Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO | ||
Descritores: | NULIDADE PROCESSUAL NULIDADE DE SENTENÇA REGIME DE BENS ABUSO DE REPRESENTAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I) Sendo indicados no requerimento recursório, ainda que por alusão aos preceitos legais onde o apelante fundamenta a sua impugnação recursória, a espécie, o modo de subida e o efeito do recurso de apelação interposto, não se mostra inobservado o disposto no n.º 1 do artigo 637.º do CPC. II) Se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre o decisão impugnada e tomou uma posição conclusiva de discordância em questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso, não sendo caso de prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, por não ocorrer deficiência ou obscuridade recursória que o justifique. III) Não identificando o apelante quais os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios, constantes do processo, que imporiam decisão diversa da recorrida, nem, igualmente, a decisão alternativa que em concreto e factualmente devesse ser proferida, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância dos ónus de impugnação contidos nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. IV) A circunstância de, em determinado momento processual, uma parte manifestar “protestar” juntar determinado documento não tem qualquer consequência processual, pois, a intenção de praticar um ato processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas como se o ato que não foi praticado, o tivesse sido. Não ocorre por isso, nulidade processual decorrente da não pronúncia do Tribunal sobre tal manifestação de intenção de ser ulteriormente praticado um ato processual. V) Tendo ocorrido expressa decisão sobre o requerimento probatório do réu, não ocorre nulidade processual, com respaldo no disposto no artigo 195.º do CPC, por ausência de prolação de decisão sobre tal requerimento. VI) Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC, não fazendo parte do leque de tais questões (que devesse apreciar em sentença) alguma pronúncia sobre o requerimento probatório do réu, já antes decidido. VII) Relativamente a casamento celebrado em Nova Iorque, em 1955, por um português e uma estrangeira, sem convenção, se aplica o regime de bens que resulta da conjugação das disposições dos artigos 1107.º e 1108.º do Código Civil de Seabra, entendendo-se que casaram segundo o regime de comunhão geral de bens (“costume do reino”). VIII) Havendo sucessão de leis no tempo, o casamento celebrado sem convenção antenupcial que desencadeou a fixação do regime de bens ao abrigo da norma de conflitos antiga constitui um facto passado. Assim, por força do disposto no artigo 12.º do CC de 1966 (aplicável ex vi, do disposto nos artigos 5.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966), ao casamento assim celebrado em 1955 - devendo atender-se à data da celebração do casamento para determinar o regime de bens - não é de aplicar o regime que resulta da norma de conflitos do artigo 53.º, n.º 2, do CC de 1966, não sendo, na mesma linha, de aplicar o regime imperativo de separação de bens que decorreria da disposição legal do artigo 1720.º deste Código. IX) Tendo o réu retirado da conta bancária apenas titulada pelo falecido uma elevada soma – de € 56.008,22 – que apenas a este pertencia e que transferiu para uma conta da sua titularidade, apropriando-se do respetivo saldo, o que fez sem causa justificativa e sem indicação de finalidade, extravasou o âmbito material ou substancial do mandato que foi conferido ao réu, por instrumento de procuração, incorrendo em abuso de representação – cfr. artigos 268.º e 269.º do CC. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório: * 1. AV e JV, identificados nos autos e únicos herdeiros nas heranças abertas por óbito de AH e de JCV, instauraram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra JC, também com os sinais dos autos, pedindo: I. Seja reconhecido e declarado que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete, era bem comum do casal JCV e de AH e, em consequência, II. Seja o réu condenado a reconhecer que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete faz parte dos acervos hereditários de AH e de JCV, constituindo parte de ambas as heranças indivisas; III. Seja declarada nula a doação do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete, celebrada em 23/02/2006, por falta de declaração negocial dos co-herdeiros e consequente alienação de bem alheio; IV. Ou, caso assim não se entenda, seja, pelo menos, declarada ineficaz a doação em relação à quota parte do quinhão hereditário da herança indivisa por óbito de AH; V. Seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição pelo Réu, por doação, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete, bem como de quaisquer registos posteriores a essa aquisição que, eventualmente, possam vir a ser efetivados na pendência da ação; VI. Seja o Réu condenado a restituir e entregar, de imediato e livre de pessoas e bens, às heranças Indivisas de AH e JCV, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete, com todos os frutos e benfeitorias; VII. Seja o réu condenado a reconhecer que o dinheiro dos saldos bancários constantes, em 07/03/2019, da conta à ordem …, apenas titulada por JCV, junto do Novo Banco, S.A., no valor de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), eram propriedade de JCV e, concludentemente, do seu acervo hereditário e, em consequência, VIII. Seja o réu condenado a restituir o montante de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos) à herança indivisa de JCV. IX. Seja o réu condenado a pagar aos autores uma sanção pecuniária compulsória de € 100.0 (cem euros), por cada dia, contados da data do trânsito em julgado da decisão a proferir nos presentes autos e até efectiva entrega do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, da freguesia de Alcochete; X. Seja o réu condenado a pagar aos autores uma sanção pecuniária compulsória de € 100.0 (cem euros), por cada dia, contados da data do trânsito em julgado da decisão a proferir nos presentes autos e até efetiva entrega do montante de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), pertencente à herança indivisa de JCV; XI. Seja o réu condenado a pagar aos autores a indemnização global de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais; XII. Seja o réu condenado em custas de parte. Para tanto, alegaram os autores, em suma, que o seu falecido progenitor doou ao réu um imóvel que integrava o acervo hereditário deixado por óbito da mãe dos autores, o que conseguiu fazer por ter declarado falsamente que com ela era casado sob o regime da separação de bens, quando o regime vigente era o da comunhão geral, além de ter o réu transferido de conta do progenitor uma quantia, fazendo uso dos poderes conferidos por procuração, quando o procurador havia sido declarado interdito e não tinha capacidade para outorgar tal instrumento, com o que causou perdas patrimoniais e não patrimoniais aos autores. * 2. Citado, o réu contestou, impugnando e alegando que o regime vigente no casamento do seu primo era o da separação de bens e que estava devidamente mandatado para realizar movimentos na conta bancária em causa, além de ter realizado benfeitorias no imóvel que lhe foi doado, pelas quais tem o direito a ser indemnizado, bem como pelas perdas não patrimoniais que os réus ocasionaram com a sua conduta, atentatória da sua honra. Concluiu o réu pedindo a sua absolvição do pedido e que, por reconvenção, o tribunal condene os autores, a indemnizá-lo nas despesas com benfeitorias no imóvel, necessárias e úteis, no valor de € 48.306,15; que seja reconhecido que o regime de casamento dos pais dos autores era o imperativo da separação de bens; que o pai dos autores era o único e pleno proprietário do imóvel objeto deste processo; que seja reconhecida a legitimidade da doação, mantendo o imóvel como propriedade do réu; que seja reconhecida a legitimidade do réu para efectuar transferências de dinheiro e/ou movimentar contas bancárias de JV; que condene os autores, no pagamento ao réu, de € 10.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais; seja o réu ressarcido de todas as despesas com serviços de luz, gás, tv cabo, condomínio, impostos, água, durante o tempo em que JV era usufrutuário, sem nunca ter sido delas ressarcido, no valor de € 7.000,00; que condene os autores em custas de parte. * 3. Foi liminarmente admitida a reconvenção e proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e fixação dos temas de prova. * 4. Teve lugar a realização do julgamento, com produção probatória. * 5. Após, em 21-04-2023, foi proferida sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor: “(…) Pelos fundamentos de facto e de Direito que ficaram expressos, julgo a acção parcialmente procedente, por provada em parte, e julgo a reconvenção parcialmente procedente, por provada em parte e, em consequência: a) Declaro que o prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia, era bem comum do casal composto por JCV e AH; b) Condeno o réu a reconhecer que o prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia, faz parte dos acervos hereditários de AH e de JCV, constituindo parte de ambas as heranças indivisas; c) Declaro nula em relação ao réu e ineficaz perante os autores a doação do prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia; d) Ordeno o cancelamento da inscrição efectuada sob a apresentação 5 de …/…/… que incide sobre o prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia; e) Condeno o réu a restituir e entregar, de imediato e livre de pessoas e bens, às heranças indivisas de AH e de JCV, representadas pelos autores, o prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia; f) Condeno o réu a reconhecer que o dinheiro dos saldos bancários constantes em 07/03/2019 na conta à ordem ..., apenas titulada por JCV, junto do «Novo Banco, S.A.», no valor de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), eram propriedade de JCV e que, após o seu óbito, integraram o seu acervo hereditário; g) Condeno o réu a restituir o montante de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos) à herança indivisa de JCV; h) Condeno o réu a pagar aos autores a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais; i) Absolvo o réu dos restantes pedidos contra o mesmo formulados pelos autores; j) Condeno os autores / reconvindos a pagar ao réu / reconvinte indemnização pelas benfeitorias que este realizou no prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia, enquanto permaneceu na sua posse, a fixar em incidente de liquidação ulterior à sentença, com o limite do pedido de € 48.306,15 (quarenta e oito mil e trezentos e seis euros e quinze cêntimos); k) Absolvo os autores / reconvindos do restante pedido reconvencional contra os mesmos formulado pelo réu / reconvinte; l) Condeno os autores e o réu nas custas do processo, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 1/4 para os autores e em 3/4 para o réu na acção, e se fixam em metade para cada uma das partes na reconvenção (…)”. * 6. Não se conformando com esta decisão, dela apela o réu, pugnando pela sua alteração, “devendo para tanto ser dados como provados todos os factos alegados pelo réu na sua Contestação e bem assim reproduzida toda a prova documental junta por si aos autos, bem como aquela que requereu que o tribunal a quo tomasse por diligência ser reconhecido que o réu recebeu por doação de forma de legitima o imóvel melhor identificado nos autos e que por isso é o seu legitimo proprietário e possuidor, ser dado como provado para todos os efeitos legais os factos alegados no seu pedido reconvencional e serem os autores condenados no total valor ali peticionado e demais consequências legais, seguindo os seus ulteriores termos até final”, tendo formulado as seguintes conclusões: “1. O réu e JV, eram primos e mantinham uma relação muito próxima; 2. O Sr. JV, desde que o réu atingiu a idade adulta, que o encarregava de tratar de assuntos em seu nome; 3. Tanto que fez do réu 2° titular da sua conta bancária, já identificada e como consta de que docs. já juntos; 4. Para além de 2° titular o réu mantinha também procuração com poderes especiais para movimentar as contas bancárias; 5. Juntou-se cópia da referida procuração como doc. 3 que se dá por integralmente reproduzida, outorgada a 8/09/2016 no cartório notarial de MC sito em Alcochete; 6. A quando da doação em 2006, o Sr. JV confessou ao réu que lhe iria doar aquele imóvel, pois entendia que este merecia por toda a ajuda e apoio que lhe dava e porque, segundo este, os filhos já tinham recebido muito; 7. Quanto ao regime de bens, conforme consta de escritura pública da aquisição do imóvel, o Sr. JV declarou estar casado com a mãe dos autores no regime supletivo de separação de bens; 8. O casamento foi celebrado a 10/12/1955, estava em vigor o código civil de 1867; 9. Verifica-se ainda que: A imperatividade do regime de separação de bens previsto no art. 1720°, n° 1, al. a), do CC, não se limita aos casos de urgência, abarcando ainda, designadamente, os casamentos de cidadãos nacionais celebrados no estrangeiro, perante autoridade estrangeira, que não tenham sido antecedidos da tramitação do processo preliminar de publicações perante os serviços do registo civil nacionais; 10. Tal interpretação estende-se igualmente quando apenas um dos cônjuges seja nacional português; 11. Do supra alegado, surge a dúvida quanto ao regime de bens do casal em vigor à data da aquisição do imóvel, se a separação de bens ou a comunhão geral; 12. Ao conjugar as declarações do pai dos autores, JV, que sempre foi consistem ao afirmar e declarar ser casado no regime imperativo da separação de bens e controvertido nos dispositivos legais que permitiam a verificação da separação de bens quando o casamento fosse realizado no estrangeiro e em que um dos nubentes não fosse português; 13. Aplicando o supra alegado e sendo este regime confirmado pelo douto tribunal, a doação ao réu é legitima e válida uma vez que o Sr. JV seria o único e integral proprietário do referido imóvel; 14. Cumpre esclarecer o artigo, n°2, do Código Civil, declara que “Não tendo os nubentes a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum à data do casamento e, se esta faltar também, a lei da primeira residência conjugal" e os efeitos civis do casamento retroagem à data da celebração do casamento, segundo o art.° 188 do Código do Registo Civil, que diz: a. Efectuado o registo, ainda que este venha a perder-se, os efeitos civis do casamento retroagem à data da celebração. b. Ficam ressalvados os direitos de terceiros que sejam compatíveis com os direitos e deveres de natureza pessoal dos cônjuges e dos filhos, a não ser que, tratando-se de registo por transcrição, esta tenha sido efectuada dentro dos sete dias subsequentes à celebração. 15. Não foi o caso; 16. Sendo o regime de bens o da separação de bens o imóvel doado e melhor identificado nos autos nunca pertenceu ao acervo de bens que integrariam a massa da herança da mãe dos recorridos, pelo que não foram este deserdados dessa parte; 17. Quanto à possisvel deserdação da herança aberta por morte do seu pai, não é possível ao tribunal recorrido afirmar com exactidão que a doação não é válida sem que tenha realizado as diligências de obtenção de prova que o réu requereu na sua contestação a fim de apurar a existência de testamento que o Sr. JV sempre disse ao réu que tinha realizado bem como não é possível saber qual o iventário de bens deixado nos EUA para contabilização da quota disponível dos bens, onde este imóvel poderia fácilmente integral e assim legitimar a doação do mesmo. 18. Tendo em conta que, conforme o artigo 2156° do CC, é a legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, mormente os aqui autores; 19. A contrário, entende-se que à uma porção de bens que o Sr. JV podia dispor sem com isso estar a deserdar os filhos ou de alguma forma prejudicar a sua capacidade de herdar; 20. No que respeita à transferência bancária alegada na petição inicial e como já se demonstrou com prova documental supra, para além do réu ser 2° titular da referida conta também tinha procuração com poderes para a movimentar e poder realizar a transferência; 21. Tal facto, constitui legitimidade para a sua realização, não estando por isso o réu a agir de má fé ou com intenção de se apropriar de bens que não fossem seus ou que não tivesse autorização para isso; 22. Tal como não se pode aferir com exactidão que o dinheiro depositado naquela conta bancária e que tenha sido apostrior transferido não resultava da propriedade do aqui recorrente pois este era titular da conta; 23. O réu requereu na sua contestação várias diligências de prova que o tribunal a quo não realizou; 24. Sucede o Tribunal a quo nada fez ou pronunciou quer em saneamento ou na audiência de discussão e julgamento para a obtenção da prova requerida, que salve melhor opinião, se mostra imprescindível para a boa decisão da causa e apuramento da verdade; 25. O artigo 195.° n.°1 do código de processo civil, estatui que a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 26. O artigo 615.° n.°1 d) do mesmo diploma diz ser nula a sentença que quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 27. Pelo n.°4 deste artigo, é tempestiva esta arguição de nulidade. 28. O cumprimento do artigo 617° n.°5 no que concerne à possibilidade de mandar baixar o processo para que seja proferido; 29. Se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando- se, com as necessárias adaptações, o previsto no n.° 6. 30. Deve por isso o processo baixar aos autos da 1a instância e ser ordenada a realização da obtenção da prova requerida e posterior realização de julgamento para a sua análise e discussão.”. * 7. Os autores/recorridos contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida. * 8. O requerimento recursório foi admitido por despacho de 25-09-2023, tendo sido proferido despacho de sustentação da decisão proferida, no que respeita às nulidades invocadas. * 9. Foram colhidos os vistos legais. * 2. Questões a decidir: O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC). Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação). Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir: * I) Questões prévias: A) Da existência de causa para o não conhecimento do objeto do recurso. B) Delimitação do objeto do recurso – rejeição da impugnação da matéria de facto. * II) Nulidades: C) Se procede a invocação de nulidade, nos termos do artigo 195.º do CPC, por ausência de decisão sobre requerimento de prova? D) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia? * III) Da impugnação da decisão de direito: E) Se a decisão recorrida deve ser alterada, declarando-se que o réu recebeu legitimamente o imóvel e o saldo da conta bancária dos autos e se a reconvenção deve ser julgada procedente? * 3. Fundamentação de facto: * A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE: a) AH mãe dos autores, nasceu em 14.10.1928, em ..., no Estado Livre Associado de Porto Rico, território não incorporado dos Estados Unidos da América. b) AH casou em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, em 10.12.1955, com JCV, pai dos autores, de nacionalidade Portuguesa, nada tendo sido estipulado quanto ao regime de bens. c) No dia 14 de Junho de 1983, no Cartório Notarial de Montijo, perante Ajudante de Cartório, por impedimento do respectivo Notário, em virtude de doença deste, compareceram, como “primeiros outorgantes”, FV e sua mulher, GV, e, como “segundo outorgante”, JV, casado com AH, os quais, no instrumento epigrafado de “compra e venda”, cuja cópia consta de fls. 31 a 32 verso e cujo teor se considera reproduzido, por todos subscrito, declararam, entre o mais, os primeiros, que vendem ao segundo um prédio urbano, composto de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, logradouro e garagem, no sítio do Pão Saloio, lote número …, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Montijo sob o n.° …, a folhas … verso, do Livro B-55, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, sendo a venda feita pelo preço de 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil escudos), tendo já recebido do comprador a importância de 3.000.000$00 (três milhões de escudos), devendo o restante 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos) ser pago até 14 de Dezembro desse ano, sem vencimento de qualquer juro, declarando o primeiro “aceitar o presente contrato nos termos exarados”. d) No instrumento mencionado em c), ficou exarado, na identificação de JV, que o mesmo declarou ser casado com AH, no regime imperativo da separação de bens. e) Actualmente, o imóvel mencionado em c) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o número …/…, da freguesia de Alcochete, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da mesma freguesia. f) AH, que também usava e era conhecida por AH, AP e AH, faleceu em 12 de Abril de 2003, no estado civil de casada com JCV, com última residência em ..., nos Estados Unidos da América. g) No dia 23 de Fevereiro de 2006, no Cartório Notarial de Montijo, perante Notária, compareceu, como “primeiro outorgante”, JCV, que também usa o nome JV, viúvo, e, como “segundo outorgante”, JC, solteiro, maior, o qual, no instrumento epigrafado de “doação”, cuja cópia consta de fls. 34 a 35 verso e cujo teor se considera reproduzido, por todos subscrito, declarou que, pela presente escritura, por conta da sua quota disponível e com reserva de usufruto para ele, doador, doa ao segundo outorgante, seu primo em segundo grau, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano sito no núcleo B, Lote …, em Valbom, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° …, a folhas … verso, do Livro B-… e inscrito na matriz predial sob o artigo …. declarando o segundo que aceita a doação nos termos exarados. h) Foi inscrita no registo predial, sob a ap. 5 de …/…/…, a aquisição, por doação de JCV, a favor do réu JC, solteiro e maior, do imóvel descrito em c) e e), bem como aí ficou inscrito, pela ap. 6 de …/…/…, usufruto, a favor do primeiro. i) No dia 8 de Setembro de 2016, no Cartório Notarial de Montijo, perante Notária, compareceu JCV, que também usa o nome JV, viúvo, o qual, no instrumento epigrafado de “renúncia de usufruto”, cuja cópia consta de fls. 36, 36 verso e 37 e cujo teor se considera reproduzido, declarou que é usufrutuário do prédio urbano sito no núcleo B, Lote …, em Valbom, freguesia e concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.° … e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, mais declarando que, pela presente escritura, renuncia ao referido usufruto, a favor de JC, cuja “nua propriedade” se encontra inscrita no registo pela apresentação 5 de 11.09.2006, encontrando o usufruto inscrito pela apresentação 6, de 11.09.2006. j) No dia 8 de Setembro de 2016, no Cartório Notarial da Dra. MC, em Alcochete, compareceu, perante Notária, JCV, o qual, no instrumento epigrafado de “procuração”, cuja cópia consta de fls. 94 a 97 e se dá por reproduzido, declarou, entre o mais, que constituiu seu bastante procurador JC, solteiro, maior, conferindo-lhe os poderes elencados nesse mesmo instrumento, incluindo os poderes para movimentar a conta bancária de que o mandante é titular junto do «Novo Banco, S.A.», com o IBAN PT50 … e contas associadas, podendo efectuar quaisquer depósitos ou levantamentos, assinar e requisitar cheques, para efectuar transferências bancárias nacionais ou internacionais, solicitar cartões de crédito e de débito, extractos de conta e saldos de conta, cancelar contas, podendo ainda constituir depósitos a prazo, fundos, títulos e aplicações em seguros. k) Por sentença de 27.06.2018, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Sucessões de Farmington, Burlington, Estado de Connecticut, 06032, Estados Unidos da América, revista e confirmada em Portugal, por sentença de 07.02.2020, transitada em julgado no dia 12.06.2020, proferida no âmbito do processo n.° …/…, da 6.a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, considerou aquele Tribunal que o pai dos autores, JCV, “(...) padecia de condição mental, emocional ou física que o tornou incapaz de apreender e avaliar informações, tomar decisões e de executar tarefas inerentes à administração dos seus assuntos e de prover pelas suas necessidades básicas, mesmo com assistência adequada”, mais tendo considerado que aquele “estava incapaz de gerir as suas finanças e cuidar dele próprio”, razões pelas quais foi o mesmo declarado interdito, tendo-lhe sido nomeado tutor DS. l) No dia 4 de Dezembro de 2018, no instrumento epigrafado de “Habilitação de Herdeiros”, cuja cópia consta de fls. 14 a 16 e se dá por reproduzida, no respectivo Cartório Notarial e perante Notária, compareceram, como outorgantes, LC, solteira e maior; CTG, solteira e maior; e CS, casada, as quais declararam que AH, que também usava e era conhecida por AH, AP e AV, faleceu no dia 12 de Abril de 2003, em Brookhaven, condado de Suffolk, Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, no estado de casada sob o regime da comunhão geral com JCV, também conhecido por JV e JCV, não tendo outorgado testamento, nem outra disposição de última vontade, tendo deixado, como sucessores, o marido JCV, actualmente viúvo, e os filhos JV, que também usa JV, casado, e AV, casada, mais declarando que, em virtude da autora da sucessão ser de nacionalidade norte americana e com última residência no Estado de Nova Iorque, Estados Unidos da América, tem de se aplicar a Lei Sucessória do Estado de Nova Iorque, a qual, no caso em apreço, nomeia o cônjuge sobrevivo e os dois filhos como únicos herdeiros universais, distribuindo a herança na proporção de metade para o cônjuge e na proporção de metade para os filhos, declarando, por fim, que não existem outras pessoas que lhes prefiram na sucessão ou quem com eles concorra. m) JCV faleceu no dia 30 de Março de 2019, em ..., no estado de viúvo de AH. n) No dia 07.03.2019, foi efectuada pelo réu uma transferência bancária no montante de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), da Conta à Ordem … junto do «Novo Banco S.A.», apenas titulada por JCV, quantia que o réu sabia àquele pertencer, para a conta com o IBAN PT50 …, junto da «Caixa Económica Montepio Geral», da única e exclusiva titularidade do réu. o) No dia 11 de Junho de 2019, no instrumento epigrafado de “Habilitação de Herdeiros”, cuja cópia consta de fls. 20 a 21 verso e se dá por reproduzida, no respectivo Cartório Notarial e perante Notária, compareceram, como outorgantes, LC, solteira e maior; CTG, solteira e maior; e OR, casado, os quais declararam que JCV, que também usava e era conhecido por JV e JCV, faleceu no dia 30 de Março de 2019, em Lar de Idosos ... Hartford, Estados Unidos da América, no estado de viúvo de AH, que também usava e era conhecida por AP, AP e AH, não tendo outorgado testamento, nem outra disposição de última vontade, tendo deixado, como sucessores, os filhos JV, que também usa JVP, casado, e AV, casada, mais declarando que, apesar de o autor da sucessão ser de nacionalidade portuguesa, como a sua última residência foi no Estado de Connecticut, Estados Unidos da América, tem de se aplicar a Lei Sucessória do Estado de Connecticut, a qual, no caso em apreço, nomeia os dois filhos como únicos herdeiros universais, distribuindo a herança na proporção de metade para cada um, declarando, por fim, que não existem outras pessoas que lhes prefiram na sucessão ou quem com eles concorra. p) Na data referida em n) JCV, por si, não se encontrava em condições físicas e psíquicas para efectuar a transferência bancária ou dar instruções ao réu para tal. q) Ao terem conhecimento da doação referida em g) e da transferência mencionada em n), os autores sentiram angústia, revolta, tristeza e ansiedade. r) O pai dos autores, JV, desde que o réu atingiu a idade adulta, que o encarregava de tratar de assuntos em seu nome: administrar as suas contas bancárias, administrar o imóvel já identificado em c) em tudo quanto necessário, tal como o pagamento de despesas de água e luz, bem como do IMI. s) Em datas não concretamente apuradas, o réu realizou melhoramentos no imóvel mencionado em c), de natureza, extensão e valores do material e da mão-de-obra empregues não concretamente apurados, convencido que o pai dos autores era o único dono do prédio quando declarou doá-lo ao réu. * A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE: t) O pai dos autores, ao fazer a doação ao réu do prédio descrito em c), quis ocultar dos autores o bem imóvel, de modo a subtraí-lo à herança da mãe destes sem seu consentimento. u) O réu, ao aceitar a doação referida em referida em g) e ao proceder à transferência mencionada em o), sabia que estava a prejudicar os autores. v) Em 08.09.2016, o pai dos autores incluiu o réu, como segundo titular, na conta bancária n.° …. w) O imóvel descrito em c), quando foi doado ao réu, encontrava-se degradado e a carecer de obras. x) As obras que o réu realizou no imóvel descrito em c) ocorreram no ano de 2014 e entre Fevereiro de 2017 e Junho de 2019. y) Na primeira data, procedeu à instalação de uma cozinha na garagem. z) E, com início em Fevereiro de 2017 e até Junho de 2019, o réu realizou as seguintes obras: -Remoção da cozinha e casa de banho velhas e azulejos; -Nova canalização; -Pré-instalação de ar condicionados; -Nova instalação eléctrica; -Instalação de novas janelas e estores; -Aplicação de azulejos novos na cozinha e casa de banho; -Estucar paredes; -Fazer tectos falsos com luzes embutidas; -Instalação de todos os equipamentos de cozinha e casa de banho; -Aplicação de pavimento de madeira no chão de toda casa, à excepção da cozinha e casa de banho; -Aplicação de portas, aduelas e roupeiros; -Instalação de dois aparelhos de ar condicionado; -Pintura interior de toda a casa; -Instalação de portão automático na garagem; -Instalação de uma porta de acesso à garagem; -Construção e instalação de dois portões de acesso ao quintal, sendo um automático; -Nivelar chão do quintal e aplicar pavimento; -Reparar e revestir, com pedra rústica, o muro da frente; -Reparar telhado e pintar telhas; -Pintar todo o exterior da casa e muros; -Construção de zona verde e lago para peixes. aa) Em materiais de construção o réu despendeu a quantia de € 48.306,15 e em mão-de- obra a importância de € 23.400,00, tomando como base de cálculo o valor diário de € 50,00. bb) Para além das obras, foi o réu quem suportou todas as despesas com serviços de luz, gás, “tvcabo”, condomínio, impostos e água, durante o tempo em que JV era usufrutuário, as quais ascenderam ao valor total de € 7.000,00. cc) Os autores, com a sua conduta, atingiram a honra, bom nome e integridade do réu. * 4. Fundamentação de Direito: * I) Questões prévias: * A) Da existência de causa para o não conhecimento do objeto do recurso. Nas contra-alegações de recurso, os apelados concluíram, nomeadamente, o seguinte: “(…) I. Veio o Recorrente interpor o recurso de Apelação que antecede, junto deste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, recurso esse que versa sobre: “Regime de Bens”, “Conta Bancária” e “Nulidade da Sentença”. II. Todavia, não observou os requisitos formais por parte do Recorrente na interposição do presente Recurso, pois o Recorrente não identifica a espécie do Recurso interposto, o seu efeito e o modo de subida, não bastando a mera enunciação e remissão para as normas legais, incumprindo os requisitos exigidos quanto à interposição do Recurso e violando o disposto no artigo 637.° n.° 1 do CPC. III. O Recorrente menciona o artigo 638.° n.° 7 do CPC, contudo o Recurso interposto pelo Recorrente incide sobre matéria de Direito e não de Facto, inexistindo qualquer pedido de reapreciação da prova gravada e não transcreve qualquer depoimento nem inquirição, não se vislumbrando a razão de ciência para a invocação de tal norma. De realçar ainda, que o Recorrente viola o disposto no artigo 639.° n.° 2 e de todas as alíneas aí previstas, porquanto: O Recorrente não enuncia as normas jurídicas violadas pelo Tribunal a quo na prolação da decisão aqui injustamente é colocada em crise. De igual modo, o Recorrente incumpre os requisitos enunciados nas alíneas b) e c) do artigo 639.° do CPC, uma vez que não refere em que sentido é que, no seu entender, as normas que constituíram fundamento à decisão proferida pelo Tribunal a quo, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas; Bem como, não refere como é que Tribunal a quo deveria ter aplicado norma diversa daquela que o foi, invocando erro na determinação da norma aplicável. Incumprindo igualmente com os requisitos exigidos no seu articulado recursivo, versando este sobre matéria de Direito e não de facto. Não havendo in casu, lugar ao aperfeiçoamento do articulado nos termos do artigo 639.° n.° 3 do CPC, porquanto tal como diversa Jurisprudência se tem pronunciado, só se poderá aperfeiçoar o que existe imperfeito e não o que inexiste. Motivos bastantes pelos quais deve este Venerando Tribunal determinar a improcedência tout court do Recurso interposto pelo Réu/Recorrente, por inobservância dos requisitos formais conforme exigidos nos termos dos artigos 637.° n.° 1, 638.° n.° 7, 639.° n.° 2 alínea a), 639.° n.° 2 alínea b), e artigo 639.° n° 2 alínea c), todos do CPC (…)”. Esta questão, porque poderá contender com a apreciação do objeto do recurso, devendo ser conhecida a título prévio, o que se passa a efetuar. Conforme refere Luís Filipe Espírito Santo (Recursos Civis: O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária. Lisboa: CEDIS, 2020, pp. 33-34, consultado em: https://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2020/09/Recursos-Civis-min.pdf): “O sucesso do recurso cível baseia-se, essencialmente, numa peça processual inicial que, apresentada juntamente com o requerimento de interposição de recurso, contém as alegações de recurso. Trata-se da exposição alargada dos motivos que justificam, segundo a óptica do recorrente, que o tribunal de recurso opte por posição diversa da adoptada na instância inferior, concluindo pela errada valoração de facto ou pela violação das normas legais aplicáveis à situação sub judice, e que altere, modificando, o sentido da decisão recorrida. Estas alegações de recurso terminam obrigatoriamente com a formulação das conclusões das alegações (ou melhor dito, das conclusões do corpo das alegações), as quais delimitam o objecto do respectivo conhecimento por parte do tribunal superior. Trata-se basicamente da concretização do ónus de síntese conclusiva que é colocado sobre os ombros do recorrente e que o mesmo deverá satisfazer com o máximo zelo, clareza e escrúpulo. Por um lado, esta obrigação processual introduz clareza e transparência na discussão da temática do objecto do recurso: a instância superior fica a saber, de forma ordenada, quais as questões essenciais que lhe compete apreciar, não as podendo descurar, e estabelecendo-se desse modo, com nitidez e utilidade, o foco de incidência do juízo do tribunal ad quem; por outro, o recorrido poderá exercer cabalmente o contraditório que lhe assiste, na medida em que sabe qual a parte da motivação do recurso verdadeiramente relevante e decisiva, a que terá de responder, não se distraindo com as considerações retóricas, marginais e acessórias, que germinam livremente nas orlas da divagação jurídica, por vezes entusiástica e inflamada”. Vejamos: O n.º 1 do artigo 637.º do CPC estatui que os recursos de interpõem por meio de requerimento, dirigido ao Tribunal que proferiu a decisão recorrida e nele é indicada a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto. O n.º 2 do artigo 637.º do CPC estabelece, por seu turno, que o “requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”. Importa referir, a respeito do n.º 2 do artigo 637.º do CPC que, fora dos casos em que deve ter lugar, sob pena de rejeição do recurso, a indicação do fundamento específico de recorribilidade – o que sucede nos casos do recurso de revista excecional (artigo 672.º, n.º 2) e do recurso para uniformização de jurisprudência (artigo 692.º, n.º 1), em que a condição de recorribilidade da decisão advém de uma norma particular a consentir no recurso – nas demais situações e, concretamente, em sede de recurso de apelação, não é imperioso o apelante indicar algum específico fundamento de recorribilidade. Por seu turno, dispõe o artigo 638.º do CPC, relativamente aos prazos para interposição de recurso, o seguinte regime: “1 - O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º. 2 - Se a parte for revel e não dever ser notificada nos termos do artigo 249.º, o prazo de interposição corre desde a publicação da decisão, exceto se a revelia da parte cessar antes de decorrido esse prazo, caso em que a sentença ou despacho tem de ser notificado e o prazo começa a correr da data da notificação. 3 - Tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo, o prazo corre do dia em que foram proferidos, se a parte esteve presente ou foi notificada para assistir ao ato. 4 - Quando, fora dos casos previstos nos números anteriores, não tenha de fazer-se a notificação, o prazo corre desde o dia em que o interessado teve conhecimento da decisão. 5 - Em prazo idêntico ao da interposição, pode o recorrido responder à alegação do recorrente. 6 - Na sua alegação, o recorrido pode impugnar a admissibilidade ou a tempestividade do recurso, bem como a legitimidade do recorrente. 7 - Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias. 8 - Sendo requerida pelo recorrido a ampliação do objeto do recurso, nos termos do artigo 636.º, pode o recorrente responder à matéria da ampliação, nos 15 dias posteriores à notificação do requerimento. 9 - Havendo vários recorrentes ou vários recorridos, ainda que representados por advogados diferentes, o prazo das respetivas alegações é único, incumbindo à secretaria providenciar para que todos possam proceder ao exame do processo durante o prazo de que beneficiam.”. Interessam-nos, em particular, atento o invocado pelos recorridos, os normativos dos n.ºs. 1 e 7, de onde resulta que, o prazo para a interposição do recurso é, em regra, de 30 dias, sendo reduzido a 15 dias, nos processos urgentes, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e do artigo 677.º, sendo que, se o recurso tiver por objeto a reapreciação de prova gravada, ao prazo de interposição acrescerão 10 dias. E, decorre dos n.ºs. 1 e 2 do artigo 639.º do CPC que: “1-O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada. 3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificidades a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada (…)”. Conforme deriva dos normativos transcritos, o requerimento de interposição de recurso deve satisfazer determinadas condições formais, apresentando a respetiva fundamentação e o pedido. Como refere, em geral, Rui Pinto (O Recurso Civil. Uma Teoria Geral; AAFDL, Lisboa, 2017, p. 236), “no requerimento o recorrente deve cumprir os ónus básicos de alegação e formulação das respetivas conclusões – i.e., os fundamentos específicos do pedido – conforme os artigos 637º nº 2 e 639º, e terminar no pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial”. E, noutro local (Manual do Recurso Civil; Vol. I, AAFDL, Lisboa, 2020 p. 293), concretiza o mesmo Autor que: “Dentro das alegações, há uma função lógica que apenas cabe às conclusões: individualizar o objeto do recurso, ao indicar o(s) fundamento(s) específico(s) da recorribilidade (cf. artigo 673.º nº 2) e, sendo o caso, o segmento decisório concretamente impugnado (cf. o artigo 635º nº 4). Daí ser pacífico o entendimento da jurisprudência de que é pelas conclusões que o recorrente delimita, efetivamente, o objeto do recurso. Simetricamente, a presença das conclusões permite a “viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações” (STJ 26-5-2015/Proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1 (HÉLDER ROQUE)”. As conclusões da motivação de recurso têm de habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito e sempre com a formulação das conclusões que resumem as razões do pedido. Assim, o ónus de concluir obtém-se pela indicação resumida dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho. Mais simplesmente, as conclusões traduzem uma enunciação abreviada dos fundamentos do recurso, que devem ser congruentes, claros e precisos. É que, “no contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusão, no final da minuta” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359). As conclusões são, pois, a enunciação resumida dos fundamentos do recurso. “Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, p. 359). A lei impõe a indicação especificada dos fundamentos do recurso nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida. Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2013 (Pº 483/08.0TBLNH.L1.S1, rel. GARCIA CALEJO): “O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida). Essas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar. Não devem valer como conclusões arrazoadas longas e confusas em que se não discriminam com facilidade as questões invocadas”. Na mesma linha, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2017 (Pº 1297/12.9T2AMD-A.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) que: “Se as conclusões de um recurso não são a síntese daquilo que foi dito no corpo das alegações (art. 639/1 do CPC), mas matéria nova não discutida neste corpo, não há conclusões que devam ser tidas em consideração. E também não existem conclusões relevantes se em nenhuma delas consta a indicação dos fundamentos por que se pede a alteração da decisão (art. 639/1 do CPC)”. Esse ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente – conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC - e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que o levam a impugnar a decisão recorrida. As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal, constituindo, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente como motivadoras do recurso e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate, quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão. As conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, daí que deva ser clara a identificação do que se pretende obter junto do tribunal de recurso, por contraposição, com a decisão recorrida. Sintetizando os aspetos mais relevantes, refere João Aveiro Pereira (“O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, 2018, pp. 32-33, consultado em: http://www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf) que: “1. As conclusões das alegações são ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm necessária e legalmente de ser curtas, claras e objectivas, para que não deixem dúvidas quanto às questões que o tribunal ad quem deve e pode conhecer. 2. O ónus de concluir cumpre-se também com a indicação das disposições violadas, do sentido com que deveriam ter sido aplicadas ou, em caso de erro sobre a norma, aquela que o recorrente entende que devia ter sido aplicada (…)”. “Todavia, é com inusitada frequência que se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações exigidas pelo n.º . São triviais as situações em que as conclusões não passam da mera reprodução (total ou parcial) dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume ou a quantidade das conclusões fosse sinónimo de qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 768, nota 5). A jurisprudência dos tribunais superiores tem apreciado diversas situações onde se questiona a validade e admissibilidade das conclusões apresentadas, de que são exemplos, as seguintes decisões: - Acórdão do STJ de 16-12-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1.S1, rel. TOMÉ GOMES): “O ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver. “A falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo. Assim, a reprodução do corpo das alegações nas conclusões não se traduz na falta destas, impondo-se, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento das mesmas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do CPC. De todo o modo, a orientação no sentido de fazer equivaler a reprodução integral do corpo das alegações nas conclusões - que aqui não se acolhe - não deverá prescindir de uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do principio da proporcionalidade, a repercussão que essa reprodução, mais ou menos integral, possa acarretar, em termos de inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do tribunal”; - Acórdão do STJ de 02-05-2019 (proc. nº 7907/16.1T8VNG.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.”; - Acórdão do STJ de 07-03-2019 (Pº 1821/18.3T8PRD-B.P1.S1, rel. ROSA TCHING): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respetiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, inexistindo, por isso, fundamento para a imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b) do Código de Processo Civil. Uma tal irregularidade processual mais se assemelha a uma situação de apresentação de alegações com o segmento conclusivo complexo ou prolixo, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 639º, nº 3 do Código Processo Civil, impõe-se a prolação de despacho a convidar a recorrente a sintetizar as conclusões apresentadas.”; - Acórdão do STJ de 19-12-2018 (proc. nº 10776/15.5T8PRT.P1.S1, rel. HENRIQUE ARAÚJO): “I - A reprodução da motivação nas conclusões do recurso não equivale à falta de conclusões, fundamento de indeferimento do recurso – art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. II - Neste caso, impõe-se prévio convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões, no sentido de lhes conferir maior concisão – art. 639.º, n.º 3, do CPC.”; - Acórdão do STJ de 27-11-2018 (Pº 28107/15.2T8LSB.L1.S1, rel. JÚLIO GOMES): “I. Quando as conclusões de um recurso são a mera reprodução, ainda que parcial, do corpo das alegações, não se pode, em rigor, afirmar que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC. II. Em tal circunstância não há que rejeitar imediatamente o recurso, podendo convidar-se ao seu aperfeiçoamento, por força do disposto no n.º 1 do artigo 659.º do CPC.”; - Acórdão do STJ de 02-05-2018 (Pº 687/14.7TTMTS.P1.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO): “Impõe o art. 639º, nºs 1 e 3 do CPC um ónus ao recorrente - a formulação de conclusões sintéticas, e um dever ao tribunal - o convite ao aperfeiçoamento das conclusões, designadamente sintetizando-as, quando sejam prolixas e, nessa medida, complexas. Não definindo o legislador a forma que deve revestir a síntese das alegações, limitando-se a referir que consistem na indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, o não conhecimento do recurso fundamentado na falta de síntese das conclusões, apenas deve ter lugar em casos muito limitados e flagrantemente violadores do dever de síntese”; - Acórdão do STJ de 06-07-2017 (Pº 297/13.6TTTMR.E1.S1, rel. GONÇALVES ROCHA): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva alegação não equivale a uma situação de falta de conclusões, estando-se antes perante um caso de conclusões complexas por o recorrente não ter cumprido as exigências de sintetização impostas pelo nº 1 do artigo 639º do CPC. II - Assim, não deve dar lugar à imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 2, alínea b) do CPC, mas à prolação de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, conforme resulta do nº 3 do artigo 639º do mesmo compêndio legal.”; - Acórdão do STJ de 25-05-2017 (Pº 2647/15.1T8CSC.L1.S1, rel. ANA PAULA BOULAROT): “I - A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com falta de conclusões. II - Nestas circunstâncias, não há lugar à prolação de um despacho a rejeitar liminarmente o recurso, impondo-se antes um convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do nº3 do artigo 639º do CPCivil, atenta a sua complexidade e/ou prolixidade.”; - Acórdão do STJ de 13-10-2016 (Pº 5048/14.5TENT-A.E1.S1, rel. OLIVEIRA VASCONCELOS): “I - Do facto de as conclusões serem uma repetição das alegações do recurso não se pode retirar que aquelas conclusões não existam, mas apenas que não assumem a forma sintética legalmente imposta pelo art. 639.º, n.º 1, do CPC. II - Perante tal irregularidade, deve o tribunal convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões no sentido de proceder à sua sintetização, com respeito pelo objeto do recurso que ficou definido nas alegações originais, nos termos do n.º 3 do citado normativo.”; - Acórdão do STJ de 18-02-2016 (Pº 558/12.1TTCBR.C1.S1, rel. ANTÓNIO LEONES DANTAS): “Nas conclusões da alegação do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados”; - Acórdão do STJ de 09-07-2015 (Pº 818/07.3TBAMD.L1.S1, rel. ABRANTES GERALDES): “A reprodução nas “conclusões” do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639º, nº 3, do NCPC.” - Acórdão da Relação de Guimarães de 24-09-2020 (Pº 2781/18.6T8VCT-A.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS): “Verificando-se que nas alegações de recurso o apelante, após a explanação da motivação do recurso, conclui essa motivação com a expressão: “ Termos em que…”, passando após a fazer uma súmula das razões pelas quais recorre e a expor o sentido da pretensão que solicita lhe seja reconhecida pelo tribunal ad quem e indicando os dispositivos legais que suportam essa sua pretensão, a falta de conclusões é meramente aparente”; - Acórdão da Relação do Porto de 27-01-2020 (Pº 2817/18.0T8PNF.P1, rel. JORGE SEABRA): “A reprodução integral e ipsis verbis do anteriormente vertido no corpo das alegações, ainda que intitulada de “conclusões”, não pode ser considerada para efeitos do cumprimento do dever de apresentação de conclusões do recurso nos termos estatuídos no artigo 639.º, n.º 1 do CPC. Equivalendo essa reprodução à falta total de conclusões deve o recurso ser rejeitado nos termos estatuídos no artigo 641.º, nº 2, al. b), do CPC., não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento”; - Acórdão da Relação do Porto de 13-01-2020 (Pº 3381/18.6T8PNF-A.P1, rel. MIGUEL BALDAIA DE MORAIS): “I - Em consonância com o regime plasmado na lei adjetiva, as conclusões das alegações correspondem às ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida. II - Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm, pois, necessária e legalmente de ser curtas, claras e objetivas. III - Daí que a reprodução praticamente integral e ipsis verbis do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada de “conclusões” pela apelante, não pode ser considerada para efeito de válido cumprimento do dever de apresentação das conclusões recursivas. IV - Tal comportamento processual, equivalendo à ausência de conclusões, dará lugar ao não conhecimento do recurso de acordo com o que se dispõe no artigo 641º, nº 1 al. b) do Código de Processo Civil, não cabendo convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus”; - Acórdão da Relação de Guimarães de 24-01-2019 (Pº 3113/17.6T8VCT.G1, rel. EUGÉNIA MARIA MOURA MARINHO DA CUNHA): “1. Verificando-se a falta, em peça processual da alegação de recurso de apelação, das “conclusões”, a que alude o nº1, do art. 639º, do CPC (indicação sintética das questões colocadas pelo recorrente, que define e delimita o objeto do recurso), os apelantes têm de suportar a consequência do incumprimento do ónus de as formular - a rejeição do recurso, em obediência ao consagrado na al. b), do nº2, do art. 641º, de tal diploma; 2. A deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões das alegações de recurso - passíveis de despacho de aperfeiçoamento - são vícios de conclusões, que pressupõem a existência de esboço de síntese dos fundamentos do recurso; 3. Ocorre efetiva, real e absoluta falta de objeto do recurso-as “conclusões”, definidas na lei adjetiva como indicação sintética dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – e não mero vício, na situação de a apelante, embora usando tal título ao finalizar a alegação de recurso de apelação, reproduzir ipsis verbis e integralmente o antecedente corpo das suas alegações, pois que tal inútil eco do já dito nenhuma síntese dos invocados fundamentos revela. E o esboço de síntese não se verifica em nominadas “conclusões” que apenas repetem, com insignificantes alterações de pormenor na redação e agrupamento, o teor integral do corpo das alegações; 4. Aquela consequência (rejeição do recurso) justifica-se nesta situação de falta de rigor, sem que tal se mostre desproporcional nem excessivo, pois que, tendo a parte o ónus de formular as definidas conclusões, sem o que se decorrem, automaticamente, os efeitos gravosos da rejeição do recurso (em materialização do princípio da auto-responsabilização das partes), a mesma nem sequer um esboço de esforço nesse sentido desenvolveu”; - Acórdão da Relação de Coimbra de 08-06-2018 (Pº 1840/16.4T8FIG-A.C1, rel. RAMALHO PINTO): “I – O artº 639º, nº 1 do nCPC impõe ao recorrente dois ónus: o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões. II – O recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando a sua alegação onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão está errada ou é injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso. III – Deve, todavia, terminar a sua minuta com a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/oude direito, por que pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida. IV – As conclusões do recurso que versem matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes. V – A não apresentação de conclusões recursivas tem como efeito imediato o puro e simples indeferimento do requerimento de recurso”; e - Acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2016 (Pº 141/14.7T8SXL.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “A reprodução integral, mediante aquilo que se pode designar por “copy-past” do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada pelo recorrente de “Conclusões”, não pode ser considerada para efeito do cumprimento do dever de apresentação das conclusões do recurso (proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação), nem podem ser consideradas deficientes (motivação insuficiente, contraditória, incongruente ou mesmo excessiva), obscuras ou complexas, equivalendo, ao invés, à ausência de conclusões, pois é igual a nada dizer, repetir o que antes se disse na motivação, o que sempre dará lugar à rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 1, alínea b) do CPC”. A propósito do que caracteriza de “peripécias relacionadas com as conclusões das alegações de recurso e dos custos que elas implicam para o sistema judiciário”, remata Miguel Teixeira de Sousa (Blog do IPPC, registo de 03-04-2020, consultado em https://blogippc.blogspot.com/2020/04/jurisprudencia-2019-210.html) que: “ninguém pode "atirar a primeira pedra": -- A jurisprudência, porque, com decisões, de carácter puramente formal, que se recusaram a apreciar algumas questões suscitadas nos recursos com argumento de que não constavam das conclusões, os tribunais deram azo a que os advogados, segundo a conhecida "jurisprudência das cautelas", alargassem as conclusões muito para além do razoável; -- A advocacia, porque os advogados continuam a não cumprir o que a lei impõe, que é -- lembre-se -- a indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que se pede a alteração ou a anulação da decisão impugnada (art. 639.º, n.º 1, CPC)”. A falta de alegações ou de conclusões não admite aperfeiçoamento e determina a liminar rejeição do recurso – cfr. artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC – ou o seu não conhecimento pelo Tribunal de recurso – cfr. artigo 652.º, n.º 1, al. b) do CPC. No caso, os recorridos invocam a falta de cumprimento, pelo apelante, das condições formais de interposição do recurso, com apelo ao disposto nos artigos 637.º, n.º 1, 638.º, n.º 7 e 639.º, n.º 2, als. a), b) e c) do CPC. Vejamos: A respeito do n.º 1 do artigo 637.º do CPC, explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., 2022, p. 824) que, “[n]o requerimento de interposição de recurso o recorrente deve indicar a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso, ainda que tais menções não vinculem nem o tribunal recorrido, nem o tribunal ad quem (arts. 652.º e ss.). Nos casos que constituem exceções à recorribilidade das decisões (v.g. art. 629.º, n.º 2), no recurso de revista excecional ou no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência deverão ainda ser indicados os motivos especiais de admissibilidade”. Sobre a relevância da indicação da espécie de recurso, refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil; Almedina, 2013, p. 99) que, “[n]o actual sistema monista, em que a apelação e a revista estão condicionadas pela referência ao tribunal para que se recorre (ad quem), a indicação da espécie de recurso perde grande parte do interesse e apenas faz sentido para qualificar o recurso per saltum para o Supremo, nos termos do art. 678º, ou algum dos recursos extraordinários de uniformização de jurisprudência ou de revisão”. Maior pertinência tem a indicação do efeito ou do modo de subida do recurso, sendo certo que, todavia, o eventual erro na indicação dos efeitos ou do regime de subida deve ser oficiosamente corrigido pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 641.º do CPC ou pelo Tribunal superior (cfr. artigos 652.º, n.º 1, al. a), 653.º e 654.º do CPC), devendo “admitir-se sempre a correcção de vícios ou de omissões puramente formais quando os mesmos não sejam imputáveis a dolo ou culpa grave e sempre que a correcção não implique prejuízo para o regular andamento da causa (art. 146.º, n.º 2)” (assim, também, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil; Almedina, 2013, p. 99). Revertendo estas considerações para o caso em apreço, verifica-se que o recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso - indicando fazê-lo ao abrigo do disposto “dos arts. 629º, 631º, 638º n.º7, 644º n.º1 a), 645º n.º1 a) e 647º n.º1 todos do CPC” -, que acompanhou de alegações, tendo terminado tais alegações com as conclusões supra transcritas. Encontra-se expresso o requerimento de impugnação/alteração da decisão recorrida pelo Tribunal de recurso e também a razão sucinta da impugnação. Também se encontra inserta no requerimento recursório a referência às disposições dos artigos 629.º (disposição respeitante às decisões que admitem recurso), 631.º (quanto à legitimidade recursória), 638.º, n.º 7 (quanto ao acréscimo de prazo decorrente da pretensão de reapreciação da prova gravada), 644.º, n.º 1, al. a) (indicando que cabe recurso de apelação da decisão de 1.ª instância que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou a incidente processado autonomamente), 645.º, n.º 1, al. a) (preceito respeitante ao modo de subida, consignando que sobem nos próprios autos as apelações interpostas das decisões que ponham termo ao processo) e 647.º, n.º 1 (norma inserida no preceito legal atinente ao efeito da apelação, onde se prevê que “a apelação tem efeito meramente devolutivo, exceto nos casos previstos nos números seguintes”) do CPC. Soçobra, pois, a invocada violação das prescrições formais a que se refere o n.º 1 do artigo 637.º do CPC, pois, ainda que por alusão aos preceitos legais onde o apelante fundamenta a sua impugnação recursória, mostra-se suficientemente observada a prescrição de indicação da espécie, modo de subida e efeito do recurso de apelação interposto. Quanto à invocada inobservância do disposto no n.º 7 do artigo 638.º do CPC, ela também não se vislumbra. De facto, entendemos que a consideração do prazo de interposição do recurso e da sua tempestividade – inclusivamente com a consideração do acréscimo de 10 dias, a que se refere o artigo 638.º, n.º 7, do CPC, no caso de o recurso ter por objeto a reapreciação da prova gravada - é prévia e independente do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC: Uma coisa é o prazo de recurso, e seu acréscimo; outra, a existência de condições processuais para a apreciação da impugnação da matéria de facto ou para a sua rejeição. Neste sentido, alinhamos com a orientação expressa nas seguintes decisões jurisprudenciais (ordenadas em termos cronológicos decrescentes), que consideramos expressar, de forma mais adequada, a interpretação que resulta da conjugação dos n.ºs. 1 e 7 do artigo 638.º do CPC, com as prescrições contidas no artigo 640.º do mesmo Código: - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-09-2021 (Pº 18853/17.1T8PRT.P1.S1, rel. TIBÉRIO NUNES DA SILVA): “Na avaliação da tempestividade de um recurso, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, há que verificar se faz parte do objecto desse recurso a reapreciação de prova gravada, o que é independente da observância dos ditames do art. 640º do CPC”; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2020 (Pº 1779/18.9T8BRG.G1.S1, rel. JORGE DIAS): “Os recorrentes/apelantes justificaram a pretensa alteração de vários pontos da decisão da matéria de facto em depoimentos de testemunhas que foram gravados. Logo, ao prazo normal de interposição do recurso e da resposta, acrescem 10 dias, conforme art. 638.º, n.º 7, do CPC. Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair, a posteriori, um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso”; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2019 (Pº 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES): “A aferição da tempestividade da apelação, atenta a prorrogação, por 10 dias, do prazo de interposição do recurso nos termos do artigo 638.º, n.º 7, do CPC, não deve ser feita em função da estrita observância dos requisitos de impugnação da decisão de facto previstos no artigo 640.º do mesmo Código, nem muito menos em face do demérito dessa impugnação, mas sim em função de uma impugnação efetivamente deduzida que convoque a reapreciação de concretos meios de prova constantes de gravação sobre determinados juízos probatórios, ainda que identificados de forma imperfeitamente expressa, que não se traduza, por exemplo, em mera impugnação genérica ou global”; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2019 (Pº 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA): “Resultando das alegações do recurso de apelação que a recorrente pretendia a modificação do acervo factual com base, mormente, na reapreciação da prova testemunhal gravada, é de considerar que lhe aproveitava o prazo suplementar concedido pelo n.º 7 do art. 638.º do CPC, independentemente de, no julgamento do recurso, a Relação ter considerado que não haviam sido cumpridos os ónus de alegação vertidos no art. 640.º do CPC”; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018 (Pº 4691/16.2T8LSB.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO): “Apesar de não haver lugar à reapreciação da prova gravada, por não fazer parte do objeto da apelação, continua a justificar-se o alongamento do prazo, por mais 10 dias, para a interposição da apelação, se na alegação o recorrente tiver impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente, indicando e transcrevendo os trechos dos depoimentos gravados que, no seu entender, impõem a alteração da matéria de facto”; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-04-2016 (Pº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES): “A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC”; e - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2015 (Pº 2394/11.3TBVCT.G1.S1, rel. LOPES DO REGO): “Contendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exacta indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação”. É que, conforme ensinam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, pp. 826-827): “Na apelação, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova gravados (e apenas neste caso), o recorrente beneficia de um acréscimo de 10 dias. Para o efeito, é necessário que a alegação apresentada pelo recorrente, ou seja, a peça que define o objeto do recurso, contenha alguma impugnação da decisão proferida acerca da matéria de facto a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente, tenham ficado registados, independentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no art.º 640.º. (…) A apreciação do modo como foram preenchidos os ónus de alegação contidos no art. 640.º poderão naturalmente condicionar o conhecimento da impugnação, mas não colocam em crise a tempestividade do recurso de apelação que, naquelas condições, tenha sido apresentado dentro do prazo alargado”. No caso, como resulta da alegação do recorrente, o mesmo pretende pôr em questão a factualidade considerada pelo Tribunal recorrido, razão pela qual, independentemente do cumprimento ou observância das condições de impugnação previstas no artigo 640.º do CPC, deveria o impugnante beneficiar do acréscimo do prazo de 10 dias, previsto no n.º 7 do artigo 638.º do mesmo Código. O prazo para interposição de recurso que deveria ser considerado era, pois, o de 40 dias a contar da notificação da decisão. No caso, a decisão proferida em 21-04-2023, de que foi interposto recurso, foi notificada ao recorrente por notificação expedida em 10-05-2023, considerando-se esta efetuada em 15-05-2023 – cfr. artigos 132.º, n.º 2, 138.º, 139.º, 247.º e 248.º do Código de Processo Civil. Tendo em conta o disposto no mencionado artigo 638.º, nºs. 1 e 7, do Código de Processo Civil, o recurso poderia ser interposto, tempestivamente, até 26-06-2023, ou, nos termos do artigo 139.º do Código de Processo Civil, até 29-06-2023. O requerimento de interposição de recurso veio a ser apresentado em 09-06-2023. Em suma, não se mostra inobservado o normativo consignado no n.º 7 do artigo 638.º do CPC. Por outro lado, decorre da previsão das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que, versado o recurso matéria de direito, as conclusões devem, entre outras indicações, conter “as normas jurídicas violadas”, “o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas” e “invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”. Invocam os recorridos, que o recorrente não indica as normas jurídicas violadas, nem as demais prescrições contidas nas mencionadas alíneas do n.º 2 do artigo 639.º. Sucede que, nas alegações do apelante divisam-se conclusões onde se faz referência à violação pela decisão recorrida das disposições normativas dos artigos 195.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC. É certo que, para além destas menções, não faz o recorrente outras menções. Contudo, conforme resulta do exposto e das conclusões acima transcritas, é claramente apreensível qual o fundamento em que assenta a impugnação deduzida pelo apelante – contestando a tramitação procedimental e a aquisição factual efetuada pelo Tribunal recorrido, bem como, a decisão de mérito proferida. A este propósito, importa referir, a respeito de questão de outra natureza (processual penal), mas com inegável abrangência a uma qualquer impugnação recursória, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (cfr. Acórdão n.º 320/2002, Processo n.º 754/01, publicado no D.R., n.º 231/2002, Série I-A, de 07-10-2002, pp. 6715-6719). De facto, nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 412.º do CPP, prescrevia-se - em termos semelhantes àqueles que ocorrem no âmbito do processo civil - que, versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; c) Em caso de erro na determinação da norma jurídica aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. Ora, também relativamente ao artigo 639.º do CPC é de ponderar semelhante interpretação legal. De facto, o propósito do legislador ao enunciar os princípios constantes deste artigo, foi o de vincular os recorrentes a fornecer, nos recursos que interponham, a indicação, em moldes percetíveis, não só do que pretendem, como das disposições legais que afirmam terem sido violadas pela decisão impugnada. Ora, resultando das conclusões do apelante qual o fundamento em que assenta a impugnação deduzida, a rejeição do recurso, com fundamento na ausência de especificação ou expressa menção das normas violadas, do sentido com que tais normas deveria ser interpretadas e aplicadas, bem como, no caso de erro na determinação da norma aplicável imputado ao tribunal recorrido, da norma jurídica que, em alternativa, deveria ter sido aplicada, seria desconforme com a Constituição, porque assentaria numa leitura estritamente formal do consignado nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 639.º do CPC. Assim, se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre a decisão que impugna e tomou uma posição conclusiva de discordância relativamente a questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso (no sentido exposto, ainda que, no precedente regime recursório, mas entendimento plenamente aplicável ao preceito em vigor, vd. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-1999, Pº 66/99, de 06-05-2003, Pº 03A720, rel. BARROS CALDEIRA e de 22-04-2009, Pº 08S3083, rel. VASQUES DINIS). Conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-05-1991 (Pº 041924, rel. SÁ NOGUEIRA): “As falhas dos aspectos puramente formais de ossatura das mesmas motivações - encerramento da motivação pelas conclusões, subordinação destas a artigos, e inclusão nelas da indicação das normas violadas - não tem relevo suficiente para conduzir a rejeição do recurso quando sejam facilmente cognoscíveis, pela própria motivação, quais as conclusões e quais as normas que se reputam violadas pela decisão de que se recorre”. “Os casos de rejeição do requerimento de interposição de recurso estão taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 641.º e neles não se encontra incluída a falta de observância destes requisitos. Fora das (únicas) situações previstas como sendo fundamento de rejeição imediata do recurso, qualquer falha no cumprimento dos requisitos assinalados ao requerimento constituirá apenas uma irregularidade processual que ou se entende poder condicionar a apreciação do recurso, caso em que deverá ser mandada sanar, ou é mesmo irrelevante para o conhecimento do recurso e não carece sequer de ser suprida, podendo o processo avançar mesma com essa falha” (assim, o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-04-2014, Processo 4949/10.4TBVFR.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA). Não se afigura que, em face do exposto, o recurso deva ser rejeitado, não ocorrendo a situação a que se reporta o artigo 641.º, n.º 2, al. b) do CPC, uma vez que as conclusões encontram-se presentes na alegação recursória, só devendo ser rejeitado o recurso por falta de conclusões se estas forem totalmente inexistentes, o que não sucede se as mesmas se encontram presentes. Do mesmo modo, apreciada a peça processual que contém a alegação recursória, não se afigura existir motivo que justifique a prévia prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, pois, atento o referido, não ocorre situação de deficiência ou obscuridade recursória que o justifique. Em suma: Se a parte nas alegações focou com objetividade a sua discordância sobre o decisão impugnada e tomou uma posição conclusiva de discordância em questões essenciais que referenciou, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer do objeto do recurso, não sendo caso de prolação do despacho de convite a que se reporta o n.º 3 do artigo 639.º do CPC, por não ocorrer deficiência ou obscuridade recursória que o justifique. Conclui-se, pois, inexistir motivo para o não conhecimento do recurso, com fundamento na violação do disposto nos artigos 637.º n.º 1, 638.º n.º 7 e 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPC. * B) Delimitação do objeto do recurso. Estatuem os n.ºs 1 e 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, sobre os poderes vinculados da Relação, o seguinte: “1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”. Para que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso ocorra deve, previamente, o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir os ónus a seu cargo, plasmados no artigo 640.º do CPC, o qual dispõe que: “1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”. Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões. As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois, só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo). O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO). Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES). Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no artigo 639.º, n.º 3 do CPC (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO). Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO). O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob ---pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS). A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA). Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO). Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA). A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES). Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC). Como resulta do n.º 1 do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto. De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes). Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES). Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte: “1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada. 2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância. 3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. 4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”. Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, rel. JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”. Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”. Assim, pode concluir-se que, “como decorre do art. 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2018, Pº 2611/12.2TBSTS.L1.S1, rel. SOUSA LAMEIRA). De todo o modo, de harmonia com o princípio da prevalência da substância pela forma a que se refere o artigo 6.º do vigente CPC (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2018, p. 32, nota 5), tem-se admitido que, se da conjugação da motivação e das conclusões é viável a percepção de quais os pontos da matéria de facto impugnados, não deverá ter lugar a rejeição da impugnação: “Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal. Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, Pº 274/17.8T8AVR.P1.S1, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 12-07-2018, Pº 167/11.2TTTVD.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO). Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”. E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”. Quanto ao ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a jurisprudência tem entendido uniformemente, o seguinte: - “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1 do artigo 640º, do CPC” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2019, Pº 126528/16.6YIPRT.P1, rel. CARLOS PORTELA); e - “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640º, do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018, Pº 1474/16.3T8CLD.C1.S1, rel. FERREIRA PINTO). Finalmente – refira-se – que, conforme se deu nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018 (Pº 552/13.5TTVIS.C1.S1, rel. PINTO HESPANHOL): “A rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório. Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre tais pontos de facto”. Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação. Ora, no caso, apreciando o requerimento recursório do recorrente, verifica-se que o mesmo não identifica, em qualquer dos seus segmentos, quais os concretos factos, objeto de selecção factual pelo Tribunal recorrido, que pretendem ser postos em crise com a impugnação deduzida, nem, igualmente, que decisão deveria ter sido proferida em alternativa sobre as questões de facto invocadas, nem, igualmente, se identificam concretos meios probatórios que poderiam determinar outra factualidade. De facto, o recorrente limita-se a tecer considerações inconclusivas sobre alguns dos factos apurados pelo Tribunal recorrido, sem delas retirar alguma consequência concreta, não tomando uma posição objetiva e concreta sobre em que termos o Tribunal deveria ter decidido e com referência a que concreta factualidade. Veja-se, neste sentido, por exemplo, o seguinte segmento das alegações de recurso: “Em particular e no tocante aos factos t) e u), os mesmos considerou o tribunal a quo que não resultaram provados não só por ter sido absoluta a ausência de prova com aptidão para evidenciar a sua realidade, não tendo sido confirmado por declarações das partes, por depoimento de alguma das testemunhas inquiridas ou por documento ou por qualquer outro meio de prova, mas também por não se poder extrair a sua realidade da singela circunstância de ter ficado provado que ocorreram a doação e a transferência bancária em causa em benefício do réu, pois que, relativamente ao facto u), não se poderá olvidar que foi passada procuração a favor do réu que o habilitava a movimentar a conta de JCV a débito (fls. 94 a 97) e que o réu manifestou, durante as suas declarações considerar ser também titular da conta bancária em causa e estar legitimado a movimentá-la, por considerar ter uma outra conta agregada a esta, não se podendo concluir, por sequer se encontrar tal facto demonstrado, que o mesmo sabia ter ocorrido alguma causa apta a sustentar a caducidade do mandato e não dispor dos poderes inerentes ao mandato que lhe havia sido concedido quando realizou essa transferência e que quis, por efeito dela, prejudicar deliberadamente os autores, porquanto também manifestou o réu que considerava que o tio era titular de um vasto património e que teria bens para deixar aos filhos, razão pela qual concluiu que não seria a disposição de tais bens a causar uma significativa diminuição nesse património e a desprotecção financeira dos autores (…)”. Do mesmo modo, embora o recorrente faça referência a alguns dos meios de prova produzidos no processo, certo é que, não os identifica, em concreto, nem com expressa menção das passagens em que se funda a impugnação ou efetuando a respetiva transcrição de depoimento – como lhe imporia a al. a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC - , limitando-se a tecer genéricas considerações sobre os meios de prova produzidos, conforme sucede, por exemplo, nos seguintes trechos das alegações de recurso: - “Do supra alegado, surge a dúvida quanto ao regime de bens do casal em vigor à data da aquisição do imóvel, se a separação de bens ou a comunhão geral. Termos em crer que seja o regime da separação. Uma vez que, Ao conjugar as declarações do pai dos autores, JV, que sempre foi consistem ao afirmar e declarar ser casado no regime imperativo da separação de bens e controvertido nos dispositivos legais que permitiam a verificação da separação de bens quando o casamento fosse realizado no estrangeiro e em que um dos nubentes não fosse português (…)”; e - “O que não se pode conceber, pois como resultou dos autos o réu aqui recorrente tin[h]a procuração para realizar actos na conta bancária em plenos poderes já anteriormente validada pela instituição bancária em causa. Nos extratos da conta se juntaram aos autos e se encontram plenamente reproduzidos, é possível ver que na conta á ordem foi depositado dinheiro, conta esta em que o réu é titular e que o mesmo tinha autorização e poderes para fazer gerir da forma que entendesse tal como o 1° titular. Tal como se demons[t]ra nos documentos junto aos autos.”. Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)”, concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”. Ora, a impugnação em questão, embora significando uma declaração de vontade do apelante no sentido da impugnação da matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, por não observar os ónus de impugnação consignados nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não passa de “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, sobre o resultado probatório alcançado pelo Tribunal. Não identificando o apelante quais os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios, constantes do processo, que imporiam decisão diversa da recorrida, nem, igualmente, a decisão alternativa que em concreto e factualmente devesse ser proferida, deve ser rejeitado o recurso referente à impugnação da matéria de facto, por inobservância dos ónus de impugnação contidos nas alínea a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. O supra exposto conduz, inelutavelmente, a que deva ser rejeitado o recurso, nos segmentos em que visou colocar em crise a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, circunscrevendo-se o objeto do recurso à apreciação das nulidades invocadas e à impugnação da matéria de direito deduzida. * II) Nulidades: * C) Se procede a invocação de nulidade, nos termos do artigo 195.º do CPC, por ausência de decisão sobre requerimento de prova? Nas conclusões 23.ª a 30.ª das alegações de recurso, conclui o recorrente o seguinte: “(…) 23. O réu requereu na sua contestação várias diligências de prova que o tribunal a q[u]o não realizou; 24. Sucede o Tribunal a quo nada fez ou pronunciou quer em saneamento ou na audiência de discussão e julgamento para a obtenção da prova requerida, que salve melhor opinião, se mostra imprescindivel para a boa decisão da causa e apuramento da verdade; 25. O artigo 195.° n.°1 do código de processo civil, estatui que a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 26. O artigo 615.° n.°1 d) do mesmo diploma diz ser nula a sentença que quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 27. Pelo n.°4 deste artigo, é tempestiva esta arguição de nulidade. 28. O cumprimento do artigo 617° n.°5 no que concerne à possibilidade de mandar baixar o processo para que seja proferido; 29. Se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando- se, com as necessárias adaptações, o previsto no n.° 6. 30. Deve por isso o processo baixar aos autos da 1ª instância e ser ordenada a realização da obtenção da prova requerida e posterior realização de julgamento para a sua análise e discussão (…)”. Vejamos: Começa o recorrente por invocar o disposto no artigo 195.º do CPC. Este preceito reporta-se aos denominados “erros de procedimento”, ou seja aos atos processuais – praticados ou omitidos indevidamente - como parte de uma sequência processual, não respeitando a respetiva invocação ao conteúdo do acto. Ou seja: Nos erros de procedimento não está em questão um erro de julgamento que pudesse ser objecto de recurso, mas uma nulidade processual, com o regime do artigo 195.º do CPC, por, na perspetiva do recorrente, ter sido omitida decisão sobre um requerimento probatório que deveria ter levado à tomada de decisão pelo Tribunal recorrido. De acordo com tal regime, ocorrerá nulidade procedimental, no caso de se entender que a irregularidade verificada influi no exame ou na decisão da causa (cfr. artigo 195.º n.º 1, do CPC). Consagra-se um sistema que remete para uma análise casuística das situações irregulares, em que se invalida, o ato processual que não possa ser aproveitado e todos os subsequentes que se lhe sigam, que daquele dependam absolutamente. Quanto ao regime e meio de arguição, a regra é a de que o juiz só conhece destas nulidades mediante arguição da parte e o meio processual próprio para o fazer é a reclamação (cfr. artigos 196º e 197º do CPC). Na realidade, das nulidades processuais reclama-se, não se recorre. Assim, se houver um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir será a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. A reclamação e o recurso não são meios de impugnação concorrentes, cabendo à parte reclamar previamente para suscitar a prolação de despacho sobre a arguida nulidade. Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por aquela nulidade – e não a nulidade ela mesma. “A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário. Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis. Também Miguel Teixeira de Sousa afirma que “(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; – se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão. Possível é, no entanto, a impugnação da decisão através de reclamação e, perante a sua rejeição pelo tribunal, a continuação da impugnação através de recurso ordinário”. Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes, entende que: “As nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no art. 615º, n.º 1, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa”” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-03-2020, Pº 305/15.6T8MNC-E.G1, rel. ANTÓNIO BARROCA PENHA). Ou seja, conforme se sintetizou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-09-2019 (Pº 240/16.0T8MAI-B.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “As nulidades processuais secundárias, inominadas ou atípicas, previstas no nº1, do art. 195º, do CPC, têm um regime específico de arguição e devem obedecer a meio próprio: têm de ser arguidas pela parte, dentro do prazo e pelo meio processual reclamação (cfr. art. 196º, parte final do CPC), sob pena de sanação”. Contudo, como se viu, tem-se admitido que, se interposto recurso em vez de se ter arguido a nulidade processual, poderá o indevido uso do meio processual ser ainda corrigido pela via da convolação (art. 193.º, n.º 3 do CPC), se tal se mostrar ainda possível, ou seja, se o recurso tiver sido interposto dentro do prazo da arguição da nulidade (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-10-2018, Pº 2121/09.5TBALM.L1, rel. PEDRO MARTINS). Nesta medida, deveria o recorrente ter arguido a nulidade processual por reclamação para o juiz de 1.ª instância, ou então, recorrer no prazo de arguição da nulidade, caso em que poderia ser convolado um tal meio processual e a questão ser objeto de apreciação recursória. Como se disse também, relativamente às nulidades em geral (ou seja, ressalvados os casos especialmente regulados a que se refere o artigo 198.º do CPC, por referência às nulidades mencionadas nos artigos 186.º, 193.º, n.º 1, 187.º e 194.º do CPC, que não têm aplicação ao caso dos autos), o n.º 1 do artigo 199.º do CPC estabelece que, “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição [por força do disposto no n.º 1 do artigo 149.º do CPC, o prazo para o efeito é o de 10 dias] conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”. Assim, conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-01-2018 (Pº 80/12.6TBMAI-C.P1, rel. MIGUEL BALDAIA DE MORAIS), relativamente a nulidade processual de cariz secundário, “tratando-se de nulidade perpetrada na ausência da parte, tem esta de a arguir, sob pena de preclusão, no prazo geral de 10 dias (art. 149º, nº 1 do Código de Processo Civil), contados a partir do momento em que intervém em ato processual posterior, ou em que é notificada para ato processual posterior”. No caso – adiante-se desde já - verifica-se que, ao invés do invocado pelo recorrente, não ocorreu nulidade procedimental, com arrimo no disposto no artigo 195.º do CPC. Na contestação o réu, para além de arrolar prova testemunhal e de requerer a prestação de declarações de parte do réu, requereu o seguinte: “1. Requer-se a V. Exa. que proceda à notificação das autoridades norte americanas para virem informar os autos se existem testamento registado em nome de JV melhor identificado nos autos; 2. Requer-se a V. Exa. que diligêncie junto das autoridades norte-americanas a fim destas virem informar os autos se se encontra registado algum inventário de bens deixado por morte do Sr. JV e ainda se requer a notificação dos autores para virem aos autos dizer quais os bens que integram esse inventário e os valores patrimoniais respectivos e ainda das doações que receberam em vida por parte do pai quer em dinheiro ou especie nos termos do artigo 429º do CPC, a fim de se poder calcular a quota legitima e a quota disponivel; 3. 120 documentos que se protesta juntar em formato fisico de papel na secretaria do douto Tribunal, uma vez que pela sua dimensão não permite o seu envio via CITIUS (…)”. Quanto aos documentos protestados juntar, o princípio do dispositivo, consagrado no art.º 3.º do CPC, “além de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objecto do processo integrado, não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento” (assim, Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I vol., 2.ª ed., p 50). De acordo com tal princípio, a lei faz recair sobre a parte onerada com o ónus da prova os meios necessários a convencer o Tribunal da realidade dos factos alegados. Todavia, no CPC em vigor, a lei veio atribuir ampliados poderes ao julgador, formulando exigências de cooperação entre as partes e entre estas e o Tribunal, em ordem a alcançar a verdade e uma decisão justa. A prova dos factos deixou, no processo civil atual, de constituir monopólio das partes. O juiz pode amplamente determinar, por exemplo, a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial. Não é alheia a este alargamento de poderes a progressiva alteração da fisionomia do nosso processo civil, que tem como objetivo alcançar a solução judicial que mais se ajuste à real situação litigiosa que é objeto de disputa. Nesse sentido, de acordo com o nº 1 do artigo 6º do CPC, o juiz tem o dever de gestão processual dirigindo ativamente o processo e providenciando pelo seu andamento célere, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for meramente dilatório ou impertinente, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. Por seu turno, dispõe o artigo 547º do mesmo Código que o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo. Ambas as normas visam a justa composição do litígio e o desiderato de alcançar um processo célere justo e equitativo, de um ponto de vista formal e de gestão processual, não se confundindo com o princípio do inquisitório nem com o princípio da verdade material. Por seu turno, o artigo 7.º do CPC prescreve que um princípio de cooperação entre os intervenientes processuais, podendo o juiz, “em qualquer estado do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência” (n.º 2), sendo que, o juiz deve, sempre que possível, providenciar por remover o obstáculo que se verifique, “sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual” (artigo 7.º, n.º 4, do CPC). A consagração constitucional do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, nº4 da Constituição da República Portuguesa) envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza. Como é jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os Acórdãos do TC n.ºs 86/88, 157/2008 e 530/2008) o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras. O direito à prova significa que as partes em conflito, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal e, ainda, o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como, o direito à contraprova. O artigo 411.º do CPC – correspondendo, em parte, ao anterior artigo 265.º do CPC de 1961 – estatui sobre o denominado “princípio do inquisitório” em sede de instrução do processo, prescrevendo que: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. Apreciando este princípio – aliás, expresso ou manifestado perante outros normativos legais (v.g. arts. 6.º, 7.º, 436.º, 452.º, 467.º, 490.º, 526.º, 590.º, n.º 2, al. c) e 3 e 607.º, nº 1) - , refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019 (Processo 68/12.7TBCMN-C.G1, rel. CONCEIÇÃO SAMPAIO) que: “O processo é constituído por uma série de atos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, devendo obedecer a formas e requisitos adequados a esse escopo. Sem regras o processo fica sujeito à indisciplina das partes e cria insegurança, e presta-se a manobras que prejudiquem a obtenção da decisão em tempo razoável e útil. Tem portanto o processo exigências técnicas, designadamente sujeitando as partes a um tecido de ónus necessários à boa administração da justiça. Um dos princípios do processo civil é precisamente o da auto-responsabilidade das partes, segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco. O princípio do inquisitório traduz uma ideia de divisão subordinada de trabalhos, dominante em matéria probatória, entre o juiz e as partes (estas num primeiro plano). Recebeu consagração legal no art. 411.º ao dispor que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. O princípio do inquisitório exerce atualmente, é certo, um importante papel no processo civil português mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido, que se coaduna em par em torno dos dois princípio). O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova. Como escreve Mariana França Gouveia esteirada nos ensinamentos dos mais ilustres processualistas, “O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exato limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto. O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar). No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão.” Compreende-se, assim, por que o princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade. Ora, a circunstância de, em determinado momento processual, uma parte manifestar “protestar” juntar determinado documento não tem qualquer consequência processual, pois, a intenção de praticar um ato processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas como se o ato que não foi praticado, o tivesse sido. Não ocorre por isso, nulidade decorrente da não pronúncia do Tribunal sobre tal manifestação de intenção de ser ulteriormente praticado um ato processual. Quanto ao mais, verifica-se que o Tribunal recorrido emitiu expressa decisão sobre o requerimento probatório do réu. Com efeito, no despacho saneador, datado de 26-07-2022, ficou a constar a prolação de decisão sobre o requerimento probatório do recorrente, nos termos seguintes: “VI. Meios probatórios (…) Do réu i. Admite-se por tempestivo o requerimento probatório d réu apresentado com a contestação e bem assim o rol de testemunhas de fls. 74. ii. Defere-se a junção da prova documental. iii. No que se refere ao pedido de notificação indicado em 2. do requerimento probatório, não releva para a apreciação e decisão desta causa a existência ou não de inventário do pai dos autores. iv. Relativamente à existência de testamento outorgado pelo pai dos autores, convida-se o réu a esclarecer qual o facto alegado que pretende demonstrar através de tal meio probatório, bem como qual a entidade cuja notificação requer em termos vagos. (…)”. Assim, tendo ocorrido expressa decisão sobre o requerimento probatório do réu, não ocorre nulidade processual, com respaldo no disposto no artigo 195.º do CPC, por ausência de prolação de decisão sobre tal requerimento. A nulidade invocada, soçobra. * C) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia? Noutro plano, mas ainda relacionado com uma invocada omissão de pronúncia do Tribunal recorrido sobre o requerimento de prova do réu, considera o recorrente que ocorreu a nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a sentença será nula se “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Vejamos se, no caso, o juiz deixou de se pronunciar sobre questões de que devesse conhecer, sabendo-se que, é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades» (assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132). Importa sublinhar que, apenas existirá nulidade da sentença por omissão de pronúncia (ou por pronúncia indevida) com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte. A nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2007, Pº 07A091, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS). Caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. Poderá, todavia, existir mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável. A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. A questão a decidir pelo julgador está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta. De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção. “O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA). Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Processo 226/16.5T8MAI-E.P1, relator NELSON FERNANDES). Na realidade, como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2011 (P.º n.º 480/09.9JALRA.C1, relator ORLANDO GONÇALVES): “1.- A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. 2.- O que importa é que o tribunal decida a questão colocada e não que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão”. Se a decisão não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos argumentos ou considerações expendidas, designadamente por opostos, irrelevantes ou prejudicados em face da solução adotada. Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora MARIA DA GRAÇA SANTOS SILVA) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”. No caso em apreço, o recorrente vem dizer que requereu na contestação diligências de prova, que o Tribunal recorrido não realizou, dizendo que o mesmo não se pronunciou sobre tal requerimento. Ora, conforme decorre das considerações expendidas na apreciação da questão precedente, o dever de decisão do Tribunal recorrido foi devida e cabalmente observado, tendo o Tribunal de 1.ª instância emitido, em sede de despacho saneador, a pronúncia que lhe cabia efetuar sobre as pretensões do réu em termos de produção probatória. Tendo emitido já decisão sobre tal questão – e não tendo o réu dado ulterior correspondência ao despacho então proferido – não lhe cabia emitir outra pronúncia sobre a questão já objeto de apreciação. E, nessa medida, uma vez que sobre essa matéria já tinha emitido competente pronúncia, o Tribunal recorrido não incorreu, ulteriormente e, nomeadamente, em sede da sentença recorrida, em alguma omissão de pronúncia pelo facto de não ter, desde então, prolatado outra decisão sobre o requerimento probatório deduzido pelo réu, pois, de facto, sobre o objeto de tal questão já tinha decidido. Assim, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC, não fazendo parte do leque de tais questões (que devesse apreciar em sentença) alguma pronúncia sobre o requerimento probatório do réu, já antes decidido. Em face do exposto, improcede a nulidade arguida, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC. * III) Da impugnação da decisão de direito: * E) Se a decisão recorrida deve ser alterada, declarando-se que o réu recebeu legitimamente o imóvel e o saldo da conta bancária dos autos e se a reconvenção deve ser julgada procedente? Considera o recorrente que a decisão recorrida deve ser alterada, declarando-se que recebeu por doação, de forma legítima, o imóvel dos autos e que, por isso, é seu legítimo proprietário e possuidor (situação que conduziria à improcedência da pretensão dos autores), sendo os autores condenados no valor total peticionado no pedido reconvencional. Sucede que a alteração decisória pugnada pelo recorrente teria como pressuposto a procedência da impugnação da matéria de facto, a qual, conforme resulta das precedentes considerações, foi objeto de rejeição. Não obstante, vejamos, ainda assim, se procede a invocação do recorrente, no sentido de que o regime de bens do casamento dos falecidos JV e de AH era o de separação de bens (o que, em seu entender, conferiria legitimidade à doação do imóvel dos autos, efetuada por JV). Conforme decorre dos factos provados, AH, mãe dos autores, nascida em 14-10-1928, em ..., Estado Livre Associado de Porto Rico, território não incorporado dos Estados Unidos da América, casou em Nova Iorque, em 10-12-1955 com JCV, pai dos autores, de nacionalidade portuguesa, nada tendo sido estipulado quanto ao regime de bens. À data do casamento vigorava o Código Civil (CC) de Seabra, de 1867. Quanto às relações patrimoniais dos cônjuges em geral, o artigo 1098.º do CC de 1867 dispunha que, “na falta de qualquer acordo ou convenção, entende-se, que o casamento é feito segundo o costume do reino, excepto se for contraído com quebra das disposições do artigo 1058.º, n.ºs. 1.º [casamento de menores de 21 anos e maiores inibidos de reger as suas pessoas e bens, sem consentimento dos pais ou dos seus representantes] e 2.º [casamento do tutor, e seus descendentes, com a pessoa tutelada, sem findar a tutela e as contas desta não estejam aprovadas, salvo se o pai ou mãe falecidos o tiverem permitido em testamento ou outro escrito autêntico], porque, nesse caso, entender-se-há que os cônjuges são casados com simples comunhão de adquiridos”. De acordo com o previsto no artigo 1108.º do CC de 1867, “o casamento, segundo o costume do reino, consiste na comunhão, entre os cônjuges, de todos os seus bens presentes e futuros não exceptuados na lei”. E, em concreto, quanto ao regime supletivo de bens no casamento, relativamente a casamentos contraídos em país estrangeiro entre português e estrangeira, dispunha o artigo 1107.º do Código Civil de 1867 que: “Se o casamento for contraído em paiz estrangeiro entre portuguez e estrangeira, ... e nada declararem nem estipularem os contrahentes relativamente a seus bens, entender-se-ha que casaram conforme o direito commum do paiz do conjuge varão (…)”. Assim, no domínio temporal do Código Civil de Seabra, quando o casamento tivesse lugar no estrangeiro entre português e estrangeira, e nada tivesse sido convencionado relativamente ao regime de bens, o regime de bens a que o casamento ficava submetido era o da comunhão geral de bens, nos termos do artigo 1098.º do referido Código. De harmonia com o mencionado artigo 1107.º, o momento a que se atende para fixar o regime de bens é o da celebração do casamento. E considerava-se, aliás, “que o momento a que se atende para fixar a nacionalidade do conjuge varão e o da celebração do casamento. E o que deriva do próprio texto do artigo 1107 que, ao fixar a lei competente para a convenção, tem expressamente em vista o momento do casamento. Alias, exigências de várias ordens impõem a estabilidade da convenção na constância do matrimonio. No nosso direito interno, o artigo 1105 do Código Civil expressamente consignou o principio" (cfr. Vasco Taborda Ferreira, “Sistema do Direito Internacional Privado segundo a lei e a jurisprudência”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 19, 1959, p. 63). O regime do casamento celebrado entre os pais dos autores, ele, de nacionalidade portuguesa e, ela, estrangeira, nos termos resultantes do regime do Código Civil de 1867, era, pois, o da comunhão geral de bens, de harmonia com o previsto nos artigos 1107.º, 1098.º e 1108.º do referido Código. Tal regime tinha natureza imperativa, atenta a previsão de imutabilidade que então também resultava do artigo 1105.º do CC de 1867, não havendo, nesse sentido de apelar à vontade presumida ou hipotética dos nubentes (cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-1991, Pº 081357, rel. MARTINS DA FONSECA). No referido aresto de 17-12-1991 afrontou-se a questão de saber se as alterações decorrentes da entrada em vigor do Código Civil de 1966 tiveram implicações no regime então instituído, tendo-se concluído negativamente, expendendo-se, para tanto, as seguintes considerações, que para o caso dos autos são inteiramente transponíveis: “O Código actual passou a considerar como regime de bens supletivo o da comunhão de adquiridos. Simultaneamente estatuiu que se o casamento for celebrado entre nubentes de nacionalidade diversa, a lei aplicável será a do país da residência habitual comum (artigo 1717 e 53, n. 2). Para se dar resposta a interrogação atrás formulada importa considerar diversos preceitos do Decreto-Lei n. 47344, de 25/XI/66. Assim: os artigos 5 e 15, bem como o artigo 12 do Código Civil. De harmonia com o artigo 5 a aplicação das novas disposições ficam subordinadas as regras do artigo 12. Salvo o devido respeito, por opinião contraria, não se vê razão suficiente para não se concluir que a questão não esteja resolvida pelo referido artigo 5. E que não parece legitimo contestar que as normas de conflitos de leis contidas no Código Civil, devam ter-se por disposições, para os efeitos deste artigo. Ora, de harmonia com o artigo 12 do Código Civil em princípio a lei só dispõe para o futuro, e em caso de dúvida, só visa factos novos. Parece irrecusável também não se estar perante a excepção prevista no preceito, e haver direitos adquiridos. Não se justifica, serem atingidos pela retroactividade duma norma, que não e imposta pelo legislador. Ainda, que assim não fosse, justificar-se-ia uma interpretação extensiva do artigo 15 ja citado, ou quando se entendesse não ser caso de tal interpretação, a sua aplicação por analogia para resolver a questão. Tal interpretação, será de admitir até porque a nova lei permanece fiel a orientação tradicional do nosso direito, de harmonia com a qual é imutável o regime de bens, convencional ou legal. E dai resultaria que a regra constante do artigo 53 do Código Civil só valerá para os casamentos celebrados na vigência do actual Código (vide Parecer da Professora Madalena Magalhães Colaço). Dir-se-á, que no caso deverá falar-se antes em interpretação extensiva e não em analogia. Isto porque a norma do artigo 15 se deve aplicar por identidade ou maioria de razão (…)”. E, nesta medida, concluiu-se no mencionado Acórdão do STJ de 17-12-1991, que “aos casamentos celebrados entre português e estrangeira, em data anterior ao Código Civil vigente, e em território estrangeiro aplica-se o regime estatuído no artigo 1107 do Código de Seabra. O regime constante dos artigos 53 e 1717 do Código Civil actual não se lhe aplica (…)”. Considerando que o regime de bens instituído pelo CC de 1967 não tem aplicação ao casamento celebrado entre JV e AH, não faz sentido o apelo às disposições que neste diploma legal estatuem sobre o regime supletivo de bens no casamento, não tendo também aplicação ao caso dos autos, o disposto no artigo 1720.º do CC, em alguma das suas normas ou, noutra perspetiva, a norma de conflitos a que se reporta o artigo 53.º do CC (conforme decorre do disposto da conjugação das disposições dos artigos 5.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966 e do artigo 12.º do CC de 1966). E, afrontando com clareza a questão da eventual inconstitucionalidade superveniente da norma de conflitos constante do artigo 1107.º do Código Civil de Seabra, escreveu-se no Acórdão do TC n.º 90/2003 (Pº 692/2002, rel. BRAVO SERRA), a este respeito (destacando-se os trechos por nós sublinhados), o seguinte: “(…) De facto, o casamento celebrado entre o ora recorrente e a recorrida foi celebrado antes da vigência da Constituição de 1976, numa ocasião, portanto, em que a lei fundamental do Estado Português estava plasmada na Constituição Política de 1933, a qual não continha preceito ou princípio do qual decorresse a igualdade em termos semelhantes aos decorrentes do nº 2 do artigo 18º e do artigo 36º, este como aquele da Constituição de 1976. A norma ínsita no nº 2 do artº 53º do Código Civil, ao estabelecer a remissão, no passo ora relevante, para a lei pessoal do marido, não se revelaria, assim, como ofensiva de qualquer preceito ou princípio constante de um catálogo dos direitos fundamentais dos indivíduos vertidos na Constituição de 1933. Coloque-se aqui um parêntesis para vincar que é evidente que, na figuração desta asserção, não estaria em causa saber se um eventual princípio da igualdade entre cônjuges, que porventura decorresse da pretérita lei fundamental, obstava a que pudesse ser estabelecida uma regra de conexão de onde resultasse a aplicabilidade da lei pessoal do marido ou da lei pessoal da mulher, por isso que a aferição da compatibilidade do direito ordinário com a lei fundamental vigente antes da Constituição da República Portuguesa de 1976 é questão que se não insere na competência deste Tribunal; o que releva, isso sim, é, a perfilhar-se um entendimento que não repouse na clássica perspectivação do direito internacional privado como devendo ser imune à constituição da lei do estado do foro (ou, se se quiser, mover-se fora do espaço constitucional do foro), saber se a própria norma estabelecedora da regulação do conflito de leis adopta um critério privilegiador de um estatuto pessoal em detrimento de outro, sem que, para tanto, haja razões, motivos ou conveniências justificáveis (e, logo, não arbitrárias) que ditem essa adopção, tendo como enfoque a superveniência de nova lei fundamental . Simplesmente, isto posto, haverá que não passar em claro que a substância e o regime do casamento, são, desde logo, regulados pelo ordenamento que resulta da conexão ditada pela norma de conflitos. Na situação sub specie não se coloca, desta sorte, a questão de saber se o ordenamento para o qual foi remetida a regulação do regime de bens é, ele mesmo, composto por normas que ofendam os direitos fundamentais dos indivíduos, visualizados estes na óptica do vigente ordenamento constitucional português. O que está em análise é, pois, saber se a superveniência da Constituição de 1976 tem a virtualidade de se projectar sobre uma norma de conflitos pretérita que operou desde logo os seus efeitos, dada a ocorrência do facto casamento, muito embora com aplicação a situações que se conectem com a relação jurídica que visou regular. 5.1. Ferrer Correia, nos já citados Estudos (296, 297) , vinca que "para os preceitos constitucionais (...) não pode deixar de pôr-se aquele mesmo problema que se levanta para as disposições das leis ordinárias e que é o problema da sua esfera de aplicação temporal e espacial". E, neste particular, pode ler-se: “Problema que tem a ver com a própria essência da norma jurídica como norma de conduta (regula agendi). Como regra de dever-ser, como norma reguladora de comportamentos humanos - que ora pretende incentivar ora coibir e em qualquer caso condicionar - a regra de direito não é segundo a sua natureza aplicável a condutas que lhe sejam estranhas, que se situem fora da sua esfera de eficácia (quer em razão do tempo em que ocorreram, quer em razão do que chamarei a sua localização espacial) e cujos agentes nenhuma possibilidade ou razão tiveram para por ela se deixarem determinar. Certo que, assim como há leis aplicáveis a factos pretéritos (leis retroactivas), assim também poderá haver preceitos que pretendam aplicar-se a todas e quaisquer situações da vida, mesmo as que se não encontrem conectadas com o respectivo ordenamento jurídico por alguns dos modos admitidos em direito internacional privado. Só que em tal sentido deverá pesar então algum motivo de interesse público excepcionalmente ponderoso, ou algum imperativo de universal justiça. Em regra, a aplicação de uma lei a uma situação factual determinada pressupõe a existência entre ambas de algum nexo, de algum ponto de contacto apreciável, ou seja em razão dos próprios factos, da coisa, ou das pessoas. 8. Esta doutrina - segundo a qual a regra de direito postula a existência de uma determinada conexão espacial com o respectivo ordenamento jurídico - não deixa de valer, como se disse, pelo facto de estarem em causa preceitos que dispõem sobre direitos fundamentais dos indivíduos. De resto, já o Supremo Tribunal de Justiça teve ensejo de tomar posição no problema pelo que toca ao aspecto da conexão temporal: foi no Acórdão de 26 de Outubro de 1976, onde expressamente se afirma que as normas constitucionais - a que estava em causa era exactamente a que proíbe toda a discriminação em prejuízo dos filhos nascidos fora do casamento - não tem qualquer vocação de retroactividade. Poderá, aliás - na medida em que se admita a aplicação analógica à norma de conflitos de normas especiais de direito transitório aplicáveis apenas a normas materiais -, sustentar-se que o artº 15º do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966 (que aprovou o Código Civil), ao prescrever que os preceitos atinentes aos regimes de bens estabelecidos nesse corpo de leis só são aplicáveis aos casamentos celebrados até à entrada em vigor daquele Código (mais propriamente os celebrados até 31 de Maio de 1967), na medida em que forem considerados como interpretativos do direito vigente, conjugadamente com a circunstância de a norma do nº 2 do artº 53º - ora questionada -, ainda do mesmo Código, se reportar a um facto concreto, qual seja o da data do casamento, e de se estabelecer no nº 1 do artº 1714º a regra da não alterabilidade, após a celebração do casamento, do regime de bens legalmente fixado, apontará no sentido de os normativos solucionadores dos conflitos de leis no que tange ao regime de bens do casamento não terem eficácia retroactiva. 6. É evidente que, a concluir-se que à nova redacção dada ao nº 2 do artº 53º do Código Civil não deve ser conferida eficácia retroactiva, nem por isso e por aí a questão de constitucionalidade ficaria solucionada. Sublinha-se, uma vez mais, que não está em causa saber se o ordenamento para o qual remeteu a norma de conflitos em apreço contém normação que ofenda interesses públicos excepcionalmente ponderosos; antes está em crise a apreciação da própria norma de conflitos de leis (que teve, ao tempo da sua emissão, por escopo regular esse conflito, regulando-o, porventura sem ofender a Constituição que então imperava) e, assim, saber se, ela mesma, em face da superveniência de uma nova lei fundamental, e porque a opção nela assumida se posta como desconforme com esta (em face da adopção de um critério privilegiador de um estatuto pessoal em detrimento de outro, em contrário de um princípio constante da nova Constituição), pode, posteriormente à aludida nova lei fundamental, ser recusada aplicar perante aquela desconformidade. Neste contexto, tudo redunda numa questão de aplicação da lei no tempo, questão que, mesmo tendo como parâmetro normas de direito internacional privado, não se postará de modo substancialmente diverso da atinente a normas reguladoras de outros ramos do direito (cfr., sobre o problema, Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume I, 313 a 318). Como atrás já se aflorou, a norma de conflitos em causa operou o respectivo comando ao tempo da celebração do casamento, estabelecendo, pois, que ao respectivo regime de bens era aplicável a lei pessoal do marido, não se podendo, pois, dizer, como parece resultar da postura do ora recorrente, que a aplicação daquele normativo só ocorre aquando da decisão a tomar sobre a partilha dos bens do casal que se visa efectuar nos autos de inventário em presença. De acordo com o disposto no nº 1 do artº 1714º do Código Civil, fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, o regime legal de bens legalmente fixado (cfr., sobre a razão de ser desta não alterabilidade, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ºvolume, 397, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, volume I, 2ª edição, 493 e segs. e Maria Rita Aranha da Gama Lobo Xavier, Os limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, 2000, 177). O esgotamento dos efeitos da norma em análise - obviamente entendida esta frase no sentido da definição de qual o regime de bens aplicável ao contrato consorcial em presença - ocorreu, desta arte, num tempo em que ainda se não encontrava em vigor a Constituição de 1976, sendo que a repercussão dessa definição - na estratificação do regime de bens previsto na lei pessoal do marido - não é aqui, como resulta do que acima se veio de dizer, questão que agora se possa apreciar. Não se pode, assim, defender a aplicação de normas ou princípios vertidos na Lei Fundamental de 1976 a um preceito cujo resultado (o da escolha da lei que, em face do conflito de ordenamentos em presença, haverá de reger o regime de bens do casamento) se esgotou num domínio temporal já transcorrido e no qual aquela Lei ainda não pautava o ordenamento jurídico nacional. Como refere Luís de Lima Pinheiro (ob. e volume citados, 317 e 318): “A aplicação às normas de conflitos de normas especiais de Direito transitório que se reportam apenas a normas materiais tem de se fundamentar em analogia. Importa não esquecer que visando a norma de conflitos a regulação das situações transnacionais é sempre relativamente à efectiva sucessão dos sistemas materiais aplicáveis que em última análise têm de colocar-se os problemas da sucessão no tempo das normas de conflitos. A esta solução não obsta a inconstitucionalidade superveniente da norma de conflitos contida no art. 1107.º do Código de Seabra, por utilizar como elemento de conexão a nacionalidade do marido. A lei fundamental não obriga a uma revaloração de todas as situações já constituídas. Por um lado, porque as normas constitucionais conhecem limites temporais de aplicação. A menos que os comandos da lei fundamental reclamem aplicação retroactiva, o que, em princípio, não se verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos passados. O casamento sem convenção antenupcial que desencadeou a fixação do regime de bens ao abrigo da norma de conflitos antiga é um facto passado" (…)”. Conclui-se, pois, que, relativamente a casamento celebrado em Nova Iorque, em 1955, por um português e uma estrangeira, sem convenção, se aplica o regime de bens que resulta da conjugação das disposições dos artigos 1107.º e 1108.º do Código Civil de Seabra, entendendo-se que casaram segundo o regime de comunhão geral de bens (“costume do reino”). Havendo sucessão de leis no tempo, o casamento celebrado sem convenção antenupcial que desencadeou a fixação do regime de bens ao abrigo da norma de conflitos antiga constitui um facto passado. Assim, por força do disposto no artigo 12.º do CC de 1966 (aplicável ex vi, do disposto nos artigos 5.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966), ao casamento assim celebrado em 1955 - devendo atender-se à data da celebração do casamento para determinar o regime de bens - não é de aplicar o regime que resulta da norma de conflitos do artigo 53.º, n.º 2, do CC de 1966, não sendo, na mesma linha, de aplicar o regime imperativo de separação de bens que decorreria da disposição legal do artigo 1720.º deste Código. Passada em revista a decisão recorrida, verifica-se que a mesma teceu considerações de idêntico pendor ao que se vem expondo: “(…) Para responder à primeira das questões previamente enunciadas, importa, antes do mais, descortinar qual o regime de bens do casamento celebrado entre JCV e AH, ambos falecidos e progenitores dos autores, tendo presente que não existe qualquer controvérsia sobre a circunstância de o bem imóvel em causa ter sido adquirido em 14 de Junho de 1983, durante a pendência do matrimónio de ambos, celebrado em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América (no estrangeiro, portanto), em 10 de Dezembro de 1955, sendo AH nacional do Estado Livre Associado de Porto Rico e JCV de nacionalidade Portuguesa, nada tendo sido estipulado quanto ao regime de bens do casamento entre ambos celebrado. Neste âmbito, teremos que ter presente a disposição do art.° 5.°, do Decreto-Lei n.° 47.344/66, de 25 de Novembro, que aprovou o Código Civil actualmente vigente, a qual, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, preceitua que a “aplicação das disposições do novo código a factos passados fica subordinada às regras do artigo 12.° do mesmo diploma, com as modificações e os esclarecimentos constantes dos artigos seguintes”. E também o art.° 15.°, do Decreto-Lei n.° 47.344/66, de 25 de Novembro, o qual, sob a epígrafe “Regime de bens”, estabelece que “O preceituado nos artigos 1717.° a 1752.° só é aplicável aos casamentos celebrados até 31 de Maio de 1967 na medida em que for considerado como interpretativo do direito vigente, salvo pelo que respeita ao n.° 2 do artigo 1739.°.” Ante o exposto e dado que não existe fundamento para considerar, na situação em análise, que o regime previsto nos artigos 1717.° a 1752.° será in casu interpretativo do direito vigente à data do casamento em apreço, terá necessariamente que se concluir que é aplicável ao regime de bens do casamento celebrado entre os pais dos autores a lei que vigorava à data da sua celebração, a qual corresponde ao Código Civil aprovado pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, na sua redacção originária, que era aquela que se aplicava à data em que foi contraído esse matrimónio, dado que aquela “lei nova” apenas dispõe para o futuro, ficando ressalvados os efeitos produzidos pelos factos que a lei pretérita visou regular, pois que a lei aplicável aquando do casamento dispunha sobre as suas condições de validade formal e substancial (cfr. art.° 12.°, n.° 1 e n.° 2, do actual Código Civil). Assim, teremos, antes do mais, que considerar a disposição do art.° 1107.°, do Código Civil de 1867, o qual estatuía que “Se o casamento for contrahido em paiz estrangeiro, entre portuguez e estrangeira, ou entre estrangeiro e portugueza, e nada declararem nem estipularem os contrahentes relativamente a seus bens, entender-se-ha, que casaram conforme o direito commum do paiz do conjuge varão, sem prejuizo do que se acha disposto neste codigo relativamente aos bens moveis O direito comum aplicável à data do casamento sobre o qual nos detemos corresponde à disposição do artigo 1098.°, do Código Civil de 1867, o qual, na ausência de convenção antenupcial, estabelecia qual era o regime de bens supletivo para o casamento, preceituando que “Na falta de qualquer accordo ou convenção, entende-se, que o casamento é feito segundo o costume do reino, excepto se for contrahido com quebra das disposições do artigo 1058.~º. n.°s 1.° e 2.°, porque, nesse caso, entender-se-ha que os conjuges são casados com simples communhão de adquiridos.” O casamento “segundo o costume do reino” vinha consagrado no art.° 1108.°, do Código Civil de 1867, o qual estipulava que tal regime de bens do casamento consistia na comunhão, entre os cônjuges, de todos os seus bens, presentes e futuros, desde que não exceptuados por lei, exclusões que se encontravam desde logo contempladas no art.° 1109.°, desse Código, nelas não se incluindo a aquisição a título oneroso ou gratuito de imóveis antes ou depois do casamento. Deflui de todo o exposto que o regime de bens vigente à data do casamento dos progenitores dos autores e, dada a sua imutabilidade, à data em que terão adquirido o imóvel que nos ocupa, era o regime da comunhão geral de bens.”. Na decorrência destas considerações, compreende-se o juízo decisório expendido ulteriormente na decisão recorrida a respeito das demais pretensões dos autores, que, aliás, não mereceu da parte do réu alguma impugnação, salvo no que toca à “conta bancária”. No que se refere à conta bancária n.º … junto do “Novo Banco, S.A.”, o réu, ora recorrente, vem invocar, nomeadamente, que detinha procuração que lhe permitia movimentar a conta bancária, com plenos poderes, instrumento já antes validado pela instituição bancária, o que lhe conferia plena legitimidade para a movimentação que efetuou. Não nos revemos, de todo, neste entendimento do apelante. Passando em revista a decisão recorrida, a respeito da pretensão dos autores no sentido de ser reconhecido que os fundos depositados na conta bancária n.º … junto do “Novo Banco, S.A.”, pertenciam apenas a JCV e do consequente reconhecimento de que o respetivo saldo integrou a herança deixada por óbito daquele, com restituição pelo réu, a razão da decisão do Tribunal recorrido – cujas considerações nos merecem total subscrição - assentou no seguinte: “(…) Prosseguindo na análise, que deve ser efectuada conjuntamente, das pretensões que sustentam o sétimo e o oitavo pedidos que os autores contra os réus formulam, consistentes no reconhecimento de que o saldo bancário de € 56.802,22 pertencia a JCV e que deverá ser restituído à sua herança, importa decidir se lhes assiste neste segmento razão. Deflui da factualidade julgada provada que, no dia 8 de Setembro de 2016, compareceu perante Notária JCV, o qual, no instrumento epigrafado de “procuração”, cuja cópia consta de fls. 94 a 97 e se dá por reproduzido, declarou, entre o mais, que constituiu seu bastante procurador o réu JC, conferindo-lhe os poderes elencados nesse mesmo instrumento, incluindo para movimentar a conta bancária de que aquele era então titular junto do «Novo Banco, S.A.», com o IBAN PT50 … e contas associadas, podendo efectuar quaisquer depósitos ou levantamentos, assinar e requisitar cheques, para efectuar transferências bancárias nacionais ou internacionais, solicitar cartões de crédito e de débito, extractos de conta e saldos de conta, cancelar contas, podendo ainda constituir depósitos a prazo, fundos, títulos e aplicações em seguros. Também se provou que, por sentença de 27.06.2018, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Sucessões de Farmington, Burlington, Estado de Connecticut, 06032, Estados Unidos da América, revista e confirmada em Portugal, por sentença de 07.02.2020, transitada em julgado no dia 12.06.2020, proferida no âmbito do processo n.° …/…, da 6.a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, considerou aquele Tribunal que o pai dos autores, JCV, “(...) padecia de condição mental, emocional ou física que o tornou incapaz de apreender e avaliar informações, tomar decisões e de executar tarefas inerentes à administração dos seus assuntos e de prover pelas suas necessidades básicas, mesmo com assistência adequada”, mais tendo considerado que aquele “estava incapaz de gerir as suas finanças e cuidar dele próprio”, razões pelas quais foi o mesmo declarado interdito, tendo-lhe sido nomeado tutor DS. Sucedeu que, no dia 07.03.2019, foi efectuada pelo réu uma transferência bancária, no montante de € 56.802,22 (cinquenta e seis mil oitocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), da conta à ordem …, junto do «Novo Banco SA.», apenas titulada por JCV, para a conta com o IBAN PT50 …, junto da «Caixa Económica Montepio Geral», da única e exclusiva titularidade do réu, quando JCV, por si, não se encontrava em condições físicas e psíquicas para efectuar a transferência bancária ou dar instruções ao réu para tal, vindo, aliás, este a falecer logo após, no dia 30 de Março de 2019, em ..., no estado de viúvo de AH. Neste preciso domínio, teremos que ter desde logo presente que a abertura de uma conta bancária de depósitos à ordem consubstancia a celebração de um contrato atípico ou inominado entre o Banco e o cliente, mediante a entrega de determinados fundos por este àquele, que geralmente os exige no exercício e âmbito da sua actividade. Nesta medida e pelo acto da entrega de determinada quantia pecuniária (pois encontramo-nos perante um contrato real quod constitutionem), celebra-se um contrato de depósito bancário (art.° 407.°, do Código Comercial). Este depósito, atenta a qualidade da coisa depositada — coisa fungível —, é um depósito irregular, ao qual se aplicam as regras do mútuo, por força do disposto nos art.°s 1205.° e 1206.°, do Código Civil (neste sentido, vide Araújo de Barros, «Operações Bancárias», in Maia Jurídica, Ano I, n.° 1, pág. 70), e, em especial, atenta a qualidade do depositário (que é uma instituição bancária), as regras do mútuo mercantil, previstas nos art.°s 394.° a 396.°, do Código Comercial, conjugadas com o disposto no art.° 362.°, do mesmo diploma legal. Ora, a conta aberta num banco pode ser individual ou singular, tal como pode ser colectiva ou conjunta, ou seja, independentemente de estarmos perante depósito à ordem ou a prazo, a conta de depósito pode ter como titular uma ou mais pessoas. Sendo a conta colectiva ou conjunta, cada um dos seus co-titulares tem plena liberdade de movimentar os seus fundos a débito ou a crédito, sem necessidade de autorização ou ratificação por parte do outro ou dos outros depositantes ou co-titulares. E é por isso que, como bem se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2007 (acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 9020/2007-6), “Há como que uma relação de solidariedade de representação entre os co-titulares, mercê da aceitação da abertura de conta em tais circunstâncias. Daí o designar-se a conta conjunta ou colectiva como conta solidária. Na verdade, esta conta, denominada colectiva ou conjunta, não pode deixar de se regular pelos princípios que constituem a solidariedade activa, no Código Civil." E, tendo lugar a aplicação à conta conjunta do regime legal previsto para a solidariedade activa, conforme se destaca no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2004 (Processo n.° 511/2004-7, com texto integral disponível in www.dgsi.pt), “O regime da solidariedade da conta respeita sobretudo às relações entre o banqueiro e o cliente, na medida em que fixa o regime da movimentação do seu saldo pelos seus titulares.”. Neste domínio e no que tange ao regime legal da solidariedade das obrigações, preceitua o art.° 516.°, n.° 1, do Código Civil, sob a epígrafe “Participação nas dívidas e nos créditos” que “Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou [c]redores solidários comparticipam em partes iguais na dividia ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que só um deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do rédito.” O aludido preceito consagra, assim, uma presunção de titularidade do saldo depositado numa conta conjunta em partes iguais, por parte de todos os seus titulares. Trata-se de presunção legal ilidível mediante prova em contrário (cfr. art.° 350.°, n.° 2, do Código Civil), podendo demonstrar-se que cada um dos titulares contribuiu em distinta medida para a acumulação dos capitais depositados. Neste conspecto, o direito de crédito do cliente gerado pelo contrato de depósito celebrado com o banco (devedor da prestação de restituição) e que pode ser exercido por qualquer dos titulares da conta, não se confunde com o direito real de propriedade sobre o dinheiro depositado. O depositante, como credor solidário, tem apenas um direito de crédito, isto é, o direito de receber a prestação a que está adstrito o banco devedor, consistente na obrigação de entrega da importância do depósito. E, enquanto o direito de crédito é atribuído por igual a todos os titulares da conta, a importância do depósito pode pertencer a um só deles ou mesmo a um terceiro e é evidente que, na totalidade, não pode integrar-se no património de todos. Daí a já expressa regra do citado art.° 516.°, do Código Civil. No caso vertente, sabemos que foi aberta uma conta singular, na titularidade exclusiva de JCV, pelo que se presume que os fundos nela depositados apenas ao mesmo pertenciam, tendo o mesmo plena liberdade de movimentação a crédito e a débito dessa conta. Não se provou que o réu fosse também titular da conta bancária em causa. Dúvidas não subsistem, portanto, que terá que ser reconhecido que os fundos depositados naquela conta apenas a JCV pertenciam. Sucedeu que JCV outorgou uma procuração, por efeito da qual constituiu seu bastante procurador o réu JC, conferindo-lhe os poderes elencados nesse mesmo instrumento, incluindo para movimentar a débito e a crédito a conta bancária a que se vem aludindo, assim ficando o réu legitimado a efectuar quaisquer depósitos ou levantamentos, assinar e requisitar cheques, para efectuar transferências bancárias nacionais ou internacionais, solicitar cartões de crédito e de débito, extractos de conta e saldos de conta, cancelar contas, podendo ainda constituir depósitos a prazo, fundos, títulos e aplicações em seguros. Importa, por isso e antes do mais, com base na factualidade que ficou apurada, proceder à análise e qualificação jurídica das declarações negociais exaradas na dita procuração. Com efeito e de acordo com a noção legal contida no art.° 262.°, n.° 1, do Código Civil, diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos. A disciplina da procuração vem regulada nos art.°s 262.° a 269.°, do Código Civil. A procuração constitui, pois, “... um instrumento de representação, mediante o qual o representante (procurador) actua em nome do representado (constituinte), sendo na esfera jurídica deste que se produzem desde logo todos os efeitos (artigo 258.° do Código Civil).” — cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.05.2006, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 0621052, relatado pelo Exm.° Juiz Desembargador Alziro Cardoso. Como se sabe, a procuração não se confunde com o mandato. Com efeito, o art.° 1154.°, do Código Civil, define o contrato de prestação de serviços como sendo aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição. A distinção entre a procuração e o mandato não impede que possam coexistir e associar- se ou que subsistam isoladamente. Isto é, pode existir mandato sem representação e pode existir procuração sem mandato, tal como pode existir mandato com representação por via da outorga de procuração. Quando a procuração existe autonomamente em relação ao mandato e o procurador não se encontra vinculado à prática de qualquer acto jurídico, não obstante se mostrar habilitado a praticá-lo, estamos perante um negócio jurídico unilateral — cfr. o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.05.2006, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 0621052, relatado pelo Exm.° Juiz Desembargador Alziro Cardoso. Na situação vertente, a procuração habilita o réu à prática de determinados actos jurídicos, pelo que foi também entre JCV e o réu celebrado um contrato de mandato. Assim, quando, por via da procuração, for celebrado um contrato de mandato, como o foi na situação vertente, não poderá deixar de ter aplicação a disciplina jurídica prevista especificamente para este tipo negocial. De acordo com o que estipula o art.° 1155.°, do Código Civil, o mandato constitui uma das modalidades do contrato de prestação de serviços, o qual, por sua vez e face à definição legal facultada pelo art.° 1157.°, do Código Civil, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra. O acto jurídico pode definir-se como consolidando uma “... manifestação da vontade humana (por exemplo, um voto, um contrato).” — Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, in “Introdução ao Estudo do Direito”, 5.a Edição, LEX, Lisboa, 2000, pág. 272. No âmbito dos actos jurídicos, pode ainda proceder-se à distinção entre duas categorias: o “acto jurídico stricto sensu” e o “negócio jurídico”. Como se sabe, “O acto jurídico em sentido estrito, ou simples, correponde à situação em que o agente tem liberdade de optar quanto à acção, mas não tem vontade negoáal. É o caso de inúmeros actos notariais ou de confissão do réu em tribunal. O negócio jurídico corresponde à situação em que o agente visa produpr certos efeitos, mais ou menos, precisos. Há, agora, uma dupla liberdade de opção: quer quanto à actuação, quer quanto à obtenção de determinados efeitos jurídicos em resultado dessa actuação. É, paradigmaticamente, o caso dos contratos.” (Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, in “Introdução ao Estudo do Direito”, 52 Edição, LEX, Lisboa, 2000, pág. 272). O mandato presume-se gratuito, excepto se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão, caso em que se presume oneroso (art.° 1158.°, n.° 1, do Código Civil). O mandato pode ser celebrado com ou sem representação, consoante e respectivamente, o mandante tenha conferido ao mandatário poderes de representação para agir por conta e em nome daquele ou não tenha conferido esses poderes ao mandatário, caso em que este actuará em nome próprio e adquire os direitos, bem como assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, mesmo que o mandato seja conhecido dos terceiros que participam nos actos ou sejam destinatários deles, ficando obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato (cfr. art.°s 1178.°, n.° 1 e n.° 2, 258.° a 269.°, 1180.° e 1181.°, n.° 1, todos do Código Civil). Para o que nos interessa e no âmbito do regime legal do contrato de mandato são, então, as seguintes as obrigações do mandatário (art.° 1161.°, alíneas a) a e), do Código Civil): a)Prática dos actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante; b)Prestação das informações solicitadas pelo mandante, relativas ao estado da gestão; c)Comunicação ao mandante, com prontidão, da execução do mandato ou das razões pelas quais o não executou, caso assim proceda; d)Prestação de contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir; e)Entrega ao mandante do que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no fim do contrato. O mandatário deve ainda pagar ao mandante os juros legais correspondentes às quantias que recebeu dele ou por conta dele, a partir do momento em que devia entregar-lhas, ou remeter- lhas, ou aplicá-las segundo as suas instruções (art.° 1164.°, do Código Civil). Por outro lado, sobre o mandante impendem as seguintes obrigações previstas no art.° 1167.°, do Código Civil: a)Fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não for convencionada; b)Pagar-lhe a retribuição que ao caso competir, e fazer-lhe provisão por conta dela segundo os usos; c)Reembolsar o mandatário das despesas feitas que este fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais desde que foram efectuadas; d)Indemnizá-lo do prejuízo sofrido em consequência do mandato, ainda que o mandante tenha procedido sem culpa. Ora, na situação vertente, constata-se, por um lado, que, aquando da transferência em causa (no dia 7 de Março de 2019), o mandante havia já sido declarado interdito nos Estados Unidos da América (por decisão de 27 de Junho de 2018), mas essa decisão apenas veio a ser reconhecida no ordenamento jurídico interno por decisão transitada em julgado no dia 12.06.2020, depois da dita transferência bancária. Veja-se que é consabido que entrou em vigor, no passado dia 10.02.2019, a Lei n.° 49/2018, de 14 de Agosto (cfr. seu art.° 25.°, n.° 1), a qual veio criar o regime do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação previstos no Código Civil. A referida Lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, devendo o juiz utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações que se revelem necessárias (cfr. art.° 26.°, n.° 1 e n.° 2, da mesma Lei; art.°s 6.° e 547.°, do Código de Processo Civil). Assim sendo e porque o art.° 26.°, n.° 7, da Lei n.° 49/2018, de 14 de Agosto, determina que os tutores que foram nomeados antes da sua entrada em vigor passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime dessa lei e sendo-lhes atribuídos, por força do n.° 4, dessa mesma norma, poderes gerais de representação, o tutor nomeado ao abrigo da lei anterior terá que passar a acompanhante, com os indicados poderes. Neste âmbito e procedendo à anunciação das causas de caducidade do mandato, preceitua o art.° 1174.°, alínea b), do Código Civil, que o mandato caduca por sentença de acompanhamento do mandante ou do mandatário, quando essa sentença, relativamente aos actos abrangidos pelo mandato, atribua poderes de representação ao acompanhante ou determine a necessidade de autorização prévia. De seu lado, o art.° 1175.°, do Código Civil, estabelece o seguinte regime no que toca à caducidade do mandato em caso de morte ou acompanhamento do mandante: “1 - A morte do mandante ou a sentença de acompanhamento a ele relativa não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. 2 - Nos outros casos, só o faz caducar a partir do momento em que sejam conhecidas do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o ma.nd.ante ou seus herdeiros.” Assim e se o mandato tiver sido concedido também no interesse do mandatário, mantém a sua validade e eficácia depois do evento consistente no decretamento da interdição ou do acompanhamento do mandante e, não sendo conferido no interesse do mandatário, apenas caduca a partir do momento em que a causa de caducidade seja conhecida do mandatário. O que seja o interesse do mandatário constitui um conceito fluído e vago que necessita de concretização mediante um determinado quadro factual que evidencie qual seja esse interesse, o qual, em todo o caso, pode revestir natureza material, tal como pode tratar-se de um interesse de índole moral ou espiritual — cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-10-1993, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 083977, relatado pelo Exm.° Juiz Conselheiro Costa Raposo. Assim, para que exista um mandato estabelecido no interesse comum do mandante e do mandatário, “... é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa (v.g. um contrato-promessa válido), i.é., que o mandante queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro têm direito.” — cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.06.1997, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 97A140, relatado pelo Exm.° Juiz Conselheiro Lopes Pinto. Caso emblemático desse interesse é o de qualquer dos mandatários ter contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio ou o direito a uma prestação — cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.05.2006, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 0621052, relatado pelo Exm.° Juiz Desembargador Alziro Cardoso. Também no antecedente sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 9 de Julho de 2003, in CJ - IV, 2003, p. 82-86. Neste âmbito, importa concluir que “Na procuração irrevogável, a existência de um interesse na procuração, para lá do interesse do mandante, há-de resultar da relação que lhe está subjacente, cuja existência e contornos não têm, no mandato com representação, que figurar necessariamente do texto da própria procuração, podendo extrair-se esse concreto interesse dos termos da procuração ou dos factos que integrem uma relação jurídica vinculativa subjacente à outorga da procuração exteriores à mesma, mas com esta conexos. A mera convenção de irrevogabilidade não implica, sem mais, a irrevogabilidade da procuração (art° 265°, n° 2 do CC), devendo ser considerada ineficaz tal convenção se da relação basilar resultar que o interesse é apenas do mandante.” — cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2004, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 2456/2004-6, relatado pelo Exm.° Juiz Desembargador Carlos Valverde; no mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.05.2005, com texto integral acessível in www.dgsi.pt — Processo n.° 3651/2005-6, relatado pelo Exm.a Juiz Desembargadora Fátima Galante. No caso vertente a sentença que decretou a interdição atribuiu poderes de repres[e]ntaçção ao tutor (acompanhante) e não se vislumbra em que medida o mandato possa ter sido conferido no interesse do réu, porquanto da procuração que o formaliza não se extrai que o mandante tenha querido vincular-se a alguma prestação a que o mandatário ou terceiro tivessem direito, pois que os actos jurídicos que o mandatário teria que praticar (incluindo a movimentação de uma conta bancária do mandante e contas associadas, podendo efectuar quaisquer depósitos ou levantamentos, assinar e requisitar cheques, para efectuar transferências bancárias nacionais ou internacionais, solicitar cartões de crédito e de débito, extractos de conta e saldos de conta, cancelar contas, podendo ainda constituir depósitos a prazo, fundos, títulos e aplicações em seguros) destinam-se, pela sua natureza, à gestão do património do mandante, tanto mais que era o réu quem diligenciava pelo pagamento de despesas do mandante a seu pedido (facto r)). Daqui deflui que o mandato caducou com a sentença de acompanhamento do mandante, em consonância com o art.° 1174.°, alínea b), do Código Civil, mas com efeitos reportados ao momento em que essa circunstância passou a ser conhecida do mandatário, nos termos previstos no art.° 1175.°, n.° 1, do Código Civil. Não se tendo provado que o réu teve conhecimento da declaração de interdição do mandante antes de ter efectuado a transferência em causa, o mandato não havia caducado nesse momento, tendo o réu poderes para movimentar a conta bancária a débito. Não obstante, tendo o mandatário poderes formais para praticar aquele acto, importa agora apreciar se exerceu os poderes que lhe foram conferidos pelo mandante de forma abusiva, extravasando o conteúdo material do mandato. A este propósito, tem sido prolífera a jurisprudência, sobre a qual importa que nos debrucemos antes de conferir a solução final à questão sobre a qual nos detemos, enunciando-se, com relevância para o caso os seguintes arestos, todos acessíveis in www.dgsi.pt. assim sumariados: •Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.10.2003 — processo n.° 03B2201: “1. Existe abuso de representação, previsto pelo arf. 269o do C. Civil, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza consáentemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado. 2.Para averiguar da finalidade da representação, sobretudo nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representante, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações. 3.Porque, no que concerne ao conteúdo, o negócio representativo é do representante (arf. 258o do C. Civil), nele se radicando a declaração e vontade negociais, pode sempre o representado invocar a nulidade de um contrato de compra e vendia por ele celebrado com terceiro, no âmbito da sua actividade de representante.(...)" •Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.03.2004 — processo n.° 404/04-2: “(...) VI — No abuso do mandato representativo (arfs 1178o n01 e 269o C.Civ.), verifica-se que o mandatário pratica acto dentro dos limites formais dos poderes conferidos, mas contrariamente aos fins da representação. VII— O mandtatário é devedor de uma vincadía obrigação de lealdade — traduz-se tal obrigação no facto de o mandatário dever executar a missão de que foi incumbido no interesse do mandante, com exclusão dos interesses próprios ou de terceiro. VIII— Verifica-se abuso de representação quando o mandatário, advogado de profissão, em vez de realizar a prestação de que estava incumbido à pessoa colectiva credora do mandante, paga a uma pessoa singular que não era credora do dito mandante (ainda que gerente da dita pessoa colectiva), contribuindo para o enriquecimento injustificado do património do terceiro.” •Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.02.2015 — processo n.° 164/05.7TBVLF.C2: “(...) II - Mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração. De comum, têm a circunstânáa de quer o mandatário, quer o procurador agirem por conta do mandante ou dominus. O mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração. IV- É a relação subjacente que vai definir o conteúdo material da procuração, delimitar os poderes e modelar a atuação do procurador, ou seja, é pela relação subjacente que ele deve nortear a sua atuação. Em situações de alguma indefinição ou em caso de dúvida, será em função da relação subjacente que o procurador pode perspetivar qual seja o interesse do dominus. V- Verifica-se o abuso de poderes quando, formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, se desvia da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado. Já no excesso de mandato o procurador atua formalmente para além dos limites dos poderes conferidos. VI- Não deve confundir-se o abuso de representação (abuso de poderes) com a representação sem poderes.” •Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2022 — processo n.° 2180/19.2T8PTM.E1.S1: “I - Na representação voluntária, que é formalizada através de procuração (art. 262° do CC), o representante atua em nome do representado, devendo agir com imparcialidade, probidade, e fiducia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, sob pena de incorrer em abuso de representação; II- A autorização para vender um imóvel, "pelo preço, cláusulas e condições que entender mais conveniente, podendo negociar consigo mesmo”, não equivale a carta branca para no negócio descurar o interesse do representado, que naturalmente pretenderia que a venda fosse feita pelo valor corrente de mercado; III- Age com abuso de representação o procurador que celebra escritura de venda do imóvel consigo próprio por um preço de cerca de 70% do valor de mercado; IV- O negócio feito com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, ou seus herdeiros em caso de falecimento daquele (arts. 268o e 269o do CCivil); V— Ser colocado como co-titular de uma conta bancária solidária - modalidade em que qualquer dos titulares pode, sozinho, proceder à movimentação da conta — significa apenas que se ficou autorizado a movimentar a conta, não o direito de se apropriar dos fundos nela depositados se os mesmos pertenciam exclusivamente ao outro titular.” Assim, tendo o réu, sem ser o proprietário do saldo de € 56.008,22, depositado na conta bancária da exclusiva titularidade de JCV, que se concluiu apenas a este pertencer, transferido essa quantia para uma conta sua, sem sequer alegar qualquer causa que justifique tal actuação e demonstrado que está, aliás, que aquele mandante não se encontrava em condições físicas e mentais de lhe dar instruções nesse sentido, tendo, aliás, vindo a falecer três semanas após aquela transferência, constata-se que o réu, tando embora actuado ao abrigo dos poderes formais que lhe foram conferidos pelo mandante, fê-lo abusivamente, extravasando claramente o âmbito material ou substancial do mandato, que não foi conferido certamente para que o réu se apropriasse sem causa dos saldos de contas bancárias do mandante, nem do saldo que, após a sua morte, iria integrar a sua herança. A consequência para o exercício abusivo dos poderes que foram conferidos ao mandatário aqui réu pelo mandante, é, ao abrigo do que preceituam os art.°s 268.° e 268.°, do Código Civil, a ineficácia do acto jurídico praticado pelo mandatário com abuso de representação, quer perante o mandante em vida deste, que, após o seu óbito, perante os seus herdeiros, assim devendo o saldo transferido retornar ao património hereditário, ao qual pertence. Dúvidas não subsistem, portanto, que terá que ser reconhecido que os fundos depositados naquela conta apenas a JCV pertenciam, tendo, portanto que proceder a pretensão dos autores mediante a qual pretendem o reconhecimento da propriedade desse saldo a favor do seu antecessor aquando do seu óbito e, consequentemente, que essa quantia integrou acervo hereditário deixado por óbito daquele, à sua herança devendo ser o saldo restituído, pelo que terão que proceder também o sétimo e o oitavo pedidos formulados pelos autores.”. De facto, “verifica-se o abuso de poderes quando, formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, se desvia da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2015, Pº 164/05.7TBVLF.C2, rel. ISABEL SILVA). Encontra-se bastamente explicitado na decisão recorrida que, muito embora o réu detivesse (formalmente) o instrumento de procuração que lhe permitiu (como fez) movimentar a débito a conta bancária do falecido, certo é que, o fez incorrendo em abuso de representação, retirando da conta bancária do falecido uma elevada soma – de € 56.008,22 – que apenas a este pertencia e transferindo tal valor para uma conta da titularidade do réu, sem causa justificativa, extravasando o âmbito material ou substancial do mandato, “que não foi conferido certamente para que o réu se apropriasse sem causa dos saldos de contas bancárias do mandante, nem do saldo que, após a sua morte, iria integrar a sua herança”. Pode concluir-se que: Tendo o réu retirado da conta bancária apenas titulada pelo falecido uma elevada soma – de € 56.008,22 – que apenas a este pertencia e que transferiu para uma conta da sua titularidade, apropriando-se do respetivo saldo, o que fez sem causa justificativa e sem indicação de finalidade, extravasou o âmbito material ou substancial do mandato que foi conferido ao réu, por instrumento de procuração, incorrendo em abuso de representação – cfr. artigos 268.º e 269.º do CC. A ineficácia da movimentação bancária face ao proprietário (herança do mesmo) deve, em conformidade, obter o respetivo reconhecimento da propriedade do saldo em questão, com a determinação da restituição do valor correspondente, conclusão a que chegou o Tribunal recorrido e que não merece, igualmente, alguma censura. Improcedem as conclusões que, em contrário, são expendidas pelo apelante. Quanto ao mais – e excetuadas as pretensões antagónicas com as formuladas pelos autores e o segmento em que foi julgada procedente a reconvenção - toda a demais factualidade em que o réu assentou a pretensão reconvencional não resultou apurada, constando do rol dos factos não provados, razão pela qual não merece algum reparo a decisão recorrida que julgou, relativamente a esses segmentos, improcedente a reconvenção, com os seguintes fundamentos: “(…) De igual modo, não tendo o réu / reconvinte conseguido provar (nos termos previstos pelo art.° 342.°, n.° 1, do Código Civil) os factos que invocou para sustentar o seu pedido de condenação dos autores / reconvindos no pagamento de € 7.000,00, a título de indemnização pelas despesas que alegadamente suportou com serviços de luz, gás, tvcabo, condomínio, impostos, água, durante o tempo em que JCV era usufrutuário do imóvel doado, fica, por essa razão, afastada a obrigação de indemnizar a cargo dos autores / reconvindos, o que determina igualmente a sua absolvição desse pedido. Por outro lado, também não ficaram apurados quaisquer danos não patrimoniais ocasionados por conduta ilícita, culposa dos autores / reconvindos e geradora de perdas “morais” na esfera jurídica do réu / reconvinte, assim faltando todos os pressupostos essenciais constitutivos da responsabilidade civil extracontratual dos autores. Em suma, no caso que nos ocupa, atenta a matéria que resultou demonstrada, dela não se extrai que autores / reconvindos tenham praticado alguma conduta voluntária ou omitido uma actuação exigível que concretizem a violação objectiva de um direito subjectivo do réu ou de norma legal destinada à tutela de interesses alheios. Em consequência, nenhum juízo de culpa efectiva ou presumida pode incidir sobre algum comportamento dos autores / reconvindos que se possa reputar ilícito, nem a título de dolo, nem sequer de negligência, cumprindo ainda destacar que não existe qualquer presunção legal de culpa que sobre aqueles possa incidir. Pelos fundamentos que ficaram aduzidos, não se encontra, desde logo, verificado um dos pressupostos essenciais constitutivos do direito invocado pelo réu/reconvinte, isto é, não se tendo demonstrado a prática de qualquer omissão ou conduta ilícita que se possa imputar aos autores / reconvindos, não importa apurar se estes agiram com culpa, nem se foram produzidos danos originados por omissão ou acção sua, pois não existe qualquer relação de causalidade a estabelecer entre um facto ilícito e culposo e danos que se tivessem apurado, não estando, pois reunidos todos os legais pressupostos que permitiriam responsabilizar os autores / reconvindos pela reparação de danos sofridos pelo réu / reconvinte. Não tendo o réu /reconvinte logrado provar, como lhe incumbia, todos os pressupostos constitutivos do seu direito (art.° 342.°, n.° 1, do Código Civil), outra solução se não poderá impor que não seja a de julgar improcedente o pedido de condenação dos autores / reconvindos no pagamento de indemnização no valor de € 10.000,00, com a sua inerente absolvição do pedido reconvencional nessa parte (…)”. Em face do exposto, inexiste motivo para a revogação ou alteração da decisão proferida, assente na correta interpretação e aplicação do regime jurídico que considerou. Soçobram as conclusões recursórias em contrário expendidas pelo apelante. * Em face do exposto, a apelação deverá ser julgada improcedente, com manutenção da decisão recorrida. * De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses. Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”. Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre o apelante (réu), que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC. * 5. Decisão: Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pelo réu/apelante. Notifique e registe. * Lisboa, 26 de outubro de 2023. Carlos Castelo Branco Paulo Fernandes da Silva Pedro Martins |