Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1596/03.0JFLSB-B.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: FRAUDE FISCAL
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–O crime de fraude fiscal através de facturas falsas ou de favor insere-se na categoria de crime de perigo abstracto na forma de crime de aptidão.

II–A idoneidade objectiva da concreta actividade ou conduta desenvolvidas para criar alguma das situações expressamente previstas no preceito incriminador (não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias) integra a factualidade típica, encontra-se sujeita a prova e a valoração judicial.

III–A consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.–Na decisão instrutória proferida no processo com o nº 1596/03.0JFLSB em 27 de Outubro de 2016, o Tribunal Central de Instrução Criminal julgou extinto por prescrição o procedimento criminal quanto a factos praticados pelos arguidos A.D.M. e F.M.C., com os seguintes fundamentos (transcrição):
“ (…)

II–Da prescrição invocada pela arguida R.S..
Esta arguida está acusada da prática de um crime de fraude fiscal qualificada p e p pelo artº 103º e 104º nº 2 do RGIT.
A arguida alegou, em resumo, que a imputação feita pelo artigo 104º nº 2 do RGIT teve em vista estender o prazo de prescrição de 5 para 10 anos. Que foi constituída arguida em 2011 por factos de 2003, sendo que a acusação só lhe foi notificada em 12-10-2015.
Conclui que os factos que lhe são imputados preenchem apenas o crime previsto no artigo 103º do RGIT razão pela qual o procedimento criminal já se encontra prescrito pelo decurso do prazo de 5 anos.
O MºPº respondeu, conforme consta de fls. 14304, pugnado pela improcedência da excepção.

Cumpre apreciar:
A propósito da prescrição diz o Prof. Figueiredo Dias ”...na consideração de que a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, e por outro lado, e com maior importância, as exigências de prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos, encontrando ainda fundamento ao nível processual, porquanto o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados duvidosos a investigação do facto e da culpa do agente”(in, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.699/670).
A requerente R.S. foi interrogada e constituída arguida no dia 22-11-2011, conforme resulta de fls. 5074.
A arguida foi notificada da acusação no dia 12-10-2015.
A arguida está acusada da prática de um crime de fraude fiscal qualificado p e p pelo artº 103º nº 1 al. c) e nº 2 e 3 e 104º nº 2 al. a) do RGIT por, segundo a acusação, ter utilizado as facturas indicadas no artigo 1022 da acusação, na sua contabilidade, no anos de 2006, sabendo que essas facturas não correspondiam a aquisições ou prestação de serviços reais, portanto, falsas.
O Crime em causa, à data dos factos, era punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Dispõe o artigo 5º do RGIT o seguinte:
1–As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2–As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
3–Em caso de deveres tributários que possam ser cumpridos em qualquer serviço da administração tributária ou junto de outros organismos, a respectiva infracção considera-se praticada no serviço ou organismo do domicílio ou sede do agente.
Questão relevante é sabermos, antes de mais, o momento em que se consuma o crime, dadas as implicações que tal resposta tem em termos de prescrição.
Desde logo, o momento da consumação do crime marca o início da contagem do prazo prescricional, assim o determina o artº 119º, nº1 do Código Penal quando estabelece que “O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”.
Para isso, importa verificar o tipo de ilícito em causa.
A fraude fiscal materializa-se numa defraudação que visa a obtenção de um benefício fiscal ou de causar um prejuízo ao fisco.
Trata-se de um crime de execução vinculada que só pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas a), b) e c) do artº 103º do RGIT, ou seja, o tipo objectivo apenas se preenche com a adopção de condutas que visem a obtenção de uma situação tributária mais favorável, como sejam o não pagamento de um imposto, a sua redução ou a obtenção de benefícios fiscais, de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Assim, para a punição do agente basta comprovar que este quis as respectivas acção ou omissão e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e á consequente diminuição da receita tributária.
O artigo 104º do RGIT acolhe a forma qualificada do crime de fraude fiscal, prevendo o nº 2 “a fraude que tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”, sendo esta a forma de fraude fiscal imputada aos arguidos em co-autoria no caso dos presentes autos.
Quanto á natureza do crime de fraude fiscal, o STJ tem entendido tratar-se de um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão. Isto porque não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do fisco, mas apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem ou prejuízo.
Assim, o crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente.  É o que resulta da expressão “susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias” (corpo do nº1 do artº 103º do RGIT).
Tendo em conta os factos imputadas à arguida, conclui-se que a data da prática dos mesmos ocorreu aquando da emissão das facturas, e não na data da apresentação das declarações de IVA e IRC, como defende o Mº Pº. Com efeito, «o Mº Pº entende que o momento da consumação verifica-se quando o contribuinte dá conhecimento ás autoridades fiscais da declaração fraudulenta, já que só aí as induz em erro susceptível de provocar prejuízo patrimonial para as receitas, ou ainda quando a administração fiscal efectue a liquidação.
Com efeito, o crime de fraude fiscal, na modalidade de utilização de facturas de venda a que não corresponde verdadeira transacção (que é, indiscutivelmente, a dos autos), consuma-se no dia da emissão das facturas (neste sentido, veja-se o cit. acórdão da Relação do Porto, de 05/01/2011).
Na verdade, a obtenção de vantagem patrimonial não é um elemento do tipo, bastando apenas que as condutas do agente sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem, não sendo de exigir para a consumação do crime que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação da consequência da diminuição da receita fiscal.
Deste modo, o ilícito consuma-se quando o agente, com a intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidas na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação, previstas no artº 103º, nº 1 do RGT.
Assim, o momento a partir do qual começa a contar o prazo de prescrição é o momento da acção delituosa, com vista ao não pagamento da prestação tributária ou seja, a consumação ocorreu na data da prática da última conduta (emissão da última factura) – 30-09-2006.

Dispõe o artigo 21º do RGIT.
1–O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2–O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3–O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
4–O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º
Nos termos do artigo 118º nº 1 al. b) do CP, o procedimento criminal extingue-se dez anos, quando se tratar de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cincos anos, mas que não exceda 10 anos.
Assim, o prazo em causa é de 10 anos.
Tendo em conta o disposto no artigo 121º nº 1 al. a) do CP, em 22-11-2011, teve lugar uma interrupção da prescrição com a constituição como arguida o que fez com que, a partir dessa data, tivesse começado a correr novo prazo de prescrição, por força do nº 2 do mesmo preceito.
Assim sendo, tendo em conta o prazo de prescrição previsto para o crime imputado à arguida (10 anos), a data da prática dos factos (30-9-2006), verifica-se que o prazo dos anos 10 anos, sem a interrupção, ocorreu 30-9-2016, razão pela qual improcede a alegada prescrição do procedimento criminal, a qual só terá lugar 30-9-2021.
Para além disso, cumpre referir que não merece acolhimento o argumento da arguida quanto à pretendida desqualificação da conduta na medida em que, para a verificação da qualificativa do nº 2 do artigo 104º do RGIT não é necessário o preenchimento de duas das agravantes do nº 1 do mesmo preceito.
Assim sendo, improcede a invocada prescrição.
Das demais prescrições.

O arguido A.D.M. está acusado pelos factos descritos na acusação, a fls. 524 a 543, da prática de um crime de fraude fiscal qualificada p e p pelo artº 103º e 104º nº 2 do RGIT.
Os factos imputados a este arguido traduzem-se, igualmente, na utilização de facturas falsas, sendo que a sua consumação ocorreu na data da emissão das facturas, neste caso no dia 27-6-2003 (factura 129), data da última factura.
Assim sendo, é partir de 27-6-2003 que se inicia a contagem do prazo de prescrição de 10 anos o qual ocorreu, sem interrupções, no dia 27-6-2013.
No dia 29-7-2013, conforme resulta de fls. 7196, teve lugar a constituição como arguido o que, por força do artigo 121º nº 1 al. a) do CP, teria como consequência a interrupção do prazo de prescrição, o que não aconteceu, dado que essa causa apenas teve lugar após já estar consumado o prazo de 10 anos.
Assim, não tendo ocorrido qualquer facto interruptivo nem suspensivo da prescrição em relação ao arguido A.D.M. o prazo prescricional ocorreu em 27/06/2013, importando assim declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o arguido pelo imputado crime de fraude qualificada p. e p. pelos arts. 103º e 104º, nos. 1 e 2, da RGIT, referente aos factos descritos na acusação.
Da acusação serão eliminados os artigos 524 a 543.
O arguido F.M.C. está acusado da prática de 8 crimes de fraude fiscal qualificada p e p pelo artº 103º e 104º nº 2 do RGIT em co-autoria com os arguidos C.G. (factos de 31-12-2002), A.D.M. (factos de 28-2-2002), P.C.R., A.V.M. (factos de 30-5-2003), A.E.N. (factos de 24-12-2005), J.P.T. ( factos de 26-7-2005 e de 25-11-2005).
Os factos imputados a este arguido traduzem-se, igualmente, na emissão de facturas falsas, sendo que a sua consumação ocorreu na data da emissão das facturas, no caso na data da última factura relativa a cada crime imputado.
O arguido foi interrogado nestes autos, conforme consta de fls. 7593, no dia 7-1-2014 que, por força do artigo 121º nº 1 al. a) do CP, teve como consequência a interrupção do prazo de prescrição.
Assim tendo em conta os factos verificados nos dias 31-12-2002, 28-2-2002, 25-5-2003 conclui-se que entre essas datas e o dia 7-1-2014 decorram os 10 anos do prazo de prescrição sem que tenha existido qualquer facto interruptivo ou suspensivo desse prazo.
Assim, quanto aos crimes imputados em co-autoria (3 crimes) com os arguidos C.G., A.D.M. e A.V.M. o procedimento criminal mostra-se extinto por prescrição.
(…)
****

O crime de fraude fiscal.

Artº 103º do RGIT
1–Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a)-Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b)-Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c)-Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2–Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15 000.
3–Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Artº 104º - Fraude qualificada
1–Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a)-O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b)-O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c)-O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d)-O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e)-O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f)-Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g)-O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.

2–A mesma pena é aplicável quando:
a)-A fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou
b)-A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000.

3–Se a vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 200 000, a pena é a de prisão de 2 a 8 anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas. (redacção actual e não vigente à data dos factos).

4–Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103 .º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.
Assim, o crime de fraude fiscal tipificado no art. 103° do RGIT, consuma-se, do ponto de vista objectivo, com a adopção de alguma das condutas ilegítimas previstas no artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, as quais se encontram concretizadas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 daquele artigo 103°.
«Trata-se de um crime de execução vinculada ( ... ) e que apenas pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas do nº 1 do artigo 103º do RGIT» (Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cadernos do IDEFF, nº 5, 3ª edição, página obra citada, página 206).
O que releva, como característica comum a todas estas modalidades de acção e, portanto, quanto à respectiva forma de execução, em geral, é que a fraude fiscal se traduz, pois, em «toda e qualquer acção ou omissão tendente a elidir, reduzir ou retardar o cumprimento de uma obrigação tributária» (Sampaio Dória, «A Evasão Fiscal Legítima: Conceito e Problemas», p. 42. No mesmo sentido, Sara Marques, A Fraude Fiscal e a Simulação, Curso de pós graduação em Direito Fiscal, FDUP).

Trata-se de um crime comum, porquanto o art. 103° não delimita, expressamente, muito menos restringe a autoria dos modos de acção típica à qualidade de contribuinte ou de sujeito passivo da relação jurídica tributária, antes se afigurando que qualquer pessoa, isoladamente ou em comparticipação criminosa, poderá cometer este crime (neste sentido, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.05, 2.a edição, p. 157 e 158; Nuno Pombo, A fraude fiscal- a norma incriminadora, a simulação e outras reflexões, Almedina, 2007, pp. 56 e segs. Acs. da Relação de Coimbra de 04.05.2011 e de 12.09.2012; da Relação de Guimarães de 28.05.2012, in http://www.dgsLpt).

E é, ainda, um crime de perigo.

Com efeito, no art. 103° citado, essas condutas encontram-se enumeradas com referência a um outro elemento objectivo do tipo que, consiste no evento perigoso - a diminuição das receitas fiscais ou a obtenção de um benefício fiscal injustificado - o que permite a conclusão de que se trata de um crime de perigo concreto.

Por conseguinte, o crime consuma-se mesmo que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, pois isso é o que resulta da expressão «susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias» (cfr. neste sentido, Germano Marques da Silva, em Direito Penal Tributário, Universidade Católica Portuguesa, pág.231 e 232; Ac. do STJ de 27.11.2007; Acs. da Relação do Porto de 19.11.2008; da Relação de Lisboa de 13.07.2010; da Relação de Coimbra de 04.05.2011; de 12.09.2012 e da Relação de Guimarães de 03.07.2012, in http://www.dgsi.pt.

Do ponto de vista subjectivo, o crime de fraude fiscal é doloso, o que vale por dizer, que o respectivo autor deve ter vontade livre e consciente de praticar o facto típico descrito no tipo objecto, ou seja, de levar a cabo alguma ou várias das condutas tipificadas no art. 103° do RGIT.

Por fim, cumpre referir que a previsão do nº 2 do artº 103º tem aplicação à fraude qualificada conforme jurisprudência dominante – vd. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Setembro de 2013 (proc. n.º 67/10.3IDPRT.P1), ou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Maio de 2014 (proc. n.º 5722/04.4TDLSB.P1), ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada cumpre dizer que o mesmo será preenchido no caso de acumulação de mais de uma das circunstâncias previstas no nº 1 ou a situação prevista no nº 2 do citado artº 104º do RGIT.

A técnica qualificadora usada pelo RGIT trata-se de uma “qualificação aditiva” isto é, exige a acumulação de mais de uma das circunstâncias previstas no art.º 104.º. Actualmente pode haver fraude fiscal qualificada sem a necessidade de ocorrência das circunstâncias do n.º 1 do art.º 104.º, bastando, para tal, a “utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente”.

No caso em apreço, está em causa a emissão de facturas falsas. Através da emissão de facturas falsas, o agente visa documentar operações económicas que não são verdadeiras, ou porque pura e simplesmente não existem, ou pelo menos não existem nos exactos termos que aparentam. Assim, o objectivo que subjaz à emissão de facturas falsas assenta, em regra, na documentação falsa de custos fiscais, assegurando, deste modo, a diminuição de lucros com importantes consequências na determinação da matéria colectável (IRC) ou mesmo a obtenção ilícita de reembolsos fiscais (IVA).

Na trilogia proposta por Nuno Sá Gomes ( In Relevância Jurídica, penal e fiscal das facturas falsas e respectivos fluxos financeiros e da sua eventual destruição pelos contribuintes, Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, nº 377, DGI, Jan-Mar.1995, pág. 9)  tipificam-se três modalidades de facturas falsas: a) facturas falsas stricto sensu – conferidas pelo emitente-utilizador a empresas inexistentes; b) facturas forjadas – conferidas pelo emitente-utilizador a empresas existentes mas sem conhecimento destas últimas e c) facturas de favor – emitidas por um terceiro em resultado de acordo com o utilizador que as incorpora na sua contabilidade fiscal, existindo pagamento de uma quantia ao emitente ou mediante facturas emitidas gratuitamente.

Nos dois primeiros casos a emissão de facturas falsas ocorre através de um ato unilateral do infractor e não há qualquer operação/relação económica.

Na última situação referida, a emissão de facturas falsas pode ocorrer mediante acordo entre duas pessoas para prejudicar o Estado Fiscal. Neste caso, o emitente é co-autor do tipo legal previsto no nº 2 do artº 104º do RGIT (fraude qualificada), juntamente com o utilizador de facturas falsas.

No caso da simulação, verifica-se uma divergência intencional entre a vontade e a declaração negocial, sendo verdadeiro o documento que a incorpora. Na falsidade existe uma divergência intencional entre a declaração e a realidade (falsidade intelectual), ou entre a declaração e o seu suporte escrito (falsidade material) e não entre a vontade e a declaração negocial.
Daí que, não obstante o acordo de vontades entre o emitente e o utilizador de facturas falsas – imprescindível nas denominadas “facturas de favor” – e a correspondente co-autoria no tipo legal do artº 104º nº 2 do RGIT, a apreciação da responsabilidade criminal do utilizador não pressupõe a identificação do concreto emitente e a respectiva responsabilização criminal.

Apurada a utilização de documento falso, para efeitos de determinação da matéria colectável ou de obtenção de reembolso fiscal, acompanhado da consciência e vontade da realização do tipo de ilícito, tanto basta para responsabilizar o utilizador pelo crime de fraude fiscal, verificados que se mostrem todos os restantes elementos objectivos do tipo.”

O Ministério Público interpôs recurso enunciando as seguintes conclusões (transcrição) :
“1º–O âmago do presente recurso reside na questão de saber em que momento se consuma o crime de Fraude Fiscal Qualificada, p. e p. pelo disposto nos artºs 103º nº 1 al. c) e nºs 2 e 3 e 104º nº 2 al. a) do R.G.I.T.: se no momento da emissão da Factura ou se no momento a entrega da Declaração Defraudada.
2º–A Jurisprudência divide-se em três entendimentos.
3º–Parece ser Jurisprudência dominante aquela que defende, como o MMº Juiz a quo, que a consumação ocorre no momento da Emissão da Factura, cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 5.11.2011, 3.12.2012 ou do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.02.2015 ou do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.11.2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
4º–Minoritária parece ser a posição aqui defendida a qual só encontra eco nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Março de 2012  (veja-se o ponto 3. E. da fundamentação) e do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Fevereiro de 2013 (e mesmo aqui só no ponto IV.1 da fundamentação), disponíveis em www.dgsi.pt.
5º–Numa posição mista surge o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Fevereiro de 2014 onde se entendeu “(…)Aquele que emite uma fatura falsa e a entrega a um terceiro, com a finalidade de este se aproveitar dela para cometer o crime de fraude fiscal, vê o seu crime consumado quando entrega a fatura; aquele que recebe a fatura falsa (isto é, sem que tenha havido qualquer transação) só comete o crime quando incluir a falsa operação numa declaração fiscal(…)”
6º–Porém, ao nível da Doutrina a situação altera-se radicalmente, não se encontrando um único autor que sufrague as conclusões do MMº Juiz a quo ou do entendimento Jurisprudencial Dominante.
7º–A este nível a discussão centra-se na questão de saber se o crime se consuma com a entrega da declaração ou, em momento posterior, com a liquidação da declaração operada pela Administração Tributária, como resulta de toda a doutrina indicada na fundamentação do presente Recurso e que aqui se dá por reproduzida.
8º–Como resulta da compaginação do texto do despacho recorrido, o qual se estende de fls 12893vº até fls 12902, com o teor do texto dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.02.2015 e 29.10.2014 e do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.04.2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt, o MMº Juiz a quo aderiu à argumentação nos mesmos expendida embora por vezes com resultados incoerentes.
9º–No texto que flui de fls 12894 vº até ao primeiro parágrafo de fls 12895 vº, o MMº Juiz toma por base o Acórdão do TRL de 25.02.2015 (a partir da parte “3.Apreciando” deste Aresto) e conclui pela verificação da  Prescrição numa argumentação que se estende até fls 12896 vº.
10º–Sucede que tal texto Jurisprudencial, sempre ressalvado o muito e devido respeito, padece de um vício de análise que em nosso entender o conduz a uma conclusão errada.
11º–Aí, depois de se qualificar o crime em apreço como um crime de Aptidão, inclusivamente com base em entendimento do STJ, é feita alusão em nota de rodapé à suposta posição de Susana Aires de Sousa sobre a natureza deste crime, concluindo que, segundo esta autora, se trata de um crime de perigo, o que não é rigoroso.
12º–Se a fls 73 dessa obra a mencionada autora refere que “a incriminação prevista no artº 103º do RGIT corresponderá, ao nível da estrutura típica, a um crime perigo(…)”, clarificou o seu pensamento a fls 76 afirmando que “Os contornos típicos da Fraude Fiscal tornam razoável a sua classificação como um crime de aptidão. O Legislador quis deixar claro que considera como elementos típico da Fraude fiscal, a aptidão, a idoneidade das condutas para diminuírem as receitas tributárias”.
13º–Daí que, coerentemente esta autora conclua, a fls 84, em sentido oposto ao do Acórdão e do despacho recorrido que: “(…)a Fraude Fiscal só se consuma quando a ocultação ou alteração de factos saem do domínio do agente. (…) Assim sendo, a Fraude fiscal realiza-se no momento da liquidação definitiva pela administração fiscal, ou, no caso de auto-liquidação, no momento em que o contribuinte perde o domínio da declaração a favor da administração fiscal. A consumação da Fraude fiscal dá-se, por exemplo, quando o agente entrega a declaração de impostos alterada ou sem os factos ou valores que dela deviam constar e cria um engano na administração fiscal que possibilitará diminuir a sua prestação tributária ou obter benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de diminuir as receitas tributárias.(…) Determinante é a entrada dessa mesma declaração fiscal na esfera de domínio das autoridades fiscais, porque só então ela fica apta a diminuir as receitas tributárias.”.
14º–Não é indiferente qualificar o crime de Fraude Fiscal como um mero crime de Perigo, ou como, ainda dentro da categoria de crime de Perigo, um crime de Aptidão.
15º–Se no primeiro caso a tutela penal é totalmente antecipada até ao momento da concretização da conduta perigosa mas sem cuidar da sua aptidão para criar o perigo, no segundo caso essa antecipação não é tão intensa, limitando-se a recuar até à adopção de condutas aptas a provocarem o dano as quais, no caso concreto, se traduzem no momento entrega da Declaração Simulada.
16º–Assim, não podia o MMº Juiz a quo nem o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão em estudo, afirmar que “O STJ tem entendido tratar-se de um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão” e depois concluir pela desnecessidade de entrega da declaração para consumação do crime pois tal só seria o caso se o crime em causa fosse um puro crime de Perigo Abstracto, o que não é o caso.
17º–Existe assim uma contradição no raciocínio expendido pelo MMº Juiz a quo bem como no que foi desenvolvido neste Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que leva a que, perante a fundamentação que justifica concluir que o crime de Fraude Fiscal com recurso a Facturação Falsa só se consuma com a entrega da declaração, se conclua em sentido oposto, antecipando desnecessária e desproporcionalmente a tutela penal para momento anterior ao daquela entrega.
18º–Tal contradição já não se verifica no despacho proferido pela MMª Juiz de Instrução Criminal de Loures, constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 29.10.2014, disponível em www.dgsi.pt no qual o MMº Juiz a quo se confortou.
19º–Tal como nesse despacho, o MMº Juiz a quo invoca os ensinamentos de Isabel Marques da Silva, Germano Marques da Silva e Nuno Pombo mas, incompreensivelmente, omite as respectivas conclusões as quais suportam a posição aqui suportada pelo Ministério Público.
20º–Contraditoriamente até com a sua fundamentação anterior, em que atribui a este ilícito a natureza de crime de Aptidão (o qual pertence dogmaticamente à categoria de crime de perigo Abstracto) o MMº Juiz a quo escreve agora, sem que se perceba motivo para alteração de posição, que tal crime é um crime de Perigo Concreto, entendimento com o qual não se concorda mas que, se aplicável, só reforçaria a tese aqui defendida pelo Ministério Público.
21º–Mas, como se referiu, tal contradição não se verifica no texto utilizado pelo MMº Juiz a quo, no qual perante a argumentação partilhada por este, se conclui, coerentemente, em excerto pelo mesmo omitido, que: “a consumação dá-se, no momento da entrega da declaração pelo contribuinte ou no termo do prazo para a sua apresentação, em caso de omissão.”
22º–O Ministério Público entende que o crime referido na conclusão 1ª se consuma no momento da entrega da Declaração defrauda com base em vários argumentos.
23º–Um argumento que não é decisivo, mas que tem relevância para efeitos interpretativos, é o de que, tratando-se de facturas falsas, a data na mesmas aposta não comprova a data real em que a conduta foi praticada sob pena de se contrariar o princípio geral previsto nos artºs 3º do Código Penal e no artº 5º nº 1 do RGIT de acordo com o qual o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou devia ter actuado o que, neste crime, se traduz no dia do efectivo preenchimento da Factura Fictícia.
24º–De facto, a experiência ensina-nos que a Factura tanto pode ser emitida no ano a que se referem os rendimentos a constar na Declaração, como em momento anterior como até em momento posterior inclusive no decurso da própria investigação (ou inspecção tributária) ao agente do crime.
25º–Não cabendo ao Estado vigiar permanentemente os seus cidadãos, é, na vasta maioria dos casos, impossível determinar com exactidão a data dos factos porquanto se trata de uma conduta que não deixa vestígios, que se queda fechada no acordo entre emitente e utilizador, quando não são a mesma pessoa.
26º–Este circunstancialismo determina uma impossibilidade prática de investigação deste tipo de crime, a qual não se coaduna com o espírito do Legislador que, desde que autonomizou as Infracções Fiscais Não Aduaneiras, através do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro que aprovou o RJIFNA, tem incrementado medidas de combate a este fenómeno criminal, razão pela qual se entende que a interpretação efectuadas pelo MMº Juiz a quo sobre este tema é contrária àquele espírito.
27º–A acrescer a isto é de adiantar que a emissão da Factura Falsa não é apta para permitir a quantificação de tal lesão/benefício, em especial por referência ao montante de €15.000,00 por declaração, constante dos nºs 2 e 3 do artº 103º do RGIT, aplicável também ao regime contido no artº 104º desse diploma.
28º–Efectivamente só por referência aos montantes inscritos numa declaração é que a Factura ganha relevância fiscal para efeitos de determinação da vantagem patrimonial como se demonstra pelos exemplos constantes da fundamentação do presente Recurso, e que aqui se dão por reproduzidos por não caberem neste espaço conclusivo.
29º–Sem que a Factura seja incluída numa qualquer Declaração de Fiscal (IRS, IVA, IRC ou qualquer outro imposto que imponha um facto declarativo) a mesma nunca é objectivamente apta a causar diminuição das receitas fiscais ou permitir a obtenção de benefícios fiscais.
30º–A menos que se entenda o crime de Fraude Fiscal como um puro crime de Perigo Abstracto, entendimento este que não encontra eco nem em nenhuma Doutrina nem em nenhuma Jurisprudência nem, mais importante, na letra da Lei.
31º–O erro em que o MMº Juiz a quo labora e no qual, sempre salvaguardado o enorme e devido respeito, também tem incorrido a Jurisprudência dominante é, salvo melhor opinião, o de se confundirem a inexigibilidade de obtenção de vantagem patrimonial em prejuízo do fisco bem como o facto de o crime se consumar mesmo que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, com a problemática da entrega ou não entrega da declaração fiscal.
32º–Dito de outra forma, não é pelo facto de se entender que o crime se consuma independentemente da verificação de prejuízo ou vantagem patrimonial que se tem forçosamente que concluir que o mesmo, por esse motivo, se consuma com a emissão da factura.
33º–Fazendo a síntese da sua posição, acompanhando a toda doutrina referida ao longo da presente motivação, o Ministério Público considera que o crime de Fraude Fiscal é um crime de Aptidão, no qual a Ilicitude se funda na “idoneidade ou aptidão da conduta, reconhecível ex ante, para a lesão ou colocação em perigo do bem jurídico”.
34º–Partindo desta análise o Ministério Público entende que a sua consumação apenas pode ter lugar quando se verifique uma conduta que seja objectivamente idónea à produção do resultado típico.
35º–É o que o Legislador consagrou, ao utilizar no corpo do artº 103º nº 1 do RGIT a expressão “susceptíveis de causarem”, aqui introduzindo a atribuição de um “carácter perigoso das condutas, traduzido no seu carácter idóneo, ou seja, na probabilidade séria, de acordo com as leis da experiência, de aquelas condutas determinarem a diminuição das receitas fiscais”.
36º–Em face disto, analisada numa perspectiva meramente objectiva, a emissão de uma Factura Falsa não tem aptidão para diminuir as receitas fiscais, só adquirindo tal aptidão se o agente (emitente) ou um terceiro (utilizador) decidir utilizá-la para esse efeito.
37º–Porém, nesse caso a aptidão depende da verificação de um elemento subjectivo para a sua consumação, ou seja, depende de uma decisão do agente.
38º–E se assim for, então está artificialmente criado um elemento subjectivo de aptidão o qual não encontra suporte na letra da Lei que recorde-se apenas refere “(…) susceptíveis de causarem”.
39º–A situação já será diferente se o agente proceder à entrega da declaração.
40º–Isto porque neste caso, uma vez entregue a Declaração, a verificação do prejuízo já não está na esfera de actuação do agente.
41º–Por isso é nesse momento que se consuma o crime pois é nesse preciso momento que a conduta é objectivamente “susceptível” de causar o evento lesivo.
42º–E por força de tal aptidão, o crime tem-se por consumado ainda que a Administração Fiscal venha a impedir a verificação do prejuízo ou a obtenção do benefício ilegítimo (por isso é um crime de resultado cortado).
43º–E é este o cerne da questão.
44º–O MMº Juiz a quo, bem como a Jurisprudência dominante, na qual o mesmo se confortou, colocam correctamente o problema da natureza do crime de Fraude Fiscal enquanto crime de Aptidão, mas falham na consequência a extrair da verificação de tal natureza, tratando-o como se de puro crime de Perigo Abstracto se cuidasse.
45º–Ora não se tratando de um puro crime de Perigo Abstracto, não se vislumbra como se possa situar a consumação do crime em apreço em momento anterior à entrega da declaração.
46º–Aliás, à luz da redacção da norma contida no artº 103º nº 1 do RGIT não é de excluir que a interpretação que ora está sob análise não viole quer o princípio da legalidade quer o princípio da culpa, por constituir uma desproporcional antecipação da tutela penal que recua muito além do que o Legislador Penal quis em face da redacção que conferiu a esta norma.
47º–E é esse o sentido que a Doutrina dominante em calor contraste com a Jurisprudência dominante, tem vindo a conferir ao tema que nos ocupa.
48º–É pois, salva a enorme e devida consideração pelos Tribunais Superiores, necessário inverter a tendência Jurisprudencial que se tem vindo a consolidar sobre esta matéria ou, ao menos, apresentar nova argumentação que permita alcançar a conclusão de que o crime em causa se consuma no momento da emissão da factura, o que muito respeitosamente se requer.
49º–Por tudo isto é de concluir, com reflexo nos autos, que não ocorreu Prescrição do Procedimento criminal em relação aos arguidos A.D.M. e F.M.C..
50º–Ao entender que o crime de Fraude Fiscal Qualificada p. e p. pelo disposto nos artºs 103º nº 1 al. c) e nºs 2 e 3 e 104º nº 2 al. a) do RGIT se consumou no momento da emissão das Facturas Falsas, o MMº Juiz a quo violou o disposto nos artºs 118º nº 1 al. b) do Código Penal e artºs 5º nº 1, 21º nºs 1 e 2 e 103º nº 1, corpo, do RGIT.”
O recurso foi recebido, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, por despacho de 28 de Novembro de 2016.
Não houve resposta dos arguidos e o apenso de recurso deu entrada neste Tribunal da Relação de Lisboa em 27 de Janeiro de 2017.
No momento processual a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, o Exm.º procurador-geral adjunto exarou parecer subscrevendo as conclusões do recurso e aduzindo argumentos no sentido da procedência do recurso.

Decorrido o prazo de resposta ao parecer, recolhidos os “vistos” da juíza desembargadora presidente da secção e da juíza desembargadora adjunta e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2.–Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.

A questão a resolver consiste em saber se se completou o prazo de prescrição do procedimento criminal quanto às indiciadas condutas dos arguidos A.D.M. e F.M.C..  
                 
Na descrição constante da acusação pública e no segmento com relevo nestes autos de recurso, consta a verificação de indícios suficientes de que o arguido C.G., agindo em comunhão de esforços com F.M.C. e FBM com o propósito comum de obterem para o primeiro vantagem patrimonial de natureza fiscal a que ele não tinha direito, recorreram à emissão e utilização de facturas que titulavam negócios jurídicos  nunca ocorridos. A este arguido é imputada a emissão de facturas fictícias com datas de emissão compreendidas entre 30-10-2002 e 31-12-2002 (pags. 437 a 440 da acusação).

Assim como consta ainda na mesma acusação pública que o arguido A.V.M., agindo em comunhão de esforços com F.M.C. e FBM com o propósito comum de obterem para o primeiro vantagem patrimonial de natureza fiscal a que ele não tinha direito, recorreram à emissão e utilização de facturas que titulavam negócios jurídicos  nunca ocorridos. A este arguido é imputada a emissão de facturas fictícias com datas de emissão compreendidas entre 30-09-2002 e 30-06-2003 (fls. 454 a 461 da acusação).

Por último, escreveu-se ainda na acusação pública que os arguidos A.D.M., FBM e F.M.C., agindo em comunhão de esforços e com o propósito comum de obterem para o primeiro vantagem patrimonial de natureza fiscal a que ele não tinha direito, recorreram à emissão e utilização de facturas que titulavam negócios jurídicos nunca ocorridos. Segundo se indicia, as facturas fictícias teriam datas de emissão compreendidas entre 29-12-2000 e 27-06-2003, sendo que F.M.C. teria emitido facturas com datas não posteriores a 28-02-2002 que foram reflectidas como custos em declarações de IVA e de IRC dos anos de 2002 e 2003. (cfr. paginas 524 a 543).
3.–O tipo legal de crime de fraude fiscal, com a descrição constante dos artigos 103º e 104º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, inclui as condutas dolosas (ocultação, alteração, simulação) que sejam idóneas ou aptas a produzir a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias.[1]
No caso das “facturas falsas”, a conduta ilícita consiste fundamentalmente na simulação da celebração de operações económicas, como contractos ou acordo de fornecimento de serviços sem qualquer correspondência com a realidade. O objectivo que subjaz à emissão de facturas falsas radica frequentemente na documentação falsa de custos fiscais, assegurando, deste modo, a diminuição de lucros com consequências na determinação da matéria colectável (IRC) ou mesmo a obtenção ilícita de reembolsos fiscais (IVA).
Atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstracto, de perigo abstracto-concreto e de perigo concreto, o crime de fraude fiscal através de facturas falsas ou de favor insere-se na categoria de crime de perigo abstracto na forma de crime de aptidão.
Enquanto crime de perigo, a realização do tipo não pressupõe a lesão efectiva do bem jurídico protegido, mas o perigo é parte integrante do tipo e não um mero motivo da incriminação, como sucede nos autênticos crimes de perigo abstracto. Por outro lado, porém, a realização típica destes crimes não exige a produção de um resultado de perigo concreto.[2]
Ainda assim, a idoneidade objectiva da concreta actividade ou conduta desenvolvidas para criar alguma das situações expressamente previstas no preceito incriminador (.não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias) integra a factualidade típica, encontra-se sujeita a prova e a valoração judicial[3].
4.–Retomando a apreciação da questão suscitada neste recurso, interessa recordar  que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado. (artigo 119.º do Código Penal, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do artigo 3.º do RGIT) e que as infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3 (artigo 5.º do RGIT).
A doutrina distingue a consumação formal que ocorre quando se verifica no facto todos os elementos constitutivos do tipo, da consumação material, terminação ou conclusão que se dá apenas quando se verifica a realização completa do conteúdo do ilícito em vista da qual foi erigida a incriminação[4]

Nos crimes de perigo o que releva é a consumação típica ou formal, ou seja, a ocasião em que o comportamento doloso preenche a totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito[5].
Nesta ordem de ideias, a consumação do crime de fraude fiscal indiciado nestes autos ocorre no momento da celebração do negócio simulado, ou seja, da emissão dolosa da factura falsa adequada a diminuir as receitas tributárias, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante na escolha e determinação da medida concreta da pena, ou seja, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte[6].  
 
Não se desconhece a orientação da doutrina no sentido de que a consumação se verifica no termo do prazo para apresentação da declaração à administração judiciária ou no momento da entrega da declaração ou ainda no momento da liquidação pela autoridade tributária[7].

Sempre com o devido respeito por entendimento diverso, não encontramos fundamento bastante para postergar a consumação para o momento da entrega da declaração, necessariamente posterior ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo de fraude fiscal.

Percorrendo os argumentos expostos pelo Digno recorrente para sustentar o entendimento de que o crime de fraude fiscal qualificada se consuma no momento da entrega da declaração tributária:
-O problema de saber qual a data real de emissão da factura fictícia poderá sempre ser solucionado, como acontece com todos os outros factos relevantes, pela apreciação e valoração da prova. Naturalmente que a indicação constante do documento poderá ser corroborada ou infirmada pela apresentação e análise de outros elementos extraídos dos livros de facturas, de outros papéis ou documentos, ou de testemunhos. Não encontramos regra extraída da experiência que nos permita concluir que na maioria dos casos será impossível determinar a data relevante;
-A referência constante do nº 2 do artigo 103º do RGIT impõe considerar que só é punível a conduta que se revele idónea a causar uma vantagem patrimonial igual ou superior a 15000 €.  Trata-se de uma circunstância que não integra a descrição objectiva, mas que fundamenta a punibilidade, revestindo-se por isso da natureza de uma condição objectiva de punibilidade.

O cálculo ou determinação da vantagem patrimonial pode ser feito ainda que não tenha havido entrega de declaração ou liquidação tributária.

A propósito, interessa recordar que a mesma emissão de factura fictícia pode dar origem a duas ou mais declarações a apresentar à administração tributária, tudo dependendo dos impostos em causa.

Como alerta Sara Raquel Pereira Marques[8] citando Nuno Pombo[9], o entendimento de que não é a conduta em si mesma que se mostra lesiva, mas antes a projecção desta por via das declarações apresentadas, pode levar a concluir que se cada declaração apresentada consubstanciar a obtenção de vantagem patrimonial inferior a €15.000,00 (quinze mil euros), não obstante o contribuinte apresentar mais que uma declaração respeitante à mesma conduta, não estaríamos perante um crime de fraude fiscal. No inverso, teríamos tantos crimes puníveis quanto as declarações, se todas fossem, e per se de montante superior a 15000€.

O entendimento de que a fraude fiscal só se consuma com a declaração levaria a concluir que uma mesma conduta de emissão de factura fictícia tanto poderia conduzir a inexistência de crime, como à verificação de um ou de dois crimes;
- A aptidão objectiva da factura fictícia para influenciar o cálculo do imposto ou a obtenção indevida de benefício fiscal, reembolso, ou outra vantagem patrimonial e a subsequente aptidão desse beneficio fiscal, reembolso ou vantagem para a diminuição das receitas fiscais dependem de prova e de valoração judicial, com base nas circunstâncias concretas e seguindo regras retiradas da experiência comum.

A formulação do juízo judicial de aptidão não exige nem depende da entrada da declaração fiscal na autoridade fiscal.

Em conclusão: a consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.
Aplicando este entendimento na situação em análise, ocorreu causa extintiva do procedimento criminal nos termos decididos no despacho recorrido e improcede o recurso do Ministério Público.

5.–Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso do Ministério Público e em manter o despacho recorrido.



Lisboa, 8 de Março de 2017.
                               
 
                                       
João Lee Ferreira - (Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem).  
Ana Paula Grandvaux                                                                                                                
                                                                              
                                                                                                              
[1]Manuel da Costa Andrade, A Fraude Fiscal – Dez Anos Depois, Ainda Um “Crime de Resultado Cortado”?, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, III, Coimbra ; 2009, p. 275
[2]Figueiredo Dias, Direito Penal, I, Coimbra, 207, p. 311.
[3]Segundo o entendimento de Miguel João de Almeida Costa, o juízo de aptidão não deve incidir apenas na idoneidade das condutas para a não liquidação, entrega ou pagamento ou obtenção de benefícios fiscais mas também, num segundo momento, sobre a aptidão dessa mesma conduta para reduzir as receitas fiscais. Como escreve este Autor,  o preenchimento do tipo legal de crime de fraude fiscal exige, conjugadamente: i)a verificação de uma das condutas tipificadas - ocultação ou alteração de factos ou valores, ou celebração de negócio simulado; ii)que a mesma seja objectivamente apta a («que vise») influenciar o cálculo do imposto - não liquidação, entrega ou pagamento do imposto, ou obtenção indevida de benefício fiscal, reembolso, ou outra vantagem patrimonial; iii)e que a obtenção por parte do contribuinte dessa vantagem patrimonial seja apta à («susceptível de causar») diminuição das receitas fiscais. Este último elemento típico imprime à fraude fiscal, do ponto de vista da ofensividade, a fisionomia de crime de aptidão (A Fraude Fiscal Como Crime de Aptidão Facturas Falsas e Concurso de Infracções Miscelânias, Coimbra nº nº 6, p 217-220).
[4]Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 342 e Direito Penal, I, Coimbra, 207, p. 686.
[5]Para o crime de falsificação, Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, Coimbra, 2004, p.29
[6]Decidiram seguindo este entendimento os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 27/04/2005, Isabel Pais Martins, proc. 5012/04, Colectânea de Jurisprudência, n.º 182, Tomo II/2005, do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/02/1015, Conceição Gonçalves, proc. 709/08.0IDFUN-A.L1-3 e de 17/01/2017, Cid Geraldo, proc. 5/11.6IDFUN.L1-5, do Tribunal da Relação de Coimbra de 4/5/2011, Jorge Dias, proc. 954/02.2JFLSB.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 5/1/2011, Ernesto Nascimento, proc. 110/98.2IDAVR.P1, de 3/12/2012, Maria Deolinda Dionísio, proc. 2690/01.8TAVFR.P1e do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/11/2014, Isabel Cerqueira, proc. 20/02.0IDBRG-X.G1 in www.dgsi.pt .)  
[7]Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Universidade Católica, 2009, p. 232 e Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, Comentário das Leis Penais Extravagantes, 2, Universidade Católica, 2011, p. 455 e 456, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2009, p. 84-86.
[8]Fraude Fiscal e Evasão Fiscal, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, acedido em www.cije.up.pt/download-file/160
[9]A Fraude Fiscal, A Norma Incriminadora, a simulação e outras reflexões, Almedina, p.86-87