Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
229/22.0YRLSB-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
DE 27 DE NOVEMBRO (BRUXELAS-IIBIS)
FACTORES DE CONEXÃO
FRAUDE À LEI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

I)–O nosso regime de revisão de sentenças estrangeiras prescinde da apreciação da competência internacional do tribunal estrangeiro, com a única excepção de a sentença ter sido proferida em matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses.

II)–A fraude à lei impeditiva da revisão não se confunde com a sonegação de factores de conexão no processo em que foi proferida, com contraditório, a sentença revidenda; é necessário que a acção tenha sido proposta no tribunal estrangeiro com o fim principal de se invocar a sentença na ordem jurídica onde ela não poderia ser obtida.
(AAC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I)–RELATÓRIO


D…, com os sinais dos autos, instaurou a presente acção declarativa com processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra J… pedindo seja revista e confirmada a sentença de divórcio do casamento entre ambos celebrado, proferida em Ontário, Canadá, em 6 de Janeiro de 2009, já transitada.

O Requerido contestou alegando:
A Requerente omite que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família de Menores de Lisboa – Juiz 8, sob o n.º 12267/21.6T8LSB, acção de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge.
Na referida ação, foi proferido despacho em 27 de dezembro de 2021, no qual foi declarada suspensa a instância nos termos do nº 1 do artigo 272º do CPC, sob condição da ali Ré (e aqui Requerente) requerer a revisão e confirmação da sentença proferida por tribunal estrangeiro.
Porém, a premissa constante de tal despacho, e consubstanciada no seguinte trecho do mesmo «A competência eletiva do tribunal superior de Toronto não foi questionada, onde de resto residiu o casal até 2015 e ali permanece a aqui Ré, nem tal competência foi provocada em fraude», não corresponde à verdade.
A Requerente e o Requerido viveram juntos na Suíça (onde aquele ainda reside) durante um ano, mais concretamente entre 2015 e agosto de 2016 – data em que abandonou aquele país e se ausentou para o Canadá levando consigo o filho menor de ambos.
Assim, quer a casa de morada de família, quer os factos que integram a causa de pedir do divórcio em apreço, se localizaram na Suíça.
O Requerido intentou a ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge em Portugal porque igualmente tem domicílio em território nacional.
Assim, é o Tribunal português o competente para julgar a referida ação de divórcio – ou, caso assim se não entendesse (o que não se concede, e só por mero dever de patrocínio se admite), tal competência caberia à Justiça da Suíça.
Assim, a Sentença cuja revisão se pretende provém de tribunal estrangeiro cuja competência foi provocada em fraude à lei – justamente porque a Requerente omitiu ao Tribunal do Canadá os factos melhor descritos no artigo sexto, e que conforme supra exposto determinariam a incompetência daquele Tribunal.
Os factos que integram a causa de pedir do divórcio em apreço ocorreram na Suíça, sendo que o Requerido vive desde 2009 na Suíça e em Portugal – nunca tendo regressado ao Canadá.
A invocada Sentença do Tribunal Superior de Justiça do Ontário não preenche assim os requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, mormente na respetiva alínea c), para que possa ser revista e confirmada.

Arrolou testemunhas e requereu fossem prestados depoimentos de parte.

A Requerente respondeu pronunciando-se como na inicial e pela improcedência da contestação.

Pela Relatora foi proferido despacho com o seguinte teor:
A apreciação dos pressupostos de revisão da sentença de divórcio proferida pelo Canadá, objecto do presente processo, prescinde da prova dos factos invocados quanto ao lugar onde cessou a coabitação conjugal (por a prova ou não prova ser indiferente à solução do litígio).
A domiciliação do Requerido (aliás conclusivamente alegada), é irrelevante por nestes autos se não apreciar a competência internacional do Tribunal de Família de Lisboa para julgar a acção de divórcio intentada pelo Requerido contra a Requerente.
Por tudo, entende-se que não há lugar a aperfeiçoamento da alegação conclusiva nem à realização de diligências instrutórias, por serem, uma e outra, inúteis.
Pelo exposto, indefiro a inquirição da testemunha e a prestação de depoimentos de parte, nos termos do artigo 983.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Notifique.
Cumpra o disposto no artigo 982.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

O Ministério Público apresentou alegações defendendo que deve ser julgada procedente a acção e revista a sentença.

A Requerente apresentou alegações no sentido da inicial.

O Requerido alegou reiterando os termos da contestação apresentada.

Corridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

II)–DO OBJECTO

Tendo em atenção as posições das partes, importa apreciar dos requisitos de procedência do pedido de revisão.

III)–FUNDAMENTAÇÃO

1.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Encontram-se assentes nos autos os seguintes factos (sendo os demais alegados irrelevantes ao sentido da decisão):
1.–D … e J... contraíram entre si casamento em 6 de Janeiro de 2009 (assento de casamento junto).
2.–Por sentença de 6 de Outubro de 2021, transitada em julgado em 6 de Novembro de 2021, foi decretado o divórcio do casamento celebrado entre os Requerentes por sentença do Tribunal Superior de Justiça de Ontário, Canadá (cópia certificada junta).
3.–Da sentença referida em 2 foi extraída cópia junta aos autos, certificada em 9 de Dezembro de 2021 pelo Consulado-Geral de Portugal em Toronto, como tendo sido proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça de Ontário, Canadá (cópia certificada junta).
4.–O Requerido instaurou em Portugal acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra a Requerida, pedindo a dissolução do casamento entre ambos celebrado em 6 de Janeiro de 2009, a qual se encontra pendente.

2.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1.–A única questão colocada é a referente à verificação do exigido pelo artigo 980.º, alínea c), do Código de Processo Civil, que dispõe ser requisito da revisão que a sentença revidenda provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
2.–É pacífica a verificação dos demais requisitos que, por isso, cabe apreciar sumariamente, a saber os pressupostos a que aludem as alíneas a), b) e d) a f) do artigo 980.º, do CPC.
2.1.-O documento indicado para revisão não oferece dúvidas quanto à sua autenticidade, é claro o sentido do que dele consta, a saber, a decisão do tribunal de Ontário de declarar dissolvido o casamento celebrado entre Requerente e Requerido em 6 de Janeiro de 2009, tendo transitado em julgado.
2.2.-Não se verifica situação de caso julgado de sentença portuguesa nem de litispendência com a acção referida em 4.
2.3.-Não se vê e nada é alegado quanto a o reconhecimento envolver situação incompatível com os princípios da ordem pública internacional da República Portuguesa, sendo que apenas com referência à fraude quanto à competência tais princípios são invocados. Nada consta ou foi alegado quanto a ter-se o Requerido visto colocado em situação de indefesa, contrariamente o Requerido invoca a sua intervenção no processo em que foi proferida a decisão revidenda.
2.4.-Importa avaliar se a matéria é da competência exclusiva dos Tribunais Portugueses.
A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa[1].

Deve entender-se por matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses aquela que lhe é reservada em exclusividade quer pelo direito da União, quer pelo direito nacional, ou seja, aquela que não admite pacto de jurisdição de que resulte a privação da competência ou que obste, justamente, a que sentença proferida por tribunal de outro Estado seja revista e confirmada na ordem jurídica Portuguesa.

No caso vertente a questão pode colocar-se com referência ao Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de Novembro (doravante, Bruxelas-IIbis), dado a revisão se referir a uma declaração de divórcio.

É o que resulta do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, do artigo 59º, do Código de Processo Civil, recorrendo-se, na negativa ao direito interno, ou seja, aos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.

Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes gerais de competência legal exclusiva: o regime comunitário [actualmente, da União] e o regime interno. O regime interno só é aplicável quando a acção não for abrangida pelo âmbito de aplicação do regime comunitário, que é de fonte hierarquicamente superior[2].

2.4.1.– Quanto ao Direito da União

a)-O referido Regulamento aplica-se na determinação de competência quanto a acções de divórcio envolvendo nacionais de Estados-Membros (os Estados da União Europeia, com excepção da Dinamarca e as ressalvas do Reino Unido e Irlanda).
O Regulamento estabelece como factores de atribuição de competência os da residência habitual dos cônjuges ou de um deles e o da nacionalidade dos cônjuges, elencando no artigo 3.º, n.º 1, um conjunto de factores combinação daqueles.
Os factores de conexão assim estabelecidos não se encontram hierarquizados, antes se devendo entender como estabelecendo alternativas que possibilitam opção[3].

É o que se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 2020, proferido no processo 4435/19.7T8BRG.G1.S1    (Rosa Tching):
(…) nenhum dos sete critérios atributivos de competência internacional prevalece sobre os restantes, não havendo, portanto, uma hierarquização dos critérios. Todos os critérios são colocados a um nível paritário e a paridade entre eles permite qualificá-los como critérios alternativos, no sentido em que são de aplicação concorrente, isto é, um mesmo divórcio transnacional pode preencher dois ou mais dos critérios de competência internacional previstos no citado art. 3º , podendo, assim, os tribunais de dois ou mais Estados-Membros ser internacionalmente competentes para julgar o litígio (…).

b)-No caso dos autos, todavia, a questão que nos ocupa não é a da determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, mas a de averiguar se o Regulamento Bruxelas-IIbis atribui competência exclusiva aos tribunais portugueses, a qual, nos termos da alínea c) II.ª parte, do artigo 980.º, obstaria à revisão da sentença proferida no Canadá.
Os factores de conexão que resultam das alegações das partes nos autos estabelecem ligação com o Canadá (face à alegação de que a Requerente aí reside e o casal aí residiu em comum), com a Suíça (face à alegação de que o casal aí residia aquando da separação e o Requerente ainda aí reside) e com Portugal (face à alegação de que o Requerido tem domicílio em Portugal).
Em suma, com um Estado-Membro da União Europeia e dois outros a ela estranhos, o que coloca a questão de saber da aplicabilidade do Regulamento quando a situação assim se desenha, ou seja, quando apenas se encontra em causa um Estado-Membro ou, pelo contrário, se é aplicável também nessas situações.
O Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) já se pronunciou sobre a questão[4], embora na perspectiva da atribuição de competência que não no da consagração de competência exclusiva.

Decidiu o TJUE:
(…)o Regulamento n.° 2201/2003 aplica-se também aos nacionais de Estados terceiros que apresentem um vínculo suficientemente forte com o território de um dos Estados-Membros, nos termos dos critérios de competência previstos no referido regulamento, critérios que, segundo o décimo segundo considerando do Regulamento n.° 1347/2000[5], se baseiam no princípio de que deve existir um vínculo efectivo entre o interessado e o Estado-Membro que exerce a competência.

Em consequência do que ficou estabelecida a aplicabilidade do Regulamento mesmo quando estejam em causa factores de conexão com Estados não Membros, em obediência ao princípio do juiz nacional como juiz comunitário e da interpretação conforme do Direito da União.
Tal regra estabelece a interpretação do artigo 6.º no sentido de inviabilizar a aplicação do direito nacional do Estado Membro que aprecia da sua competência internacional, quando o direito da União, no caso o Regulamento Bruxelas IIbis, determina a competência de um outro Estado Membro.

Ou seja, estabelece que para aferir da sua competência internacional os Estados Membros estão vinculados ao Direito da União e não ao seu próprio quando aquele determine a sua incompetência internacional e a competência de um outro Estado Membro. Por isso que o TJUE fundamente a sua posição nos artigos 7.º, n.º 1, e 17.º:
18-Ora, segundo a redacção clara do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, só quando nenhum tribunal de um Estado-Membro for competente nos termos dos artigos 3.°, 4.° e 5.° do referido regulamento é que a competência será, em cada Estado-Membro, regulada pelo direito nacional.
19-Por outro lado, segundo o artigo 17.° do Regulamento n.° 2201/2003, cuja redacção também é desprovida de qualquer ambiguidade, o tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência, nos termos do referido regulamento, deve declarar-se oficiosamente incompetente quando o tribunal de outro Estado-Membro seja competente por força desse regulamento.
 
Não pode assim descartar-se a consideração do Regulamento Bruxelas IIbis apenas por as questões de competência internacional em causa nos autos não se referirem a mais de um Estado-Membro, devendo averiguar-se se o Regulamento estabelece a competência exclusiva dos tribunais portugueses no confronto com Estados não Membros.

Rege quanto a competência exclusiva o artigo 6.º:
Qualquer dos cônjuges que:
a)-Tenha a sua residência habitual no território de um Estado-Membro; ou
b)- Seja nacional de um Estado-Membro ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, tenha o seu 'domicílio' no território de um destes dois Estados-Membros, só por força dos artigos 3.º, 4.º e 5.º pode ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro.

Assim, o Regulamento estabelece a competência internacional exclusiva dos tribunais dos Estados Membros indicados pelos factores de conexão dos artigos 3.º a 5.º no confronto com os tribunais dos demais Estados Membros, excluídos pelos mesmos factores de conexão. Competência exclusiva dos tribunais dos Estados Membros terceiros em relação ao que ajuíza da competência, competência exclusiva que resulta de este último estar obrigado pelo artigo 17.º a declarar-se incompetente no confronto com o outro Estado Membro cuja competência é indicada por aqueles factores de conexão.

De algum modo, a competência exclusiva, assim está epigrafada a norma, resulta da obrigação de declaração de incompetência no confronto com outro Estado Membro e não numa efectiva atribuição de competência exclusiva, em sentido estrito, ao tribunal convocado a apreciar da sua competência internacional.
No caso dos autos não é essa a situação verificada uma vez que a questão da competência internacional não se suscita entre Estados Membros e, sobretudo, não se suscita entre, por um lado, Estados Membros indicados por factores de conexão dos artigos 3.º a 5.º e, por outro, Estado Membro decisor de competência não indicado por qualquer desses factores de conexão.

Em conclusão, não se verifica atribuição de competência internacional exclusiva aos tribunais portugueses (ou aos de qualquer Estado Membro) por via da aplicação do Regulamento Bruxelas IIbis.

2.4.2.–Quanto ao Direito Português
Rege quanto à matéria o artigo 63.º, do Código de Processo Civil, que não enquadra a declaração de divórcio entre as situações de competência exclusiva dos Tribunais portugueses.
Por estas razões, conclui-se que também nada obsta à revisão nos termos da II.ª parte da alínea c) do artigo 980.º, do Código de Processo Civil, importando avaliar o regime da I.ª parte da norma.
2.5.- Defende o Requerido que a competência do tribunal que proferiu a sentença revidenda foi provocada em fraude à lei.
Estatui o artigo 980.º, alínea c), I.ª parte, do Código de Processo Civil, que para que a sentença seja confirmada é necessário (…) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei.

O Requerido identifica a fraude à lei com a ocultação ao tribunal da decisão dos factores de conexão que determinariam a competência internacional de tribunais de outros Estados, considerando como tal os relativos ao local da última residência do casal na constância do matrimónio e na concretização da separação, à manutenção desse local como domicílio do Requerido, à existência de domicílio do Requerido também em Portugal.

Assim, o Requerido entende que a situação de alegada fraude à lei decorre de o tribunal do Ontário não ser internacionalmente competente para a apreciação do divórcio e de lhe ter sido ocultada a factualidade de que tal resultaria.

A noção de fraude à lei não é, em abstracto, unívoca, podendo encontrar-se tanto na mera manipulação dos factores de conexão para obter decisão de tribunal internacionalmente incompetente, como numa manipulação qualificada em que a competência é provocada por a decisão não poder ser obtida, ou não o poder ser nos mesmos moldes, no tribunal internacionalmente competente em cuja ordem jurídica se pretende fazê-la eficaz por via da revisão[6].

Antecipe-se que entendemos que a fraude à lei suposta na previsão do artigo 980.º, alínea c), I.ª parte, se integra na segunda noção, pelo que improcede a invocação pelo Requerido desse fundamento de negação da revisão uma vez que é a primeira situação a que configura como verificada. 

Dito de outro modo, a apreciação da possibilidade de revisão, nos termos em que se coloca nos autos, implica a apreciação pelo tribunal da revisão da competência internacional do tribunal canadiano, controlo que não cabe ao tribunal da revisão.

Assim, o nosso regime de revisão de sentenças estrangeiras prescinde da apreciação da competência internacional do tribunal estrangeiro com a única excepção de a sentença ter sido proferida em matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, caso em que nega a revisão nos termos da alínea c) II.ª parte. No mais, não se encontra previsto controlo de competência internacional do tribunal sentenciador[7].
(…) para a tese da reserva da competência, o tribunal do reconhecimento só tem de apreciar a observância das suas regras de competência exclusiva e nunca tem de verificar se o tribunal de origem é competente segundo as suas próprias normas de competência directa.
A redacção actual do art. 1096.°, al. c), CPC [igual à da alínea c) do artigo 980.º] é inequívoca quanto à orientação nela consagrada. Dado que o tribunal português — abstraindo de qualquer actuação fraudulenta do autor da acção — só deve controlar se o tribunal de origem não violou a competência exclusiva dos tribunais portugueses, é claro que nesse preceito está consagrada a teoria da reserva de competência. O reconhecimento da sentença estrangeira só deve ser recusado se houver violação da competência exclusiva dos tribunais portugueses, ou seja, se o tribunal estrangeiro apreciar uma causa que, segundo as várias situações previstas no art. 65.°-A CPC [actual 63.º] só podia ser julgada pelos tribunais portugueses.

Ora, entendida a fraude à lei como sonegação de factores de conexão para determinar o juízo de competência do tribunal sentenciador, como é a alegação do Requerido, não pode ser o sentido da norma da I.ª parte da alínea c) pois, a sê-lo, contenderia com o regime de reserva de competência que a II.ª parte consagra.
Como refere Luís de Lima Pinheiro[8] nada indica que o legislador tenha querido, por meio da referência à fraude à lei, introduzir um controlo de conexão.
De outro modo, ancorando a argumentação no artigo 21.º do Código Civil[9], defende Miguel Teixeira de Sousa que as situações criadas artificialmente, por uma ou por ambas as partes, para justificarem a competência do tribunal de origem cabem na fraude à lei referida no art. 1096.°, al. c), CPC e são, por isso, impeditivas do reconhecimento em Portugal da sentença estrangeira proferida por esse tribunal. Na concretização desta fraude à lei parece poder aplicar-se o critério que se extrai do art. 21.° CC, pelo que ela verifica-se sempre que tenham sido criadas, por uma ou por ambas as partes, situações de facto ou de direito com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade das normas de competência que, noutras circunstâncias, seriam aplicadas.

A noção de fraude à lei não se basta com a alegação de uns factores de conexão em detrimento de outros, que poderia antes qualificar-se de forum shopping, mas exige a manipulação da situação de facto de que decorre o juízo jurídico pela competência em ordem a determiná-la.

O que aliás é consentâneo - noutra dimensão não directamente aplicável, mas que dá o contexto de sistema - com a possibilidade que o Requerido sempre teria de invocar os factores de conexão omitidos pela Requerente no processo em que foi proferida a sentença revidenda, cabendo ao tribunal sentenciador a apreciação.

Veja-se a conclusão de Luís Lima Pinheiro[10]:
(…) só está em causa um efeito atributivo de competência e é de observar que se houve fraude à lei no estabelecimento da competência do tribunal de origem, mas este tribunal aceitou a competência, é porque não sancionou a fraude à lei. Deverá o Estado de reconhecimento sancioná-la? O princípio da harmonia internacional de decisões aponta em sentido contrário.
Para concluir:
Mas não poderá atribuir-se um sentido útil à referência do art. 980.º/c CPC à “fraude à lei”?
Embora não tenhamos elementos para conhecer a intenção do legislador histórico, é patente que a redação desta alínea foi inspirada pela jurisprudência e pela doutrina francesas. E o único modo de atribuir um sentido útil à referência à “fraude à lei” é justamente o de incluir aqui os casos de “fraude à sentença”.
Seguindo o Autor citado a noção de fraude à sentença de Mater e Heuzé:
(...)para que haja “fraude à sentença”, não basta que a ação tenha sido subtraída à competência dos tribunais locais; é necessário que tenha sido proposta em tribunais estrangeiros com o fim principal de se invocar a sentença na ordem jurídica local, porquanto não seria possível obter tal sentença nos tribunais locais.  
    
Conclui-se por isso, como se adiantou, que a alegação do Requerido de sonegação de alguns elementos de facto pela Requerente, a provar-se, não integraria a noção de fraude à lei a que alude a alínea c), I.ª parte do artigo 980.º do Código de Processo Civil, antes constituindo matéria de apreciação do tribunal sentenciador quanto à sua competência internacional, matéria essa subtraída ao tribunal da revisão que, a respeito, apenas avalia da verificação de situações de competência exclusiva dos tribunais do país da revisão ou de fraude à lei no sentido de fraude à sentença antes mencionado.

Improcede por isso a oposição à revisão por se encontrarem verificados os requisitos de que a mesma depende.

IV)–DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em rever e confirmar a referida sentença declaratória de divórcio, proferida pelo Tribunal Supremo de Ontário, Canadá, em 6 de Outubro de 2021, para produzir efeitos em Portugal.
Fixam à ação o valor de € 30.000,01 – artigos 303.º, n.º 1, e 306.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Custas pelo Requerido – artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Registe, notifique e comunique ao Registo Civil.
*


Data constante das assinaturas electrónicas 


(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Manuel Rodrigues)



[1]Cf. a respeito de outra questão de competência internacional, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Abril de 2010, proferido no processo 4632/07.8TBBCL.G1.S1 (Santos Bernardino).
[2]Luís de Lima Pinheiro, A competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, p.1, consultado em 22 de Outubro de 2019 em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez-2005/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-a-competencia-internacional-exclusiva-dos-tribunais-portugueses/
[3]Cf. Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Competência Internacional, vol. III, tomo I, p. 285: Trata-se de critérios alternativos que conferem ao Requerente uma faculdade de escolha entre vários foros competentes.
[4]Acórdão de 29 de Novembro de 2007 (3.ª Secção) proferido no processo C-68/07, proferindo decisão prejudicial em resposta a reenvio efectuado pela Suécia.
[5]Revogado pelo Bruxelas IIbis que, no entanto, assumiu tal considerando.
[6]Seguimos de perto Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras, vol. III, tomo II, p. 214-215.
[7]Cf. Miguel Teixeira de Sousa in Sobre a competência indirecta no reconhecimento de sentenças estrangeiras - anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de maio de 1998, consultado em https://portal.oa.pt/upl/%7Bb9270108-70b1-4953-90f0-02b0e8b401b3%7D.pdf, p. 772: Em sede de competência internacional, costuma distinguir-se entre a competência directa e a indirecta: — a competência directa é aquela que se refere à apreciação de uma causa e que decorre das regras (nacionais ou internacionais) que distribuem a competência pelos tribunais dos vários Estados; — a competência indirecta respeita ao controlo, realizado pelos tribunais de um Estado, sobre a competência dos tribunais de um outro Estado para o julgamento de uma acção ('). Assim, a competência directa define se os tribunais de um Estado são competentes para a apreciação de uma acção e a competência indirecta — que é um dos requisitos da revisão e confirmação das sentenças estrangeiras — afere se os tribunais de um Estado consideram competentes os tribunais de um outro Estado para a apreciação de uma causa.
[8]Op. et loc. cit. p. 214.
[9]Na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente.
[10]Op. cit. p. 216.