Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3/23.7PJSNT-A.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: FORTES INDÍCIOS
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - Pretende o Recorrente que o Tribunal valore a prova de forma diferente, menorizando o seu poder de demonstração dos factos indiciado. Porém, a prova apreciada é sólida e não merece derrogação por confronto com outros meios de prova relevantes. As conclusões de facto retiradas daquilo que os documentos exibem nos autos são coerentes e não merecem crítica.
II - Mais do que um crime por cada peça detida, entende-se que o Arguido se terá determinado a adquirir as peças com referência a cada um dos veículos de onde provêm, num mesmo momento, ao abrigo de uma mesma resolução criminosa.
III - O raciocínio exibido e fundamentado não tem erros que o inquinem. Existe perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, de que o Recorrente possa continuar a actividade criminosa, bem como a necessidade de reconhecimento da gravidade da sua conduta com a sujeição a medida de coacção por existir risco de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
IV – A medida de prisão preventiva aplicada é a que se justifica e adequa ao caso concreto. É necessária, adequada e proporcional, pelo que se mantém inalterada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo de Instrução Criminal de Sintra – J1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferido despacho, com o seguinte teor:
«Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva – artºs 191º, 193º, 202º, nº 1, al. a) e d) – por referência aos artºs 231º, nº 1 e 4, do Código Penal – 204º, als. a), b) e c), todos do CPP.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido AA formulando as seguintes conclusões:
«1) No caso dos presentes autos é notório o erro notório na apreciação da prova não tendo o Mmo JIC procurado dotar-se de todos os elementos para poder decidir esclarecidamente.
2) Após as buscas efetuadas em 17/10/2023 nunca o arguido foi chamado a prestar quaisquer esclarecimentos ou declarações, nunca lhe tendo sido possível previamente explicar o que quer que fosse, sendo que no dia das buscas (e apesar de a PSP não fazer constar do auto) no próprio dia o proprietário da viatura ... (G3) deslocou-se à oficina do arguido tendo pessoalmente falado com a PSP e o proprietário das viaturas …(G1) falou telefonicamente com a PSP, tendo ambos assumido a posse/propriedade daqueles veículos.
3) Após as buscas, esperava o arguido ser chamado de forma a poder justificar tudo e apresentar a prova documental que estivesse ao seu alcance, mas também esperava que fossem chamados os proprietários das viaturas para virem aos autos explicarem se o arguido tinha alguma intervenção na falsificação daquelas viaturas.
4) Assim, imputa-se ao arguido, fatos sem que sequer se procurasse ouvir previamente os proprietários das viaturas em causa.
5) Analisando a prova dos autos, os autos e o despacho de apresentação do MP, as únicas testemunhas ouvidas em sede de inquérito foram o BB (proprietário da viatura ... onde foi aposta uma matrícula falsa e que originou a presente investigação) e o CC.
6) O CC disse em súmula que foi o intermediário na aquisição da viatura ... porque o BB não tinha conta e que nunca sequer viu a viatura.
7) O BB disse em súmula que:
•- o carro estava acidentado e com avaria eletrónica
•- transportou a viatura para Portugal em Setembro de 2021 tendo a mesma ido para a oficina ... do arguido
•- As peças foram compradas na ... com fatura em nome da ...
•- foi-lhe pedido cerca de 1.500,00€ para as peças
•- Viatura saiu da oficina do arguido para a ...
•- Não esteve presente na retirada da viatura da oficina do arguido nem na entrega do mesmo nas oficinas da ...
8) Foi pelo MP nos autos solicitado à PSP que fossem ouvidos como testemunhas as pessoas que conduziram os reboques da oficina do arguido para a oficina da ... em ..., e posteriormente o condutor do reboque que transportou o veículo da oficina da ... de ... para a ... onde foi detetado que a viatura tinha uma matrícula que não correspondia a essa viatura, nunca tendo tais testemunhas sido ouvidas.
9) Assim, é claro que a viatura entrou na ... com uma matrícula que lhe não pertencia, mas não havendo indícios de se essa matrícula foi aposta pelo arguido (o que o mesmo negou tendo dito que nunca viu a viatura com matrícula) ou se foi posta por algum condutor de reboque com o intuito de não transportar a viatura sem matrícula e assim até poder ser mais facilmente sujeito a fiscalização.
10) Ora, que interesse teria ou o que ganharia o arguido para colocar uma matrícula numa viatura que não era furtada e que iria sair da sua oficina de reboque?
11) O que é certo é que ao não se inquirir os condutores dos reboques não se consegue com segurança indiciar tal fato ao arguido.
12) Existe depois a informação nos autos de que a viatura ... em causa teria peças na frente de uma outra viatura furtada em 08/07/2021 (NUIPC 762/21.1PTLSB), mas sem que exista uma descrição dessas peças, pelo que não se sabe se trata de um parafuso apenas ou de um radiador, ou do que quer que seja.
13) Mas, mais importante é que a viatura ...  cinzenta furtada no âmbito do Proc. 762/21.1PTLSB foi furtada em data anterior, em 08/07/2021 (cerca de 2 meses antes) da vinda da viatura ... do BB para Portugal em 09/2021, não resultando dos autos que as peças ou a viatura furtada não tenham ido para a ... e aí colocadas, tendo a viatura de BB já viajado para Portugal com as peças furtadas apostas, e isto por três razões:
a. - primeiro porque a data do furto é anterior cerca de 2 meses à vinda da viatura de BB para Portugal
b. - segundo porque se analisarmos as fotos da viatura de BB quando foi adquirida na ... (fls. 141 a 144 dos autos) e as fotos da viatura apreendida vê-mos uma semelhança muito grande (para não dizer igual) na frente do carro, não parecendo ter sido adicionadas quaisquer peças e tendo o arguido referido que apenas reparou o para choques e que não substituiu qualquer peça na frente
c. – terceiro porque o valor de peças que o arguido cobrou ao BB (fls 162 dos autos que corresponde a uma fatura de aquisição de peças na ...) é igual ao valor que o BB refere nas suas declarações ter-lhe sido pelo arguido pedido e por este pago, não sendo credível atentas as regras da experiência comum que o arguido fosse colocar peças que não cobrasse e muito menos fazer de “bom samaritano” para adquirir peças de uma viatura furtada, coloca-las e depois não as cobrar.
14) Assim, quanto à viatura ... (pontos 8 a 13 do despacho de apresentação do MP) que deu origem aos presentes autos não existe nos autos qualquer forte indício de que tenha sido o arguido a apor a chapa de matrícula ou a colocar na viatura quaisquer peças de viatura furtada.
15) Quanto às peças furtadas encontradas na oficina do arguido (ponto 17 do despacho de apresentação do MP), duas considerações há a fazer:
a. - a primeira de que é imputado um crime por cada peça automóvel, mas sendo certo que as peças e20, e21 e e30 pertencem à mesma viatura, assim como as peças e12 e 19 também pertencem à mesma viatura, assim sucedendo também com as peças e16, e17 e a6 que igualmente pertencem à mesma viatura, podendo estar em causa nesses casos não 8 crimes de recetação, mas apenas 3;
b. - Apesar de o arguido não ter sido ouvido antes, tal como esperava, em sede de primeiro interrogatório judicial, este disse ter subarrendado aquela parte da oficina como armazém, identificando cabalmente com nome completo, número de cartão de cidadão e número de carta de condução a pessoa a quem subarrendou tal espaço, referindo ser pertença daquele aquelas peças e que o arguido desconhecia a sua existência, carecendo nos autos nessa parte de melhor inquérito.
16) Ainda quanto ao ponto 17 do douto despacho de apresentação, encontram-se em causa o furto de uma viatura (ou a sua recetação) e a falsificação quanto a duas viaturas, mas:
a. - Quanto a ambas as viaturas ..., não foi nos autos inquirido o proprietário da viatura com a matricula AF-..-GU (objeto G1 apreendido), apesar de ter o mesmo telefonicamente falado por telefone com a PSP no dias das buscas em 17/10/2023, não se podendo assim ter como indiciado que o arguido sabia a proveniência da viatura ... furtada em ... que tinha aposta chapa de matricula falsa e que não estava apenas a tirar peças de uma viatura para outra porque o proprietário da viatura AF-..-GU (objeto G1 apreendido) tivesse levado ambas as viaturas dizendo ao arguido que a de matricula francesa serviria como dadora de peças porque a tinha comprado e não a conseguia legalizar em Portugal tal como o arguido referiu, não havendo nos autos indícios de que o arguido saberia a proveniência da viatura furtada e não havendo indícios de que essa viatura furtada não tenha sido trazida pelo proprietário da viatura AF-..-GU (objeto G1 apreendido) e que este nada tivesse dito ao arguido sobre a sua proveniência, sendo que apenas com a inquirição daquela testemunha se teriam obtido ou aniquilado tais indícios, carecendo assim nesta parte também os autos de melhor inquérito.
b. - Quanto à viatura ... ... (objeto G3 apreendido), apesar de o proprietário da mesma ter estado presente no dia das buscas e nada disso constando nos autos, certo é que conforme se afere das fotos da viatura Seat (vd. fls 274) a pintura dessa viatura é antiga mostrando-se já queimada pelo sol, resultando ainda de fls. 274 que apenas após a remoção da pintura foi possível verificar a alteração de chassi (o que não era visível antes da remoção da pintura). Ora, se a pintura é velha é porque a alteração já foi feita há mais tempo (possivelmente há diversos anos olhando para a forma como a pintura está “queimada” pelo sol), pelo que como se afere que o arguido fez tal adulteração de chassi ou sequer que sabia dessa adulteração de chassi? Acresce que o arguido juntou aos autos prova documental sobre a aquisição pelo DD desse chassi no estado em que o mesmo estava e indicando o contato do vendedor e do comprador que adquiriu no ... aquele chassi de viatura naquele estado, pelo que igualmente carecem os autos de melhor inquérito nesta parte.
c. - Viatura ...(objeto P1 apreendido) – o arguido referiu desconhecer a pessoa que havia deixado tal viatura no seu parque de carros, juntando aquando do seu interrogatório imagens das suas câmaras de CCTV que demonstram à hora de almoço um reboque entrar no parque de viaturas e descarregar aquela viatura, sucedendo por vezes descarregarem alguns carros avarias ou acidentado no seu parque de estacionamento e ficando o arguido alguns dias sem saber de quem são até alguém contactar o mesmo nesse sentido. Referiu o arguido que a viatura foi descarregada já com aquela matrícula e que o arguido desconhecia que a mesma não pertencesse àquele carro, protestando indicar depois nos autos a identificação da pessoa que lhe havia deixado tal viatura, não resultando dos autos indícios de que tenha sido o arguido a adulterar esse elemento identificativo do veículo ou sequer que soubesse dessa adulteração, carecendo os autos nesta parte também de melhor inquérito.
17) Justificou o arguido o dinheiro que lhe foi apreendido em casa com faturas emitidas no âmbito da sua atividade laboral, com serviços de pintura e mecânica, indicando nessas faturas os clientes que usufruíram o serviço e que fizeram o pagamento a dinheiro.
18) Assim, não resultam dos autos fortes indícios de que o arguido haja praticado os crimes que lhe vem imputados, e essa ausência de indícios resulta tanto da própria prova dos autos como também da ausência de atos de inquérito que se mostram necessários até para a verificação desses indícios, tal como a inquirição da pessoa que subarrendou parte da oficina e dos proprietários do ... e das ...s.
19) Quanto aos perigos do art.º 204º do CPP, desde logo se diga que se o arguido pretendesse fugir tê-lo-ia feito logo após as buscas em 17/10/2023 mas, ao invés disso, continuou diariamente a ir trabalhar no mesmo local e a residir na mesma habitação, sendo que todos os demais perigos ficariam de todo anulados se o arguido ficasse proibido de se deslocar à sua oficina, bem como de ter quaisquer contatos com funcionários, clientes ou quaisquer outras testemunhas no processo.
20) Sendo a prisão uma solução de último recurso, e sendo a regra a liberdade das pessoas, seriam suficientes as medidas de coacção de TIR já prestado (art.º 196º), reforçado com a medida de coação de apresentações diárias (art.º 198º), suspensão do exercício de profissão ligada ao ramo automóvel (al. a) do n.º 1 do art.º 199º), proibição de se deslocar à sua oficina e proibição de contatar com os seus funcionários, clientes e quaisquer testemunhas nos autos (al. d) do n.º 1 do art.º 200º), todos os artigos do Código de Processo Penal, parece-nos serem essas medidas suficientes, adequadas e proporcionais.
21) Ainda que esse não fosse o douto entendimento, então as medidas previstas nos art.º 196º, reforçada com a medida art.º 201º (podendo ser sujeito a meio de vigilância electrónica) demonstra-se menos gravosa que a prisão preventiva e ainda assim privativa da liberdade, mas que seguramente aniquilaria qualquer dos perigos do art.º 204º (todos os artigos do Código de Processo Penal).
22) Demonstrando-se as medidas de coacção ora propostas suficientes, adequadas e proporcionais e evidentemente menos gravosas e menos traumatizantes.
23) Foram assim violados os princípios da adequação, da suficiência e da proporcionalidade previstos no art.º 193º do Cód. Processo penal.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos: «Assim sendo, verifica-se estarem reunidos aos requisitos previstos no Art.º 204º, al. a) e c) do Código de Processo Penal para que possa ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva
Como é evidente, e como, aliás, se encontra bem especificado e justificado na
douta decisão recorrida, nenhuma das restantes medidas de coacção previstas na Lei são suficientes para evitar o alarme social e o perigo de continuação da actividade criminosa que se geraria caso a medida de coacção fosse outra que não a que foi aplicada.
Pelo exposto, e por tudo o mais que V.ªs Ex.as certamente suprirão, deverá a Douta Decisão recorrida - que não merece qualquer censura por não ter violado qualquer disposição legal de carácter imperativo, designadamente os Art.ºs 202º e 204º do Código do
Processo Penal - ser mantida nos seus precisos termos, devendo o arguido AA, ora recorrente, aguardar os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva em que se encontra.»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido aposto visto.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- existe erro notório na apreciação da prova?
- está fortemente indiciada a prática dos crimes imputados?
- foi efectuada uma errada avaliação dos pressupostos que determinaram a escolha e aplicação da medida de coacção?
FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida tem a seguinte fundamentação:
«Estão fortemente indiciados os seguintes factos:
1. O arguido AA constituiu em .../.../2016 uma sociedade comercial por quotas, denominada “...”, com o NIPC ... e sede na ...
2. Tal sociedade exerce actividade comercial de manutenção e reparação de veículos automóveis e comércio de peças e acessórios para veículos automóveis.
3. O arguido AA, único sócio da referida sociedade, exerceu sempre o cargo de gerente, desde o respectivo início de actividade, competindo-lhe, igualmente, comprar, vender e reparar as viaturas e peças aí transacionadas.
4. Em data não concretamente apurada mas que se situa, pelo menos, em fins de 2022, o arguido AA elaborou um plano tendente a obter para si e para a referida sociedade benefícios a que sabia não ter direito, à custa do património automóvel de terceiros, proprietários de veículos.
5. O referido plano consistia na aquisição, por valor muito abaixo do valor de mercado, de veículos automóveis pertencentes a terceiros e dos quais os mesmos haviam sido desapossados, contra a sua vontade, por meio de crimes contra a propriedade, e proceder, na respetiva oficina, ao seu desmantelamento, de modo a que as peças que os constituíam pudessem vir a ser incorporadas em outras viaturas que lhe fossem entregues para reparação.
6. Tal plano também passava por adquirir a preços abaixo do custo de mercado, peças e componentes de viaturas alvo de crimes contra a propriedade, desmanteladas por outros indivíduos.
7. Desse modo, o arguido poderia obter lucros avultados, uma vez que as peças supra referidas, que por si seriam incorporadas em viaturas entregues para reparação, eram por si vendidas aos preços de mercado, muito superiores ao valor que o arguido havia despendido para a sua aquisição.
8. Em data não concretamente apurada, o arguido adquiriu a indivíduos de identidade desconhecida vários componentes da viatura, da marca ..., com a matricula ..-XB-.., a que corresponde o n.º de chassis WDD…, e que constava para apreender por ter sido objecto de um crime de abuso de confiança.
9. De igual modo, o arguido adquiriu também a indivíduos de identidade desconhecida, componentes da parte da frente da carroceria que haviam sido instalados de fábrica na viatura com o VIN WDD…, a qual havia sido furtada ao respectivo proprietário.
10. Os referidos indivíduos informaram o arguido acerca do modo como tinham entrado na posse dos referidos componentes e o mesmo aceitou adquiri-las o que fez por valores não concretamente apurados, mas, certamente muito inferiores aos valores de mercado.
11. Em fins de 2022, BB levou para as instalações da oficina ..., sita na ..., a fim de ser reparada, uma viatura ..., acidentada, apresentando o n.º de chassis ...e o n.º de motor ....
12. A fim de proceder a tal reparação, e de modo a obter para si um lucro superior ao que obteria se incorporasse peças e componentes adquiridas no mercado regular de peças automóveis, o arguido incorporou na mesma vários componentes da parte da frente da carroceria que haviam sido instalados de fábrica na viatura com o VIN WDD….
13. E colocou na parte traseira a matricula ..-XB-...
14. Uma vez que o arguido não logrou reparar integralmente a viatura referida em 10., pertencente a BB, a mesma acabou por ser transportada, em 11 de Janeiro de 2023, para as instalações da ... na ..., tendo-se então constatado que a mesma tinha incorporadas peças pertencentes às viaturas referidas em 7. e 8.
15. Assim sendo, por existirem fortes suspeitas de que a viatura apresentando o n.º de chassis W1K… havia sido reparada com componentes de viaturas da mesma marca e modelo, as quais haviam sido objecto dos crimes de furto e abuso de confiança.
16. A referida busca foi realizada no passado dia 17 de outubro de 2023, tendo sido apreendidas as viaturas, peças e componentes constantes do Auto de Busca e Apreensão a fls. 152, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. Realizadas as necessárias perícias, (cf. Fls. 167 e ss.), concluiu-se que muitas dessas peças e componentes bem como as seguintes viaturas haviam sido objecto de crimes de furto e/ou de falsificação dos seus elementos identificativos, designadamente:
VIATURAS:
G1 - …, VIN …, de matrícula … …-…- VB, na altura com as matrículas falsas apostas …-…-RT. • A viatura em causa foi furtada no seu país de origem, ..., ficando registada no sistema de informações Schengen com o número …. • Para alem da viatura ser furtada, verificou-se que a mesma tinha aposta a chapa de matrícula ..-..-RT a qual não lhe corresponde. • Esta viatura estava a ser desmantelada pelo arguido, e as peças a ser acopladas à viatura apreendida G1 – ..., de matrícula AF-..-GU, acidentada.
G3 – ..., com indícios de falsificação da gravação a frio do VIN/N.º Chassis. • Da análise feita in loco, foi possível determinar que havia sido soldado uma chapa sobre o local do VIN original, mas desta feita com o ... que não lhe pertence. • Além disso, o VIN original havia sido apagado/rasurado mecanicamente, não tendo sido possível determinar o VIN original.
P1 – ..., VIN …, de matrícula ..-RB-.., na altura com as matrículas falsas apostas ..-UI-... • A viatura em causa foi furtada na zona da ...), ficando relatada sob o NUIPC, 61/21.9GBCTX; • Para alem da viatura ser furtada, encontra-se ainda Falsificada no numero de matricula, com uma chapa aposta que não lhe corresponde.
PEÇAS/COMPONENTES:
E20 – ... • Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ...-QV-..., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1453/16.0PLSNT.
E21 – ... • Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ...-QV-..., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1453/16.0PLSNT.
E30 – ... • Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ...-QV-..., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1453/16.0PLSNT.
E29 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PN-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 875/15.9PWLSB.
E12 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-MJ-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 220/21.4PBSNT.
E19 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-MJ-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 220/21.4PBSNT.
E16 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PC-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1390/16.9GCALM.
E17 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PC-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1390/16.9GCALM.
A6 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PC-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1390/16.9GCALM.
E11 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura registada na ... com o número de matrícula NE-… (VIN …), furtada naquele país cfr. resulta dos autos com o número Schengen 0028.....01.
E64 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura registada na ... com o número de matrícula …-…-VL (EE), furtada naquele país cfr. resulta dos autos com o número Schengen …
E66 – … - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-OQ-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 335/17.3PTLSB.
E55 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PM-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 485/16.3PAALM.
D5 – … - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-XT-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1099/22.4PBOER.
E52 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PC-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1390/16.9GCALM.
E53 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-..-TC, furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 460/16.7TAMTJ.
E93 – … - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PT-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 310/16.5PGAMD.
A4 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-AZ-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 307/16.5PBSNT.
E62 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-PU-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 406/16.3PASNT.
E67 – ... - Componente instalado de fábrica na viatura com o número de matrícula ..-TS-.., furtada cfr. resulta dos autos com o NUIPC 1265/18.7PSLSB.
19. No dia 21/02/2024, pelas 07H50, ao ser realizada busca na residência do arguido AA, situada na ..., apurou-se que o mesmo tinha na sua posse os seguintes bens, quantias monetárias e documentos, provenientes ou relacionados com a actividade ilícita pelo mesmo desenvolvida:
- 80.00 euros em dinheiro.
- 1 (uma) factura com o nº FAC 1/2049.
- 1 (uma) factura com o nº FAC 1/2060.
- 1 (um) auto de Busca e Apreensão da Polícia judiciária com o NUIPC: 981/13.4PASNT.
- 1 (um) auto de Apreensão de veículo com o NUIPC: 366/14.5 JDLSB.
- 1 (um) Requerimento do registo automóvel e respectivo certificado de matricula referente ao veiculo ..-NG-.., … modelo … de cor azul.
- 1 (um) talão de entrega de numerário (montepio) no valor de 5500.00 euros datado de 2015/09/17.
- 1 (um) talão de entrega de numerário (montepio) no valor de 2500.00 euros datado de 2015/07/109.
- 1 (um) talão de entrega de numerário (montepio) no valor de 2000.00 euros datado de 2015/07/27, bem como dois manuscritos com vários valores.
- 1 (uma) declaração de entrega de dinheiro.
- 1 (um) manuscrito com valores (dinheiro) data de 13/05/2016.
- 5500.00 euros em notas do Banco Central europeu.
- 4 (quatro) manuscritos com vários valores (dinheiro) referentes a vários veículos.
20. Ao manter um stock de peças/componentes provenientes de viaturas furtadas, AA conseguia obter para si um lucro, ainda que hipotético, em futuras reparações de viaturas que, entretanto, apareçam para reparação, a custos, para si, reduzidos.
21. Os objectos de proveniência ilícita localizados na posse do arguido AA detêm um valor ainda não concretamente apurado, mas certamente situado em largas dezenas de milhares de euros.
22. A actividade levada a cabo pelo arguido AA, detém uma dimensão claramente internacional, uma vez que foram localizados na sua posse veículos/componentes furtados em países estrangeiros.
23. O arguido conhecia a proveniência dos veículos e das peças e componentes supra identificados e que tinha em seu poder, sabendo que os mesmos provinham da prática de actos ilícitos contra o património, por disso ter sido informado pelos terceiros a quem os havia adquirido e porque, de qualquer modo, tal decorria, sem qualquer dúvida, da circunstância de os mesmos lhes terem sido vendidos a baixo custo, e por pessoas que não eram os proprietários dos mesmos nem estavam por estes autorizados a fazê-lo.
24. Apesar de tal conhecimento, o arguido aceitou entrar na posse dos veículos supra identificados bem como das referidas peças e componentes automóveis, tirando proveito destes e fazendo-os seus.
25. O arguido sabia que não lhe era legítimo alterar os elementos identificativos das peças e componentes que posteriormente que incorporava nas viaturas por si reparadas, bem sabendo que, desse modo, induzia em erro os seus clientes, os quais pagavam pelas mesmas um valor de mercado e ficavam convictos de que tais peças eram legítimas e se encontravam em situação regular, bem sabendo que só assim estes aceitariam pagar os preços por tais reparações, sendo essa a intenção do arguido, o que quis e conseguiu.
26. Em toda a sua conduta, o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
III – Factos não indiciados
Não se indicia que tivesse sido o arguido a soldar uma chapa sobre o local do VIN original, mas desta feita com o ... que não lhe pertence, aposta no veículo G3 – ....
Não se inicia que tive sido o arguido a colocar a matrícula ..-UI-.. no veículo ....
IV – Análise crítica dos indícios que fundamentam a imputação
No que respeita aos factos relativos ao veículo de marca ..., a que foi aposta a matrícula ..-XB-.., resulta do depoimento de BB, que adquiriu o veículo acidentado nos ..., que esse veículo veio directamente do estrangeiro para a oficina do arguido onde deveria ser reparado.
Nas declarações que prestou o arguido apenas mencionou ter incorporado peças adquiridas ao fabricante ..., tendo apresentado orçamentos e facturas para tal.
No entanto como resulta das declarações do referido BB, para além das peças oficialmente facturadas, chegou ainda a pagar cerca de 1.500€ por outras peças não disponíveis na ..., peças a respeito das quais não houve facturação (o que é natural vistas as origens que viriam a ser detectadas nas instalações da ....
Certo é que apenas o arguido intervencionou esse veículo ao nível da carroçaria.
Quanto à matrícula que foi encontrada nesse veículo acredita-se que poderá ter sido colocada com o desconhecimento do arguido eventualmente porque se encontrava juntamente com as peças adquiridas pertencentes a esse veículo.
Contudo, não pertencendo o veículo ... ao arguido não se vislumbra o interesse que o mesmo teria em proceder dessa forma para poder circular com o veículo, razão pela qual não se irá considerar indiciado o crime de falsificação relativo a este mesmo veículo (matrícula ..-XB-..).
Do mesmo modo não se considera indiciado que tivesse sido o arguido a colocar as matrículas que o veículo Golf ostentava, o que acarretará a mesma consequência de não imputação do crime de falsificação.
Já quanto às peças de origem criminosa apreendidas nas instalações do arguido, não se aceita porque inverosímil, a versão por ele apresentada de que seriam todas da propriedade de um tal indivíduo de nacionalidade russa a quem arrendou o espaço.
Esse espaço estava sob o directo controlo do arguido, sendo que as peças tiveram origem em factos criminosos praticados em território nacional.
Assim, teve-se em consideração os elementos de prova indiciados no despacho de apresentação do arguido:
Documentos:
- Auto de notícia de fls. 3;
- Auto de apreensão de fls. 5;
- Fichas de identificação de viaturas de fls. 11 e 12;
- Documentação pertencente ao no NUIPC 1929/21.8T8PLF de fls. 12 e ss.;
- Documentação relativa a veículos furtados de fls. 15 e ss.;
- Documentação respeitante ao veículo com o chassis número w1k… de fls. 53 e ss.;
- Relatórios periciais de fls. 71 e ss, e 117 e ss;
- Auto de denúncia de fls. 78;
- Fotogramas de folhas 141 e ss.;
- Auto de busca e apreensão de fls. 152 e ss.;
- Faturas/recibos de fls. 160 e ss.;
- Ordem de reparação de fls. 162;
- Informação do sistema de informação Schengen de fls. 164;
- Relatórios de apreciação técnica forense de fls. 168 e ss., 173 e ss., 179 e ss., 187 e ss., 199 e ss., e 218 e ss.;
- Informações do sistema de segurança interna de fls. 221 e ss.;
- CRC de fls. 237;
- Certidão permanente de fls. 250;
- Relatórios policiais de fls. 272 e ss., e 277 e ss.;
- Objetos de fls. 281 - chapa metálica e etiqueta;
- Auto de apreensão de fls. 286;
- Auto de busca e apreensão de fls. 287 e ss.;
- Documentos de fls. 290;
Testemunhas:
- CC, id. a fls. 80;
- BB, id. a fls. 94;
V – Enquadramento jurídico das circunstâncias de facto indiciadas
Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido, em autoria material de:
• 23 (vinte e três) crimes de Receptação Qualificada p. e p. pelos arts. 231º, nº 1 e nº 4 do C. Penal (objetos: G1, P1, E20, E21, E30, E29, E12, E19, E16, E17, A6, E11, E64, E66, E55, D5, E52, E53, E93, A4, E62, E67).
VI – Perigos indiciados
O crime de receptação, com a dimensão indiciada nos presentes autos apesar da fase inicial da presente investigação (com a apreensão de numerosos objectos provenientes de furto) denuncia uma envolvência criminógena a reclamar cautelas acrescidas;
Com efeito, a receptação, numa área tão especializada como é o comércio automóvel, indicia um grande potencial fomentador de crimes contra o património, incentivando a prática de crimes de furto ou roubo contra proprietários de veículos automóveis, bens que não raras vezes significam o resultado de grande esforço financeiro de famílias como forma de alcançarem a liberdade de movimentação que o automóvel proporciona, com toda a perigosidade pessoal (para as vítimas) que esta criminalidade representa.
Estes crimes contra o património e pessoas, com um objectivo tão específico, não seria, seguramente, praticado caso não existissem canais próprios, também eles especializados, no escoamento e realização de dinheiro pela venda desses objectos cuja incorporação requer saber técnico especializado.
Estas considerações, resultantes dos factos concretos apurados e da realidade que a experiência comum vem demonstrando, indiciam fortemente que o crime aqui em presença, como a dimensão já notada é causador de grande perigo para a tranquilidade e ordem pública;
O grau de organização necessário para o escoamento dos produtos, manifestado pelo arguido, bem como o nível de investimento que este negócio exige, revela também que existe grande perigo de continuação da actividade criminosa.
Aliás, o arguido apresenta recente condenação em pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução, ainda em curso, pela prática de crime de receptação assim como de burla e falsificação, o que demonstra que não se deixou intimidar pela ameaça da prisão e não abandonou a actividade que lhe trará lucros vantajosos.
O perigo de continuação da actividade criminosa atinge níveis não toleráveis pela comunidade em geral.
VII – Medida de coacção proposta pelo Ministério Público e posição manifestada pela defesa
Prisão preventiva promovida pelo Ministério Público.
Oposição manifestada pela defesa, nos termos acima registados.
VIII – Medida de coacção adequada
Face ao crime indiciado, perigos e circunstâncias acima enunciadas apenas uma medida detentiva revela-se proporcional, necessária e adequada ao caso concreto.
Contrariamente ao disposto no art.º 193º, nº 3, do CPP, a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica não satisfaz as necessidades cautelares já que parte do crime praticado pelo arguido parte da própria habitação e instalações onde trabalha.
Com efeito, a respectiva eficácia depende da vontade do arguido em observar os comandos legais, o que em concreto não se indicia por nenhum elemento fáctico para tal apontar.»
- Do erro notório na apreciação da prova -
O Arguido questiona a apreciação da prova indiciária, pondo em causa a suficiência da mesma para demonstrar os factos que o Tribunal julgou fortemente indiciados. Suscita mesmo a questão de não ter o Ministério Público, no inquérito, procedido à sua inquirição dando-lhe oportunidade de se justificar perante as suspeitas contra si anunciadas.
Esta questão, desde já, se anuncia como redundante, uma vez que, em sede de primeiro interrogatório, teve o Arguido o ensejo de se explicar, sendo ouvido sobre todos os factos contra si deduzidos.
Contudo, as explicações que produziu em interrogatório não mereceram crédito do Tribunal de Instrução Criminal posto que, neste momento, desprovidas de meios complementares de prova, não têm a virtude de desmontar o suporte indiciário garantido pelo acervo de provas valorado na decisão recorrida.
Teve o Tribunal a quo em consideração os elementos de prova indicados no despacho de apresentação do arguido e que revelam, no enorme acervo documental, o número de veículos e peças apreendidos e o resultado das perícias de identificação desses componentes, relacionando-os com a sua subtração criminosa.
A relação do Arguido com os veículos, demonstrado pelos depoimentos das testemunhas ouvidas, e a natureza das intervenções realizadas, contribuem para a apreciação do conhecimento do Arguido sobre a proveniência dos artigos e do ensejo de os utilizar com o proveito inerente ao seu preço mais favorável.
Como sabemos, a convicção sobre a matéria de facto dada como provada terá que resultar da prova produzida em audiência, na qual foi livremente apreciada de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º 127.º; ou seja, tal livre apreciação apenas é limitada nos casos em que a lei dispuser diferentemente. Tal princípio é, mutatis mutandis, aplicável à valoração da prova indiciária presente aquando do primeiro interrogatório de Arguido detido, aqui centrada tal actividade na validação da prova já recolhida e da sua força enquanto sustento dos factos que estarão na base da ponderação relativa à aplicação de medidas de coacção.
Este princípio basilar não pode ser confundido com a permissão para o livre arbítrio ou para uma valoração puramente subjectiva. Importa o mesmo a sujeição a critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, concreta e transmissível. O decisor tem que explicar as razões da sua decisão, e estas têm que ser sindicáveis pelo destinatário e, nesta sede, pelo Tribunal de recurso.
Não olvidemos, porém, o factor humano envolvido na função jurisdicional, que incute em cada decisão uma vertente subjectiva inerente ao decisor (singular ou colectivo) pois cada qual contribui com o seu saber e experiência para o resultado que produz. Por essa razão, alude o referido art.º 127.º à «livre convicção».
Deste modo, a livre valoração da prova não é uma actividade exclusivamente subjectiva assente numa inexplicável certeza no julgador causada por sentimentos ou impressões sem consistência. Não pode ser insusceptível de explicação de acordo com critérios racionais, lógicos e críticos, decorrentes quer da experiência comum quer, do saber científico das ciências exactas e das ciências sociais, seja ainda da experiência profissional e pessoal do julgador. Impõe-se que seja demonstrável e explicável na respectiva fundamentação.
Aqui chegados, ponderemos então o âmbito da apreciação que cabe ao Tribunal de recurso sobre a prova. Citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, relatado pelo Juiz Conselheiro Raul Borges [ECLI:PT:STJ:2020:142.15.8PKSNT.L1.S1.B7], e a síntese do seu sumário, «XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
XIV – O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, que o recorrente pode considerar não correcta, dela divergir, afrontá-la, só que a manifestação desta divergência, este confronto não é passível de enquadramento em estratégia recursiva atendível (não cabe no plano da impugnação da matéria de facto possível nos quadros restritos consentidos pelo artigo 410.º, n.º 2, como extravasa os limites da mais ampla, mas nem por isso de contornos ilimitados, impugnação nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP).
XVII – Enquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.
XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos.
XIX – A primeira relaciona-se com a actividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.
XX – O erro vício será algo detectável, necessariamente a juzante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização.
XXI – Será, se assim quisermos apelidar, no processo cognoscitivo/decisório da matéria de facto, um “produto de terceira geração”, sendo o primeiro passo a aquisição processual com a produção das provas em julgamento; em segundo lugar, a avaliação crítica do acervo probatório adquirido; por último, a formulação do juízo integrativo ou não.
XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”.»
Desta forma, o que pretende, neste recurso, o Recorrente?
Pretende que o Tribunal valore a prova de forma diferente, menorizando o seu poder de demonstração dos factos para que, concomitantemente, deixe de haver matéria que justifique a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Porém, não se vislumbra como poderia o Tribunal da Relação enveredar por esse caminho. A prova apreciada é sólida e não merece derrogação por confronto com outros meios de prova relevantes. As conclusões de facto retiradas daquilo que os documentos exibem nos autos são coerentes e não merecem crítica.
Senão, vejamos.
Os depoimentos permitem ligar o Arguido a intervenções nos automóveis nos quais se verificaram as adulterações e aplicações de peças provenientes de veículos ilegitimamente apropriados. Mais do que uma condição circunstancial, tal ligação ocorre na sua oficina na qual foram detectadas e apreendidas várias peças, componentes, com tal proveniência como decorre da avaliação pericial já constante dos autos.
Não temos dúvidas que a disponibilidade de peças, naquelas condições, à luz das regras da experiência comum, só se justifica pela possibilidade de aplicação das mesmas em sede de intervenção em veículos que ali sejam entregues para reparação. A natureza de tais peças impede que possam ser facturadas de outra forma que não com recurso a uma falsa identificação das mesmas.
Esta actividade não surge isolada. A experiência decorrente de casos desta natureza ensina-nos que nenhum indivíduo se dedica à apropriação (por furto ou roubo) ao desmantelamento e à aplicação de peças assim obtidas. Toda esta actividade é integrada em rede, numa realidade que se assemelha, por exemplo, à do tráfico de estupefacientes. Existem vários níveis de intervenção que, a final, dependem daquele que compra as peças e as vai aplicar em sede de reparação, com uma mais lata margem de lucro, quando comparada com a normal aquisição junto da marca.
Assim, a cada passo se segue outro e, a final, o aplicador não pode ignorar a proveniência das peças, pois nelas assenta parte da sua actividade e não as compra pelos canais legítimos do comércio. É o que se retira do Arguido deter, na sua oficina, os referidos objectos.
Quanto ao alegado pelo Recorrente de não terem sido ouvidas determinadas pessoas ligadas às viaturas intervencionadas, convém clarificar que o processo está em fase de recolha de prova e que a apreciação, por ora, é feita com a prova indiciária já existente, a qual, nos termos referidos, é bastante para se concluir pela verificação de fortes indícios, sem prejuízo do que vier a apurar-se no decurso da investigação, altura em que poderão ser ouvidas mais testemunhas.
Por isso, tal como explicado no despacho recorrido, mostram-se indiciados os factos do despacho de apresentação, com um grau de certeza que é forte. Entende-se, pois, que a decisão recorrida é eficiente nessa demonstração.
- Da qualificação dos factos, relativamente aos crimes imputados?
O despacho recorrido conclui com a imputação ao Arguido da prática de vinte e três crimes de Receptação Qualificada p. e p. pelos art.º 231.º/1 e 4 do Código Penal.
Questiona-se tal contabilidade.
Com efeito, mais do que um crime por cada peça detida, afigura-se mais curial entender que o Arguido se terá determinado a adquirir as peças com referência a cada veículo que se identifica como proveniência das mesmas. Operando o desmantelamento sobre uma viatura, o resultado traduzido em peças será rapidamente distribuído sendo razoável concluir que as peças provenientes de um mesmo veículo terão sido adquiridas num mesmo momento, ou seja, ao abrigo de uma mesma resolução criminosa.
Assim, unificando a conduta do Arguido com este entendimento, chegamos à conclusão que os crimes serão apenas 16, três referentes aos automóveis identificados e treze referentes às matrículas de origem das peças apreendidas.
Consequentemente, repete-se, encontram-se fortemente indiciados os factos que permitem a imputação ao Arguido da prática de 16 crimes de Receptação Qualificada p. e p. pelos art.º 231.º/1 e 4 do Código Penal.
- Da medida de coacção
Aqui chegados, cumpre apreciar a validade da fundamentação quanto aos pressupostos de aplicação de medidas de coacção.
A aplicação das medidas de coacção é marcada pelo princípio da legalidade pois as limitações que importam para os Arguidos que às mesmas ficam sujeitos só se justificam se existirem necessidades cautelares emergentes das situações tipificadas nalgum dos perigos enunciados no art.º 204.º do Código Penal.
Mas tal não é bastante para a justificação da aplicação de qualquer uma das medidas previstas no Código de Processo Penal. Com efeito, a aplicação de medidas de coacção tem que respeitar os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da intervenção mínima. Só desta forma se pode justificar tal compressão de direitos num sujeito que, não obstante indiciado, se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória [Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, 07.02.2023, Desembargadora Carla Francisco, ECLI:PT:TRL:2023:600.22.8SXLSB.A.L1.5.06].
Deste modo, tal como previsto no art.º 204.º do Código de Processo Penal, «Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida», uma das circunstâncias previstas nas alíneas subsequente. Vejamos cada uma em separado.
«a) Fuga ou perigo de fuga;»
De acordo com a decisão recorrida, o perigo de fuga não foi circunstância verificada com relevo para a aplicação da medida de coacção.
«b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;»
No que toca ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, deve o mesmo resultar de factos que demonstrem uma actuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça. Compulsada a fundamentação da decisão recorrida, concluímos que também não existem perigos desta natureza que tenham sido invocados como fundamento para a aplicação da medida de coacção.
«c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas»
Restam, pois, os perigos previstos nesta terceira alínea.
O Tribunal a quo considerou que, atenta a natureza dos crimes indiciados, existe um concreto perigo de continuação da atividade criminosa. Tanto mais que o Arguido foi recentemente condenado em 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, ainda em curso, igualmente pela prática de crime de receptação bem como de burla e falsificação, sem que se deixasse intimidar pela ameaça da prisão agora se encontrando nesta situação, na perspectiva de alcançar lucros vantajosos
Contribuindo ainda para esta conclusão encontramos a circunstância de, tal como configurada pelos factos indiciados, a actividade do Arguido se encontrar enquadrada numa rede alargada de cariz internacional, única explicação para a origem dos materiais encontrados.
Considerou igualmente o Tribunal de Instrução Criminal que, inerente à receptação, está a prática de crimes contra o património que se traduzem num factor que causa grande perigo para a tranquilidade e ordem pública, ultrapassando os níveis toleráveis pela comunidade em geral.
Com efeito, o desaparecimento de viaturas, que em termos de normalidade social o cidadão tem que deixar aparcada na via pública, gera grande perturbação, insegurança e prejuízo económico. Como tal, não é encarada de ânimo leve uma intervenção judiciária que permita que, dentro da comunidade visada, se mantenha alguém a lucrar com tal perda.
Sindicando o raciocínio exibido e fundamentado, não se vislumbram erros no mesmo que o inquinem. Assim, conclui-se como na Primeira Instância, que existe perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, de que o Recorrente possa continuar a actividade criminosa, bem como a necessidade de reconhecimento da gravidade da sua conduta com a sujeição a medida de coacção por existir risco de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
«d) Da escolha da medida –
Justificada a aplicação de medidas de coacção, com base nos perigos acima enunciados, cumpre atestar da adequação e proporcionalidade das medidas aplicadas. Subsidiariamente, ponderar a suficiência de outras medidas de coacção menos gravosas.
Havendo fundamento para a aplicação de medidas de coacção, segue-se a sua determinação, de acordo com os apontados princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência. Ou seja, a medida deverá ser adequada a garantir a diminuição do perigo que a justifica, ser proporcional, no encargo que importa, à gravidade dos factos, do crime e da pena abstractamente aplicável e suficiente para ser eficaz, ou seja, ser aquela que, de forma menos gravosa, assegura o resultado pretendido.
Importa mitigar os seguintes perigos: o perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Numa primeira nota, registamos que os crimes de receptação qualificada imputados ao Arguido têm uma medida da pena de 1 a 8 anos de prisão. Está imputada ao Arguido a prática de 16 desses crimes. A redução do número de crimes não belisca, minimamente, a conclusão sub judice.
Sem dúvida que a medida de prisão preventiva escolhida é adequada. Não se verificam quaisquer problemas de proporcionalidade. Como já se apontou, a gravidade dos crimes indiciados, traduzida na moldura penal abstracta, permite a escolha desta medida, e permite concluir que não é desproporcionado impor a privação da liberdade neste caso concreto.
Finalmente, quanto à suficiência, tendo em consideração a circunstância apontada na decisão recorrida do Recorrente desenvolver a sua actividade em casa, afigura-se que qualquer uma das medidas de coacção menos gravosas, a ser eleita, se revelaria inadequada para assegurar a prevenção dos apontados riscos, nomeadamente a continuação da actividade criminosa.
Destarte, a conclusão que se impõe é a de que a medida de prisão preventiva aplicada ao Recorrente é a que se justifica e adequa ao caso concreto. Como tal, por necessária, adequada e proporcional, mantém-se inalterada a escolha da primeira instância quanto à medida de coação aplicada ao Recorrente.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso do Arguido, mantendo-se inalterada a medida de coacção de prisão preventiva aplicada.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.
Comunique a decisão ao processo de origem.

Lisboa, 04.Junho.2024
Rui Coelho
Sandra Pinto
Ana Cláudia Nogueira