Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
399/21.5T8MFR-D.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
MEDIDAS DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663.º, n.º 7, do CPC)
I - Não obstante a natureza de jurisdição voluntária do processo judicial de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo (cf. art.º 100.º da LPCJP), não deixa o tribunal de estar sujeito, nas decisões a proferir, a um dever de fundamentação, conforme decorre do art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa, e do art.º 295.º ex vi do art.º 986.º, n.º 1, que remete para o art.º 607.º, todos do CPC.
II - Toda a intervenção protetiva das crianças e jovens deve ser necessária e adequada, sendo indispensável para aferir da necessidade da aplicação, a título cautelar e provisório, de uma determinada medida de apoio, nos termos dos artigos 35.º, n.º 1, al. a), 37.º e 39.º da LPCJP, proceder a um juízo de avaliação, ante os elementos probatórios disponíveis.
III - No caso dos autos, sendo tão escassos (e até contraditórios) tais elementos aquando da realização da Conferência de pais, mostrando-se a factualidade apurada insuficiente para habilitar o tribunal a discernir, com o mínimo de rigor, se a Menor se encontra(va) numa situação de perigo que justificasse a aplicação, a título cautelar, da medida de apoio promovida pelo Ministério Público, apenas cumpria determinar o prosseguimento do processo (que é urgente), de modo a recolher os elementos probatórios indispensáveis, incluindo informação sobre o sistema familiar, para fazer essa avaliação em momento posterior.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs o presente recurso de apelação do despacho proferido em 23-04-2024, no âmbito do processo de promoção e proteção relativo à menor “AA”, que indeferiu a promoção atinente à aplicação, a título provisório, de medida de apoio junto dos Progenitores, na pessoa da Mãe, “BB”.
Este processo judicial (apenso C do processo, já findo, de regulação das responsabilidades parentais) teve início na sequência da remessa, em 19-04-2024, pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Mafra do processo relativo à referida Menor, para apensação ao processo de promoção e proteção relativo ao seu irmão, “CC”, nascido em 13-05-2007 (Apenso B, em que foi aplicada medida de promoção e proteção a favor do Menor, de apoio junto dos Progenitores, até 30-06-2024, prorrogada conforme despacho proferido em 19-02-2024).
Do expediente enviado resulta que:
1. A “AA” nasceu em 09-10-2014, sendo filha de “BB” e de “DD”.
2. A menor foi sinalizada à CPCJ de Mafra pela GNR da Malveira, em 15-04-2024, por exposição a violência doméstica (indicador 75).
3. A sinalização por parte da GNR da Malveira foi feita na sequência da elaboração de um auto de notícia de violência doméstica, em 14-04-2024, a que foi atribuído o NUIPC (…)/24.2GBMFR, em que é identificada como vítima a referida mãe dos menores, aí se dando conta, além do mais, que a menor “AA” estivera exposta à violência verbal e física dirigida à sua mãe, por parte do atual companheiro desta, “EE”, com quem mãe e filhos residem.
4. No auto consta ter sido relatado pela referida Progenitora que, no dia 11-04-2024, na sua residência, o companheiro atirou-lhe uma garrafa de vidro, que lhe causou pequenos cortes no pé, agrediu-a com um estalo na face esquerda, e agarrou-lhe no braço esquerdo e no pulso direito, provocando neste um hematoma.
5. Mais consta, no referido auto, ter sido relatado pela Progenitora que, no dia 14-04-2024, se deslocava do campo de futebol de Alcainça para casa, com o seu companheiro, o qual vinha a conduzir o carro em que também seguiam a criança “AA”, uma amiga da mãe (“FF”) e o filho desta (“GG”), tendo-se gerado uma discussão, levando a que os quatro passageiros abandonassem o veículo daquele e continuassem o caminho apeados para a residência daquela amiga; e que, nessa ocasião, o referido companheiro tentou por duas vezes abalroar as duas crianças e as duas adultas, que tiveram de se refugiar na garagem da amiga da mãe.
6. Mais consta do auto, que, segundo relatou a Sr.ª “FF” à GNR: “estas situações são recorrentes de violência entre o casal, ao qual não foram reportadas” (sic).
Foi proferido despacho em 23-04-2024, designando data para a realização da Conferência de pais (a mesma data que já se encontrava agendada para a audição do irmão “CC” no apenso B).
Foi declarada aberta a instrução (despacho de 23-04-2024).
Em 23-04-2024, foi realizada Conferência de pais, em que estiveram presentes os Progenitores, tendo sido ouvida a Menor, constando da respetiva ata ter dito o seguinte:
“(…) está a viver com a mãe e que visita o pai aos fins-de-semana. Diz que as coisas entre a mãe e o padrasto já estão boas e que só tiveram uma discussão.”
Consta também da referida ata ter sido dito pela Progenitora o seguinte: “o que aconteceu não era o que estava no auto de notícia e foi desvalorizado o sucedido.”
Finda a diligência, o Ministério Público usou da palavra, com a seguinte Promoção:
“Tendo em conta que tanto a progenitora como os filhos “CC” e “AA” com as suas declarações desvalorizaram o episódio relatado pela GNR no auto com o NUIPC nº (…)/24.2GBMFR; Que o pai não dispõe de condições pessoais e profissionais para receber os filhos temporariamente atendendo ao seu trabalho por turnos; Considerando que se desconhece o teor da avaliação de risco, por não constar do expediente enviado à CPCJ e considerando que nesta presente data o inquérito instaurado no DIAP Regional de Lisboa - 6ª secção não espelha a prática de quaisquer atos processuais nomeadamente 1º despacho de diligências de inquérito e por ultimo considerando que a atitude da vítima “BB” parece não revelar insight suficiente quanto ao potencial de perigo para si e para os filhos de repetição de novos episódios de violência promove-se ao abrigo do disposto no art.º 37 da LPJP, enquanto não se procede à avaliação pormenorizada da situação, a aplicação da medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa da progenitora “BB”, com vista ao imediato acompanhamento por parte do NIJ e eventual disponibilização de apoio psicossocial à vitima e eventualmente às crianças.
Mais se promove solicitação ao NIJ relatório de avaliação social de diagnóstico no prazo de 30 dias.
Mais se promove a solicitação à GNR da Malveira para que de imediato reporte aos presente autos quaisquer novos episódios de conflitualidade conjugal entre a progenitora “BB” e o respetivo companheiro e, por último que se oficie ao inquérito (…)/24.2GBMFR que informe os presentes autos se irá aplicar medida de proteção à vítima em tele assistência e ou medida coativa ao denunciado.”
De seguida, na mesma conferência, foi proferido o Despacho (recorrido) com o seguinte teor:
“A aplicação da medida promovida é, na nossa perspetiva, ineficaz; isto é, nada protegeria, tendo de ser a mãe que o faz, e fez quando na situação descrita nos autos ficou na casa da amiga, e foi chamada a GNR, sendo que agora as coisas, diz, foram faladas, e não avalia perigo, e que se voltar a acontecer mais alguma coisa separa-se do companheiro.
Por outro lado, da audição da criança nada resultou quanto a medo ou trauma.
E não se encontra presente o companheiro da progenitora, o alegado causador da situação de perigo.
Importa, pois, melhor avaliar o caso, o que não está feito, sendo certo que o NIJ face á avaliação a efetuar como infra ordenado estará junto ao sistema familiar, e existindo algum problema será logo reportado.
Assim, por ora vai indeferida a medida promovida pelo Ministério Público.
Oficie à GNR, posto da Malveira como promovido.
Determina-se a avaliação do caso pelo NIJ, a efetuar até ao dia infra designado para avaliação global do caso, com formação parental para o padrasto, dando o NIJ conta da avaliação oralmente na diligência.
Notifique.
*
Assim para continuação da presente diligência, com a avaliação do caso, sem a presença da menor, e a do padrasto, determina-se
- Para sessão conjunta de formação parental sobre a mecânica do desenvolvimento das crianças, apenas com a presença PADRASTO, designa-se o próximo dia 21-05-2024, pelas 9 horas.
- E, para continuação da diligência, com a audição dos progenitores, PADRASTO em conferência de pais a que alude o artigo 107.º do LPCJP, designa-se esse mesmo dia pelas 12 horas.
Notifique com as legais advertências.
*
Remeta a presente ata ao NIJ e o expediente que originou a abertura deste Promoção e Proteção, e a ata aos progenitores por email (PDF), ou não estando disponível, com cópia em papel por aviso postal simples.”
É desta decisão que o Ministério Público veio interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. A criança “AA”, nascida em 09.10.2014, foi sinalizada à CPCJ de Mafra pela GNR da Malveira em em 15.04.2024, por exposição a violência doméstica (indicador 75), juntamente com o seu irmão mais velho, já acompanhado no Apenso B – cf. ref. CITIUS (…)13, de 19.04.2024.
2. Resumindo: no dia 11.04.2024, na residência das crianças, o companheiro atirou à mãe das crianças uma garrafa de vidro, que lhe causou pequenos cortes no pé, e bateu bateu-lhe com um estalo na face esquerda, agarrou-lhe no braço e pulso direito, provocando hematomas.
3. Depois, no dia 14.04.2024, no caminho do campo de futebol de Alcainça para a casa das crianças, o companheiro da mãe transportou esta, a criança “AA”, uma amiga da mãe (“FF”) e o filho desta (“GG”), tendo-se gerado uma discussão, levando a que os quatro ocupantes abandonassem o veículo daquele e continuassem o caminho apeados para a residência da amiga da mãe (“FF”). Nessa circunstância, o companheiro tentou por duas vezes abalroar as duas crianças e as duas adultas, que tiveram de se refugiar na garagem da amiga da mãe.
4. Finda a conferência de pais realizada em 23.04.2024, o MP promoveu a aplicação da medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada junto da progenitora, enquanto se procedia à avaliação da situação sinalizada.
5. O despacho recorrido indeferiu a promovida aplicação de medida cautelar com fundamento na sua alegada ineficácia [«A aplicação da medida promovida é, na nossa perspetiva, ineficaz; isto é, nada protegeria, tendo de ser a mãe que o faz, e fez quando na situação descrita nos autos ficou na casa da amiga, e foi chamada a GNR, sendo que agora as coisas, diz, foram faladas, e não avalia perigo, e que se voltar a acontecer mais alguma coisa separa-se do companheiro»], fundamento este que não tem cabimento legal, pois a hipotética ineficácia de uma medida protectiva não justifica que não se aplique qualquer medida – justificaria antes que se aplicasse uma outra medida, entre as previstas no artigo 35.º da LPCJP.
6. A partir do momento em que a GNR elabora um auto de notícia por violência doméstica, relata duas situações pouco espaçadas no tempo, cujos dados obteve através da própria vítima e de uma testemunha directa, a qual inclusivamente esclareceu que «estas situações são recorrentes de violência entre o casal, ao qual não foram reportadas», e resultando dos autos que a progenitora vítima se encontra na dependência económica do companheiro agressor (cf. prints de consulta à base dados da Segurança Social juntos em 23.04.2024 no Apenso B), que exagera no consumo de bebidas alcoólicas, devia o Tribunal a quo partir do pressuposto que o que está relatado tem um fundo de verdade e que existe uma situação de perigo actual para a criança, impondo-se a aplicação de uma medida protectiva cautelar.
7. O Tribunal a quo podia e devia ter aplicado a medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa da mãe, prevista nos artigos 35.º/1 a) e 39.º da LPCJP, porque tal permitiria uma disponibilização imediata de «apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica», abrangendo a criança mas, também, o próprio agregado familiar desta – cf. artigo 42.º da LPCJP – em respeito pelos princípios interesse superior da criança, da intervenção precoce, da proporcionalidade e actualidade, da responsabilidade parental, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas e da prevalência da família, previstos nas alíneas a), c), e), f), g) e h) do artigo 4.º da LPCJP.
8. Por não servir o superior interesse da criança a ser imediatamente protegida da situação de violência doméstica a que foi exposta e do perigo a que, mantendo-se tudo igual, continua actualmente a “pairar” na sua vida, o despacho recorrido padece de ilegalidade, já que não garante «o seu bem-estar e desenvolvimento integral» - cf. artigo 1.º da LPCJP.
9. Sendo ilegal, impõe-se a sua revogação e substituição por outro que, deferindo ao promovido pelo MP, aplique de imediato a medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa da mãe, prevista nos artigos 35.º/1 a) e 39.º da LPCJP, em benefício da criança “AA”, nascida em 09.10.2014.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se deveria ter sido aplicada, a título cautelar e provisório, a medida de apoio junto dos pais da Menor, na pessoa da Progenitora, conforme foi promovido pelo Ministério Público.

Dos Factos

Além dos factos que resultam do relatório supra, está provado, face aos elementos constantes dos autos principais e apensos, que:
7. Em 23-09-2021, foi no processo principal de regulação das responsabilidades parentais realizada Conferência de pais, em que estes disseram que se tinham separado há 2, 3 anos, tendo acordado quanto à regulação das responsabilidades parentais o seguinte:
“Residência e Guarda
1. As crianças ficarão confiada ao cuidado da mãe, com quem residirão, exercendo ambos os progenitores o exercício das responsabilidades parentais quanto aos atos de particular importância.
Contactos
2. O pai deverá estar com as crianças aos fins-de-semana. Para o efeito o pai recolherá a crianças na sexta ao fim do dia em casa da mãe e entregá-la-á no domingo no mesmo local.
3. Nos aniversários das crianças, os pais farão uma festa com participação de ambos. Não sendo possível, as crianças almoçarão com um e jantarão como outro. No aniversário dos progenitores e no dia do pai e da mãe, as crianças passarão o dia com o progenitor respetivo, recolhendo e entregando-a na escola no dia seguinte de manhã ou em casa do residente.
4. Férias laborais com cada um dos progenitores. Nas férias do Natal, as crianças passarão o dia de Natal com um progenitor e o Ano Novo com o outro, alternando todos os anos.
Alimentos
5. O pai pagará mensalmente a título de alimentos, até ao dia 8 de cada mês a que disser respeito, a quantia de €100,00 euros por cada criança, no total de 200,00€ por mês.
6. A pensão alimentícia acordada no ponto anterior será objeto de atualização anual, em função do índice de inflação a divulgar pelo I.N.E. (Instituto Nacional de Estatística) e reportado ao ano imediatamente anterior, no mês de setembro, com início no ano de 2022.
7. Quaisquer gastos indispensáveis à saúde (despesas não comparticipadas), educação (incluindo livros e material escolar) e vestuário, serão suportados em 50% por cada um dos progenitores, contra a exibição de cópias dos respetivos documentos comprovativos.”
8. Na Petição Inicial do apenso B, apresentada pelo Ministério Público, em 09-11-2023, é alegado que o Menor “CC” foi sinalizado anonimamente, em maio de 2022, à CPCJ de Mafra por usar “palavrões”; sai da escola e vai para o café ver a mãe e namorado beber e fumar (…), já houve uma vizinha que deu jantar à irmã (de nove anos, “AA”, nascida no dia 9 de Outubro de 2014); criança que revela caraterísticas de instabilidade – roupa cheira mal”.
9. Nesse apenso B apurou-se, por consulta da Base de Dados da Segurança Social, realizada a 23-04-2024, que a última remuneração da Progenitora foi auferida em janeiro de 2024, no valor de 240,28€ e que a última remuneração do Progenitor foi auferida em março de 2024 no valor de 1.655,00€.
10. Na Conferência de pais realizada no apenso B, no dia 23-04-2024, foi ouvido o Menor “CC”, o qual disse que “(…) está a viver com o pai. Não tem ido às aulas” e que “gostaria de ir para o curso de eletromecânica ou mecânica industrial no CENFIM”, tendo sido proferido despacho que determinou a continuação/prorrogação da medida de apoio, por um período de 6 meses, devendo o Menor frequentar no próximo ano letivo (2024-2025) curso profissional.

Enquadramento jurídico

O Ministério Público entende que deverá ser aplicada de imediato a medida cautelar de apoio junto dos pais, concretizada na pessoa da Mãe, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, al. a), e 39.º da LPCJP.
Estamos perante uma decisão (que indeferiu a aplicação, a título cautelar, da referida medida) no âmbito de um processo judicial de promoção e proteção, sendo assim aplicável a Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo).
Conforme resulta desse diploma legal, em particular do seu art.º 1.º, a intervenção protetiva - que tem como finalidade, a promoção dos direitos e a proteção das crianças e jovens em perigo -, só é legítima enquanto existir e se mantiver uma situação de perigo, assumindo, quase por definição, natureza temporária.
De salientar que, conforme expressamente previsto no art.º 4.º da LPCJP, a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece, entre outros, aos seguintes princípios:
“a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
(…) c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;
(…) k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais.”
Estamos também, é bom não o esquecer, perante um processo de jurisdição voluntária (cf. art.º 100.º da LPCJP), cujas decisões não se balizam por critérios de legalidade estrita (cf. art.º 987.º do CPC), devendo o tribunal adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, o que, tratando-se de processo de promoção e proteção, não poderá deixar de significar, como critério material norteador da decisão, a prevalência dos superiores interesses das crianças e jovens em perigo, com a rejeição de soluções concretas menos vantajosas desse prisma, ainda que assentes numa legítima interpretação da lei.
De referir ainda que, não obstante a natureza de jurisdição voluntária (cf. art.º 100.º da LPCJP), não deixa o tribunal de estar sujeito, nas decisões a proferir, a um dever de fundamentação, conforme decorre do art.º 295.º ex vi do art.º 986.º, n.º 1, que remete para o art.º 607.º, todos do CPC, sem olvidar os artigos 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 154.º do CPC.
A respeito das medidas aplicáveis, preceitua o art.º 35.º da LPCJP que:
“1 - As medidas de promoção e proteção são as seguintes:
a) Apoio junto dos pais;
b) Apoio junto de outro familiar;
c) Confiança a pessoa idónea;
d) Apoio para a autonomia de vida;
e) Acolhimento familiar;
f) Acolhimento residencial;
g) Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.
2 - As medidas de promoção e de proteção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior.
3 - Consideram-se medidas a executar no meio natural de vida as previstas nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 e medidas de colocação as previstas nas alíneas e) e f); a medida prevista na alínea g) é considerada a executar no meio natural de vida no primeiro caso e de colocação, no segundo e terceiro casos.
4 - O regime de execução das medidas consta de legislação própria.”
Quanto à primeira das medidas elencadas, importa ter presente o disposto no art.º 39.º da LPCJP, nos termos do qual “A medida de apoio junto dos pais consiste em proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica.”
Ademais, preceitua o art.º 37.º da LPCJP, sob a epígrafe “Medidas cautelares”, que:
“1 - A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
2 - As comissões podem aplicar as medidas previstas no número anterior enquanto procedem ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, sem prejuízo da necessidade da celebração de um acordo de promoção e proteção segundo as regras gerais.
3 - As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.”
Sendo este o quadro legal a considerar, vejamos se, ante os factos apurados, era necessária e adequada a aplicação, a título cautelar, da referida medida de promoção e proteção.
Apesar do esforço feito neste Tribunal da Relação no sentido do apuramento dos factos substantivamente relevantes, o certo é que não podemos considerar que todas as alegações de facto feitas pelo Ministério Público estejam, ainda que indiciariamente, demonstradas ou que se revistam da importância que lhes é dada.
Em primeiro lugar, quanto ao episódio de discussão com agressões descrito no auto policial, a ter ocorrido (o que não se pode ter como suficientemente indiciado, face ao que foi dito pela Progenitora na conferência de pais), na data de 11-04-2024, o certo é que nada indica que a Menor estivesse presente na altura dos acontecimentos ou sequer que se tenha depois apercebido do mesmo.
Quanto à situação do dia 14-04-2024, aí igualmente descrita, tendo sido presenciada por uma amiga da Progenitora e levado à intervenção da GNR, admitimos que tenha acontecido uma discussão na viatura que levou os passageiros, entre os quais se incluía a Menor e a sua Progenitora, a saírem da mesma, indo para casa da amiga (a Sr.ª “FF”), que as acompanhava. No entanto, face à forma como foi feita a descrição do sucedido, à ausência de quaisquer lesões físicas ou danos materiais e ainda ao que foi dito posteriormente na Conferência de pais, não podemos considerar que o evento se tenha revestido da gravidade que, num primeiro momento, lhe foi dada pela Progenitora, porventura numa tentativa de justificar a intervenção da GNR que foi solicitada – em termos que, sublinhe-se, também evidenciam alguma capacidade de defesa e discernimento por parte da Progenitora, sendo sinal de que não se deixou intimidar pelo companheiro e que se preocupou em proteger a filha, afastando-a da situação desagradável que estava ser vivenciada.
Por outro lado, não nos parece estar indiciariamente provado que a Progenitora se encontre “na dependência económica do companheiro agressor”, pois (além das dúvidas quanto à conduta agressiva deste) os elementos apurados pela consulta da Base de Dados da Segurança Social podem não refletir os efetivos rendimentos daquela, sendo facto notório que nem sempre é feita pelos trabalhadores e prestadores de serviços a declaração dos seus rendimentos junto do Fisco e da Segurança Social. Além de que importará considerar a pensão alimentícia paga pelo Progenitor.
Tão pouco podemos, face aos elementos disponíveis, considerar indiciariamente demonstrado que o companheiro da Progenitora “exagera no consumo de bebidas alcoólicas” (nem se um tal suposto exagero ou excesso é habitual ou pontual), muito menos que daí advenha uma situação de perigo atual para a Menor.
O Tribunal não pode “partir do pressuposto que o que está relatado tem um fundo de verdade”, apenas e só com base no referido auto de notícia, olvidando que o mesmo veio a ser inteiramente desmentido pela Progenitora, nas declarações que prestou, e sobretudo que a própria Menor (com cerca de 9 anos e meio de idade), ouvida em Tribunal, disse que “as coisas entre a mãe e o padrasto já estão boas e que só tiveram uma discussão”, não evidenciando, segundo afirmado na decisão recorrida, qualquer medo ou trauma.
O Ministério Público argumenta ainda que a (suposta) ineficácia da medida protetiva invocada pelo Tribunal a quo não tem cabimento legal, pois apenas justificaria antes que se aplicasse uma outra medida. Porém, é sabido que toda a intervenção protetiva deve ser necessária e adequada, o que não deixa de envolver uma avaliação sobre a eficácia da medida em vista, ante os elementos probatórios disponíveis.
Ora, no caso dos autos, sendo tão escassos (e até contraditórios) tais elementos aquando da realização da Conferência de pais, a factualidade apurada mostra-se insuficiente para habilitar o tribunal a discernir, com o mínimo de rigor, se a Menor se encontra(va) numa situação de perigo tal que imponha a aplicação, a título cautelar, da referida medida de apoio, apenas se podendo, pois, determinar o prosseguimento do processo (que é de natureza urgente – cf. art.º 102.º, n.º 1, da LPCJP), de modo a recolher os elementos probatórios indispensáveis, incluindo informação sobre o sistema familiar, para fazer essa avaliação em momento posterior, conforme foi determinado pelo Tribunal recorrido.
Embora a celeridade processual seja um importante princípio processual, não poderá implicar um atropelo a outros importantes princípios, como o princípio do inquisitório e os demais acima citados, bem como ao dever de fundamentar as decisões judiciais (com a especificação de fundamentos de facto e de direito).
Não se nos afigura, pois, que tenham sido afrontados, na decisão recorrida, os princípios do interesse superior da criança, da intervenção precoce, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas e da prevalência da família, previstos nas alíneas a), c), e), f), g) e h) do art.º 4.º da LPCJP.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.

Não são devidas custas do recurso, atenta a isenção legal - cf. art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP.

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Sem custas.

D.N.

Lisboa, 23-05-2024
Laurinda Gemas
Rute Sobral
Carlos Castelo Branco