Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1775/05.6YXLSB-E.L1-1
Relator: ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1- O art. 2086º do C. Civil não é uma norma taxativa, exemplificando a lei os casos em que a pena de remoção pode ser imposta e na apreciação e na interpretação dos fundamentos legais, ainda fica margem para um grande arbítrio do julgador.
2- A obrigação de prestação de contas deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e que o administrador se não afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõem.
3- A prestação de contas será reveladora da capacidade e da competência do cabeça-de-casal e, como tal, será sempre um indício coadjuvante na avaliação da sua remoção ou não.
4- A má administração tem de se deduzir de factos que inequívocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1-Relatório:

No âmbito do processo de inventário instaurado por óbito de A e de B veio o interessado, C, requerer ao abrigo do disposto nos nºs 3 e 4 do art. 1339º do CPC., a remoção da cabeça-de-casal, D, invocando que esta não presta contas da sua administração, tendo o ora requerente intentado as respectivas acções especiais, mantém a ocupação da loja do prédio da Av. ..., nº ..., por um seu filho, sem pagamento de renda e a omissão na relação de bens de bens que integram a herança.

Notificada de tal incidente deduziu a cabeça-de-casal a sua oposição, pugnando pela sua improcedência por manifesta falta de fundamento e por não conforme à realidade.

Prosseguiram os autos, tendo sido proferida decisão a julgar improcedente o incidente de remoção deduzido.

Inconformado recorreu o requerente, concluindo nas suas alegações, em síntese:
- A omissão reiterada de prestação de contas e entrega da percentagem do saldo que por lei pertence a cada co-herdeiro constitui causa para remoção do cabeça-de-casal.
- Integrando os fundamentos das alíneas b) e c) do n°. 1 do art. 2086° do C. Civil.
- Disposições legais que nesse sentido têm de ser interpretadas tendo presentes os n°s. 1 e 3 do art. 9° do mesmo Cód. Civil uma vez que conduta tão afrontosa de direitos de terceiros que ao Tribunal cumpre salvaguardar não pode manter-se indefinidamente na ordem jurídica sem que o Tribunal a sancione, pondo-lhe termo.
- Permitir a ocupação gratuita de uma loja da herança por uma sociedade de que um filho é sócio-gerente em vez de a arrendar e perceber as rendas inerentes ao arrendamento, bem como, pagar um salário e um subsídio de Natal à porteira do único prédio da herança com cheques sem cobertura e não regularizar a situação em mais de 3 meses constitui administração não prudente e zelosa do acervo hereditário e preenche a causa de remoção de cabeça-de-casal prevista na alínea b) do n°. 1 do art°. 2086° do C. Civil.
- O cabeça-de-casal não relacionar como bens a partilhar bens móveis que tem na sua posse e bem sabe integrarem a herança, mesmo depois de a situação ser expressamente denunciada como causa de remoção no incidente próprio, implica essa remoção por a situação preencher a previsão das alineas a) e c) do já referido n°. 1 do art°. 2086° do C. Civil.
- O conjunto de todas as situações referidas nas conclusões supra, praticadas por um mesmo cabeça-de-casal revela, sem margem para dúvidas, a sua incompetência para o exercício do cargo o que, mais uma vez, constitui fundamento para a sua remoção, tal como previsto na alínea d) do supra referido n°. 1 do art°. 2086° do C. Civil.
- Ao ter julgado improcedente o incidente de remoção da cabeça-de-casal dos autos, o despacho recorrido violou o disposto, entre outros, nos seguintes arts. do C. Civil: art°. 2086°, n°. 1, 2093°, 2092° e 9°, n°s. 1 e 3.
Por seu turno, contra-alegou a requerida em síntese:
- A recorrida só pode constatar da boa decisão proferida pelo Tribunal a quo, indeferindo a requerida remoção de cabeça-de-casal, tendo em conta a sua douta fundamentação, e bem assim a conformidade com a norma vigente e a douta jurisprudência.
- O recorrente usa o presente recurso para, faltando à verdade, manejar factos visando entorpecer a justiça.
- Não é verdade que a cabeça-de-casal e recorrida não tenha cumprido os seus deveres, desde logo porque, contrário ao afirmado, procedeu à apresentação das contas da herança.
- Poderia não ser do modo e com o resultado que o recorrente desejaria, mas tal é bem diferente de não ter apresentado contas.
- Aliás o recorrente tem meios disponíveis a que pode recorrer, o que tem feito, para suscitar essa prestação de contas, quando não aceita o que lhe foi apresentado.
- Mas não é tal prestação de contas o devido fundamento para requerer a remoção de cabeça-de-casal.
- Por não corresponder à verdade, e até ser ofensivo ao bom nome da recorrida e cabeça-de-casal, a invocação desta se ter apropriado da totalidade dos rendimentos da herança não é fundamento à sua remoção, tanto mais que se prova ter sido antes o recorrente que procedeu ao levantamento de uma quantia significativa da conta da herança, sem a devida autorização e conhecimento antecipado da cabeça-de-casal.
- Aliás a cabeça-de-casal e recorrida tem tentado gerir o património da herança, a saber um imóvel, arrendando fracções com a condição dos inquilinos procederem às obras necessárias, pois de outra forma seria impossível esse arrendamento por falta de liquidez do senhorio (herança), sendo tal proceder a uma verdadeira gestão, de que afinal o recorrente não revela o mínimo interesse em conhecer.
- O recorrente mente e omite factos para tentar provar as suas teses, como seja o invocado arrendamento de uma loja ao filho da recorrida, sem o pagamento de qualquer valor, tentando demonstrar a má e lesiva gestão da cabeça-de-casal.
- Ora a verdade, como resulta provado dos documentos no incidente, a dita loja foi utilizada por uma sociedade cujos sócios são o filho do recorrente e o filho da recorrida, o que aquele conhece, mas omite, visando apenas atingir os seus objectivos, mesmo que venha a fazer um uso torpe dos autos.
- Sendo que tal situação datava de 2004, vindo apenas a ser invocada nesta data, porque o recorrente necessitava de vir suscitar o presente incidente a todo o custo, mesmo que não lhe assistisse qualquer razão.
- Assim revela-se que essa invocação não colhe como fundamento para remoção de cabeça-de-casal, antes colheria sim para condenar o recorrente como litigante de má fé, como aliás foi requerido em sede de resposta ao incidente, e que o Tribunal a quo deixou para avaliação futura.
- Tão pouco colhe a menção de algum cheque sem provisão que tenha sido entregue à porteira, desde logo porque ela não é parte nos presentes autos de inventário, e ao mesmo tempo porque aquela se eventualmente se considerasse prejudicada, teria os meios apropriados para invocar o seu direito, nunca através do recorrente, como parece acontecer, num incidente de remoção de cabeça-de-casal.
- E muito menos colhe a invocação de omissão de relacionar alguns bens da herança por parte da cabeça-de-casal e recorrida, mencionando aqui a sonegação de bens.
- Ora tal revela a má fé do recorrente, e mesmo a sua ignorância processual, salvo o devido respeito, pois se entendia que a cabeça-de-casal não havia relacionado todos os bens, cabia-lhe reclamar, o que não fez até á presente data, e em última possibilidade suscitar o incidente de sonegação de bens.
- Mas a verdade é bem outra, a saber, que o recorrente nunca reclamou de quaisquer bens que não tivessem sido relacionados, sendo que mesmo assim o Tribunal a quo já se pronunciou também sobre a questão, pelo que tão pouco colhe esse argumento para fundamentar a remoção da cabeça-de-casal.
- Para que seja deferida a remoção de cabeça-de-casal seria necessário que manifestamente se estivesse perante uma actuação dolosa ou grave negligência por parte da recorrida, do que o recorrente não faz a mínima prova.


Foram colhidos os vistos.


2- Cumpre apreciar e decidir:

As alegações de recurso delimitam o seu objecto conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 660º, nº2, 684º, 664º, 690º e 749º, todos do CPC.

A questão a dirimir consiste em aquilatar sobre a remoção ou não da cabeça-de-casal.

A matéria de facto com pertinência para a decisão é a constante do presente relatório e ainda a seguinte:
- O ora requerente intentou acção especial de prestação de contas contra a ora recorrida.
- O Tribunal já se pronunciou no processo de inventário em curso sobre a reclamação contra a relação de bens e tal despacho transitou em julgado.

Vejamos:
Insurge-se o recorrente sobre o despacho que julgou improcedente o incidente de remoção da cabeça-de-casal, por ter sido entendido que «No caso sub júdice, os factos alegados pelo requerente a fls. 231 e seguintes, além de excederem o objecto do processo de inventário e do presente incidente, não são susceptíveis de integrar as situações legalmente previstas para a remoção da cabeça-de-casal».
Ora, o recorrente alicerça a sua pretensão na circunstância de a cabeça-de-casal omitir a prestação de contas, de permitir a ocupação gratuita de uma loja da herança por uma sociedade de que um filho é sócio-gerente em vez de a arrendar, de fazer pagamentos à porteira do prédio, único imóvel da herança, com cheques sem cobertura e de não relacionar bens móveis que tem na sua posse e que integram a herança.
Estatui o art. 2086º do Código Civil, o seguinte:
1-O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:
a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei de processo lhe impuser;
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.
Compulsada a factualidade, apenas temos como assente que foi intentada uma acção de prestação de contas pelo requerente contra a requerida e que relativamente à relação de bens foi apreciada uma reclamação, a qual já foi decidida por despacho transitado.
Porém, nenhum facto foi enunciado no despacho recorrido sobre a aludida prestação de contas, apenas havendo nos autos uma junção de um documento pelo recorrente incompleto e sobre a reclamação contra a relação de bens, também nada se diz, remetendo-se para um despacho proferido, cujo teor se desconhece.
O art. 2086º do C. Civil não é uma norma taxativa, exemplificando a lei os casos em que a pena de remoção pode ser imposta e na apreciação deles e na interpretação dos fundamentos legais, ainda fica margem para um grande arbítrio do julgador (cfr. França Pitão, in Processo de Inventário, 4ª ed., pág. 87).
Como alude, Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol. III, a obrigação de prestação de contas deriva da administração da herança, como garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e que o administrador se não afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõem.
A relação jurídica que se estabelece entre o cabeça-de-casal e os interessados conduz a uma obrigação de prestar as contas dos rendimentos da herança, enquanto se mantiver indivisa, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 2031º, 2079º e 2093º, todos do C. Civil.
A questão é duvidosa já que há quem entenda que o dever de prestação de contas se possa incluir entre os deveres processuais do cabeça-de-casal, mesmo grosso modo, como o entendia, Lopes Cardoso, na obra já supra citada e, quem entenda o contrário, nomeadamente, no Ac da R.L. de 23-11-2004, in http://www.dgsi., onde se alude que, «O dever de prestar contas não constitui um dever processual do cabeça-de-casal cujo cumprimento deva ser provado no âmbito do processo de inventário e que caso seja incumprido determine a remoção de tal cargo.
Tal dever aparece no artigo 2093º do C. Civil e não tem expressão autónoma na tramitação principal ou incidental do processo de inventário».
Não está em questão minorar o dever de prestar contas, mas da sua inclusão ou não no art. 2086º do C. Civil para efeitos de remoção daquele cargo.
Apesar de não nos pretendermos alongar com tal questão, sempre diremos que a prestação de contas será reveladora da capacidade e da competência do cabeça-de-casal e, como tal, será sempre um indício coadjuvante na avaliação da sua remoção ou não.
Na situação concreta, existindo uma acção para prestação de contas, contudo, não se sabe a que período respeita, nem quais os factos ali apurados, ou sequer o seu desfecho.
O mesmo raciocínio se aplica relativamente à reclamação da relação de bens que já foi alvo de apreciação transitada, desconhecendo-se a respectiva factualidade e fundamentação.
Ainda, no que diz respeito aos restantes fundamentos invocados, como, a permissão da cabeça-de-casal, da ocupação gratuita de uma loja da herança em vez de a arrendar, materializa-se uma completa lacuna de elementos.
Ora, uma tal conduta a provar-se poderia integrar-se nas alíneas b) ou c) do artigo 2086º. do C. Civil.
Para se poder apurar da existência de uma administração imprudente ou pouco zelosa do acervo hereditário, necessário se tornava a indagação da situação real, ou seja, se de facto o património não estava a ser bem gerido, se havia diligências feitas para o arrendamento do imóvel, ou se ao invés o mesmo estaria a ser usufruído por outrém de modo gratuito.
A má administração tem de se deduzir de factos que inequívocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal.
Tendo sido alegada factualidade, nada se referiu no despacho recorrido a tal respeito, apenas se dizendo que «os factos alegados pelo requerente, além de excederem o objecto do processo de inventário e do presente incidente, não são susceptíveis de integrar as situações legalmente previstas para a remoção da cabeça-de-casal, nos termos supra expostos», ou seja, fez-se uma apreciação do texto do art. 2086º do Código Civil, mas sem o inerente suporte factual que merecia a situação concreta.
As diversas alíneas daquele preceito, não permitem um seu afastamento automático, sem uma cabal justificação.
Na situação em apreço, o Sr. Juiz a quo, não descreveu qualquer factualidade, não tendo dilucidado o que estava provado do que não estava, nem tendo feito qualquer esclarecimento sobre a sua convicção.
A ausência de decisão sobre a matéria de facto, vicia o despacho recorrido e impede a este Tribunal, a prolacção de uma decisão conscienciosa, no sentido de se aquilatar devidamente da correcta ou incorrecta postura da cabeça-de-casal, com vista a continuar a exercer ou não tal cargo, necessitando o incidente de uma maior indagação, o que passa pela instrução do mesmo, anulando-se o despacho proferido e determinando-se o prosseguimento daquele para que se proceda a posterior decisão.


3- Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em conceder provimento ao agravo, anulando-se o despacho proferido e determinando-se o prosseguimento do incidente para posterior decisão.

Custas a cargo da parte vencida a final.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2009

Rosário Gonçalves
Maria José Simões
Graça Araújo