Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
209/12.4TTPDL.2.L1-4
Relator: SUSANA SILVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRESTAÇÃO SUPLEMENTAR PARA ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
INCONSTITUCIONALIDADE
CASO JULGADO
ACTUALIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Quando em causa estão situações duradouras, a intangibilidade do caso julgado não impede que se atribua relevância (para o futuro) à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral que resulte de Acórdão do Tribunal Constitucional.
II. Fixada ao sinistrado, desde 2015, a prestação suplementar de assistência de terceira pessoa, então tendo como critério de referência o valor de 1.1 do IAS, não ofende o caso julgado o despacho que determine à entidade responsável o pagamento, doravante, daquela prestação tendo como critério de referência a retribuição mínima mensal garantida, por tanto ser imposto pela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do art. 54.º, n.º 1, da LAT/2009, ditada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, de 14 de Maio de 2024.
III. Ficando as actualizações incidentes sobre o IAS praticamente sempre aquém daquelas que incidiram sobre a retribuição mínima mensal garantida, é de recusar a aplicação do disposto no n.º 4 do art. 54.º da LAT/2009, na dimensão interpretativa que consente que a actualização anual da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior à percentagem de actualização da retribuição mínima mensal garantida, por a mesma afrontar o princípio da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. f), da CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é sinistrado aa e entidade responsável “Generali Seguros, S.A.” foi proferido, em 1 de Julho de 2015, despacho homologatório do acordo alcançado entre as partes no âmbito da tentativa de conciliação[1].
Na tentativa de conciliação foram definidas as prestações devidas ao sinistrado por virtude de acidente de trabalho ocorrido aos 11 de Abril de 2011, do qual sobrevieram lesões que demandaram a sua afectação com sequelas determinantes da atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta desde 11 de Outubro de 2013.

2. No âmbito do enunciado acordo, o Ministério Público propôs o pagamento, pela entidade responsável, da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, a que aludem os artigos 53.º a 55.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, no montante mensal de € 461,14, o que foi aceite.

3. Por ofício datado de 20 de Fevereiro de 2025, a entidade responsável comunicou aos autos, entre outros, a actualização da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa para o ano de 2025, informando que o seu valor ascendia a € 574,76.

4. Em 6 de Março de 2025, o Ministério Público, entendendo estar incorrecta a informação relativa à actualização das prestações a cargo da entidade responsável, promoveu, no que ora releva, como segue:
«4. No que respeita à Prestação Suplementar para Assistência de Terceira Pessoa, no valor de 913.5 Euros, atento o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19 de dezembro, diploma que procedeu à atualização do valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) a partir de 1 de janeiro de 2025, por aplicação de 5% face ao valor no Continente conforme legalmente previsto, encontra-se a mesma também incorretamente atualizada (Ref. 6158610).
5. Em sintonia, promove-se se notifique a entidade seguradora para proceder à correção do valor das pensões a vigorar neste ano de 2025, devendo a pensão suplementar para assistência a terceira pessoa ser atualizada em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, de 4 de junho».

6. Por despacho datado de 4 de Abril de 2025, o Mm.º Juiz a quo determinou a notificação da entidade responsável para «num prazo de 5 (cinco) dias, comprovar a (…) actualização da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa de acordo com a orientação definida no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 380/202, publicado no Diário da República, I Série, nº 107, de 4 de Junho (neste último caso, tendo como referência a remuneração mínima mensal garantida na Região dos Açores).

7. Por requerimento que ajuizou em 29 de Maio de 2025, a entidade responsável requereu se considerasse correcto o valor por si indicado relativo à prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, considerando que a mesma não poderia ser fixada «moldes distintos dos que resultam da decisão proferida nestes autos em 01/07/2015». Aduziu, em abono da sua pretensão, que tendo a dita prestação sido fixada no ano de 2015, «nos termos da legislação em vigor, antes da declaração de inconstitucionalidade da norma aplicada e por decisão já transitada em julgado, não pode, agora, sofrer qualquer alteração».

8. O Mm.º Juiz a quo proferiu, então, o seguinte despacho:
«Ao abrigo do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 380/2024, publicado no Diário da República, I Série, nº 107, de 4 de Junho, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 54º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa seja inferior ao valor da remuneração mínima mensal garantida, por violação do art. 59º, nº 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
Na presente acção de acidente de trabalho, por decisão já transitada em julgado, a seguradora, Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, foi condenada, para além do mais, a pagar ao sinistrado, Eduardo Emanuel Medeiros Fonseca, uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, nos termos legais acima enunciados.
Tendo o Ministério Público promovido a actualização desta prestação de acordo com a orientação que foi definida no citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 380/2024, manifesta a seguradora a sua discordância com esta actualização pelo valor da remuneração mínima mensal garantida, em síntese por força da ressalva do caso julgado em matéria de eficácia de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do art. 282º, nº 3, da Constituição. Porém, no entendimento deste Tribunal, a seguradora não tem razão. Esta ressalva do caso julgado na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, prevista no art. 282º, nº 3, da Constituição, incide sobre a declaração em si deste direito à prestação suplementar, assim como, em limite, às prestações já vencidas desde o momento em que este direito foi declarado – sem que esses valores, como tal, possam agora ser alterados / repostos. Mas não prejudica a actualização desse quantitativo que, de resto, é anual, de acordo com o valor do IAS. Pelo que, nestes termos, e procedendo-se à actualização do valor desta prestação, deve a mesma ser feita já com respeito por esta orientação definida (com força obrigatória geral) no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 380/2024 (neste caso simplesmente em cumprimento do princípio geral consagrado no art. 282º, nº 1, da Constituição). O que este Tribunal declara e, junto da seguradora, determina.
Assim, e uma vez mais, notifique a seguradora para proceder à actualização da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, fixada nestes autos, já de acordo com a orientação definida no citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 380/2024».
               
9. Inconformada com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso a entidade responsável, terminando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«I- A prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa foi fixada na douta sentença proferida nos autos principais em 01/07/2015, já transitada em julgado, tendo por base a regra do n.º 1 do artigo 54.º da LAT, ou seja, no valor mensal de 1,1 vezes o IAS, a atualizar anualmente de acordo com a variação do IAS
II- Essa decisão formou caso julgado no que toca ao conteúdo da obrigação a cargo da Recorrente, relativamente prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa e até quanto à sua forma de atualização
III- Os efeitos do caso julgado formado por uma decisão prevalecem mesmo sobre a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma, conforme estabelece o n.º 3 do artigo 282.º da CRP
IV- Não estando em causa qualquer uma das situações previstas na parte final do no n.º 3 do artigo 282.º da CRP, o caso julgado formado pela decisão proferida nos autos principais em 02/05/2018, no sentido de que a obrigação da Recorrente no que toca à prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa, é a que decorre da aplicação da regra da norma parcialmente julgada inconstitucional (Artigo 54.º n.º 1 da LAT), tal decisão não pode ser afetada pela decisão proferida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, de 04/06, nem consequentemente, pela decisão que agora é posta em crise.
V- Sendo que a proteção do caso julgado assume, ela própria, interesse público e sustenta-se num princípio de ordem pública, sobre o qual não pode prevalecer o eventual interesse de não aplicar uma norma declarada inconstitucional
VI- Consequentemente, tendo transitado em julgado a decisão que definiu em que termos deve ser calculada a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa, no sentido de que deve corresponder a 1,1 x IAS, não pode essa decisão ser posta em causa pela ulterior declaração de inconstitucionalidade da norma aplicada, ou seja, do n.º 1 do artigo 54.º
VII- E, assim, correspondendo o valor mensal da prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa indicado pela Recorrente para o ano de 2025 ao montante de 1,1 vezes o IAS para esse ano, foi corretamente atualizada essa prestação
VIII- Impondo-se, assim, a revogação da douta decisão sob censura, o que se requer.
IX- Acresce que a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa foi fixada na douta sentença, em 01/07/2015, nos termos já expostos, ou seja, na quantia mensal de 461,14€, anualmente atualizável de acordo com a evolução do IA
X- A partir do momento em que aquela prestação e respetivas de atualização foram fixadas, esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal no que diz respeito ao conteúdo das prestações devidas (cfr artigo 613.º n.º 1 do CPC).
XI- Não estando em causa uma situação em que seja permitido ao julgador rever as prestações atribuídas na decisão transitada em julgado, só será admissível a sua alteração em termos meramente quantitativos, por efeito da sua obrigatória atualização.
XII- Nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do DL 142/99, a intervenção do MP e do Tribunal em relação a qualquer atualização que venha a ocorrer nas prestações fixadas será, apenas, no sentido de promover “eventuais rectificações”.
XIII- Mas essas retificações reportam-se à atualização e não ao modo de calculo da prestação
XIV- Ou seja, nesta fase já não está em causa a aplicação da norma do artigo 54.º n.º 1 da LAT, mas sim a do n.º 4 desse mesmo artigo, a qual não foi afetada pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquela primeira norma
XV- E, de resto, nem teria de ase aplicar essa norma, já que é a própria sentença que dita que a atualização dessa prestação se fará, anualmente, de acordo com a evolução do IAS
XVI- Não se pode alargar o juízo de inconstitucionalidade formulada quanto à regra do n.º 1 do artigo 54.º da LAT à norma do n.º 4 dessa mesma disposição.
XVII- Ainda que se possa afirmar que a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa fixada nestes autos já não respeita o princípio constitucional que motivou a declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 54.º da LAT, o certo é que o legislador constitucional quis salvaguardar e expressamente ressalvou as situações já julgadas dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma que tenha sido aplicada numa decisão transitada em julgado
XVIII- Assim, não se pode obter, por via da atualização, o que o legislador constitucional proíbe, mais precisamente a alteração de uma decisão proferida há mais de 10 anos atrás, no sentido de fixar a prestação por necessidade de terceira pessoa e até a sua atualização em moldes inteiramente distintos dos agora pretendidos pelo Digno Representante do Ministério Público.
XIX- Como tal, se a decisão transitada em julgado não pode ser alterada nesta fase, deve a atualização da prestação aí definida processar-se de acordo com as regras nas quais se baseou a sua fixação inicial, ou seja, de acordo com a evolução do IAS, como determina o n.º 4 artigo 54.º da LAT.
XX- No caso concreto, a recorrente procedeu à atualização da prestação que foi inicialmente fixada de acordo com a percentagem em que foi atualizada, entre 2024 e 2025, o IAS (2,6%)
XXI- Logo, por aplicação da atualização de 2,6%, prevista no nº 4 do artigo 54.º da LAT, a prestação em causa foi atualizada, em 2005, para 574,76€, conforme indicado pela Ré,
XXII- Estando, assim, correta a atualização indicada pela Ré.
XXIII- Como tal, nunca poderia o Tribunal, a propósito do controlo quanto à correção ou não de uma atualização comunicada pela seguradora, alterar os critérios de fixação dessa mesma prestação!
XXIV- Entende, assim, a Ré que estava vedado ao Tribunal a quo fixar a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa em moldes distintos dos que resultam da decisão proferida nestes autos em 01/07/2015, ou seja, no sentido de que a obrigação da Recorrente no que toca à prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa, é a que decorre da aplicação da regra da norma parcialmente julgada inconstitucional (Artigo 54.º n.º 1 da LAT), com atualizações anuais, de acordo com a evolução do IAS
XXV- Portanto, tendo aquela prestação sido fixada, em 2015, nos termos da legislação em vigor, antes da declaração de inconstitucionalidade da norma aplicada e por decisão já transitada em julgado, não pode, agora, sofrer qualquer alteração.
XXVI- A decisão da qual se recorre, ao impor à Ré a atualização da prestação por necessidade de terceira pessoa para valor não inferior ao RMMNG, viola, de forma flagrante, o caso julgado formado pela decisão proferida nestes autos em 01/’7/2015, que fixou essa prestação no montante correspondente a 1,1 IAS.
XXVII- Devendo, por isso, ser revogada a douta decisão sob censura.
XXVIII- E, uma vez que o valor da prestação devida ao sinistrado a título de prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa é, no caso, a de 574,76€ (ou seja, de 1,1 IAS,- 522,50€ x 1,1 = 574,76€), deve antes ser proferida decisão que considere antes devidamente atualizada a prestação suplementar, no valor de 574,76€, conforme indicado pela Recorrente
XXIX- A decisão da qual se recorre violou as normas dos artigos 205.º n.º 1 e 282.º n.º 3 da CRP, 154.º do CPC e 54º da LAT».

Termina a entidade responsável pugnando pelo provimento do recurso, «revogando-se ou anulando-se a douta decisão sob censura».

10. O Ministério Público contra-alegou, formulando, final, a seguinte síntese conclusiva:
«1. O que se encontra protegido pelo caso julgado é a declaração do direito do sinistrado à prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
2. O quantum desse direito, que se encontra previsto no artigo 54.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), não se mostra protegido pelo caso julgado, pelo que o professado pelo Tribunal Constitucional será de aplicação imediata ao caso dos autos.
3. No limite, e operados os efeitos da nulidade da norma declarada inconstitucional, hoje essa norma já não existe: “Uma norma que foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral é afastada do sistema e deixa de ser mobilizável pelos tribunais (e pelos restantes operadores jurídicos), enquanto critério de decisão” (vide a Decisão Sumária n.º 142/2015, de 24 de fevereiro de 2015, in www.tribunalconstitucional.pt).
4. Nestes termos, e conforme promoção inicial, entendemos que entidade Seguradora deverá proceder à atualização da pensão suplementar para assistência a terceira pessoa, tendo em atenção a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, de 4 de junho.
5. A decisão recorrida não merece nenhum reparo quanto ao seu acerto com o direito, não se vislumbrando qualquer erro, pelo que deverá a mesma ser mantida na íntegra».

11. O recurso foi admitido por despacho datado de 24 de Junho de 2025.

12. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, foi cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão essencial que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em aferir se, como decidiu e determinou o despacho sob recurso, a seguradora deve proceder à actualização da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa com respeito pela orientação definida (com força obrigatória geral) no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024 ou se, pelo contrário, essa determinação lhe está vedada por ofensa do caso julgado e por violação do disposto no art. 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. No recurso interposto coloca-se, também, a questão de saber como deve processar-se a actualização da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa.
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III. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da questão suscitada pela apelante são os que derivam do relatório que antecede.
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IV. Fundamentação de Direito
Definimos já, no objecto do recurso, a questão que essencialmente nos é trazida a juízo pela apelante, sabendo-se, pois, que dissente a mesma do despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo que lhe determinou procedesse à actualização da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa com respeito pela orientação definida (com força obrigatória geral) no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024.

1. No caso que ora nos ocupa, estamos em presença de acidente de trabalho ocorrido no dia 11 de Abril de 2011, sendo convocável, por isso, para dirimir o conflito que se suscita, o regime jurídico contido na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (cfr., o seu art. 187.º, n.º 1), doravante identificada como LAT.

2. A prestação suplementar para assistência a terceira pessoa recebe, no quadro normativo em que nos movemos, expressa previsão no art. 53.º, da LAT, aí se estabelecendo que:
«1 - A prestação suplementar da pensão destina-se a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente.
2 - A atribuição da prestação suplementar depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.
3 - O familiar do sinistrado que lhe preste assistência permanente é equiparado a terceira pessoa.
4 - Não pode ser considerada terceira pessoa quem se encontre igualmente carecido de autonomia para a realização dos atos básicos da vida diária.
5 - Para efeitos do n.º 2, são considerados, nomeadamente, os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção.
6 - A assistência pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito do apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias».
Trata-se, no essencial, de regime jurídico que manteve inalterados os pressupostos para a atribuição da prestação suplementar que constava já da Base XVIll, da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1969, e do art. 19.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, (não poder o sinistrado, em consequência da lesão resultante do acidente, dispensar a assistência constante de terceira pessoa) e cujo escopo, no respeito pelo princípio da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. f), da Constituição da República Portuguesa (CRP), é o de compensar o trabalhador sinistrado pela despesa adicional gerada pelo recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa, quando, em razão das sequelas que é portador, passe a dela depender para assegurar a satisfação das suas necessidades básicas diárias, obviando, assim, a que a prestação destinada à reparação da capacidade de trabalho ou de ganho seja desviada para aquele fim e nele se consuma ou até mesmo esgote.
A nova LAT inovou, contudo, no referencial quantitativo da mencionada prestação. Ao passo que na Lei n.º 2127, o referencial da prestação era o da pensão, não podendo aquela ser superior a 25% desta última, e que, na Lei n.º 100/97, a prestação não poderia ser superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico[2], já na nova LAT, o referencial passou a ser o de 1,1 do IAS, não podendo a prestação exceder este limite (art. 54.º, n.º 1).
E inovou, também, em matéria de actualização da prestação em causa, acolhendo no respectivo regime uma disciplina própria, ao contrário do que sucedia nos regimes que a antecederam[3], prevendo, assim, no seu art. 54.º, n.º 4, que «[a] prestação suplementar é anualmente actualizável na mesma percentagem em que o for o IAS».

3. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 380/2024, de 14 de Maio de 2024, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do art. 54.º da LAT na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, por violação do direito à assistência e justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. f), da CRP.
E, depois da necessária comparação da evolução dos valores da retribuição mínima mensal garantida e do IAS e de concluir que os valores deste último ficaram, sempre, aquém dos primeiros, ponderou que «nos casos em que, em consequência da lesão em que se materializou o risco inerente à prestação laboral, o trabalhador se vê simultaneamente confrontado com supressão da sua plena capacidade de ganho e a perda da autonomia funcional necessária à satisfação das necessidades básicas diárias, a efetivação do direito à justa reparação a que alude a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição não pode deixar de pressupor a atribuição de uma prestação suplementar da pensão em valor congruente com a necessidade de contratação da assistência de terceira pessoa. Congruência essa que obriga a que aquele limite máximo, a existir, leve em conta não menos do que o valor da retribuição mínima mensal garantida praticada no mercado de trabalho — isto é, aquele com que o sinistrado terá, ele próprio, de assegurar sempre que a situação de dependência originada pela lesão resultante de acidente de trabalho exija a assistência permanente de terceira pessoa durante oito horas diárias (artigo 203.º, n.º 1, do Código de Trabalho). É esse o referencial pressuposto pelo direito à justa reparação em caso de acidente de trabalho, conclusão especialmente evidente se não se perder de vista que o limite máximo da pensão suplementar tenderá a ser atingido apenas nos casos mais graves, graduando-se em sentido inverso o restante universo de casos».

3.1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de uma norma com força obrigatória geral tem os efeitos previstos no art. 282.º, da CRP[4], produzindo, por regra, efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal, determinando a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado (n.º 1 do art. 282.º).
A declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade produz, assim e por regra, efeitos ex tunc, vinculando o legislador, o Tribunal Constitucional e todos os tribunais, as entidades públicas e privadas, os órgãos administrativos e os particulares.
Nos dizeres de J. J. Gomes Canotilho[5] «costuma sintetizar-se o sentido desta fórmula recorrendo à ideia de vinculação geral (…) e força de lei (…): (i) vinculação geral, porque as sentenças do TC declarativas da inconstitucionalidade ou da ilegalidade vinculam - mas apenas quanto à parte dispositiva das decisões e não quanto aos seus fundamentos determinantes, ou seja, a ratio decidendi - todos os órgãos constitucionais, todos os tribunais e todas as entidades administrativas; (ii) força de lei, porque as sentenças têm valor normativo (como as leis) para todas as pessoas físicas e colectivas (e não apenas para os poderes públicos) juridicamente afectadas nos seus direitos e obrigações pela norma declarada inconstitucional».
Contudo, é também o art. 282.º, da CRP, que consente excepções ao citado efeito, o que sucede, no que nos importa, por via da ressalva do caso julgado contida no seu n.º 3, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional, mas cuja oportunidade apenas sucede em matérias que, no nosso caso, irrelevam.
Nos dizeres de Rui Medeiros[6], «[o] significado específico da ressalva dos casos julgados manifesta-se (…) na ideia de que a inconstitucionalidade da lei aplicada não impede que a respectiva sentença transite em julgado (…)», não sendo possível, após este momento, «propor nova acção com o mesmo objecto e contra o mesmo réu com fundamento na inconstitucionalidade da lei anteriormente aplicada». Mas adianta o mesmo autor que «[a] ressalva dos casos julgado não pretende (…) afastar em absoluto a relevância do reconhecimento da inconstitucionalidade da lei aplicada pela decisão jurisdicional transitada em julgado, não impedindo que, nos termos gerais do Direito processual, se atenda supervenientemente à injustiça (constitucional) da sentença firme», não constituindo o n.º 3 do art. 283.º da CRP «uma regulamentação especial destinada a afastar em absoluto a relevância da inconstitucionalidade da lei aplicada pela decisão transitada em julgado e posteriormente como tal declarada». E, estando em causa «situações duradouras, a intangibilidade dos casos julgados não impede necessariamente que se atribua, sempre nos termos gerais, relevância (para o futuro) à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral»[7].

4. Nos autos que nos são sujeitos, é inequívoco que, na sequência do acordo das partes obtido em sede de tentativa de conciliação e subsequentemente homologado por despacho em 1 de Julho de 2015, a ora apelante obrigou-se a pagar ao sinistrado a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, a que aludem os artigos 53.º a 55.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, no montante mensal, então, de € 461,14.
O despacho homologatório do acordo alcançado na fase conciliatória do processo equivale, até pelos pressupostos que lhe inerem e pelos deveres impostos ao juiz na verificação da sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais e regulamentares ou convencionais que ao caso caibam[8], a uma sentença homologatória, sentença esta que não deixa de ser equiparada à que decide sobre a relação material controvertida embora tenha na sua base um acto de vontade das partes[9] [10]. Como assim, o despacho que homologue o acordo alcançado em sede de tentativa de conciliação produz, uma vez transitado em julgado, os efeitos do caso julgado material, na medida em que incide sobre os bens ou direitos substantivos em litígio[11]. Tem, por isso, o alcance a que alude o art. 621.º, do Código de Processo Civil, tendo força obrigatória dentro e fora do processo nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos arts. 696.º a 702.º, todos do Código de Processo Civil (cfr., o art. 619.º, do mesmo diploma adjectivo).
Tudo para que se conclua, portanto, que o despacho que homologou o acordo alcançado entre a apelante e o sinistrado formou caso julgado material com relação aos direitos que a este último foram reconhecidos, de entre eles o direito à prestação suplementar para assistência de terceira pessoa.

5. É por apelo ao caso julgado formado pelo despacho homologatório que a apelante constrói o recurso que ora se aprecia, considerando que a definição da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, bem como seu referencial quantitativo estão por ele abrangidos, o que impedirá, no seu ver, que este último se redefina tendo por base o Acórdão do Tribunal Constitucional a que fizemos já alusão, por a isso obstar o art. 282.º, n.º 3, da CRP. Considera a apelante que, a pretexto da actualização da dita prestação, não poderia o tribunal a quo redefinir o seu modo de cálculo, deixando este de se aferir em função do IAS para passar a ser aferido em função da retribuição mínima mensal garantida.

5.1. O tribunal a quo não indicou no despacho recorrido qual o valor que a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa deveria passar a ter a partir de 1 de Janeiro de 2025.
Sem prejuízo, o juízo que alcançou tem implícito o referencial da retribuição mínima mensal garantida, atenta a determinação que dá quanto à necessidade de acatamento da orientação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, do mesmo passo que tem implícito o seu valor, até pela associação à promoção do Ministério Público, que inequivocamente se refere à prestação de € 913.50, que, por sua vez, corresponde ao valor da retribuição mínima mensal garantida para a Região Autónoma dos Açores para o ano de 2025 (DL n.º 112/2024, de 19 de Dezembro, e Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10 de Abril, republicado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 37/2023/A, de 20 de Outubro).
Ante o exposto, é para nós claro que o despacho recorrido não se limitou a actualizar o valor da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, antes tendo procedido, com amparo na jurisprudência do Tribunal Constitucional, à redefinição do referencial que lhe serve de base. E, cremos, procedeu com acerto.
Ao contrário do que sugere a apelante, não cremos que a eficácia do caso julgado formado pelo despacho homologatório do acordo alcançado na fase conciliatória do processo tenha o alcance que lhe pretende emprestar.
E assim o entendemos com base na seguinte ordem de razões. Em primeiro lugar, como nota o Mm.º Juiz a quo, à apelante não foi determinada a repetição das prestações já pagas a coberto da norma cuja inconstitucionalidade com força obrigatória geral foi declarada, antes tendo sido ordenado que, doravante, o valor da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa se conformasse com aquele juízo de inconstitucionalidade, o que sugere a limitação dos efeitos que, por regra, estão associados àquela declaração, em respeito pelos actos praticados a coberto de uma decisão que aplicou norma que, até então, não merecera o juízo de desconformidade com a lei fundamental.  Em segundo lugar, tratando-se, como se trata, de uma prestação duradoura (art. 47.º, n.º 3, da LAT) e cujos efeitos, por isso, se protelam no tempo, repugnaria à ordem jurídica, como se compreenderá, a subsistência de uma prestação cujo referencial normativo fosse desconforme à lei fundamental. Como se teve o ensejo de dizer, quando em causa estão situações duradouras, a intangibilidade do caso julgado não impede que se atribua relevância (para o futuro) à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Por outro lado, a reparação do presente acidente de trabalho materializou-se, para além do mais, no pagamento ao sinistrado da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, com periodicidade mensal e actualizável todos os anos, daí que a obrigação da apelante se renove a cada mês e a cada ano, enquanto a obrigação se mantiver[12], o que não prescinde da aferição do conteúdo do direito que lhe subjaz. E o conteúdo desse direito foi, por força da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que o corporizava, alterado, deixando o referencial da prestação que acolhia de ser o IAS para não poder ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida. Daí a impossibilidade, por contrária à eficácia da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, de se manter o conteúdo do direito submetido à disciplina da norma julgada inconstitucional, naquela concreta dimensão interpretativa. Finalmente, a situação que nos foi sujeita apresenta afinidade assinalável com a disciplina contida no art. 619.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que por sua vez se cruza com o disposto no art. 282.º, n.º 2, do mesmo diploma adjectivo, não nos repugnando enquadrar no conceito de circunstância especial a superveniente declaração de inconstitucionalidade da norma, numa concreta dimensão interpretativa, que serviu de base
à condenação
[13], legitimando, pois, sem ofensa do caso julgado, que as futuras prestações sejam satisfeitas em função da decisão constitucional[14].
Em síntese, pois, entende-se, sempre com todo o respeito por posição inversa, que o despacho recorrido não afronta o caso julgado ao determinar à apelante a satisfação, ao sinistrado, da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa com respeito pela orientação definida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, isto é, uma prestação cujo valor tenha por referencial e por limite o da retribuição mínima mensal garantida.
Aliás, essa é a decisão consentânea com o disposto no art. 282.º, n.º 1, parte final, da CRP, já que a imposta repristinação, por efeito da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, importa o recuo à norma revogada, qual seja a prevista no art. 19.º, n.º 1, da Lei 100/97, de 13 de Setembro, (cfr., o art. 186.º, al. a), da LAT) no segmento que prevê que a prestação suplementar de assistência a terceira pessoa não pode ser superior ao montante da remuneração mínima mensal para os trabalhadores do serviço doméstico, actualmente igual às dos demais, a significar que, num quadro de cumprimento de um horário normal de 8 horas diárias, como era o caso[15], também não poderá ficar aquém daquele valor.
Improcede, pois, neste conspecto, o recurso.

6. A apelante sustenta, também, que ao Mm.º Juiz a quo não era lícito proceder à alteração do referencial da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa por, quanto a essa questão, estar já esgotado o poder jurisdicional, apenas lhe sendo consentida a alteração quantitativa da prestação por efeito das anuais actualizações.
Não se nos afigura, sempre com todo o respeito, ser de proceder a argumentação da apelante. Numa causa, como a em presença, cujos direitos, inequivocamente reconhecidos, contemplam obrigações periódicas, continuadas e revistas (actualizadas) anualmente é para nós claro que o poder jurisdicional se renova na exacta medida, abrindo-se um momento de reponderação do quantum da prestação que não pode ignorar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral provinda do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024. Diversamente do que sustenta a apelante, esse momento desencadeia justamente o exercício do poder jurisdicional que, nesta medida, não está, naturalmente, esgotado. Assim sendo, o Mm.º Juiz a quo, no contexto da actualização da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa, está apenas a redefinir o quantum da prestação que é devida, de acordo com os critérios jurídicos vigentes, mas sem que a sua operação tenha por efeito a modificação da prestação inicial e a alteração do referencial então eleito, uma vez que o despacho recorrido tem apenas efeitos ex nunc. Esse quantum é definido em obediência ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, encontrando-se o seu novo valor actualizado, embora no quadro de novos critérios, é certo, o que nos remete para a subsequente questão suscitada pela apelante qual seja justamente o do parâmetro desta actualização, sabendo-se, como se sabe, que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral contida no Acórdão 380/2024 não abrangeu o n.º 4 do art. 54.º da LAT.

7. A apelante sustenta que a decisão recorrida tem implícito um juízo de actualização da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa definido em moldes distintos da previsão contida no n.º 4 do art. 54.º da LAT, salientando que este preceito não foi objecto da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral contida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024.

7.1. Uma primeira nota para dizer que, neste conspecto, não pode deixar de se conceder razão à apelante, sendo evidente, por via da associação do despacho recorrido à promoção do Ministério Público, que se refere aquele à prestação mensal de € 913.50, que corresponde, conforme já dissemos, ao valor da retribuição mínima mensal garantida para a Região Autónoma dos Açores para o ano de 2025. O mesmo é dizer que o Mm.º Juiz a quo assumiu ser este o valor actualizado da prestação, embora não haja explicitado o ou os critérios que lhe estariam subjacentes, limitando-se a remeter para o Acórdão do Tribunal Constitucional que, como se sabe, não versa sobre a actualização da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa.
Daí que importe aferir se é aquele o valor da prestação actualizada ou se, ao invés, será outro, designadamente o resultante do critério a que alude o art. 54.º, n.º 4, da LAT.

7.2. O art. 54.º, n.º 4, da LAT, dispõe que «[a] prestação suplementar é anualmente actualizável na mesma percentagem que o for o IAS».
O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do bloco normativo contido nos ns. 1 e 4 do art. 54.º da LAT, vindo a «[j]ulgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, e que a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa» - os Acórdãos ns. 793/2022, de 17 de Novembro de 2022, e 610/2023, de 28 de Setembro de 2023[16].
Ainda que a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do disposto no n.º 4 do art. 54.º da LAT não haja, ainda, sido declarada pelo Tribunal Constitucional, parece-nos evidente que os fundamentos acolhidos nos arestos que deixámos identificados serão inteiramente de acolher caso se conclua que a percentagem de actualização do IAS é inferior à percentagem de actualização da retribuição mínima mensal garantida, daí derivando uma prestação suplementar de assistência de terceira pessoa que redundaria, por efeito das actualizações a que estaria sujeita, a um valor inferior ao que resultaria da imputação das percentagens de actualização da retribuição mínima mensal garantida, afrontando, assim, o princípio constitucional da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. f), da CRP.
               
7.3. A prestação suplementar de assistência de terceira pessoa fixada nos autos ascendeu, ab initio, a € 461,14, valor que corresponde a 1.1 do IAS no ano de 2011, isto é, no ano em que ocorreu o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado (Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, que fixou o IAS em 419,22, que, multiplicado por 1.1., ascende a € 461,14).
Nos anos de 2012 a 2025, o IAS foi aumentando nas seguintes percentagens:
- nos anos de 2012 a 2016 inexistiu qualquer actualização (cfr., a Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, a Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, e a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março);
- no ano de 2017, a actualização cifrou-se num aumento percentual 0,50% (Portaria n.º 4/2017, de 3 de Janeiro);
- no ano de 2018, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 1,79% (Portaria n.º 21/2018, de 18 de Janeiro);
- no ano de 2019, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 1,60% (Portaria n.º 24/2019, de 17 de Janeiro);
- no ano de 2020, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 0,70% (Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro);
- no ano de 2021 inexistiu qualquer actualização (Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro);
- no ano de 2022, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 1% (Portaria n.º 294/2021, de 13 de Dezembro);
- no ano de 2023, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 8,4% (Portaria n.º 298/2022, de 16 de Dezembro);
- no ano de 2024, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 6% (Portaria n.º 421/2023, de 11 de Dezembro);
- e, no ano de 2025, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 2,6% (Portaria n.º 6-B/2021/1, de 6 de Janeiro).
Já a retribuição mínima mensal garantida foi objecto dos seguintes aumentos percentuais no mesmo período temporal, sendo que, em 2011, o seu valor ascendia a € 485,00 mensais (DL n.º 143/2010, de 31 de Dezembro):
- nos anos de 2012, 2013 e até Setembro de 2014, inexistiu qualquer actualização;
- no ano de 2014, a partir de 1 de Outubro, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 4,1% (DL n.º 144/2014, de 30 de Setembro);
- no ano de 2015, inexistiu qualquer a actualização;
- no ano de 2016, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 5% (DL n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro);
- no ano de 2017, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 5,1% (DL n.º 86-B/2016, de 29 de Dezembro);
- no ano de 2018, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 4.1% (DL n.º 156/2017, de 28 de Dezembro);
- no ano de 2019, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 3,4% (DL n.º 117/2018, de 27 de Dezembro);
- no ano de 2020, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 5,8% (DL n.º 167/2019, de 21 de Novembro);
- no ano de 2021, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 4,7% (DL n.º 109-A/2020, de 31 de Dezembro);
- no ano de 2022, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 6% (DL n.º 109-B/2021, de 7 de Dezembro);
- no ano de 2023, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 7,8% (DL n.º 85-A/2022, de 22 de Dezembro);
- no ano de 2024, a actualização cifrou-se num aumento percentual de 7,9% (DL n.º 107/2023, de 17 de Novembro);
- finalmente, no ano de 2025, o aumento percentual foi de 6,1% (DL n.º 112/2024, de 19 de Dezembro).
Analisando comparativamente os dados que deixámos enunciados, é notório que a evolução quantitativa ou os aumentos incidentes sobre o IAS ficaram praticamente sempre aquém dos que incidiram sobre a retribuição mínima mensal garantida, a que acresce a circunstância de, durante um período mais lato de tempo – de 2012 a 2016 –, o IAS não ter sido objecto de qualquer actualização/aumento. Apenas no ano de 2023 se registou um aumento percentual do IAS superior ao da retribuição mínima mensal garantida, sendo certo que, por uma questão de harmonia e coerência intrínseca do sistema, o recurso a um ou a outro referencial de actualização deve ter subjacente um critério uniforme.
Do que vem de se expor decorre, pois, que a subsistência de um critério de actualização da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa donde proviria um valor inferior ao que resultaria da imputação da actualização em função da percentagem de aumento da retribuição mínima mensal garantida afrontaria, também ele, o princípio da justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º, n.º 1, al. f), da CRP, daí que deva recusar-se a sua aplicação no presente caso.
Nestes termos e na medida em que desconforme com o dito princípio, recusa este tribunal a aplicação do disposto no art. 54.º, n.º 4, da LAT, na dimensão interpretativa que consente que a actualização anual da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior à percentagem de actualização da retribuição mínima mensal garantida, juízo de desconformidade este que nos parece estar também implícito no despacho recorrido, sem embargo de a correspectiva decisão não ser inequívoca nesse conspecto.
A recusa de aplicação do disposto no n.º 4 do art. 54.º da LAT, nesta concreta dimensão, afasta o critério subjacente à actualização da prestação suplementar aqui em causa, não afastando, contudo, a previsão que impõe que seja actualizada, donde a necessidade de aferir qual ele seja.
Esse critério, até por expressa indicação do art. 282.º, n.º 1, da CRP, terá que ser o previsto nas normas cuja revogação foi operada pela actual LAT, a saber o art. 19.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, cumprindo salientar que do art. 1.º, al. c), ponto i., do DL n.º 142/1999, de 30 de Abril, na redacção que nele foi introduzida pelo DL n.º 185/2007, de 10 de Maio, resulta ser inequívoco que a prestação suplementar está sujeita a actualização.
A sua actualização não poderá deixar de ter por referência aquela de que seja objecto a retribuição mínima mensal garantida[17], por via da expressa remissão para o regime jurídico dos trabalhadores do serviço doméstico contida no n.º 1 do art. 19.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, donde deriva a aplicação do regime consagrado no art. 273.º, n.º 1, do Código do Trabalho, aplicável ex vi do art. 37.º-A, do DL n.º 235/92, de 24 de Outubro.
A solução alcançada é, de resto, a que, por uma questão de coerência, sempre resultaria da interpretação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, não podendo a actualização da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa assentar em critérios normativos dos quais derivasse uma prestação inferior à retribuição mínima mensal garantida.
Tudo para dizer, pois, que a determinação do Mm.º Juiz a quo no sentido de determinar à apelante o pagamento, ao sinistrado, da prestação suplementar de assistência de terceira pessoa, do valor de € 913,50, valor correspondente à actual retribuição mínima mensal garantida vigente na Região Autónoma dos Açores para o ano de 2025, tem subjacente não apenas a vinculação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 380/2024, como, também, o juízo quanto ao seu valor actualizado para esse ano, não merecendo, pelo exposto, qualquer censura.
Improcede, assim sendo, também neste conspecto, a apelação.           

8. Porque ficou vencida no recurso, incumbe à apelante o pagamento das custas respectivas (art. 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
V. Dispositivo
Por tudo quanto se deixou exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, assim, o despacho recorrido.
*
Custas a cargo da apelante.
*
Atente-se na notificação ao Ministério Público, também nos termos do disposto no art. 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
                                                                                                 Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Susana Martins da Silveira
Alves Duarte
Alda Martins
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[1] Cfr., os autos principais com o n.º 209/12.4TTPDL.2.L1
[2] Entretanto, o Decreto-Lei n.º 19/2004, de 20 de Janeiro, procedeu à uniformização do salário mínimo nacional para o serviço doméstico com o salário mínimo nacional para as outras actividades.
[3] Cfr., quanto à evolução destes regimes, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Julho de 2025, proferido no Processo n.º 1355/16.0T8TVD.3.L1-4, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Vejam-se, ainda, os arts. 66.º e 82.º, da Lei do Tribunal Constitucional.
[5] In, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4.ª edição, pág. 981 e segs.
[6] In, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, págs. 832 e 833.
[7] Cfr., neste sentido, Isabel Alexandre, in, Modificação do Caso Julgado Material Civil por Alteração das Circunstâncias, Almedina, 2018, págs. 538 e ss..
[8] Cfr., Alberto Leite Ferreira, in, Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1996, págs. 532 e 533.
[9] Mitigado, embora, nas acções emergentes de acidente de trabalho, atenta a natureza indisponível dos direitos que se lhe associam (art. 12.º, da LAT).
[10] Cfr., José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, in, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1999, págs. 511 e 512.
[11] Cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7 de Maio de 2020, proferido no Processo n.º 1482/16.4T8VCT-A.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 2014, proferido no Processo n.º 378/1993.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr., Isabel Alexandre, obra citada, págs. 554 e ss..
[14] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2025, proferido no Processo n.º 258/17.6T8PDL.L1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Veja-se que a prestação fixada, no valor de € 461,14, corresponde ao valor máximo do 1.1. do IAS à data do acidente.
[16] Cfr., ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[17] Cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Dezembro de 2005 e de 20 de Março de 2006, proferidos, respectivamente, nos Processos ns. 0515361 e 0514803, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Dezembro de 2007, proferido no Processo n.º 8145/2007, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Setembro de 2024, proferido no Processo n.º 658/05.4TTSTR.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.