente do incidente, no âmbito da aplicação do art.º 188º, nº 8 do CIRE essa notificação impor-se-á ou não em função da tutela do exercício do contraditório que o teor das alegações dos interessados e dos pareceres suscitem, nos mesmos termos em que se imporia cumprir no processo comum por imposição do princípio geral previsto pelo art.º 3º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE. VII - O princípio do contraditório não comporta o direito processual de as partes serem confrontadas com um qualquer projeto ou manifesto do sentido da decisão sobre o objeto do processo previamente à prolação da mesma. VIII - O princípio do contraditório reconhece e confere a cada parte do processo o direito de, em condições de igualdade de intervenção, discutir as causas de pedir e os pedidos apresentados ao juiz e os fundamentos que aos mesmos sejam opostos, bem como as questões processuais ou de mérito oficiosamente suscitadas pelo juiz, pelo que a designada decisão surpresa só o é quando confronta as partes com resultados inesperados por não lhes ter sido facultada a discussão que a lei prevê de acordo com a regular tramitação dos autos, ou a imposta pelo princípio geral do contraditório previsto pelo art.º 3º, nº 3 do CPC. IX - A notificação ao requerente da insolvência dos pareceres que proponham a qualificação da insolvência como fortuita e previamente à prolação de sentença que decida nesse sentido, não é devida em qualquer caso mas apenas se por aqueles pareceres forem introduzidas e submetidas a apreciação questões/fundamentos de facto ou de direito distintos e em contraposição com as invocadas nas alegações do credor, sendo certo que a qualificação da insolvência como culposa ou como fortuita constitui o objeto natural do incidente e da sentença nele a proferir e com a qual as partes têm necessária e antecipadamente que contar. ________ [1] Diploma a que pertencem as demais normas citadas, salvo indicação em contrário. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, I – Relatório 1. No âmbito do processo de insolvência de P, Ldª os credores A. e B. requereram a abertura do incidente de qualificação da insolvência (req. de 16.11.2023) e apresentaram alegações, em síntese, com os seguintes fundamentos: i) Conforme alegou no requerimento de apresentação à insolvência, em 2017 a insolvente celebrou a ultima venda (3 lojas) e desde então deixou de exercer a sua atividade de “Realização de operações e investimentos imobiliários, compra, venda e permuta de bens imóveis bem como a revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento, administração e exploração em regime de prestação de serviços de imóveis próprios e terceiros” pelo que, existindo dívidas, mesmo que litigiosas como o crédito dos requerentes, e não pretendendo prosseguir a sua atividade, competia aos seus legais representantes prosseguir com a sua dissolução e liquidação e acautelar aquele crédito por meio de caução, nos termos dos arts. 141º, 151º, 152º e 154º, nº 3 do CSC. ii) Após a condenação da insolvente no pagamento do crédito reconhecido aos requerentes por sentença confirmada por acórdão da Relação de Lisboa transitado em 29.07.2023, os gerentes da insolvente apresentaram-na à insolvência de modo a inviabilizar o ressarcimento daquele crédito. iii) Considerando que do relatório do administrador da insolvência consta que a insolvente tem resultados negativos desde há pelo menos 3 anos e que não exerce a sua atividade desde 2017, então a situação de insolvência da insolvente é anterior a 2020 e está por ela confessado que não cumpriu o prazo de 30 dias para a sua apresentação à insolvência. iv) Considerando que do relatório do administrador da insolvência (AI) consta que a insolvente tem resultados negativos acumulados desde pelo menos 2020 (€353.867,31 em 2020, €356.265,49 em 2021, e €360.585,36 em 2022) e que em 2022 o capital próprio é de €360.585,36, daí resulta que o passivo da insolvente aumentou nos últimos 3 anos e nada fez para o eliminar ou diminuir. v) Em caso de incumprimento do dever de apresentação à insolvência presume-se a existência de culpa grave dos administradores e tanto determina a qualificação da insolvência como culposa e a condenação dos gerentes a indemnizar os requerentes no montante do seu crédito. vi) Os gerentes da insolvente venderam as ultimas frações desta a uma sociedade em relação de grupo e são sócios e gerentes de outras sociedades com objeto similar que exercem atividade e apresentam lucros, o que prova o nexo causal entre a opção daqueles em centrar a atividade imobiliária nestas sociedades e estancar a atividade da insolvente, e a situação de insolvência desta. vii) Em 2017 a sociedade C… Imobiliária, Ldª injetou capital na insolvente, agravando mais o desequilíbrio das contas que veio a provocar a venda das lojas. Concluíram pela qualificação da insolvência como culposa e indicaram como pessoas a afetar os gerentes da insolvente (D e E). Indicaram testemunhas, requereram a junção oficiosa do requerimento de apresentação à insolvência e documentos com ele juntos e do relatório da AI, juntaram outros documentos (informações sobre a insolvente elaboradas e disponibilizadas por terceiros em plataforma informática, informação do registo predial, ata de condóminos, e comunicação via e-mail), e requereram a notificação da insolvente na pessoa dos seus legais representantes para junção dos balanços, balancetes, IES e atas de aprovação de contas dos anos de 2012 a 2023. 2. Por despacho de 23.11.2023, publicado no dia seguinte, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, no essencial, com a seguinte justificação “(…) apresentadas alegações por escrito o juiz deverá fazer uma apreciação liminar e se o pedido não for manifestamente improcedente e não ocorrerem evidentes excepções dilatórias insupríveis, o juiz declara aberto o incidente de qualificação da insolvência, sem que tal decisão implique uma apreciação dos factos alegados e um juízo sobre a proposta qualificação ou afectação.//No caso concreto foram tempestivamente (após pagamento de multa) apresentadas alegações por escrito por interessados, pelo que, nos termos supra explicitados, não sendo a pretensão de qualificação da insolvência como culposa manifestamente improcedente, cumpre declarar aberto o incidente respectivo.”. 3. Notificada para o efeito a Srª administradora da insolvência (AI) apresentou parecer pelo qual se limitou a alegar que, “(…) segundo o Sr. Contabilista, nos últimos três anos a sociedade não se dedicou a qualquer atividade, não existiram trabalhadores a laborar e não se localizaram bens registados.//A signatária não tem conhecimento de factos relevantes passíveis de integrar um comportamento doloso.//Salvo melhor entendimento, não se verifica preenchida alguma das previsões do artigo 186º do CIRE. Concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita. 4. Continuados os autos com vista ao Ministério Publico (MP), a Sr.ª Procuradora emitiu parecer alegando que “Atento o teor do relatório elaborado ao abrigo do disposto no artigo 155º do CIRE, conjugado com o que resulta do parecer da Sra. Administradora da Insolvência e não obstante o requerimento daqueles credores, consideramos não dispor, o Ministério Público, do conhecimento de factos concretos que permitam declarar verificada alguma das situações tipificadas no artigo 186º do CIRE, para que a insolvência deva considerar-se culposa.” Concluiu igualmente pela qualificação da insolvência como fortuita. 5. Seguidamente foi proferida sentença que, considerando o facto de a AI e o MP terem “proposto a qualificação da insolvência como fortuita e uma vez dos autos não resultam suficientemente indiciados factos que, provados, sejam susceptíveis de integrar a previsão do art.186º n.ºs 1 e 2 do CIRE”, decidiu pela qualificação da insolvência de P…II, Lda. como fortuita. 6. Por requerimento de 08.02.2024 os credores requerentes apresentaram requerimento de recurso da sentença requerendo a sua revogação e substituição por outra que “- julgue procedentes as nulidades arguidas, determinando a anulação de todos os atos praticados no presente incidente de qualificação de insolvência após a junção aos autos dos pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público, nomeadamente a decisão de qualificação da insolvência como fortuita; e, em consequência, determine a notificação dos ora Requerentes para exercerem o seu direito ao contraditório relativamente aos mencionados pareceres; e , subsidiariamente, ⎯ caso assim não se entenda, determine o prosseguimento dos autos, ordenando a notificação da Sociedade Insolvente e a citação pessoal daqueles que em seu entender devem ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa (designadamente, os gerentes da Sociedade Insolvente) para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias, conforme o disposto no artigo 188.º, n.º 9 do CIRE. 7. O recurso foi rejeitado por despacho de 08.04.2024 com fundamento no art.º 188º, nº 8 do CIRE, de não recorribilidade da decisão dele objeto, despacho que não foi objeto de impugnação. 8. Previamente à apresentação do recurso, em 06.02.2024 os credores requerentes do incidente arguiram a nulidade da sentença perante o tribunal recorrido com fundamento no art.º 3º, nº 3 e 615º, nº 1, al. d) do CPC, em síntese, por violação do direito ao contraditório por ter sido proferida sem que previamente tenham sido notificados dos pareceres de qualificação apresentados pela AI e pelo MP para poderem expor as suas razões e convencer o tribunal a compor o litígio a seu favor, como impunha o art.º 3º, nº 3 do CPC por força do art.º 17º do CIRE, mais alegando que os pareceres assentam em elementos novos que não foram notificados nem contraditados e que a sentença configura uma decisão surpresa; e por omissão na apreciação dos fundamentos de facto e de direito alegados pelos requerentes, alegando que ficaram por conhecer as questões de mérito por eles suscitadas tendentes à qualificação da insolvência como culposa. 9. A insolvente e o Ministério Público responderam à arguição da nulidade da sentença, pugnando pela sua improcedência. 10. Sobre a arguição das nulidades recaiu despacho de 22.04.2024 que julgou improcedente a nulidade com fundamento na violação do contraditório e rejeitou conhecer a nulidade arguida por vício de omissão de pronúncia, com os seguintes fundamentos: “(…) Decorre da tramitação legalmente prevista que o requerente da insolvência deve alegar todos os fundamentos do seu pedido no requerimento de abertura do incidente. Após, sendo aberto o incidente, quer o Administrador de Insolvência, quer o Ministério Público têm oportunidade de se pronunciar sobre aqueles argumentos e, de seguida, o processo é concluso ao juiz para decidir se o incidente deve prosseguir ou se, existindo pareceres coincidentes (do Ministério Público e do Administrador de Insolvência) no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, a decisão pode ser imediatamente proferida nesse sentido. Donde, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não prevê qualquer notificação ao requerente do teor dos pareceres, nem a possibilidade de o mesmo se pronunciar quanto àqueles. E entende-se que assim seja, uma vez que, atenta a especial posição processual quer do Administrador de Insolvência, quer do Ministério Público, o legislador presumiu que, se ambos, em face do requerimento de abertura do incidente, complementado pelos elementos de que tenham conhecimento e que resultam dos autos, entenderem que inexiste fundamento para o incidente prosseguir, não se abre qualquer outra fase processual, antes serão estes pareceres presentes ao juiz para que decida sobre o prosseguimento do incidente, ou acolha a posição convergente do Ministério Público e do Administrador de Insolvência. E não se vê qualquer base legal para se defender, como os requerentes, que existe violação do contraditório por ser assim, pois não há, face ao “desenho” deste incidente, qualquer contraditório a operar nesta fase. Termos em que, por falta de fundamento legal, devemos concluir que não foi omitida qualquer formalidade de que decorra a apontada nulidade. Face ao exposto não se verifica a nulidade invocada. * Os requerentes arguiram ainda uma nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º n.º 1 al.- d) do Código de Processo Civil. Ora, a nulidade em questão apenas é invocável perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso, sendo que se o admitir deve ser invocada em sede de alegações – cf. art.615º n.º 4 Código de Processo Civil. Assim sendo, não podem os requerentes invocar, em requerimento autónomo, esta nulidade, antes devendo fazê-lo nas alegações de recurso. Razão pela qual não há que conhecer do requerimento nesta parte.” 11. Inconformados, os credores requerentes recorreram dessa decisão, requerendo a sua revogação e substituição por outra que -- “julgue procedente a nulidade por preterição do direito ao contraditório, devidamente arguida pelos Recorrentes por requerimento autónomo de 06/02/2024; e - determine o conhecimento e a apreciação da nulidade da sentença de 18/01/2024 por omissão de pronúncia, devidamente arguida pelos Recorrentes por via do mesmo requerimento autónomo de 06/02/2024.” Formularam as seguintes conclusões: 1. O despacho recorrido – nos termos do qual foi indeferido o requerimento dos Recorrentes datado de 06/02/2024 em que estes arguiram: (i) a nulidade por preterição do direito ao contraditório; e (ii) a nulidade da sentença de qualificação da insolvência como fortuita de 18/01/2024 por omissão de pronúncia – consubstancia uma errada interpretação e aplicação da Lei - DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI NO JULGAMENTO DA NULIDADE POR PRETERIÇÃO DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO 2. A Lei estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (cfr. art.º 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 3. O princípio do contraditório integra o direito de acesso aos Tribunais, consagrado na Constituição da República Portuguesa (cfr. art.º 20.º, n.º 1 da Constituição; e cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 255/2003; e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/05/1999, acima transcritos parcialmente). 4. Ora, o presente incidente de qualificação da insolvência teve início por iniciativa dos ora Recorrentes e estes nunca foram notificados: - do parecer da senhora Administradora de Insolvência, nem do seu teor/sentido; - da concessão de prazo para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório relativamente ao mesmo; - do parecer do Ministério Público, nem do seu teor/sentido; - da concessão de prazo para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório relativamente ao mesmo; - da pretensão do Tribunal “a quo” de proferir de imediato uma decisão sobre a qualificação da insolvência no mesmo sentido dos pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público – sentido oposto ao requerido pelos Recorrentes; nem - da concessão de prazo para, querendo, se pronunciar sobre a mesma. 5. Os Tribunais Superiores têm entendido que, apesar de a Lei não se referir expressamente à notificação dos pareceres do administrador de insolvência e do Ministério Público ao requerente do incidente de qualificação, o requerente do incidente tem, sim, o direito a exercer o contraditório antes de ser proferida a sentença, quando o tribunal pretender seguir os referidos pareceres no sentido da qualificação como fortuita, sob pena de nulidade (cfr., no sentido ora propugnado, a título de exemplo, o Tribunal da Relação do Porto, em 22/03/2018, no processo n.º 7882/16.2T8VNG-B.P1, o Tribunal da Relação de Évora, em 10/02/2010, no processo n.º 1086/08.5TBSLV-B.E1, e, ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa, em 03/10/2017, no processo n.º 2774/15.5T8FNC-B – acórdãos acima transcritos parcialmente). 6. Os pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público, ao propugnarem a qualificação da insolvência em sentido diferente da peticionada pelo requerente do incidente, assentam em elementos novos, que não foram notificados, analisados, nem contraditados pela parte requerente do incidente. 7. No presente caso, a senhora Administradora de Insolvência fundamenta o seu parecer em elementos diversos, que passam pelo período temporal considerado, pesquisa de imóveis e até por informação variada que alega ter obtido junto do contabilista da Sociedade Insolvente referente, designadamente, ao exercício de atividade, à existência de trabalhadores e à existência de bens registados da mesma (cfr. requerimento da administradora de insolvência de 20/12/2023, constante dos autos). 8. Por sua vez, o Ministério Público refere, expressamente, que baseia o seu parecer, entre outros, nos fundamentos constantes do parecer da senhora Administradora de Insolvência (cfr. promoção do Ministério Público de 09/01/2024, constante dos autos). 9. Logo, nos casos em que o juiz pretenda proferir de imediato uma sentença em sentido oposto ao peticionado pelo requerente do incidente de qualificação de insolvência (como ocorreu no presente caso), deve, obrigatoriamente, dar a este último a possibilidade de se pronunciar sobre os elementos e fundamentos trazidos ao processo pelo administrador de insolvência e pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que não sucedeu no caso dos autos. 10. Não o tendo feito, o Tribunal “a quo” proferiu uma decisão-surpresa, na medida em que teve por base pareceres que nunca foram dados a conhecer aos Recorrentes do presente incidente de qualificação de insolvência. 11. Por conseguinte, ao não conceder aos Recorrentes a possibilidade de se pronunciarem previamente sobre os pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público, nem sobre a pretensão do Tribunal de proferir de imediato uma decisão sobre a qualificação no mesmo sentido dos pareceres (questões estas todas capazes de influir no exame e decisão da causa), o Tribunal “a quo” violou o direito ao contraditório dos Recorrentes, impedindo-os de exporem as suas razões e, bem assim, de poderem convencer o Tribunal a compor o litígio a seu favor, ou seja, em última instância, a qualificar como culposa a insolvência da sociedade P… II, Lda. (cfr. art.º 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). 12. A mencionada falta traduz-se na omissão de um ato suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, inquinando todo o processado ulterior, pois impediu os ora Recorrentes de refutar / contraditar, querendo, os elementos subjacentes, assim como impediu que a sua posição sobre tais elementos viesse a ser ponderada pelo Tribunal “a quo” (cfr., no sentido ora propugnado, a título de exemplo, o Tribunal da Relação do Porto, em 22/03/2018, no processo n.º 7882/16.2T8VNG- B.P1, o Tribunal da Relação de Évora, em 10/02/2010, no processo n.º 1086/08.5TBSLV-B.E1, e, ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa, em 03/10/2017, no processo n.º 2774/15.5T8FNC-B – acórdãos acima transcritos parcialmente). 13. Face ao que antecede, a decisão imediata de qualificação da insolvência como fortuita, baseada nos pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público – por não ter sido precedida da prévia auscultação dos ora Recorrentes sobre tais pareceres –, encontra-se, sim, ferida de nulidade (cfr. art.º 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE; e cfr, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019, acima parcialmente transcrito). Em suma, 14. Ao julgar improcedente a nulidade por preterição do direito ao contraditório, o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 3, 195.º, n.º 1, 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, 15. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de julgar procedente a referida nulidade – razão pela qual deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que assim determine, conforme à correta aplicação das mencionadas normas. ⎯ DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI NO JULGAMENTO DA NULIDADE POR OMISSAO DE PRONÚNCIA DA SENTENÇA DE 18/01/2024 16. O Tribunal “a quo” errou, igualmente, ao considerar, no âmbito do despacho recorrido de 22/04/2024, que os Recorrentes não podiam invocar em requerimento autónomo, a nulidade da sentença de 18/01/2024 por omissão de pronúncia, antes devendo fazê-lo nas alegações de recurso. (cfr. p. 3 do despacho recorrido) 17. Os Recorrentes arguiram, em tempo (06/02/2024), perante o Tribunal “a quo”, diversas nulidades, entre as quais, a nulidade por omissão de pronúncia da sentença de 18/01/2024. 18. Ainda antes da pronúncia do Tribunal “a quo” sobre o referido requerimento autónomo (pronúncia esta que apenas veio a ocorrer com a prolação do despacho de 22/04/2024 ora recorrido), os Recorrentes interpuseram, à cautela, em 08/02/2024, recurso da sentença de 18/01/2024 (nos termos da qual o Tribunal “a quo” tinha qualificado como fortuita a insolvência da sociedade P… II, Lda.), tendo nas respetivas alegações (motivações e conclusões) invocado , entre outras, a referida nulidade por omissão de pronúncia (cfr. recurso dos Recorrentes de 08/02/2024, constante dos autos). 19. Logo, o Tribunal “a quo” não tem qualquer razão quando refere que os Recorrentes deviam ter invocado esta nulidade em sede de alegações, pois foi, exatamente, o que também fizeram à cautela!! 20. Pior: por despacho de 08/04/2024 (que, entretanto, transitou em julgado), o Tribunal “a quo” não admitiu o mencionado recurso interposto pelos Recorrente por considerar que, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 8 do CIRE, a decisão do Tribunal de qualificação da insolvência como fortuita, no caso em que tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público proponham essa qualificação, não é suscetível de recurso (cfr. despacho de 08/04/2024, constante dos autos). 21. Logo, a nulidade por omissão de pronúncia que já tinha sido anteriormente, e em tempo, invocada por requerimento autónomo de 06/02/2024, tinha-o sido pelo meio processualmente adequado: mediante requerimento autónomo, precisamente por a sentença de 18/01/2024, que traduz a nulidade, não admitir recurso! 22. O Tribunal “a quo” devia, pois, ter conhecido e apreciado, no âmbito do despacho de 22/04/2024, ora recorrido, a nulidade da sentença de 18/01/2024 por omissão de pronúncia, a qual foi devidamente invocada pelos Recorrentes, por requerimento autónomo de 06/02/2024, perante o Tribunal que proferiu a sentença. 23. Mais se diga que a invocada nulidade da sentença de 18/01/2024 por omissão de pronúncia tem toda a razão de ser, pois, em linha com o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, o Tribunal deve decidir todas as questões que as partes submetam à sua apreciação (cfr. art.º 2.º, n.º 1 e art.º 608.º, n.º 2, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 20 da Constituição da República Portuguesa). 24. Ora, os Recorrentes alegaram factualidade no requerimento que deu início ao incidente de qualificação de insolvência, que não foi considerada na sentença proferida em 18/01/2024. 25. O Tribunal “a quo” deveria ter apreciado todos os factos alegados pelos ora Recorrentes, discriminando na sentença os factos considerados provados e os factos considerados não provados (cfr. art.º 607.º, n.º 3 do CPC ex vi do art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que não foi feito. 26. Os Recorrentes trouxeram aos autos circunstâncias que permitiam, em abstrato, qualificar a insolvência da sociedade P... II, Lda. como culposa, elencando um conjunto de factos, juntando diversos documentos comprovativos e requerendo diligências de prova tendentes a confirmar a subsunção dos factos às previsões das alíneas do n.º 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE. 27. Sucede que os factos invocados pelos Recorrentes não foram objeto de análise pelo Tribunal “a quo” no âmbito da fundamentação da sentença, assim como não foram os documentos comprovativos juntos, nem as diligências de prova requeridas. 28. A sentença de 18/01/2024 mostra-se, pois, omissa nos seus fundamentos de facto e de direito, tendo-se limitado a seguir o sentido dos pareceres da senhora Administradora de Insolvência e do Ministério Público, os quais, por sua vez, também já não se tinham pronunciado sobre as circunstâncias invocadas pelos Recorrentes. 29. Tendo o juiz deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado, a sentença de 18/01/2024 não pode deixar de se considerar nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, tal como os Recorrentes invocaram (e bem) por requerimento autónomo de 06/02/2024. Em suma, 30. O Tribunal “a quo”, ao recursar-se a conhecer e a apreciar a nulidade da sentença de 18/01/2024 (insuscetível de recurso ordinário) com fundamento no facto de que o meio processualmente adequado teria sido o recurso (que o próprio Tribunal julgou legalmente inadmissível por despacho de 08/04/2024 !!) e não o requerimento autónomo de 06/02/2024 apresentado pelos Recorrentes, violou as disposições conjugadas dos artigos 195.º, n.º 1, 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e, ainda, do artigo 615.º, n.º 4 ex vi n.º 1, alínea d) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, 31. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de ter conhecido e apreciado, no âmbito do despacho de 22/04/2024, ora recorrido, a nulidade da sentença de 18/01/2024 por omissão de pronúncia, a qual foi devidamente invocada pelos Recorrentes, por requerimento autónomo de 06/02/2024, perante o Tribunal que proferiu a sentença – razão pela qual deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que assim determine, conforme à correta aplicação das mencionadas normas. 12. Em resposta ao recurso a insolvente requereu a sua não admissão e, subsidiariamente, a confirmação da sentença proferida por não se verificar qualquer nulidade. Formulou as seguintes conclusões: A. Os RECORRENTES vieram novamente interpor recurso nos presentes autos. B. Sendo certo que foi proferido nos presentes autos, no dia 08.04.2024, despacho que não admitiu o recurso da decisão de 18.01.2024. C. Ora, esse despacho considerava que a decisão do Tribunal de qualificação da insolvência não é suscetível de recurso, nos termos do n.º 8 do 188.º do CIRE. D. Para além disso, nos termos do art.º 628.º do CPC, esse despacho já transitou em julgado. E. O trânsito em julgado é também admitido pelos RECORRENTES no seu ponto 20 das conclusões do último recurso de apelação apresentado nos presentes autos. F. Ora, sendo que o despacho já transitou em julgado, e não tendo sido apresentado recurso dessa decisão, não pode ser apresentado recurso “por quem tiver aceitado a decisão depois de proferida”, nos termos do n.º 2 do art.º 632.º do CPC. G. Por último, os RECORRENTES não vêm acrescentar nada de novo aos presentes autos, sendo certo que voltaram a repetir praticamente as primeiras alegações de recurso que já foram apresentadas nos presentes autos no dia 08.02.204. H. Ora, tendo em conta o princípio da economia processual, da cooperação e da boa-fé processual, o que parece que os RECORRENTES estão a tentar fazer é prolongar um processo que já terminou e de facto, tanto o primeiro recurso como o último não poderá ser admissível nos termos dos arts. 630º, n.º 1, e 641º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil ex vi art.º 17º e 188º n.º 8 do CIRE. I. Face ao supra exposto, o presente recurso não deve, nem pode ser admitido. J. Não obstante, e por mera cautela de patrocínio, a Insolvente apresente contra-alegações de recurso nos termos e com os seguintes fundamentos: K. Nos presentes autos de qualificação de insolvência, a Sra. Administradora da Insolvência e o Ministério Público emitiram parecer, pugnando que a insolvência fosse qualificada como fortuita. L. Foi proferida, ao abrigo do disposto no artigo 188.º n.º 8 do CIRE, sentença qualificando a insolvência como fortuita. M. Estipula o referido artigo 188.º, n.º 8 do CIRE, que a sentença de qualificação fortuita, proferida nos termos deste artigo, é insuscetível de recurso, pelo que o mesmo não poderá ser admitido. N. Por mera cautela de patrocínio, a Insolvente pronuncia-se quanto às alegadas nulidades invocadas pelos RECORRENTES, e às quais considera não assistir qualquer razão. O. A tramitação do incidente de qualificação da insolvência está prevista no artigo 188.º do CIRE, o qual não prevê a notificação dos RECORRENTES para exercício do contraditório. P. De facto, o contraditório é exercido com a notificação da Sra. Administradora de Insolvência e do Ministério Publico, ao requerimento dos RECORRENTES, de abertura de incidente de qualificação, e caso os autos devam prosseguir com o exercício de contraditório pelos Requeridos no incidente. Q. Mais acresce que ao incidente de qualificação se aplicam os artigos 132.º a 139.º do CIRE. R. A remissão prevista no n.º 11 do artigo 188.º para os artigos 132.º a 139.º do CIRE, expressam a opção do legislador de celeridade processual, cfr. se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.09.2009, no Proc. 1929/07.0TRFUN. S. A sentença foi proferida após os RECORRENTES alegarem, e de serem proferidos os pareceres da Sra. Administradora e de Insolvência e do Ministério, conforme estipulado legalmente, e sem que tenha sido violado o direito ao contraditório. T. Todos os elementos constantes do parecer da Sra. Administradora de Insolvência já constavam dos autos, e eram do conhecimento dos RECORRENTES, aquando da apresentação do requerimento de abertura de incidente de qualificação, bem como já se encontravam juntos os documentos que os RECORRENTES requereram a junção. U. Por outro lado, a sentença proferida cumpre todos os requisitos legais, previstos no artigo 615.º do Código Processo Civil, e conheceu todas as questões que devia apreciar. V. Mais acresce que não há qualquer indício nem nexo causal, entre a não apresentação de insolvência em momento anterior, e prejuízo para os credores, criação ou agravamento de insolvência, nem tão pouco qualquer indício de culpa. W. Assim, como, o facto de entre 09.03.2020 e 05.07.2023 terem estado suspensos os prazos de apresentação à insolvência, nos termos da Lei 1-A/2020, de 19.03, pelo que, está legalmente afastado o fundamento dos RECORRENTES para a qualificação da insolvência como culposa, por não apresentação à insolvência em momento anterior. 13. Em resposta ao recurso o Ministério Publico pugnou pela sua improcedência e formulou as seguintes conclusões: 1º - Não foi violada qualquer disposição legal, sendo que a decisão não padece de qualquer nulidade, vicissitude ou irregularidade. 2º - Inexiste qualquer motivo para ser concedida razão aos recorrentes, pelo que deve a douta decisão recorrida ser mantida, negando-se provimento ao recurso. 14. O recurso foi corretamente admitido e remetido a esta Relação. II – Objeto do Recurso Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a criar soluções sobre temas de facto e/ou questões jurídicas que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos pedidos, bem como de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos essenciais da causa ou do incidente, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis. Considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões enunciadas pela recorrente, importa apreciar se o interessado requerente da abertura do incidente de qualificação deve ou não ser notificado dos pareceres do AI e do MP que concluam pela qualificação da insolvência como fortuita previamente à prolação de sentença nesse sentido e, na positiva, se a falta dessa notificação é suscetível de influir na decisão final do incidente e importa a sua anulação. Caso não resulte prejudicado mais se apreciará da invocada nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia. III – Fundamentação A) De Facto Com pertinência na apreciação do recurso, para além do acima relatado, do processo de insolvência e apenso de reclamação de créditos mais constam as seguintes incidências processuais: 1. Da petição de apresentação à insolvência consta alegado que: 5.º A Requerente teve como seu último projeto, no exercício da sua atividade, a promoção e construção de um empreendimento imobiliário denominado “Jardins…”, sito na freguesia de Carnide, em Lisboa, composto de reabilitação de edifícios antigos e construção de edifícios novos (…). 6.º As obras dos imóveis ficaram concluídas em finais de 2012, tendo sido emitida licença de habitação pela Câmara Municipal de Lisboa em 19.02.2013, e devidamente promovida e concluída a venda total de todas as frações dos referidos imóveis, nos anos subsequentes. 7.º Tendo a última fração sido vendida a todos os Condóminos em 2017. 8.º Concluído este projeto, a Requerente não exerceu mais a sua atividade, aguardando o termo do prazo de garantia dos imóveis para então depois dissolver e liquidar a sociedade. 9.º Como consequência deixou de ter qualquer rendimento, e apenas despesas. 10.º A Requerente foi suportando as despesas correntes, designadamente bancárias e dos serviços de contabilidade. 11º Foi ainda acompanhando todos os assuntos que foram surgindo quanto ao empreendimento, designadamente quanto a eventuais defeitos de obra, procedendo às necessárias intervenções. 12.º Não obstante, a partir de final de 2018 não tendo conseguido chegar a um acordo amigável com um dos seus clientes – A., que adquiriu uma fração, este veio a intentar ação judicial contra a Requerente. 13º A mencionada ação correu termos sob o Processo n.º …/18.7T8LSB, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 18, intentada por A. e B., em outubro de 2018, no valor €190.000,00. 14.º Tendo a Requerente vindo a ser condenada por acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, transitado em julgado, em 29 de junho de 2023, que confirmou a sentença em primeira instância, (…). 18.º Não obstante de ser a única dívida a terceiros conhecida pelos atuais gerentes encontram-se contabilizadas no balancete de 2022 dívidas a terceiros no valor de €47.140,04 e que se encontram listados no anexo I, mas que se desconhece se são dívidas efetivas e a que se referem, uma vez que transitam contabilisticamente há vários anos sendo anteriores à assunção da gerência pelos atuais gerentes. 19.º A estes valores acrescem suprimentos/dívida da sociedade a sócios que devem ser graduados como crédito subordinado no valor total de €254.979,14 e que se encontram listados no anexo I. 2. Da ficha da insolvente no registo comercial consta: - foi constituída como sociedade anónima e inscrita no registo em 21.12.2007, e designado administrador único F. para o quadriénio de 2007/2010; - em 01.01.2009 foi inscrita a transformação em sociedade unipessoal por quotas e designado gerente aquele administrador; - em 12.11.2010 foi inscrito aumento de capital subscrito por nova sócia e inscritos como sócios F., casado com G. (quota de €50.000,00), e C… Imobiliária, Ldª (quota de €8.823,53), sendo designado gerente por esta sócia D. - em 19.11.2010 constam inscritos como sócios P…, Ldª, C…Imobiliária, Ldª, e F.; - em 23.05.2014 foi inscrita a designação de E. para a gerência, por deliberação de 13.09.2013; - em 22.04.2016 constam inscritos como sócios G., viúva, J... Invest, Ldª, C…Imobiliária, Ldª, e F.. - prestações de contas registadas até 2022, sendo as ultimas referentes ao ano de 2021. 2. Do relatório apresentado nos autos pela AI em 27.10.2023, para além da parcial reprodução do alegado pela insolvente na petição inicial, mais consta que: i) A sociedade não tem trabalhadores.//A sociedade não tem contratos//(…)//Não foi realizado inventário por inexistência de bens//.(…)..” ii) A respeito da contabilidade da insolvente e opinião da AI sobre os documentos da prestação de contas e da informação financeira juntas pelo mesmo, que “[o]s balanços dos últimos anos apresentados (exercício) refletem os seguintes valores: ATIVO CAPITAIS PRÓPRIOS PASSIVO iii) Mais consta que “Por consulta ao Serviço de Finanças, esta informou por ofício não terem sido localizadas dívidas à Fazenda Nacional ou a outra entidade cujos créditos sejam cobrados através de processo fiscal.//(…)// A A.I. apurou através dos créditos indicados pela insolvente em sede de P.I., bem como, pela única reclamação de créditos rececionada, nos termos do art.º 128.º do CIRE que existem dívidas no valor de cerca de 427.693.66 sendo que destas foram reclamados o montante de €172.714.52 em conformidade com a lista provisória de credores (154.º do CIRE) em anexo.//No entanto, por referência à relação de credores junta aos autos pela insolvente nos termos do previsto no artigo conforme o disposto no nº 1 alínea a) do art.º 24º do CIRE, foram indicados cinco nomes individuais como sendo credores, sem qualquer identificação acrescida.//A signatária não pode considerar os referidos nomes indicados na referida relação por ser desconhecida qualquer identificação sobre os mesmos, nomeadamente número de identificação fiscal e morada, verificaram os seguintes: - VG - AA - JF - FL - PF// A insolvente alegou que se desconhece se são dívidas efetivas e a que se referem, uma vez que transitam contabilisticamente há vários anos sendo anteriores à assunção da gerência pelos atuais gerentes.//Mais esclareceu que, os credores não foram devidamente identificados por serem anteriores ao falecimento do gerente F., tendo o referido gerente falecido em 03 de junho de 2013.//(…). 3. Da lista de créditos junta pela AI constam reconhecidos s seguintes: - crédito dos credores requerentes do incidente, reclamado e reconhecido como crédito comum no montante de €172.714,52, do qual €165.000,00 a título de capital e o restante a título de juros de mora vencidos; - créditos não reclamados das sociedades C…Imobiliária, Ldª e J…Invest, Ldª, reconhecidos como subordinados e pelos montantes de €243.322,36 e €11.656,78, respetivamente. B) De Direito 1. A decisão que pelo presente recurso vem submetida à reponderação da Relação corresponde à proferida pelo despacho que incidiu sobre o requerimento pelo qual os requerentes pediram a “anulação de todos os atos praticados no incidente de qualificação após a junção dos pareceres da AI e do MP, designadamente a decisão de qualificação da insolvência como fortuita.” Por esse requerimento e invocando os arts. 197º e 199º do CPC, os recorrentes arguiram nulidade por preterição do direito ao contraditório nos termos previstos pelo art.º 3º, nº 3 do CPC por, previamente à prolação da sentença, não terem sido notificados dos pareceres de qualificação da AI e do MP nem da intenção de o tribunal proferir de imediato decisão, qualificando a falta dessa notificação como omissão suscetível de influir no exame ou na decisão da causa e a sentença que na sequência da mesma foi proferida como decisão-surpresa. Mais arguiram expressamente a nulidade da sentença com fundamento no vício de omissão de pronúncia nos termos previstos pelos arts. 607º nº 3, 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d) do CPC por, alegadamente, a sentença ter omitido a apreciação dos fundamentos de facto e de direito invocados pelos recorrentes nas alegações apresentadas no requerimento de abertura do incidente de qualificação da insolvência. Relativamente à primeira nulidade a decisão recorrida considerou que o CIRE não prevê a notificação ao requerente do teor dos pareceres nem a possibilidade de este sobre eles se pronunciar, e que por estes pareceres não é aberta uma nova fase processual, e concluiu não existir fundamento legal para a invocada violação do contraditório, ao que os recorrentes opõem entendimento diametralmente oposto, reproduzindo em sede de alegações os fundamentos anteriormente alegados perante o tribunal recorrido. Relativamente à nulidade da sentença arguida com fundamento em omissão de pronúncia a decisão recorrida considerou que se o recurso da sentença for admissível os requerentes não a podem invocar em requerimento autónomo, apenas em sede de alegações de recurso e, com esse fundamento, decidiu pelo não conhecimento da dita nulidade; ao que os recorrentes opõem que, não tendo sido admitido o recurso que interpuseram da sentença final do incidente, só poderiam arguir a nulidade que lhe imputam através de requerimento autónomo e perante o tribunal recorrido, cabendo a este conhecer da mesma. Por facilidade de raciocínio e exposição relativamente à questão central do recurso, considera-se antes de mais a impugnação da decisão recorrida na parte em que rejeitou conhecer a arguição da nulidade da sentença com fundamento em omissão de pronúncia. 2. Com exceção da nulidade por falta de assinatura do juiz prevista na al. a) do nº 1 do art.º 615º, as demais causas de nulidade da sentença (taxativamente previstas nesta norma) reportam à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, e consubstanciam defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios formais da sentença ou vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação e decisão. Vícios que não contendem com o mérito da decisão e, por isso, não consubstanciam nem se confundem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto, quer na atividade silogística de aplicação do direito. Os primeiros – vícios formais ou de limites da sentença - dão lugar à anulação da sentença. Os segundos – vícios materiais ou erro de julgamento -, passíveis apenas de censura por via de recurso (da sentença), se admissível, determinam a revogação da decisão. Sendo o recurso admissível, as nulidades da sentença devem ser arguidas no âmbito das alegações de recurso, através das quais são submetidas à liminar apreciação e decisão do juiz ‘a quo’ aquando da apreciação do requerimento de recurso (cfr. art.º 617º, nº 1 do CPC) e, sendo ali desatendidas, submetidas à apreciação do tribunal ad quem que, se entender que o recorrente tem razão, ou supre o vício que afeta a sentença, ou anula-a total ou parcialmente para permitir que seja novamente proferida pela 1ª instância despojada desse vício [2]. Tratando-se de sentença irrecorrível, a nulidade é arguida perante o tribunal que a proferiu e que a este compete apreciar (cfr. arts. 615º, nº 4 e 617º, nº 6, 1ª parte, do CPC). Ora, é precisamente neste ultimo procedimento que se enquadra o requerimento autónomo que os recorrentes dirigiram e submeteram à apreciação do tribunal recorrido e que, perante a inadmissibilidade legal do recurso da sentença que interpuseram - e que o tribunal recorrido rejeitou com esse fundamento -, corresponde à única via ou meio processual legal que para aquele efeito os recorrentes poderiam lançar mão. O que desde já permite concluir pela verificação de erro de julgamento da decisão recorrida na parte em que alijou a competência ou o dever de, através daquele requerimento, conhecer da arguição do vício de omissão de pronúncia que os recorrentes imputaram à sentença de qualificação da insolvência, impondo a sua apreciação pela Relação em substituição do tribunal recorrido nos termos do art.º 665º, nº 2 do CPC caso não resulte prejudicada pela solução da questão da nulidade arguida com fundamento em preterição do contraditório, que em seguida se aprecia. 3. Diversamente das nulidades da sentença, as nulidades que enquadram no art.º 195º, nº 1 do CPC, respeitam a atos de tramitação ou sequência processual (pela prática de ato indevido, prática de ato devido, mas sem observância das respetivas formalidades, ou omissão de ato devido praticar), distinguindo-se por isso daquelas e dos vícios subjacentes, previstos pelo citado art.º 615º, nº 1 do CPC. Nos termos dos arts. 197º, 199º, nº 1 e 149º, nº 1 do CPC, o conhecimento da nulidade processual depende da sua arguição/reclamação perante o tribunal onde foi cometida, e no prazo legal de dez dias subsequentes ao conhecimento da sua prática. A arguição de nulidade processual em sede de recurso e para além do prazo de dez dias subsequentes ao conhecimento da sua prática, por princípio surge processualmente deslocada e extemporânea, pela impossibilidade legal de ser arguida como fundamento de recurso. Esse o sentido do velho brocardo judiciário ‘das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se’, do qual decorre que a ocorrência de nulidade processual deve ser arguida perante o juiz do processo, e só da decisão que vier a ser proferida pode ser deduzido recurso que, ainda assim, é limitado aos casos em que a desconformidade processual fundamento da nulidade contende com os princípios da igualdade ou do contraditório (como é o caso), com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (cfr. arts. 627º, nº 1 e 630º, nº 2 do CPC). Porém, como é justificado por A. Geraldes, P. Pimenta, e L. Sousa[3], nem sempre esta distinção é evidente, como sucede nos casos em que a omissão de determinada formalidade obrigatória - como por exemplo, o cumprimento do contraditório antes de apreciar ‘ex offício’ uma determinada questão - acaba por se traduzir numa nulidade da própria decisão[4]. Nestes casos, ao dar cobertura à irregularidade ou nulidade cometida, e sendo relevante por apta a influir na apreciação da causa, o vício transfere-se e passa a consubstanciar vício intrínseco da própria decisão, porque nela se reflete enquanto produto da omissão de um ato prévio devido praticar, correspondendo esta omissão à causa do vício mas não ao vício em si mesmo. Nesse sentido, entre outros[5], acórdão do STJ de 13.10.2020 - A violação do princípio do contraditório do art.º 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art.º 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma. Nesses casos, a impugnação que com fundamento no aludido vício seja deduzido apenas pode ter como objeto a decisão e não a nulidade de tramitação processual cometida na instância recorrida com fundamento na violação do princípio do contraditório genérica ou amplamente previsto pelo art.º 3º, nº 3 do CPC. Princípio cuja inobservância dá origem à designada decisão-surpresa, essencialmente caracterizada pela imprevisibilidade, precisamente, quando convoca fundamentos e/ou abraça solução jurídica que, por efeito da preterição do contraditório, não foram previamente submetidos à discussão da parte por ela afetada[6]. Nesses casos a decisão é intrinsecamente nula com fundamento em excesso de pronúncia, traduzindo-se o excesso de pronúncia na prolação de decisão sem que os autos estivessem processualmente preparados ou aptos para o efeito (por não ter sido dada às partes – ou à parte afetada - a possibilidade de previamente se pronunciarem (sobre os fundamentos ou solução jurídica). É nesse contexto processual que se enquadra a nulidade arguida com fundamento em violação do contraditório pelo que, apesar de no seu requerimento os recorrentes não terem indicado o objeto dessa mesma nulidade, constata-se e resulta o exposto que a mesma incide sobre a sentença proferida nos autos por vício de excesso de pronúncia previsto pelo art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC, correspondente à designada decisão-surpresa. 4. No cenário delineado nos autos cumpre então aferir se aos recorrentes, requerentes do incidente de qualificação da insolvência, assiste o direito processual de ser notificado dos pareceres posteriormente apresentados pelo AI e pelo MP quando estes proponham a qualificação como fortuita e o tribunal se apreste a decidir nesse sentido. Considerando tratar-se de um apenso ‘natural’ do processo de insolvência, importa antes de mais anotar que o incidente de qualificação da insolvência tem a estrutura de uma causa que é disciplinada e regulada por regras processuais próprias especificamente previstas para a tramitação do incidente de qualificação e por outras do regime geral para as quais expressamente remete e que, conforme dispõem os arts. 17º, nº 1 do CIRE[7] e 546º, nº 1 do CPC, só obrigam à aplicação das regras gerais do CPC em tudo o que não esteja especialmente previsto e desde que não contrarie as disposições do CIRE, o que impõe as devidas adaptações. “Assim, se existir norma aplicável à situação no âmbito do processo civil, esta é aplicável no âmbito da insolvência, não havendo necessidade de recorrer aos critérios de integração de lacunas referidos no art.º 10º do Código Civil.”[8] Inserido no capítulo dedicado ao incidente pleno de qualificação da insolvência, sob a epígrafe Tramitação e no que ao caso releva, o art.º 188º prevê nos seguintes termos: 1 - O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes. (…). 4 - O juiz decide sobre o requerimento de prorrogação, sem possibilidade de recurso, no prazo de 24 horas, e a secretaria notifica imediatamente ao requerente o despacho proferido, nos termos da segunda parte do n.º 5 e do n.º 6 do artigo 172.º do Código de Processo Civil, e publicita a decisão através de publicação na Área de Serviços Digitais dos Tribunais. 5 - O despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência é irrecorrível, sendo de imediato publicado no portal Citius. 6 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa. 7 - O parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias. 8 - Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso. 9 - Caso não exerça a faculdade que lhe confere o número anterior, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam. 10 - O administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no número anterior. 11 - É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132.º a 139.º, com as devidas adaptações. 12 - (…). Com as alterações introduzidas pela Lei nº 16/12 de 20.04 o art.º 36º, nº 1, al. i) do CIRE passou a prever que Na sentença que declarar a insolvência, o juiz: Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação (…), conferindo ao juiz o poder discricionário de aferir da pertinência da abertura do incidente em sede de prolação de sentença que, assim, passou a eventual, por oposição à natureza obrigatória que até ali detinha. Conforme consta da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 39/XII aprovada em Conselho de Ministros de 30.12.2011, “Outra das novidades consiste na transformação do actual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processos de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa colectiva.” No caso de o incidente de qualificação da insolvência não ser oficiosamente aberto com a declaração da insolvência, o AI e qualquer interessado têm a faculdade de o requerer, alegando para o efeito o que tiverem por conveniente no prazo de 15 dias após a assembleia de credores para apreciação do relatório ou, não sendo designada, após a junção aos autos desse relatório, e indicando as pessoas que no seu entender devem ser afetadas pela qualificação, sendo novamente deferido ao juiz o poder-dever de, liminarmente, aferir da tempestividade do pedido e da pertinência da abertura do incidente se o considerar justificado face aos factos alegados e outros elementos que os autos revelam. Aberto o incidente, caso o AI não tenha sido o requerente compete-lhe apresentar parecer obrigatório e fundamentado sobre a qualificação da insolvência e, após os autos são continuados com vista ao MP para que fundadamente se pronuncie a respeito, concluindo um e outro pela qualificação da insolvência como culposa ou como fortuita. Se ambos propuserem a qualificação como fortuita, o nº 8 do art.º 188º prevê que ‘o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido. Como se referiu, a decisão recorrida considerou que a decisão que o juiz entenda proferir nestes termos não está dependente da prévia notificação do requerente do incidente, o que justificou com o facto de nem esta formalidade nem a possibilidade de o requerente se pronunciar sobre aqueles pareceres constarem previstas no CIRE, e que sequer se justificaria na medida em que os pareceres do AI e do MP convergentes na proposta de qualificação da insolvência como fortuita não abrem qualquer outra fase processual. Discordamos desta conclusão/posição por referência aos fundamentos em que se ancora, de ausência de previsão legal para a reclamada notificação, e de ausência de nova fase processual subsequente aos pareceres concordantes do AI e do MP. Com efeito, após a apresentação do parecer pelo AI e da pronúncia pelo MP abre-se uma nova fase processual na tramitação do incidente que, conforme é referido na decisão recorrida, poderá ser uma de duas vias: ou de prosseguimento do incidente e da fase dos articulados através da citação dos indicados à afetação para, querendo, deduzirem oposição aos fundamentos e aos pedidos deduzidos no incidente (que, para além da qualificação como culposa, podem incluir o pedido de fixação de uma concreta duração das inibições a aplicar e de um determinado montante ou valor da indemnização a fixar a cargo dos afetados); ou de julgamento do incidente se, debruçando-se sobre o mérito das alegações e dos pareceres, o juiz entender que os factos alegados pelo requerente do incidente e/ou outros disponíveis nos autos não são suscetíveis de preencher os pressupostos da insolvência culposa, caso em que, fundamentadamente[9], profere decisão final de qualificação da insolvência como fortuita, como, desde já se adianta, foi cumprido no caso. Por referência à fase do julgamento prevista em alternativa ao prosseguimento da fase dos articulados, não obstante o sentido que a literalidade do art.º 188º, nº 8 também comporta e é suscetível de induzir - o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido -, impõe-se concatenar e compreender o âmbito e sentido das ‘possibilidade’ e ‘imediatez’ que nesses termos prevê, não como admissão legal de uma decisão acrítica (de preceito) por osmose com a proposta coincidente dos pareceres do AI e do MP e (por isso) com dispensa de qualquer ato processual prévio, mas por contraposição com a possibilidade alternativa (à prolação de decisão final nesse sentido e nessa fase inicial do incidente), de ordenar o prosseguimento dos autos através da prolação de despacho de citação dos indicados à afetação, possibilidade que, conforme se prevê no nº 9 do art.º 188º, existe independentemente de o incidente ter sido ou não requerido por credor ou outro interessado, bastando para tanto que o juiz entenda que os factos disponíveis nos autos (alegados ou documentados no incidente e no processo de insolvência, incluindo todos os demais apensos, por atendíveis nos termos do art.º 11º do CIRE) são abstratamente suscetíveis de preencher a fattispecie dos pressupostos da insolvência culposa previstos pelo art.º 186º, mormente de qualquer uma das qualificativas previstas pelo nº 2, cujas presunções legais (inilidíveis) se bastam para concluir pela insolvência culposa. Como é referido por Catarina Serra, “Agora, não há dúvidas de que os pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Púbico no sentido da qualificação da insolvência não impedem o juiz de averiguar os factos ao abrigo do art.º 11.º, e de qualificar a insolvência como culposa, quando assim o entenda. Por maioria de razão, fica esclarecido que, na hipótese-limite de se configurar uma das situações descritas no n.º 2 do art.º 186.º, o juiz pode – e deve – fazê-lo.”[10] Assim, ainda que na sequência dos pareceres convergentes do AI e do MP o tribunal profira decisão final de qualificação da insolvência como fortuita, tratando-se de incidente aberto por iniciativa de um credor ou outro interessado essa decisão não corresponde ao exercício de uma ‘faculdade’, no sentido de uma opção arbitrária ou discricionária do juiz pela proposta dos pareceres, mas sim ao resultado da apreciação, valoração e enquadramento jurídico da factualidade alegada e de outra eventualmente disponível nos autos, a partir da qual o juiz deverá fundamentar juridicamente a qualificação da insolvência em sentido divergente ao requerido (apreciação que, de resto, e desde já se avança, foi cumprida pela decisão recorrida) [11]. Neste cenário, que é o dos autos, à exigibilidade da notificação dos pareceres ao requerente do incidente não obsta o facto de não constar expressamente prevista nos termos da tramitação do incidente especialmente regulados pelo art.º 188º, designadamente, pelo seu nº 8. Essa notificação impor-se-á ou não em função da tutela do princípio constitucional do contraditório que o teor das alegações dos interessados e dos pareceres suscitem, nos mesmos termos em que se imporia cumprir no processo comum por imposição do princípio geral previsto pelo art.º 3º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE. Como se referiu, o incidente de qualificação da insolvência apresenta a estrutura de uma causa na categoria das ações de natureza declarativa, no âmbito da qual o credor requerente deduz uma pretensão formulando o pedido dela objeto, de qualificação da insolvência como culposa, com todos os legais efeitos que dele decorrem, designadamente, a condenação dos afetados a indemnizar os credores da insolvência até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos pelo produto da liquidação. Efetivamente, para além dos efeitos de natureza pessoal e de natureza eminentemente sancionatória que para os afetados emergem da qualificação da insolvência - a implicarem limitações temporárias ao exercício de determinadas atividades e cargos (cfr. als. b) e c) do nº 2 do art.º 189º) -, a lei mais consagrou efeitos de natureza patrimonial que, independentemente da natureza que na ótica do legislador assumam (sancionatória, ressarcitória, ou ambas), beneficiam a massa insolvente e, consequentemente, os credores da insolvência, através da perda de créditos dos afetados sobe a insolvência ou sobre a massa insolvente e restituição dos bens recebidos para pagamento dos mesmos, e da condenação dos afetados a indemnizarem os credores do devedor insolvente (cfr. als. d) e e) do nº 2 do art.º 189º). Nessa medida, e para além da legitimidade que os credores sempre deteriam como interessados afetados pela situação de insolvência do devedor, o incidente de qualificação da insolvência e a sentença que nele for proferida tem reflexo direto na sua esfera jurídica patrimonial[12] pelo que, sendo o credor legalmente admitido a requerer a abertura do incidente, requerendo-a e formulando pedido em conformidade, assume a qualidade de parte do incidente. Só assim se justifica que a lei lhe reconheça legitimidade para recorrer do despacho de indeferimento do pedido de abertura do incidente que deduziu (cfr. nº 5 do art.º 188º, a contrario). “As partes são as entidades que pedem ou contra as quais é pedida em juízo a tutela de uma situação jurídica.”[13] Nestes termos acompanhamos o acórdão da Relação do Porto de 22.03.2018 citado pelos recorrentes na parte em que refere que “Apresentadas as alegações, o apresentante passa a ser considerado parte processual e, como tal, deve ter personalidade judiciária, capacidade judiciária, legitimidade e deve fazer-se representar por advogado. Ou seja, devem estar preenchidos os pressupostos processuais relativamente às partes, tal e qual qualquer parte civil em processo declarativo civil (conforme o disposto nos artigos 17º do CIRE, 5º a 13º e 21 º a 26º do CPC). Porém, e divergindo do que nos parece ser parte da fundamentação desse e dos demais acórdãos que os recorrentes citam nos autos[14], a questão da notificação dos pareceres do AI e do MP ao credor requerente do incidente (ou que nele apresentou alegações) não se confunde nem encontra justificação ou conexão jurídico-legal com a questão do valor e efeito desses mesmos pareceres sobre os termos da ulterior tramitação dos autos ou do sentido da decisão que o juiz entenda proferir, mais concretamente, com o referido poder-dever de, não obstante aqueles pareceres, o juiz proceder à sindicância e valoração jurídica dos factos alegados e disponíveis nos autos e de ordenar a citação dos indicados à afetação pela qualificação se entender que existem elementos suscetíveis de enquadrar a insolvência culposa. A questão da notificação convoca e contende com o princípio do contraditório positivado no art.º 3º, nº 3 do CPC, que aqueles acórdãos também convocam; a questão do dever de sindicância e valoração judicial dos factos alegados e de outros elementos que resultem dos autos convoca e contende com os princípios da reserva jurisdicional e do direito de ação, este ultimo, no caso de algum credor ter oportunamente requerido a abertura do incidente de qualificação ou, tendo sido oficiosamente aberto na sentença de insolvência, de nele ter apresentado alegações tendentes à sua qualificação como culposa, nos termos igualmente previstos pelo art.º 188º, nº 1, assistindo-lhe o direito de ver apreciados os fundamentos e o pedido que deduziu e, ao tribunal, o dever de cumprimento dessa apreciação (cfr. art.º 2º do CPC). O que ora nos ocupa é a violação do princípio do contraditório com fundamento na falta de notificação dos pareceres concordantes do AI e do MP prévia à prolação da sentença que decide pela qualificação da insolvência no sentido por aqueles proposta (como fortuita), dando já por justificado e adquirido que o credor que oportunamente apresentou alegações e requereu a qualificação da insolvência como culposa tem a qualidade de parte no incidente de qualificação da insolvência. Muito sinteticamente, o contraditório constitui princípio processual com dignidade constitucional transversal a qualquer procedimento judicial no sentido de conferir a cada parte o direito de, em condições de igualdade de intervenção (nas mesmas quantidade e qualidade), discutir as causas de pedir e os pedidos apresentados ao juiz e os fundamentos que aos mesmos sejam opostos, e de conheceram e discutirem as questões processuais ou de mérito oficiosamente suscitadas pelo juiz e que este pretenda conhecer ou nas quais pretenda fundamentar a sua decisão e, assim e em qualquer caso, a possibilidade de as partes por ela afetadas influenciarem o sentido da que vier a ser tomada. É neste âmbito que surge a designada e já acima referida decisão-surpresa – vício que os recorrentes imputam à sentença proferida pelo tribunal recorrido e que por efeito do presente recurso pretendem ver anulada –, por conhecer de factos, fundamentos ou de questões de direito relativamente às quais não foi dada às partes a possibilidade de previamente sobre elas se pronunciarem e apresentarem os seus argumentos e, nessa medida, contribuírem na formação do sentido da decisão, do que é cabal exemplo o conhecimento de questões oficiosamente suscitadas pelo tribunal, impondo-se ao tribunal notificar previamente as partes para sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art.º 3º, em casos de manifesta desnecessidade. Nas pertinentes palavras de A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, “A regra do nº 3 pretende impedir que (…) as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão. (…). A audição das partes apenas pode ser dispensada em caso de manifesta desnecessidade (…) sempre que as partes não possam, objetivamente e de boa fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências”. E acrescentam, “Tal como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objetivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título excecional, apenas se justificando quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final.”[15] Em síntese, a designada decisão surpresa só o é quando confronta as partes com resultados inesperados por não ter sido facultada a discussão que a lei prevê de acordo com a regular tramitação dos autos, ou a imposta pelo respeito pelo princípio geral do contraditório previsto pelo art.º 3º, nº 3 do CPC. Já vimos que a regulação da tramitação especialmente prevista pelo CIRE não prevê a notificação dos pareceres do AI e do MP ao credor requerente do incidente, pelo que a questão sob apreciação só pode encontrar resposta no art.º 3º nº 3 do CPC, nos termos do qual O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Compreendida nestes termos a preterição do contraditório e o vício da decisão-surpresa a que dá causa, e divergindo novamente dos acórdãos citados pelos recorrentes, afigura-se-nos que a notificação ao requerente da insolvência dos pareceres que proponham a qualificação da insolvência como fortuita e previamente à prolação de sentença que decida nesse sentido não é devida em qualquer caso em que assim suceda, mas apenas se por aqueles pareceres forem introduzidas e submetidas a apreciação questões/fundamentos de facto ou de direito distintos e em contraposição com as invocadas nas alegações do credor, sendo certo que a qualificação da insolvência como culposa ou como fortuita constitui o objeto natural do incidente e da sentença nele a proferir e com a qual as partes têm necessária e antecipadamente que contar, da mesma forma que uma ação instaurada para obtenção de decisão de condenação do demandado comporta simultaneamente e à partida a possibilidade de a decisão ser de absolvição do pedido. Com efeito, o princípio do contraditório não comporta o direito processual de as partes serem confrontadas com um qualquer projeto ou manifesto do sentido da decisão sobre o objeto do processo previamente à prolação da mesma. Cientes deste requisito da novidade como elemento constitutivo da invocada preterição do contraditório, os recorrentes alegaram que os pareceres assentam em elementos novos (relativamente aos por eles próprios alegados). Porém, do confronto entre as alegações da qualificação apresentadas pelos recorrentes e o teor dos sintéticos pareceres da AI e do MP constata-se sem qualquer dificuldade que estes não só não invocaram factos ou questões novas como sequer contrapuseram o que fosse aos fundamentos de facto e de direito alegados pelos credores que, como acima se explicitaram, resumem-se à cessação da atividade da insolvente desde 2017 e à ausência de perceção de lucros por esse motivo, ao incumprimento do dever de apresentação à insolvência no prazo de 30 dias após o seu conhecimento pelos gerentes da insolvente, que os credores alegaram ser anterior a 2020, ao agravamento do passivo da insolvente que concretizam nos valores dos resultados negativos dos últimos 3 anos referidos no relatório da AI[16] e no valor negativo do capital próprio em 2022, à ‘injeção’ de capital pela sócia C…. Imobiliária, Ldª em 2017, e à venda das últimas lojas da insolvente em 2017. Mais alegaram que com o incumprimento do dever de apresentação à insolvência presume-se a existência de culpa grave dos administradores e que tanto determina a qualificação da insolvência como culposa. Pelos pareceres que apresentaram, a AI e o MP (que remete para aquele) limitaram-se a confirmar a ausência de atividade da insolvente nos últimos 3 anos (por se restringirem a este período temporal os factos relevantes para a qualificação da insolvência como culposa) e a informar da inexistência de trabalhadores a laborar, o que em relação ao facto cessação da atividade desde 2017 nada acrescenta com a virtualidade de qualificar ou desqualificar este facto e muito menos contrariar os demais alegados pelos credores. O mesmo relativamente à informação da inexistência de bens que, para além de implícita na transmissão dos últimos imóveis da insolvente em 2017 alegada pelos credores, não se opõe nem altera a descrição factual por estes apresentada, à qual os pareceres também não opõem uma qualquer apreciação jurídica distinta posto limitarem-se a expressar a ausência de conhecimento sobre factos suscetíveis de fundamentar a qualificação da insolvência como culposa. Desta feita, a notificação dos pareceres aos recorrentes não se apresenta nestes autos como formalidade devida cumprir previamente à prolação da sentença por não conterem questões de facto distintas ou em oposição às alegadas pelos credores, nem existirem outras questões a apreciar para além das oportunamente submetidas pelos próprios recorrentes no requerimento de abertura do incidente, sendo certo que, como é afirmado pela decisão recorrida, e sem prejuízo da atendibilidade dos factos relevantes que resultem da instrução da causa[17] (cfr. art.º 11º), “[d]ecorre da tramitação legalmente prevista que o requerente da insolvência deve alegar todos os fundamentos do seu pedido no requerimento de abertura do incidente.” Acresce que, para além da constatação da proposta de qualificação como fortuita apresentada pelos pareceres da AI e do MP e da inexistência de factos novos por estes aportados aos autos, a apreciação de mérito operada pela sentença incidiu única e exclusivamente sobre “as razões” expostas pelos requerentes, circunstância que sempre impossibilitaria a formação do vício que lhe imputam, de decisão surpresa. Conclusão que as palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2019[18] reforçam: “Todavia, vem sendo uniformemente entendido na doutrina e na jurisprudência que as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, isto é, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes, sendo que o campo privilegiado de valência desta proibição são as questões de conhecimento oficioso. // Assim sendo, só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de tal forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso. // Neste sentido refere Lopes do Rego, que a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo (…), entendimento que este Tribunal vem afirmando repetidamente decidindo no sentido de que só há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e sem alicerce na matéria factual ou jurídica, enveredar por uma solução que os sujeitos processuais não tinham a obrigação de prever.” 5. Finalmente, e suprindo a acima confirmada ausência da apreciação, pelo despacho recorrido, da nulidade da sentença arguida pelos recorrentes com fundamento em omissão de pronúncia, decorre do já exposto que esta não se verifica na medida em que, contrariamente ao que os recorrentes alegam, o tribunal a quo pronunciou-se sobre o mérito dos fundamentos alegados pelos credores para justificar a abertura do incidente e a qualificação da insolvência como culposa, tendo concluído pela qualificação como fortuita porque, valorando-os, concluiu que os mesmos são juridicamente irrelevantes por inaptos a fundamentar o efeito pretendido pelos recorrentes, refutando quer a violação da obrigação de apresentação à insolvência por efeito da suspensão legal dessa obrigação entre março de 2020 e julho de 2023 (que foi excecionalmente determinada por lei produzida no âmbito e por causa da pandemia Covid-19), quer salientando a ausência de alegação de factos que permitissem concluir que a não apresentação à insolvência agravou essa situação, bem como de factos que permitissem concluir que já então a insolvente estivesse incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas, como manifestamente consta dos seguintes segmentos da fundamentação da sentença: “No caso concreto acresce (…) a circunstância de os credores requerentes apoiarem o seu pedido unicamente na não apresentação à insolvência, sem terem em conta o período de suspensão da obrigação de apresentação à insolvência que esteve em vigor em 2020 e 2021[19]. Finalmente, se diga que, da norma do nº1 do art.º 186º resulta que, para que a insolvência é necessário que seja a actuação (ou omissão) que se qualificou como culposa ou com culpa grave do devedor, e não outra, a concorrer, intercedendo em termos de causalidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência TRP de 07.01.08, consultável in www.dgsi.pt. Por conseguinte, para que a falta de apresentação à insolvência relevasse para efeitos da qualificação da insolvência como culposa, teríamos que ter invocados factos que permitissem concluir que aquela circunstância criou ou agravou a situação de insolvência, o que não sucede no caso dos autos, uma vez que os requerentes apenas invocam a cessação da actividade, mas já não que nessa data a insolvente estivesse já incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas.” Em rigor o que se constata é que a apreciação operada por via da sentença que os recorrentes reputam de nula poderia ter sido liminarmente realizada no despacho que recaiu sobre o pedido de abertura do incidente de qualificação da insolvência; despacho que, como dos seus termos consta, não implicou uma apreciação dos factos alegados e um juízo sobre a proposta qualificação ou afetação, nem o mesmo é suscetível de produzir caso julgado formal (mais não fosse, por tratar-se de despacho irrecorrível). E assim o tribunal veio a constatar e, cumprindo o princípio da economia processual, a abster-se de prosseguir o incidente após a apresentação dos pareceres por entender, como da sentença se extrai, que o mesmo se apresentava manifestamente improcedente face aos fundamentos alegados pelos requerentes[20] e à ausência de outros fundamentos aportados pelos pareceres da AI e do MP. Neste contexto sequer cumpria proferir decisão de facto na precisa medida em que o tribunal recorrido considerou que os alegados não detinham qualquer relevância para a qualificação da insolvência como culposa. Nesta senda, relembra-se que não cumpre aqui sindicar a bondade da apreciação de mérito levada a cabo pela sentença de qualificação da insolvência posto que a decisão objeto da reponderação devida cumprir pelo presente recurso não é a sentença, mas o despacho que incidiu sobre as arguições de nulidade da mesma que, como do exposto decorre, não se verifica. Termos em que se conclui pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela não verificação das nulidades da sentença arguidas pelos recorrentes, ainda que com fundamentos distintos dos considerados pela decisão recorrida. III – Decisão Pelo exposto, os Juízes desta secção acordam em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a ausência de verificação das nulidades da sentença arguidas pelos recorrentes e objeto do despacho recorrido. Custas da apelação a cargo dos recorrentes. Lisboa, 01.10. 2024 Amélia Sofia Rebelo Nuno Teixeira Paula Cardoso _______________________________________________________ [2] Vd. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 150. [3] CPC Anotado, GPS, Almedina, Vol. I, 2ª ed. , p. 762. [4] Acrescentando aqueles autores que nesse caso se ajusta a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada se aquele for admissível, ou mantendo-se a sua arguição por requerimento autónomo, se o não for [5] Acórdãos da RP de 02.03.2015, proc. 39/13.6TBRSD.P1, de 02.12.2019, proc. nº 14227/19.8T8PRT, da RE de 28.03.2019, proc. 208/10.0TBRDD-B.E1, da RG 31/10/2018, proc. nº 1101/15.6T8PVZ-C.G1, da RL 15.03.2018, proc. 23267/17.0T8SLB.L1, do STJ de 23.06.2016, proc. 1937/15.8T8BCL.S1, e de 13.10.2020, proc. 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, todos disponíveis na página da dgsi, assim como os demais sem indicação de outra fonte. [6] Nesse sentido, comentários de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão da RP de 07.10.2019, proc. nº 400/19.2T8AMT-D.P1, e ao acórdão do STJ de 02.06.2020, proc. nº 496/13.0TVLSB.L1.S1, disponíveis em blogippc.blogspot.com [7] Diploma a que pertencem as demais normas citadas, salvo indicação em contrário. [8] Luis Menezes Leitão, CIRE Anotado, 11ª ed., p. 76. [9] Fundamentação que, na ausência de alegações e pedido em sentido contrário, mas sem prejuízo do trabalho de análise nesse sentido, pode bastar-se com a mera referência à inexistência nos autos de factos suscetíveis de enquadrar os pressupostos legais da insolvência culposa. [10] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, p. 304. [11] Nesse mesmo sentido, Rui Oliveira Estrela: “Com o conceito de interessados pretendeu-se que todas aquelas pessoas que demonstrassem ter tido um contacto relevante com o/a insolvente, ou um relevante interesse jurídico na decisão final do incidente, pudessem conformar o incidente com a alegação dos factos por eles julgados pertinentes. Por isso, afigura-se ilógico que, em momento posterior, se retire tal legitimidade e se prescinda de um pronunciamento por parte do juiz sobre os factos alegados pelos interessados.” (em Revista Julgar, n.º 11 – 2010, “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, pp. 224 e ss.) [12] Foi este critério – do âmbito da tutela legal que o incidente de qualificação da insolvência dispensa aos credores - que presidiu ao julgamento operado pelo acórdão nº340/2011 de 07.11 do Tribunal Constitucional, citado na sentença de qualificação proferida pelo tribunal recorrido, tendo os Srs. Conselheiros concluído pela não inconstitucionalidade do art.º 188º, nº 4 do CIRE na redação original do preceito “no segmento em que estabelece que, se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere decisão nesse sentido mesmo que haja interessados que tenham manifestado posição diversa”, com fundamento, em síntese, no pressuposto de que “a finalidade do incidente e dos efeitos que da qualificação da insolvência como culposa podem decorrer é a tutela do interesse geral e, só reflexamente, o interesse comum dos credores. Não o de cada credor individualizado, que não sofre com o encerramento do incidente privação de qualquer meio de defesa judicial do seu crédito ou de impugnação dos créditos concorrentes, incluindo os daqueles que poderiam ser atingidos por tal qualificação. Deste modo, não sendo o credor individualmente afectado nos seus direitos e interesses legalmente protegidos com a qualificação da insolvência como fortuita, a Constituição não impõe que lhe seja assegurada legitimidade para fazer prosseguir o incidente de qualificação da insolvência.” Pressuposto que se imporá considerar anulado pela alteração posteriormente introduzida ao art.º 189º pela Lei nº 16/12, na parte em que aditou aos efeitos da qualificação da insolvência como culposa a condenação das pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor no (na redação atual conferida pela Lei nº 9/22 de 11.01, até ao) montante dos créditos não satisfeitos (cfr. al. e) do nº 2 daquela norma). [13] J. de Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, Vol. I, p. 19. [14] Designadamente, acórdão da RG de 24.10.2019, de cujo sumário consta que “I- Surgindo pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público, no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, diversamente do requerido pelo credor interessado, que deu origem à abertura do respetivo incidente de qualificação de insolvência como culposa, antes de proferir decisão sobre a qualificação da insolvência, o juiz deverá ouvir aquele credor requerente para, querendo, exercer o princípio do contraditório (art.º 3º, n.º 3, do C. P. Civil, ex vi do art.º 17º, do CIRE), sendo certo que atualmente os pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, não impedem o juiz de averiguar os factos, ao abrigo do disposto no art.º 11º do CIRE, e de qualificar a insolvência como culposa, quando assim o entenda.” [15] CPC Anotado, GPS, Vol. I, 2ª ed., p. 22 [16] Anotando-se que os valores que os recorrentes apontam como resultados negativos em cada ano de 2020, 2021 e 2022 correspondem aos resultados acumulados e não aos resultados de cada exercício. [17] Mas que pressupõe que os autos reúnam condições que justifiquem prosseguir para essa fase. [18] Proc. nº 1808/03.0TBLLE.E1.S1, disponível na página da dgsi. [19] Extrai-se do sentido e contexto do segmento que só por lapso ficou a constar 2021 quando se terá pretendido referir 2023, em conformidade com a Lei nº31/2023 de 04.07, que determinou a cessação da vigência das leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COvid-19, e entrou em vigor a 05.07.2023, anotando-se a este respeito que a insolvente foi apresentada à insolvência em 09.08.2023. [20] O que reforça a desnecessidade/inexigibilidade da notificação dos pareceres aos recorrentes por analogia com o disposto no art.º 590º, nº 1 do CPC, que permite o indeferimento liminar do pedido valorado como manifestamente improcedente, possibilidade processual que, não obstante ultrapassada a fase liminar pelo despacho que determina a abertura do incidente, se mantém na fase inicial do incidente prévia à constituição da relação processual através da citação dos indicados à afetação. |