Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
334/20.8EALSB-A.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: BUSCA
CONSULTÓRIO MÉDICO
SIGILO MÉDICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Nas buscas efetuadas em consultórios médicos têm de ser acautelados os valores intrínsecos ao exercício da respetiva profissão, como seja a salvaguarda do sigilo profissional.
II - O sigilo médico pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada – cf. artigo 139.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Médicos.
III - Estando ainda o processo em fase de inquérito, a autoridade judiciária é o Ministério Público, sendo este o competente para ordenar e emitir os mandados de buscas, com exceção feita às buscas a que alude o artigo 177.º do Código de Processo Penal.
IV - A busca requerida pelo Ministério Público não se enquadra nestas exceções, já que tem por objeto uma clínica de estética, que manifestamente não pode ser comparada a um consultório médico e importa lembrar que o fundamento para a presença de um juiz na busca a consultório médico é a salvaguarda do sigilo médico e, por isso, também ali deve estar um representante da Ordem dos Médicos
V - Se do processo não existem quaisquer indícios que em tal estabelecimento de estética também seja um consultório médico ou de que algum médico aí exerça funções, o Ministério Público tem a competência para emitir os mandados de busca.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No âmbito do Inquérito 334/20.8EALSB, que corre termos na Procuradoria da República da Comarca de Lisboa - DIAP – 4.ª Secção, veio o Ministério Público interpor recurso do despacho da JIC, datado de 11.10.2024, que considerou que o Ministério Público tinha competência para ordenar a busca a uma clínica de estética, onde se suspeita que são realizados atos médicos, não tendo, por isso, determinado a busca naquele local.
Requereu que se revogue o despacho recorrido e que se determine a sua substituição por outro que defira a emissão dos mandados de busca e apreensão.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
“1. Tendo em conta a indiciação dos autos por crime de usurpação de funções, p.e p. pela alínea b) do artigo 358.º do Código Penal, atento o estado da investigação, estendeu-se no despacho recorrido indeferir a realização de busca a clínica, presidida pessoalmente por juiz, tal como promovido pelo Ministério Público.
2.° A emissão de mandados de busca foi requerida por se ter considerado que existiam no inquérito indícios fortes que a Denunciada desenvolve a sua atividade profissional realizando procedimentos estéticos, através aplicação de injetáveis, não sendo profissional de saúde, em estabelecimento não autorizado, com aplicação de produtos desconhecidos, possivelmente sem controlo por parte do Infarmed.
3.º Tais factos são, pois, suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de atos médicos por quem não tem habilitações para o efeito, incorrendo em crime de usurpação de funções de médico, previsto e punido pelo artigo 358.º, al. b), do Código Penal.
4.º As diligências realizadas até ao momento permitem confirmar o teor da denúncia, e a continuação da atividade pela suspeita, pelo que o Ministério Público requereu a realização de buscas para a descoberta da verdade, identificação do(s) autor(es) dos factos e recolha de elementos de prova, com localização e apreensão de material e documentação de clientes/pacientes, ao abrigo dos artigos 177.º, n.º 5, e180.ª do Código Processo Penal.
5.ª Os referidos preceitos impõem que a busca e apreensão seja pessoalmente presidida por juiz, sob pena de nulidade, não cabendo ao Ministério Público ordená-las.
6.º Os factos revestem gravidade por envolverem risco para a saúde e vida de todos os clientes que a ali se deslocam, na convicção de estarem numa clínica.
7.º Importa, pois, não só fazer cessar tal atividade como proceder à recolha de prova tendente a identificar os demais sujeitos envolvidos e demonstrar ou infirmar a sua qualidade de médico para o exercício de tal atividade e as condições em que é exercida, bem como proceder às apreensões de material e documentos sujeitos a sigilo dos clientes/pacientes.
8.º Pois se os elementos probatórios até aqui colhidos nos autos apontam para a prática de atos médicos por quem não está autorizado, podem coexistir com a colaboração de profissionais médicos.
9.° Nas buscas, as apreensões a realizar, cujo conteúdo poderá estar abrangido por segredo profissional médico, sendo objeto do crime, terão que ser primeiramente conhecidas pelo Juiz, sob pena de nulidade e de se sacrificar irremediavelmente o direito coletivo à completa investigação criminal que deve sempre acontecer num Estado de Direito.
10.º Ao indeferir as buscas tal como proferidas, o despacho recorrido inviabilizou a obtenção de prova, que se encontra devidamente balizada e regulada na lei, não só quanto aos seus pressupostos como quanto às suas formalidades, sob pena de nulidade.
11.º Porquanto, com o pedido de emissão de mandados de busca nos termos em que foi formulado, e no estado da investigação, pretendia-se trazer para o inquérito um subsequente e mais fundamentado juízo de certeza quanto à autoria dos factos, capaz de reforçar a responsabilidade da(s) Denunciada(s), o que a recusa proferida inviabilizou”.
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Foi proferido despacho de sustentação com o seguinte teor:
“Estatui o art. 177º, nº 5, do CPP, que “Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente.”
A norma supracitada visa tutelar o segredo profissional, no caso o eventual sigilo médico, isto é, a relação médico-paciente. Contudo, nos presentes autos embora o local a buscar tenha o nome de “AA” não constam dos autos quaisquer indícios de que seja um consultório médico ou de que algum médico aí exerça funções.
Destarte é precisamente por a suspeita alegadamente prestar serviços médicos, designadamente a realização de procedimentos injectáveis, que existe a fundada suspeita da prática de um crime de usurpação de funções. A apreensão do material usado pela suspeita em nada contende com o desígnio da norma, de protecção do sigilo médico, nem tal é alegado Ministério Público.
Foi esse o motivo que levou ao indeferimento do requerido, tendo-se ressalvado, todavia, que caso o MP demonstrasse que havia indícios da actividade de um médico no local seria o requerido deferido.
Por último, cumpre salientar que do facto de a suspeita proceder a procedimentos médicos com injectáveis não resulta indiciada a alegada e hipotética intervenção médica uma vez que o acesso a tais produtos se encontra actualmente facilitado através do recurso à internet.
Pelo exposto, mantém-se a decisão recorrida, no entanto V. Excelências farão a costumada JUSTIÇA”.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que afirma acompanhar, nos precisos termos em que está formulada, a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, para a qual por uma questão de economia processual remete.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jurisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise importa decidir se a busca requerida pelo Ministério Público tem de ser ordenada e presidida pelo JIC.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente a promoção do Ministério Público e a decisão recorrida.:
Transcrição da promoção do Ministério Público:
“Iniciaram os presentes autos com a denúncia apresentada por BB dando conta que a denunciada CC se dedica e faz publicidade à prestação de serviços na área de medicina e estética, concretamente mesoterapia corporal e de rosto, toxina botulínica e preenchimentos com ácido hialurónico.
Qualquer produto injetável, que seja ministrado num paciente, apenas pode ser executado por um médico, ou sob a supervisão deste e terá de ser por profissional enfermeiro.
A suspeita não se encontra inscrita na Ordem dos Médicos, nem na Ordem dos Médicos Dentistas nem na Ordem dos Enfermeiros.
Não obstante, continua a publicitar no Facebook o procedimento de jato de plasma (cfr. fls. 240).
A suspeita desenvolve a sua atividade na “AA” (cfr. fls. 240).
Estão, assim, em causa procedimentos estéticos, através de injeções aplicadas por suspeita que não é profissional de saúde, em estabelecimento não autorizado, com aplicação de produtos desconhecidos, possivelmente sem controlo por parte do Infarmed.
Tais factos são suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º do Código Penal.
Na fase em que se encontra a investigação, impõe-se, para a descoberta da verdade e recolha de elementos de prova, a apreensão de material que seja usado pela suspeita, que mantém a mesma atividade, através da prática de atos próprios de uma profissão para a qual a Lei exige que seja praticado por médico ou sob a supervisão e após prescrição deste.
As práticas efetuadas pela suspeita põem em risco a vida dos seus utentes/clientes e são praticadas de forma continuada em estabelecimento que não se encontra licenciado para ato médico, importando esclarecer se dispõe ao seu serviço de pessoal médico ou de enfermagem.
Mais importa averiguar se dispõe de produtos que não sejam controlados pelas instituições nacionais de controlo de medicamentos.
Importa, pois, não só fazer cessar tal atividade como proceder à recolha de prova tendente a identificar os demais sujeitos envolvidos e demonstrar ou infirmar a sua qualidade de médico para o exercício de tal atividade e as condições em que é exercida, bem como proceder à apreensão de todos o material clínico e produtos químicos/medicamentos ou produtos farmacêuticos utilizados, razão pela qual se promove a emissão de mandados de busca e apreensão para “AA” sita em ..., nos termos conjugados dos artigos 174.º, n.º 1 a 3, 176.º, 177.º, 178.º e 269.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
Não obstante a suspeita de atos médicos não licenciados, podendo ali se deslocar médicos e existir material sujeito a sigilo médico, nos termos do artigo 177.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, as diligências requeridas deverão contar com a presença de Magistrado Judicial e do Ministério Público, bem assim como representante da Ordem dos Médicos, Enfermeiros, Infarmed e ASAE, mais se requerendo que seja a signatária informada com a antecedência mínima de 10 dias sobre a data agendada para a deslocação, por forma a reunir os meios policiais necessários à intervenção e articulação logística.
Mais se promove, ainda, a realização de pesquisas, buscas e apreensões em sistemas informáticos e suportes eletrónicos/digitais aí existentes, com cópia em suporte autónomo, nos termos dos artigos 11.º e 15.º a 17.º da Lei n.º 109/2009 de 15/09.
Apresente os autos ao Meritíssimo Juiz de Instrução para apreciação das promoções que antecedem”.
Transcrição da decisão recorrida:
“Nos presentes autos existem indícios da prática de factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pela alínea b) do artigo 358.º do mesmo diploma legal, sendo suspeita CC.
O Ministério Público promove, nessa senda, em síntese, que seja realizada busca à “AA” por a mesma ser essencial com vista à efectiva apreensão de material que seja usado pela suspeita para a prática de actos próprios de médico.
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Compulsados os autos verifica-se que não existem quaisquer indícios de que a suspeita tenha instalado consultório médico na referida clínica estética.
Assim sendo, a competência para ordenar tais buscas cabe ao Ministério Público, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do art. 174.º, do n.º 1 do artigo 263º e dos arts. 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, estes últimos a contrario. Indefere-se, por conseguinte, o promovido, sem prejuízo de vir a ser deferido caso se demonstre a existência de tais indícios”.
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IV. Do Mérito do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 174.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, a busca é autorizada e ordenada pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência. E, de acordo com o referido no artigo 1.º, alínea b) do mesmo diploma, autoridade judiciária é o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público cada um relativamente aos autos processuais que cabem na sua competência, sendo certo que é ao Ministério Público que incumbe promover o processo penal e dirigir o inquérito (artigo 48.º e 53.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigos 262.º, n.º 1 e 267.º do Código de Processo Penal). Com vista à realização destas finalidades, o Ministério Público pratica os atos e assegura os meios de prova necessários, nos termos e com as restrições constantes dos artigos 268.º e 269.º e ainda os previstos expressamente noutras disposições legais. Com efeito, nestes últimos artigos estão previstos os atos que, durante o inquérito, competem exclusivamente ao JIC praticar, ordenar ou autorizar.
Nos termos do artigo 177.º do Código de Processo Penal, compete ao JIC autorizar as buscas domiciliárias e “Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente” (n.º 5 do mesmo artigo).
Nestas situações especiais têm de ser acautelados os valores intrínsecos ao exercício das respetivas profissões, como seja a salvaguarda do sigilo profissional.
O sigilo médico pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada – cf. artigo 139.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos médicos.
Regressemos ao caso em análise.
Não há dúvidas que neste processo, estando ainda em fase de inquérito, a autoridade judiciária é o Ministério Público, sendo este o competente para ordenar e emitir os mandados de buscas, com exceção feita às buscas a que alude o artigo 177.º do Código de Processo Penal.
A busca requerida pelo Ministério Público não se enquadra nestas exceções, já que tem por objeto uma clínica de estética, que manifestamente não pode ser comparada a um consultório médico e importa lembrar que o fundamento para a presença de um juiz na busca a consultório médico é a salvaguarda do sigilo médico e, por isso, também ali deve estar um representante da Ordem dos Médicos.
Como se escreveu no despacho de sustentação “A norma supracitada visa tutelar o segredo profissional, no caso o eventual sigilo médico, isto é, a relação médico-paciente. Contudo, nos presentes autos embora o local a buscar tenha o nome de “AA” não constam dos autos quaisquer indícios de que seja um consultório médico ou de que algum médico aí exerça funções” – realce nosso.
Do próprio requerimento do Ministério Público consta “Pois se os elementos probatórios até aqui colhidos nos autos apontam para a prática de atos médicos por quem não está autorizado, podem coexistir com a colaboração de profissionais médicos”.
Daqui decorre que o próprio Ministério Público admite que não há prova que ali trabalhem médicos ou enfermeiros e que apenas pretendem acautelar essa possibilidade.
A seguir o entendimento do Ministério Público teríamos uma busca a uma clínica de estética com a presença de um juiz, e de representantes da Ordem dos Médicos, Enfermeiros, Infarmed e ASAE, ou seja, com mais entidades do que seriam necessárias para uma busca a um consultório médico, sem que se tenha efetivamente conhecimento de que ali trabalham médicos ou enfermeiros, o que manifestamente não se nos afigura razoável nem admissível.
Neste conspecto, nada há a censurar à decisão recorrida, tendo o Ministério Público competência para ordenar a busca pretendida.
Improcede assim o recurso apresentado.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 19 de dezembro de 2024
Ana Lúcia Gordinho
Manuel Advínculo Sequeira
Ester Pacheco dos Santo
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.