Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24801/21.7T8LSB-A.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: TRIBUNAIS DO TRABALHO
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRIBUIÇÕES DA SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: Os Tribunais do Trabalho são materialmente incompetentes para conhecer do pedido formulado pelo trabalhador de condenação do empregador a regularizar o pagamento das contribuições à Segurança Social em conformidade com as retribuições reais que vier a ser apurado em sede sentença (art.os 5.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, 10.º do DL n.º Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de Junho, 33.º do DL n.º 8-B/2002, de 15 de Janeiro 188.º do CRCSPSS, 1.º, n.º 4 e 9.º, n.º 1 da Portaria n.º 417/2012, de 19 de Dezembro e respectivo Anexo I, 102.º, 203.º e 237.º do CPPT, 126.º da Lei 62/2013 de 24/10 e 4.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1 alínea c) do ETAF).


(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


IRelatório.


AAA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra BBB, na qual, além do mais, pediu que ré fosse condenada "na regularização do pagamento das Contribuições à Segurança Social, em conformidade com as retribuições reais do A., que vier a ser apurado em sede sentença".

Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.

Para tal notificada, a ré contestou, invocando, para o que ora importa, a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal de Trabalho para conhecer daquele pedido.

Respondeu o autor sustentando que tal excepção é desprovida de fundamento fáctico e jurídico.
             
A Mm.ª Juiz a quo proferiu então despacho saneador no qual, inter alia, julgou improcedente a referida excepção dilatória.

Irresignada, a ré recorreu desse segmento do despacho, pedindo que seja revogado e declarado que o Tribunal a quo é naquela medida absolutamente incompetente em razão da matéria e, consequentemente, no que a ele respeita, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"1.Os Tribunais de Trabalho não têm competência para conhecer da relação contributiva existente entre a entidade empregadora e o Instituto da Segurança Social, I.P, uma vez que a competência em matéria cível daqueles tribunais está limitada às matérias taxativamente previstas no art.º 126.º da Lei 62/2013, de 26/08, e nenhuma delas atribui tal competência.
2.Em especial, no que respeita à eventual extensão da competência por via do disposto no art.º 126.º, alínea b) da Lei 62/2013, de 26/08, a obrigação de entregar à Segurança Social as contribuições sociais devidas não decorre directamente da celebração, execução ou violação do contrato de trabalho, mas sim da violação de um dever contributivo perante aquele Instituto.
3.Com efeito, resulta do disposto nos artigos 59.º, n.º 1 e 60.º, n.º 1 da Lei 4/2007 e art.os 38.º, 39.º e 42.º do Código dos Registos Contributivos do Sistema Providencial da Segurança Social, que o Instituto da Segurança Social, IP tem competência exclusiva para providenciar pelo cumprimento das obrigações e cobrança das respectivas contribuições.
4.A apreciação sobre a obrigação de liquidar e pagar as contribuições eventualmente devidas ao Instituto da Segurança Social, I.P, e o seu eventual incumprimento, não cabe aos Tribunais do Trabalho, cuja jurisdição tem como função apreciar litígios entre particulares, e não entre particulares e o Instituto da Segurança Social que integra a administração indirecta do Estado.
5.Também não se verifica a extensão da competência material dos Tribunais de trabalho por via do disposto na alínea n) do art.º 126.º da Lei 62/2013, de 26/08, uma vez que embora as contribuições sociais incidam sobre o valor das atribuições pecuniárias de cariz salarial do Requerido, elegíveis como base tributável para aquele efeito nos termos gerais dos art.º 44.º e segs. daquele Código Contributivo, são créditos do Instituto da Segurança Social, IP:
6.Pelo que, entre os dois pedidos (créditos salariais por um lado, e a regularização de eventuais contribuições em falta perante a Segurança Social, por outro) não existe a conexão necessária para efeitos de aplicação daquele preceito legal, uma vez que a formulação de um não depende da formulação do outro – vide neste sentido Ac. do STJ de 15.02.2005, sob o proc. n.º 04S3037.
7.Este entendimento é preconizado pela jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais (Ac. do TRP de 14.12.2017, sob o proc. n.º 21041/15.8T8RT-A.P1, Ac. do TRP de 09.09.2013, sob o proc. n.º 577/12.8TTLMG.P1, Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 27.10.2004 e de 04.10.2006 sob o proc. n.º 03/06, Acórdãos do STJ de 15.02.2005, sob o proc. n.º 04S3037 e de 03/05/2000, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
8.É da competência e da Jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, designadamente, dos Tribunais Tributários, e não da competência especializada dos Tribunais do Trabalho (art.º 211.º, e 212.º da CRP, art.º 40.º, 81.º, 126.º, n.º 1, 144.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovado pela Lei n.º 62/2013 de 24/10 e art.º 4.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1, alínea c) do ETAF).
9.Assim, não restam dúvidas que, ao contrário do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, o Juízo do Trabalho de Lisboa é material e absolutamente incompetente para conhecer do pedido de condenação da ora Recorrente no pagamento de contribuições sociais ao Instituto da Segurança Social, I.P, o que determina que a respectiva decisão judicial seja revogada pelo Tribunal ad quem e, em consequência, seja substituída por outra que decida pela procedência da excepção da incompetência em razão da matéria alegada pela ora Recorrente
10.E, por via disso, seja absolvida da instância quanto a este singular pedido diz respeito (art.º 576.º, n.º2 e 577.º, alínea a), 96.º, alínea a) e 99.º do CPC).
11.Motivos pelos quais se considera que a decisão em recurso viola o direito na interpretação e aplicação que faz das regras que definem a competência material dos Tribunais, em matéria cível, designadamente, do art.º 126.º da Lei 62/2013 de 24/10 e 4.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1 alínea c) do ETAF, ao decidir pela improcedência da excepção dilatória de incompetência absoluta material do Tribunal de Trabalho para apreciar e decidir do pedido de condenação da ora Recorrente a regularizar as eventuais contribuições à Segurança Social que sejam devidas".

O autor não contra-alegou ao recurso da ré.

Admitido o recurso na 1.ª Instância para subir imediatamente e em separado dos autos e remetido a esta Relação, foram os autos com vista ao Ministério Público,[1] tendo a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sido de parecer que "a decisão não se mostra correcta, dado que a competência para a apreciação daquele pedido caberá aos tribunais tributários", citando nesse sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 28-02-2018 (p. 0907/17) e do Tribunal da Relação do Porto de 14-12-2017 (p.21041/15.8T8PRTA.P1), concluindo, em consonância com isso, que a apelação deve ser provida.

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos,[2] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[3]

Assim, porque nenhuma destas nele se coloca, a questão a resolver é a de saber se:
os Tribunais do Trabalho são materialmente competentes para conhecer do pedido formulado pelo trabalhador de condenação do empregador a regularizar o pagamento das contribuições à Segurança Social, em conformidade com as retribuições reais que vier a ser apurado em sede sentença.
***

IIFundamentos.

1.O despacho saneador (segmento relevante):
"A Ré veio suscitar a incompetência material do tribunal de trabalho para conhecer do pedido de condenação da demandada a regularizar o pagamento das contribuições à segurança social em conformidade com as retribuições reais do autor a apurar em sede de sentença.
Sufraga, em síntese, que as contribuições para a Segurança Social correspondem a obrigações tributárias cujo credor é a Segurança Social e nessa medida inserem-se no âmbito da relação jurídico-administrativa.
Donde, conclui ser a apreciação de tal diferendo da competência da jurisdição dos Tribunais Administrativos.
O Autor pronunciou-se pela improcedência da excepção dilatória em apreço.

Decidindo

Como bem perspectiva o Autor o pedido de condenação da Ré a regularizar as contribuições à Segurança Social constitui um corolário dos outros pedidos de condenação da empregadora no pagamento de créditos laborais reclamados na petição inicial, alegadamente por violação dos direitos do trabalhador. Mais acresce que o pagamento dessas contribuições à Segurança Social condiciona os valores a receber em caso de subsídio de desemprego, de doença e de reforma.

Ora, constitui entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico que a competência em razão da matéria se afere pela forma como o Autor configura a acção a avaliar pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes.

Nesta esteira, atento o conflito a dirimir tal como é gizado pelo Autor na petição inicial é inequívoca a competência material do Tribunal de Trabalho para conhecer do pedido em apreço por emergente de uma relação laboral firmada entre o Autor e a Ré, esta na qualidade de entidade empregadora.

Por conseguinte, julgo improcedente a excepção dilatória em análise".

2.O direito.

Os termos da questão são tal-qual equacionadas pela apelante e pela Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta pelo que seria fastidioso repetir argumentos ali tratados, incluindo os reportes jurisprudenciais, de resto ad nauseam usque, que expressamente afastam a validade do argumentário do despacho apelado. Apenas se acrescenta, mas ainda assim em linha com o ali referido, que tanto a competência declarativa (vale dizer, para liquidar as contribuições devidas),[4] quanto a executiva (com vista ao seu cumprimento coercivo, na falta de pagamento voluntário pelo contribuinte ou terceiro),[5] cabem ao Instituto da Segurança Social, I. P.,[6] pelo que nunca poderia ser declarada pelo Tribunal do Trabalho ou outro qualquer, a não ser os Tribunais Administrativos e Fiscais (no caso, o Tributário) e ainda assim apenas por via da impugnação judicial da sua liquidação na fase declarativa[7] ou, na fase executiva, através de oposição à execução[8] ou de embargos de terceiros.[9]

Assim sendo, deve conceder-se a apelação, julgar procedente a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal de Trabalho para conhecer do pedido de condenação da apelante ré "na regularização do pagamento das Contribuições à Segurança Social, em conformidade com as retribuições reais do A., que vier a ser apurado em sede sentença" e, em consequência, nessa parte revogar o despacho saneador e absolver a mesma da instância.
***

IIIDecisão.

Termos em que se acorda conceder a apelação, julgar procedente a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal de Trabalho para conhecer do pedido de condenação da apelante ré "na regularização do pagamento das Contribuições à Segurança Social, em conformidade com as retribuições reais do A., que vier a ser apurado em sede sentença" e, em consequência, nessa parte revogar o despacho saneador e absolver a mesma da instância.
Custas pela apelada (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).


Lisboa, 15-02-2023


(António José Alves Duarte)
(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)



[1]Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
[2]Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[3]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[4]Embora se trate de uma obrigação declarativa do empregador, conforme resulta dos art.os 5.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio e 10.º do Decreto-Lei n.º Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de Junho, a inércia deste pode ser oficiosamente suprida pelos respectivos serviços, nos termos do art.º 33.º do Decreto-Lei n.º 8-B/2002, de 15 de Janeiro.
[5]Art.os 188.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e 1.º, n.º 4 e 9.º, n.º 1 da Portaria n.º 417/2012, de 19 de Dezembro e respectivo Anexo I.
[6]Numa solução algo bizarra e provavelmente inédita no concerto das Estados civilizados, é certo, mas pacificamente seguida desde a bruma dos tempos e que não cabe aqui avaliar.
[7]Art.º 102.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário.
[8]Art.º 203.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário.
[9]Artigo 237.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.