Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
685/2006-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLÉMIA
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O direito de regresso da seguradora, nos termos do artigo 19º, alínea c) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, impõe-lhe o ónus de provar que ocorre nexo de causalidade adequada entre a condução sob influência do álcool e o acidente.
II- Um tal ónus deve considerar-se verificado comprovando-se que o condutor, com taxa de alcoolémia de 2,03 g/l, saiu da sua mão de trânsito, invadindo o lado esquerdo da via, apresentando-se a via a subir para o referido condutor, sendo o piso bom, a faixa de rodagem larga, descrevendo curva de fraca visibilidade.
III- É que, não existindo nenhuma razão minimamente justificativa para levar o condutor a efectuar manobra tão perigosa, a partir da um juízo de prognose ulterior, impõe-se a conclusão de que foi a influência do álcool no sangue, determinativa de incapacidade sensitiva e neuromotora diminuidora da percepção e reacção na actividade de condução automóvel, a causa efectiva e adequada da produção do acidente.

(SC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa

I. Proc.º n.º 685/06


Pretensão: condenação do R. a pagar ao A. a quantia de €1.358.

Alega em síntese: que a seguradora não tem direito de regresso sobre a quantia paga, uma vez que, não pode ser provado o nexo de causalidade entre o acidente ocorrido e a taxa de alcoolémia que o recorrente apresentava no momento da ocorrência do acidente de viação.

Foi proferida decisão que julgou a acção inteiramente procedente.

É contra esta decisão que se insurge o recorrente formulando as seguintes conclusões;

1ª Para haver direito de regresso da A.(seguradora) tem esta de provar o nexo de causalidade adequada entre o álcool existente no sangue do condutor (R.) e a produção do acidente;

2ª No caso dos autos, não se tendo provado esse nexo de causalidade não tem a A. (seguradora) direito de regresso sobre o R.

3ª Ao assim não entender a douta Sentença recorrida faz uma má interpretação do disposto na alínea c) do artigo 19º do Decreto – Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro.

4ª Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que absolva o R. do pedido.


Em contra-alegações a apelada concluiu assim:

1ª O recorrente foi o único responsável pelo acidente em causa, por ter invadido o lado esquerdo da via, onde embateu no NL que aí circulava em sentido contrário ao seu;

2ª A sua velocidade era tal que fez recuar o NL.

3ª A saída do lado direito da via do veículo do recorrente, deve-se ao facto de o mesmo não ter tido a capacidade reflexiva bastante para, atenta a velocidade que circulava, controlar o CR.

4ª Incapacidade, motivada pela taxa de alcoolemia que o recorrente apresentava, como nos ensinam os cientistas que estudam a influência do álcool no sangue dos humanos.

5ª Não existindo outro motivo que explique a saída do veículo do recorrente da sua mão de trânsito.

6º Sendo certo que tal comportamento não é típico dos condutores “normais”.

7ª Estão assim preenchidos os requisitos essenciais para que seja consagrado o direito da A. a ser reembolsada pelo R. de acordo com o preenchimento com o preceituado na al.c) do art. 19º do DL 522/85 de 31 de Dezembro.

II.1. A questão que cumpre resolver consiste em saber se o facto do apelante conduzir sob o efeito álcool, por si só, dá o direito à seguradora em exercer o direito de regresso sobre a quantia paga para reparação de danos das viaturas de terceiros, ao abrigo do artigo 19º de Decreto-Lei 522/85 de 31 de Dezembro, sem ter de ser demonstrado que a taxa de alcoolémia foi a causa do acidente ocorrido.

II.2.1. Em primeira Instância foram provados os seguintes factos:

1º No dia 1 de Janeiro de 2001, pelas 06:30 horas, o veículo ligeiro de matrícula […] CR, conduzido pelo R. seguia na Estrada da Barquinha – Corredoura, no sentido Sesimbra/ESTRADA Nacional nº 379.

2º Em sentido oposto circulava o veículo ligeiro de matrícula […] NL, conduzido por D. […].

3º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o CR e o NL embateram um no outro.

4º Depois do embate referido em C), o NL foi embater de traseira no veículo ligeiro de matrícula […] FB, que estava estacionado.

5º No local do embate o piso é bom, a faixa de rodagem tem cerca de 8 metros de largura, está dividida a meio por um traço contínuo e faz uma curva de fraca visibilidade para a direita, atento o sentido de circulação do CR.

6º No momento do acidente estava a chover.

7º O R. apresentava uma TAS de 2.03g/l.

8º A A. efectuou um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice […] destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da condução do veículo ligeiro de matrícula […] CR.

9º Foi participado à A. a ocorrência do acidente, envolvendo o […] CR e os veículos ligeiros […] NL e […] FB.
10º O R. saiu de mão de trânsito, invadindo o lado esquerdo da via.

11º Embateu com CR e NL.

12º O condutor do NL circulava com uma TAS de 1.34g/l.

13º O NL circulava a uma velocidade de cerca de 40km/h e com as luzes ligadas em médios.

14º No local do embate, a estrada apresentava-se a subir para o CR e a descer para o NL.

15º Com o embate referido em C), o NL foi projectado para trás.

16º Aquando do embate mencionado em D), o FB estava estacionado na berma do lado direito, atento o sentido de marcha do NL.

17º O FB ficou com a frente lateral esquerda danificada.

18º O NL ficou com a frente esquerda e traseira direita totalmente danificadas.

19º A reparação do NL importou em 1.212.407$00.

20º A reparação do FB importou em 117.937$00

21º A A. custeou a reparação do NL E DO FB.

22º Em 22 de Março de 2001, a A. solicitou ao R. o reembolso das quantias referidas em 18 e 19 (da base instrutória).  

II.2. Sobre a verificação do nexo de causalidade.

Para que o dano seja reparável pelo autor do facto não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano.
 
Daí que a condução sob o efeito do álcool, embora permitindo concluir pela culpa do condutor na produção do acidente, não pode fazer presumir os pressupostos do direito de regresso: precisamente a existência de um nexo de causalidade entre o álcool e o acidente.

Por outras palavras, o direito ao reembolso pela seguradora tem por fundamento não apenas a condução sob o efeito do álcool mas também o nexo causal entre esta e a produção do acidente.(1)

E a lei basta-se com factos que embora não reveladores por si sós da realidade, permitem, a partir de uma leitura integrada e à luz da experiência comum, concluir que são causa adequada da produção do acidente (artºs 349 e 351 CC).

No caso dos autos, muito embora a seguradora não tenha feito uma demonstração directa do nexo causal, fazendo um juízo de prognose póstumo sobre se o acidente teria ocorrido caso o recorrente não tivesse aquela mesma taxa de alcoolemia, somos levados a concluir que, com grande probabilidade (suficiente para produzir um juízo conclusivo), tal não teria acontecido.

Em primeiro lugar porque o R. não provou qualquer justificação para a invasão da faixa contrária à sua mão de trânsito. É que nada sobreveio no sentido de que existisse na via qualquer obstáculo que tivesse obrigado o R. a fazer uma manobra tão perigosa, como seja colocar-se na faixa de rodagem do sentido de trânsito contrário ao que levava. O facto de o outro condutor também circular com elevada taxa alcoolémia (embora inferior à do R) não basta para neutralizar esta leitura dado o circunstancialismo relevante dado como provado (factos sob os nºs 10 a 14).

Em segundo lugar, as relatadas circunstâncias do acidente (tais como: o facto de o R. ter saído da mão de trânsito, invadindo o lado esquerdo da via; o NL circular a uma velocidade de cerca de 40km/h e com as luzes ligadas em médios; no local do embate a estrada apresentar-se a subir para o CR e a descer para o NL; tendo o NL sido projectado para trás), permitem concluir que o acidente não teria ocorrido se não fosse o grau de alcoolémia com que o R. conduzia.

Na verdade, atendendo às regras de experiência comum e informada, a condução sob influência de 2,03g de álcool, por litro de sangue, era idónea a provocar no condutor incapacidade sensitiva e neuromotora diminuidora da sua percepção e reacção na actividade condução automóvel, (2) causal da produção do acidente.

Conclui-se, por isso, que a recorrida fez prova bastante, por via indirecta, através dos factos que permitem inferir tal conclusão, do nexo causal que lhe cumpria provar (art.º 342/1 CC).

III. Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais aplicáveis, nega-se provimento à apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante, em ambas as instâncias.

Lisboa, 30 de Maio de 2006

(Maria Amélia Ribeiro)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)



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(1).-Acórdão do STJ de 07.03.2002, Rel. Garcia Marques: …É que a condução sob o efeito do álcool não é, por si mesma, e sem outra averiguação, necessariamente causal do acidente. Representa um perigo, passível de corresponder a uma contra-ordenação grave, ou muito grave, mas haverá que saber se esse perigo foi causa adequada da produção do evento.

(2).-Acórdão do STJ de 11.03.2004, Relator Salvador da Costa.