Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | HIGINA CASTELO | ||
Descritores: | INDEMNIZAÇÃO DANO BIOLÓGICO DANOS FUTUROS DANOS NÃO PATRIMONIAIS RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/30/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. A determinação de indemnizações por dano biológico, seja na vertente não patrimonial, seja na patrimonial, obedece a juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, sendo nomeadamente de ponderar (i) a idade do lesado, (ii) a sua esperança média de vida, (iii) o défice funcional permanente, e (iv) os concretos esforços e dificuldades que a lesão que mantém introduz nas atividades pessoais, familiares, sociais e laborais do concreto lesado. II. A quantia de € 50.000 é adequada (ou não exagerada) para compensação dos danos de natureza não patrimonial da autora que, à data do acidente – devido a culpa total e grosseira da condutora do veículo seguro na ré –, contava 36 anos de idade, trabalhava como assistente de ação direta em IPSS, era mãe de dois filhos (o mais velho, ainda adolescente), com o acidente sofreu fraturas da tíbia e do perónio que lhe determinaram hospitalização inicial 47 dias, a que se seguiram mais 558 dias até à consolidação das lesões, com incapacidade para as tarefas da vida diária e total para o trabalho, tendo sido submetida entretanto a uma segunda cirurgia e necessitando de uma terceira para extração do material de osteossíntese, sofreu dores de grau 5/7, ficou com cicatrizes quantificáveis como dano estético permanente de grau 4/7, ficou com défice funcional permanente após consolidação das lesões (20 meses após o acidente) de 7 pontos, mantém dores e afetação da marcha para sempre (claudica e perde facilmente o equilíbrio). III. É adequada (ou não exagerada) indemnização de € 50.000 para ressarcimento do dano biológico na sua vertente patrimonial, défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que, no caso da mesma autora, apesar dos tabelares 7 pontos percentuais, implica para o resto da vida consideráveis esforços suplementares e maior penosidade no desempenho de atividades diárias, pessoais, familiares, sociais e profissionais (relembrando as circunstâncias do ponto II deste sumário, nomeadamente, a recorrente sujeição a dores e desequilíbrio na marcha numa mulher que, nascida em 1983, tem atualmente uma esperança de vida de mais cerca de 43 anos). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório «A», autora na presente ação declarativa de condenação, com processo comum, que intentou contra Liberty Seguros, não se conformando com a sentença proferida em 23/06/2024, que julgou a ação parcialmente procedente, intentou o presente recurso. Na petição inicial, fundada em acidente de viação da responsabilidade da condutora de veículo seguro na ré, do qual sobrevieram danos à autora, este terminou com o pedido de condenação da seguradora ré a: «Todas as despesas emergentes do acidente a liquidar, indicando-se já as seguintes: Indemnizar as despesas efetuadas a empresa para deixa filho mais novo de 8 anos na escola com custos de 72.00 €, despesas de aluguer uma cadeira de rodas, com um custo mensal de 69.52 €, despesas de farmácia cerca de 9.50 € +27.05 € e bem assim assistência de 3ª pessoa 700.00 € por mês x 3 meses. Todos os lucros cessantes, indicando-se 3 meses de salário no valor de 665,00 €. Indemnizar a A. pela IPP ou IPATH de que esta venha a sofrer mercê do acidente, a liquidar a final. Danos futuros de despesas médicas, viagens, tratamentos e de perdas de rendimento. Danos morais: Pagar à sinistrada 50.000€ de indemnização por danos morais pelas dores físicas, angústia e perca de dignidade, passadas presentes. 46 dias de doença e internamento Hospitalar no valor de 30,00 €/dia, ou seja 1.380,00 €. Pagar por danos morais pelas dores físicas, angústia e perca de dignidade, futuros o valor a liquidar após alta. Pagar à A todo e qualquer dano futuro, tais como medicamentos, dores, incómodos. Prestar à A assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos, incluindo viagens adequados para repor a situação anterior e tratar lesões da A. Acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento do devido.» Contestando, a ré impugnou danos alegados e valores reclamados. Por requerimento de 03/11/2023, a autora ampliou o pedido, pedindo a condenação da ré a: «Todas as despesas emergentes do acidente a liquidar, indicando-se já as seguintes: Indemnizar as despesas efetuadas de empresa para deixar o filho mais novo de 8 anos na escola com custos de 72 €, despesas de aluguer uma cadeira de rodas, com um custo mensal de 69,52 €, despesas de farmácia cerca de 9,50 € +27,05 € e bem assim assistência de uma 3ª pessoa 700,00 € por mês x 3 meses, com juros desde a PI. Pagar assistência domiciliária após alta no valor de 3.900,00 €, com juros desde 03-11-2023. Pagar um valor de 8 horas por semana de ajuda no valor mensal de 224.00 € após a data da alta. Todos os lucros cessantes, indicando-se 3 meses de salários no valor de 665,00 € (1.995,00 €), com juros desde a PI. Perda de vencimento até à alta no valor de 17.697,05 €, com juros desde 03-11-2023. Pagar uma renda de 100.00 € /mês após a data da alta. Danos futuros de despesas médicas, viagens, tratamentos e de perdas de rendimento. Danos morais. Pagar à sinistrada 50.000€ de indemnização por danos morais pelas dores físicas, angústia e perda de dignidade, passadas presentes, acrescidos de juros desde a PI, com juros desde a PI. Pagar à sinistrada um valor de 55.000,00 € decorrente de dano biológico, com juros desde 03-11-2023. 46 dias de doença e internamento hospitalar no valor de 30,00 €/dia, ou seja 1.380,00 € com juros desde a PI. Pagar à A todo e qualquer dano futuro, tais como medicamentos, dores, incómodos. Prestar à A assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos, incluindo viagens adequados para repor a situação anterior e tratar lesões da A. Acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento do devido.» O processo seguiu os regulares termos e, após audiência, é proferida sentença que julga a ação parcialmente procedente e, em conformidade: 1. Condena a ré a pagar à autora: a) Indemnização por danos patrimoniais: i) Perdas salariais: € 11.400,00; ii) Despesas: € 106,07; iii) Assistência de terceira pessoa: € 2.000,00; iv) Apoio à família: € 4.000,00; b) Indemnização por dano patrimonial futuro: € 40.000,00; c) Indemnização por danos não patrimoniais: € 40.000,00; d) Juros de mora: i) sobre as indemnizações fixadas em a) a contar da data da citação até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral pagamento, à taxa legal; ii) sobre as indemnizações fixadas em b) e c) a contar da presente data até efetivo e integral pagamento, à taxa legal; e) A suportar, no futuro, os custos com as seguintes necessidades permanentes da autora: i) ajudas técnicas – manutenção e substituição de talonete; ii) cirurgia de extração de material de osteossíntese da tíbia esquerda. 2. Ao valor aludido em 1., a) a d), será descontada a quantia que, na data do efetivo pagamento da indemnização, se mostre já satisfeita pela ré em cumprimento da providência cautelar decretada no processo apenso. 3. Absolve, no mais, a ré do pedido. A autora não se conformou e recorreu, apresentando como “conclusões” páginas com alegações de facto e de direito, repetições de umas e de outras, opiniões e algumas generalidades, totalizando frases e longos conjuntos de frases numerados de 1 a 16 e de 77 a 109 (não existem conclusões com os n.ºs 17 a 76). Reproduzimos a parte do requerimento de recurso intitulada “conclusões”: «Do valor dos danos da A 1. A A ficou com uma IPP de 7 pontos. 2. Ora, a A obteve o máximo de pontos pela lesão, ou seja, não podia ter maior perda de flexão dorsal. 3. Tais lesões são uma instabilidade da articulação com limitações e dores. 4. Ora, o valor total indemnização, danos morais e deficit permanente (ou seja, os danos futuros) é pequeno: 80.000.00 €. 5. Há que frisar que este tipo de lesões se vai agravar com o tempo como é manifesta e infelizmente verificado à medida que envelhecemos. 6. De facto, as mazelas até aos 30 anos mal se sentem, aos 40 acentuam-se …. e depois agravam-se cada vez mais. 7. Ou seja, é devido um valor de dano em virtude das lesões corporais e dos esforços, que nos parece pequeno e insuficiente para reparar o dano. 8. Dito isto, é evidente que alguém uma limitação nos membros inferiores tem a maior dificuldade de trabalhar 5 dias por semana, 8 horas por dia. 9. Alegar-se-á que são só 7 pontos. 10. A avaliação medica em direito civil é feita através de abstrações. 11. A primeira abstração é a atribuição de pontos ou percentagens. 12. De facto, se a A fosse programadora e ficasse sem língua e impedida de falar, muito provavelmente poderia fazer o seu trabalho com poucas limitações. Se fosse juiz ou advogado, a sua língua teria uma importância muito maior. 13. Ora, na avaliação do dano os peritos médicos atribuem pontos e avaliam de forma abstrata. Queremos dizer com isto, que a língua e o pescoço de todos os sinistrados valem abstratamente x pontos independentemente das implicações e dificuldades concretas da vida de cada um. 14. Os exames periciais e as avaliações não têm em conta a situação concreta do sinistrado, as suas habilitações, a possibilidade de encontrar um novo posto de trabalho, tendo em conta as possibilidades do sinistrado e a própria situação de oferta e procura do mercado laboral... 15.Concordamos com a Sentença e com o relatório pericial, quando escreve que a A tem limitações para toda a sua vida. 16.Os factos provados são elucidativos: [Repetição dos factos n.ºs 44 a 60, infra listados no ponto II. deste acórdão] [Não existem conclusões com os n.ºs 17 a 76] 77. Por isso entendemos que o valor do dano moral, esforços acrescidos e deficit permanente deve ser substancialmente superior. 78. Devia ser atribuído um valor autónomo no que diz respeito à repercussão nas atividades de lazer e desportivas, considerando os factos que foram demonstrados. 79. Violou assim o Tribunal critérios de equidade, valorando o valor abstrato dos pontos e não as lesões. 80. A mobilização do tornozelo é fundamental para a mobilidade. 81. A justificação para a indemnização baseia-se nos seguintes pontos: Danos físicos e médicos: A lesão traumática resultou numa limitação significativa das atividades ortostáticas, com impacto direto na mobilidade e autonomia do indivíduo. A indemnização deve cobrir os custos dos tratamentos médicos, terapias e possíveis cirurgias futuras, bem como compensar a dor e sofrimento físico associados. Perda de capacidade laboral: A impossibilidade de realizar atividades ortostáticas limita a capacidade de trabalhar em profissões que exijam esforço físico, resultando na perda de rendimento e, em alguns casos, na necessidade de requalificação para outra área de trabalho menos exigente fisicamente. Sofrimento emocional e psicológico: A limitação ortostática afeta a saúde mental do indivíduo, com o desenvolvimento de ansiedade, depressão e outros transtornos psicológicos. A indemnização deve refletir o impacto emocional e o sofrimento causado pela perda de qualidade de vida. Perda de qualidade de vida e autonomia: A necessidade de assistência para realizar atividades básicas ou a limitação de movimentos independentes justifica uma compensação financeira pela perda de autonomia e pela dependência de terceiros. 82. A capacidade de mover o tornozelo é essencial para a realização de todas as atividades ortostáticas diárias, desde tarefas simples até atividades mais complexas. 83. A repercussão financeira destas limitações foi calculada com base no SMN à data do acidente 665.00 €. 84. Ora, o SMN hoje são 820.00 €. 85. Deveria haver uma atualização, quer á data da Sentença, quer para o futuro. 86. Não foi considerado provado: c) Na semana de 8 a 15 de novembro, a A. correu risco de necrose da perna no local das feridas e por bolhas que surgiram no local dos hematosas, sendo o pior cenário a amputação (21º p.i.). 87. Na nossa opinião é evidente que o tal facto deve ser dado como provado. 88. Se ouvirmos os depoimentos do Dr. «E» testemunhas tal é evidente. 89. Ouça-se os ficheiros juntos: Minutos 10.30 Advogado: Alguma vez se pensou num pior cenário em amputar a perna? Dr. «E»: Senhor doutor, isso é uma situação que vem descrita nos livros. Todos os livros, todos os livros. Uma infeção que não se controla e uma cirurgia que possa ter maus resultados o sinal é sempre a falência de todas as soluções e todos os métodos. É uma situação que pode acontecer a qualquer um de nós. Felizmente que não aconteceu. Depoimento «B» Minutos 4.45. Advogado: Houve altura quando a sua mulher teve medo de ser amputada? «B»: Sim, houve, por causa das infeções. Durante vários dias, todas as manhãs o médico passava de manha e dizia: isso não está bem. As coisas não estão boas. Tomava grandes doses de antibióticos. Vamos aumentar a dose de antibiótico. Todos os dias era drenado o pus e aquela necrose e as bolhas são saravam. Estávamos a ver o caso complicado. Falou-se na situação. Falou-se nisso. Dizíamos as coisas vão correr bem, mas falou-se nisso. Foi um episódio inicial complicado. 90. O relatório da seguradora anexo ao relatório pericial refere necessidades de creme, talonete e de uma nova operação. 91. A Sentença não fundamenta a condenação a suportar os custos futuros relacionados com ajudas técnicas (manutenção e substituição de talonete) e cirurgia de extração de material de osteossíntese da tíbia esquerda. Citamos: «8. Dano futuro o Todo e qualquer dano futuro, tais como medicamentos, dores, incómodos + Assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos, incluindo viagens adequadas para repor a situação anterior e tratar as lesões da A. Assim, são apenas estas as situações em que competirá à R. assumir a responsabilidade pelas despesas inerentes, inexistindo suporte fáctico para condenar a R. a suportar as demais despesas indicadas pela A. a título de dano futuro.» 92. No entanto, além destas medidas, é essencial garantir que a R cubra também os custos de assistência médica e medicamentosa contínua, fundamentais para a recuperação plena e manutenção da qualidade de vida. 93. A limitação da flexão do tornozelo, associada a uma lesão na tíbia e à necessidade de uso de talonete, não se resolve apenas com a cirurgia de extração do material de osteossíntese. 94. O acompanhamento médico contínuo é crucial para assegurar que a A. recupere e mantenha a mobilidade, prevenindo complicações futuras. 95. A A mantém aliás acompanhamento médico que deveria ser suportado pela R. Citamos: 59. A A. recorre à CUF para monitorizar e acompanhar as suas dores e limitações (58º ampliação). 96. Mesmo dando razão ao Tribunal Recorrido, após a cirurgia de extração de material, o acompanhamento ortopédico seria sempre necessário monitorizar a recuperação e avaliar o impacto nas funções do tornozelo e pé. Além disso, pode ter que ter sessões de fisioterapia. 97. Portanto, a ré deve ser responsabilizada pelos custos futuros com consultas médicas, exames regulares e fisioterapia, garantindo que a A. recupere de forma adequada e com o acompanhamento necessário. 98. Além da assistência médica, a necessidade de medicação deve ser considerada de forma contínua, pois a recuperação de uma lesão como esta, associada à limitação funcional, requer o uso de medicamentos para: b) Controle da Dor e Inflamação 99. A A. tem dor e inflamação. 100. A administração de analgésicos e anti-inflamatórios, sob prescrição médica, é necessária para controlar os sintomas, permitindo que ela realize atividades do dia a dia com o menor desconforto possível. 101. Para além da decisão de cobrir os custos com a manutenção do talonete e a cirurgia de extração do material de osteossíntese, é fundamental que a ré seja condenada a suportar também os custos com assistência médica e medicamentosa contínua. 102. Como dissemos a flexão do tornozelo é essencial para diversas atividades diárias, particularmente aquelas que envolvem movimentação e postura ortoestática. 103. Uma limitação desta capacidade compromete a realização de várias tarefas domésticas. 104. Neste contexto, justifica-se a necessidade de ajuda externa, estimada em 8 horas por semana, para que uma dona de casa com limitação da flexão do tornozelo consiga realizar tarefas como passar a ferro, fazer as limpezas e ir às compras. 105. A flexão do tornozelo é um movimento que permite o controlo do equilíbrio e a absorção de impactos durante o caminhar e estar de pé. Este movimento é necessário em atividades que exigem alternância de posturas e movimentos repetitivos, como as seguintes: 106. Passar a ferro: Esta tarefa exige que o indivíduo fique em pé por períodos prolongados, o que, para alguém com limitação da flexão do tornozelo, pode resultar em desconforto, dor e até mesmo incapacidade de manter-se em pé por muito tempo. Além disso, o movimento de deslocar-se para ajustar roupas, pegar objetos e manter o equilíbrio pode ser comprometido. 107. Fazer limpezas: Atividades de limpeza, como varrer, aspirar, limpar o chão e outras superfícies, exigem flexibilidade, mobilidade e equilíbrio. A limitação da flexão do tornozelo afeta a capacidade de realizar movimentos repetidos, de se inclinar, agachar e deslocar-se pela casa de forma segura e eficiente. Estes movimentos podem provocar dor ou instabilidade, aumentando o risco de queda. 108. Ir às compras: Fazer compras requer caminhar distâncias consideráveis, muitas vezes carregando peso. A limitação da flexão do tornozelo compromete o caminhar, o equilíbrio e a capacidade de transportar sacos de compras. A dor e a rigidez no tornozelo podem tornar estas atividades demoradas e extenuantes, colocando a pessoa em risco de agravamento da lesão ou queda. 109. Com base na análise das tarefas domésticas mais comuns, uma limitação da flexão do tornozelo justifica a necessidade de apoio externo nas seguintes proporções: Passar a ferro (2 horas/semana): O ato de passar a ferro, dependendo do tamanho da família e da quantidade de roupa, pode durar cerca de 2 horas por semana. Considerando que a pessoa não consegue ficar em pé de forma contínua ou por longos períodos sem dor ou desconforto, o auxílio nesta tarefa é crucial. Fazer as limpezas (4 horas/semana): As tarefas de limpeza incluem varrer, lavar o chão, aspirar e limpar superfícies, além de tarefas pontuais como lavar janelas ou trocar roupas de cama. Para uma casa de tamanho médio, estima-se que estas atividades ocupem aproximadamente 4 horas semanais. A dificuldade em agachar-se, inclinar-se e a perda de equilíbrio exigem a assistência de outra pessoa para garantir que as tarefas sejam realizadas sem colocar a saúde da pessoa em risco. Ir às compras (2 horas/semana): As compras de supermercado ou para a casa, incluindo o transporte de sacos e deslocações, ocupam em média 2 horas por semana. Para uma pessoa com limitação na flexão do tornozelo, o esforço físico envolvido em caminhar longas distâncias e carregar pesos pode ser demasiado exaustivo. A assistência aqui é necessária para garantir que as compras sejam feitas sem causar dor excessiva ou risco de queda. Em suma, requer-se seja alterada a decisão e a R condenada a: • Sejam revistos para valor justo a indemnização a título de danos não patrimoniais para € 60.000, na vertente de dano biológico e dano moral, de forma que indemnize os padecimentos passados, presentes e futuros do A de forma equitativa e justa. • Sejam revistos para valor justo a indemnização a título de danos patrimoniais para € 60.000, de forma que indemnize os padecimentos passados, presentes e futuros do A de forma equitativa e justa. • Sejam a R condenada a indemnizar as ajudas de terceira pessoa de 8 horas por semana num valor justo de 250.00 € por mês, de forma que indemnize os padecimentos passados, presentes e futuros do A de forma equitativa e justa. • Seja a ré condenada a pagar à autora as quantias que vierem a ser liquidadas em decisão ulterior, relativas às despesas com medicação adequada para as dores (pomada e medicamentos), bem como acompanhamento médico e medicamentoso contínuo emergente da incapacidade permanente geral de que ficou a padecer em resultado do acidente ocorrido no dia 14/10/2019, fundamentais para a recuperação plena e manutenção da qualidade de vida da A.» A ré respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões: a) A decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada? b) A indemnização fixada deve ser aumentada? II. Fundamentação de facto Estão provados os seguintes factos, que correspondem aos adquiridos em 1.ª instância, com aditamento do 14-A, conforme decidido e justificado infra, em III.1.: 1. No dia 14.10.2019, cerca 08h45, na Charneca da Caparica, ocorreu uma colisão entre a viatura Honda Civic, matrícula ..-GA-.., com seguro de responsabilidade civil automóvel na R., pela apólice nº …970, e o motociclo Keeway ..-OT-.., com seguro de responsabilidade civil automóvel na companhia de seguros Caravela, pela apólice nº 90.00…78 (1º p.i.). 2. O veículo segurado na R. circulava na Rua Frederico de Freitas, no sentido oeste-este (2º p.i.). 3. A Rua Frederico de Freitas tem um sinal de perda de prioridade (3º p.i.). 4. A condutora do veículo seguro na R. apenas olhou para o lado direito e não para o lado esquerdo antes de iniciar a marcha (5º p.i.). 5. A A. seguia no sentido de marcha norte-sul, na sua hemi-faixa, e foi surpreendida pela viatura segurada na R., que lhe cortou completamente a via (6º p.i.). 6. A faixa de rodagem da A. foi completamente invadida pela viatura segurada na R., de uma forma imprevista, não dando qualquer possibilidade à A. de evitar a colisão (8º p.i.). 7. A R. assumiu a responsabilidade pelo sinistro, na parte dos danos materiais do motociclo, propriedade de «B», companheiro da A. (12º p.i.). 8. E na sequência de decisão proferida na providência cautelar intentada pela A. e apensa à presente ação está a pagar à A., desde 01.12.2019, a quantia mensal de € 1.000,00, a título de adiantamento, por conta e a descontar da indemnização final (13º p.i.; 6º cont.). 9. Para além disso, a R.: a) pagou já à A. a quantia de € 329,19, a título de indemnização pelo período de incapacidade total absoluta para o trabalho desde a data do acidente até 30 de novembro de 2019, por conta e a descontar da indemnização final que à mesma vier a ser fixada, correspondente ao diferencial do que a mesma já recebeu da Segurança Social; b) está a prestar e a custear toda a medicação e assistência clínica à A., inclusivamente a relativa aos tratamentos de fisiatria, e a custear todas as deslocações da mesma para efeitos de tais tratamentos (7º cont.). 10. A sinistrada foi assistida no local pelos Bombeiros, que a transportaram ao Hospital Garcia de Orta (16º p.i.). 11. A sinistrada sofreu fratura da tíbia e do perónio (17º p.i.). 12. A sinistrada encontrou-se a aguardar que as feridas fossem tratadas, a fim das condições cutâneas permitirem a cirurgia (18º p.i.). 13. A perna da A. estava muito inchada, com bolhas, líquido e pele negra (19º p.i.). 14. A A. chorava devido às dores (20º p.i.). 14 - A. Na semana de 8 a 15 de novembro, a A. correu risco de necrose da perna no local das feridas e por bolhas que surgiram no local dos hematosas, sendo o pior cenário a amputação (21º p.i.). 15. A A. foi operada a 20.11.2019 (22º p.i.). 16. A A. teve alta no dia 29.11.2019, cerca das 16h00, para o domicílio, com a indicação de “ter auxílio nas atividades de vida diárias” (23º p.i.). 17. Tinha as seguintes indicações: - vigiar penso operatório, realizado a 29.11.2019 com adapic (gaze gorda), realizar no dia 02.12.2019 no centro de saúde e posteriormente na consulta; - vigiar sinais de compromisso neuro circulatórios (coloração, temperatura, sensibilidade e mobilidade) do membro operado; - realizar levante com meias de contenção (coloca as meias antes de se levantar e retira ao deitar para dormir); - alternar períodos de marcha com períodos de repouso, quando em repouso, manter membro elevado; - aplicar gelo 3 x dia durante 15 minutos no membro operado; - manter terapêutica de domicílio; - administrar terapêutica prescrita; - gerir o ambiente físico; - ter auxílio nas atividades de vida diárias; - avaliar parâmetros vitais 1 x dia; - tem consulta de orto-traumatologia marcada para dia 05.12.2019 com o Dr. «E» (24º p.i.). 18. A sinistrada esteve internada no Hospital desde a data do acidente até 29.11.2019 (27º p.i.). 19. A sinistrada permaneceu deitada numa cama hospitalar, sem poder levantar-se, e com a perna direita imobilizada (28º p.i.). 20. A A. trabalha como assistente de ação direta numa IPSS que apoia pessoas deficientes, auferindo um ordenado no valor de € 570,00, pago 14 vezes no ano (56º e 83º p.i.). 21. E contribuía para a sua família com o seu trabalho e o seu salário (33º p.i.). 22. Após o acidente, a A. não conseguiu trabalhar e proporcionar afetos e cuidados à sua família, o que a deixou angustiada (34º e 35º p.i.). 23. Sentiu-se um peso e um estorvo, chorou (36º e 37º p.i.). 24. Sentiu-se diminuída relativamente ao que era antes do acidente (39º p.i.). 25. A A. vive com o seu companheiro e os filhos de ambos: - «C», nascido em 22.09.2003; - «D», nascido em 28.05.2011 (43º e 50º p.i.). 26. O companheiro da sinistrada trabalha na Groundforce como operador de assistência em escala e ganhava cerca de € 1.100,00 por mês (45º p.i.). 27. Após o acidente teve que pôr baixa para apoio à família, para ajudar a mulher e os dois filhos menores (46º p.i.). 28. O marido da A. ficou em casa e juntamente com o pai da A. fizeram as tarefas da casa (38º ampliação). 29. Durante o período de internamento e enquanto precisou de se deslocar em cadeira de rodas, a sinistrada necessitou de encontrar alguém para a substituir na realização das suas tarefas domésticas, passar a ferro, limpeza da casa, cozinhar, tratar da roupa, higiene pessoal do filho mais novo e levar o filho mais novo à escola e ir buscá-lo; e enquanto precisou de se deslocar em cadeira de rodas necessitou de ajuda com a sua higiene pessoal (58º, 88º e 105º p.i.). 30. Para o apoio à A. e à sua casa e filho mais novo, a A. necessitou de 6 horas de apoio diário, por semana (60º p.i.). 31. A 29.11.2019, a empresa de serviços de apoio domiciliário Home 24 orçamentou o apoio à A., concretamente, na sua higiene pessoal, apoio doméstico (limpeza e tratamento de roupa), confeção de refeições, compras, apoio ao filho pequeno durante alguns períodos de ausência dos pais, num total de seis horas por dia, 7 dias por semana, em € 1.360,00 por mês (93º p.i.). 32. O marido da A. trabalha por turnos e as baixas para apoio à família implicam perda de vencimento, pelo que não podendo a A. levar o filho mais novo à escola, teve que contratar uma empresa para o fazer (91º e 92º p.i.). 33. O custo da empresa para deixar o filho mais novo na escola foi de € 72,00, faturado em 05.12.2019 (92º p.i.). 34. A A. teve de alugar uma cadeira de rodas, o que fez a 28/11/2019 e lhe custou € 69,52 (94º p.i.). 35. A 23.01.2020 a A. ainda deambulava de cadeira de rodas (94º p.i.). 36. A A. teve despesas de farmácia no valor de € 9,59 + € 27,05 (95.º p.i.); 37. a) A data da consolidação das lesões é fixável em 09.06.2021; b) O Défice Funcional Temporário Total é fixável em 47 dias (internamento); c) O Défice Funcional Temporário Parcial é fixável em 558 dias (desde a data do acidente até à data da consolidação, excluindo o período de internamento); d) A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável em 605 dias (desde a data do acidente até à data da consolidação); e) O quantum doloris é fixável no grau 5/7; f) O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 7 pontos, correspondendo às seguintes sequelas: i) código Mc0636, limitação da flexão dorsal do tornozelo direito - 5 pontos; ii) código Pa0101, complexo cicatricial da perna direita - 1,9 pontos g) As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços acrescidos; h) O dano estético permanente é fixável no grau 4/7; i) A repercussão na atividade sexual é fixável no grau 1/7; j) Tem necessidades permanentes: i) ajudas técnicas manutenção e substituição de talonete; ii) cirurgia de extração de material de osteossíntese da tíbia esquerda. 38. A A. nasceu em 29.01.1983. 39. Em 24.06.2020 a A. foi sujeita a nova cirurgia, em virtude de pseudartrose do terço distal da tíbia direita, com remoção das cavilhas da tíbia e do perónio, colheita de enxerto da crista ilíaca anterior direita e OTS da tíbia com placa medial LCP (46º ampliação). 40. Fez fisioterapia, consistente em massagem e electroestimulação, até 09.06.2021 (49º ampliação). 41. Foi comunicado à A. que a sua perna não tinha mais evolução positiva, podia fazer uma cirurgia, mas tinha riscos (52º e 53º ampliação). 42. Desde maio de 2021 que a A. deixou de ser seguida pelo seguro (57º ampliação). 43. A A. regressou ao seu trabalho em maio de 2021 (5º ampliação). 44. A A. ficou a padecer de rigidez do tornozelo direito, que perdeu completamente a capacidade de flexão dorsal, pelo que o calcanhar da A. não assenta no chão, revelando um encurtamento do membro inferior direito, compensado com talonete (31º ampliação). 45. A limitação na flexão dorsal do tornozelo dificulta à A. subir escadas (17º e 18º ampliação). 46. Como a estabilidade do membro inferior é limitada, a A. tem dificuldade em equilibrar-se, especialmente em superfícies irregulares ou inclinadas, tendo, designadamente, dificuldades em fazer caminhadas na praia (21º e 22º ampliação). 47. A A. deixou de usar sandálias e saltos altos (23º ampliação). 48. A A. tem dificuldades em agachar-se para apanhar algo do chão (25º ampliação). 49. A A. não consegue estar muito tempo de pé, carregar pesos, tendo dificuldades em empurrar cadeiras de rodas (29º ampliação). 50. A A. deixou de fazer desporto, não pode andar de bicicleta, correr, não pode fazer Pilates (63º ampliação). 51. Não pode dançar (64º ampliação). 52. A A. apresenta marcha claudicante. 53. A A. tem dores (26º ampliação). 54. A A. apresenta um complexo cicatricial rosado, atrófico e friável, com pontos de aderência aos planos profundos, moderadamente aparente, interessando a face anterior do terço distal da perna, bem como cicatrizes operatórias sub-rotuliana e supramaleolares bilaterais de boas características. 55. As cicatrizes que a A. apresenta inibem-na de mostrar o pé e a perna (65º ampliação). 56. A A não consegue dormir bem desde que teve o acidente, por causa das dores (66º ampliação). 57. Assusta-se quando circula de carro, nas ocasiões em que o seu marido vai a conduzir e a A. vai ao seu lado (69º ampliação). 58. A A. sente-se diminuída face ao que era antes do acidente (76º ampliação). 59. A A. recorre à CUF para monitorizar e acompanhar as suas dores e limitações (58º ampliação). 60. A A. teve consultas de psicologia a 30.04.2021, 29.05.2021, 28.08.2023 e 28.09.2023 (59º ampliação). III. Apreciação do mérito do recurso 1. Da impugnação da matéria de facto No seu recurso, a apelante põe em causa a apreciação da matéria de facto, pedindo que se considerem provados os factos que na sentença foram considerados não provados e identificados com as alíneas c) e k), a saber: c) Na semana de 8 a 15 de novembro, a A. correu risco de necrose da perna no local das feridas e por bolhas que surgiram no local dos hematosas, sendo o pior cenário a amputação (21º p.i.); k) A A. necessita de 8 horas de ajuda por semana para passar a ferro, fazer as limpezas, ir às compras (42º ampliação). Querendo impugnar a matéria de facto adquirida em primeira instância, o recorrente tem de cumprir os especiais ónus previstos no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC: «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;» Vejamos. Nas conclusões do recurso, o apelante identificou os factos não provados acima identificados [alíneas c) e k) dos factos não provados, ainda que quanto à alínea k) de forma indireta, implícita nos considerandos que fez nas conclusões 102 a 109], e pediu que passem a considerar-se como provados. Quanto ao primeiro, indicou os meios de prova nos quais alicerça a sua posição, a saber, depoimentos de duas testemunhas, um médico que assistiu a autora e o marido da mesma, tendo indicado as passagens da gravação e transcrito os excertos que considerou relevantes (apenas necessitava de o fazer nas alegações, mas repetiu-o nas conclusões). Quanto ao segundo, alicerça a sua pretensão em presunções que extrai de outros factos (veremos se são de acompanhar). Apreciando. Facto não provado «c) Na semana de 8 a 15 de novembro, a A. correu risco de necrose da perna no local das feridas e por bolhas que surgiram no local dos hematosas, sendo o pior cenário a amputação (21º p.i.)»: Foi perguntado ao médico que assistia a autora enquanto hospitalizada no período em referência no facto em análise se alguma vez pensou no pior cenário, de amputar a perna da autora. A resposta foi evasiva, remetendo para o facto de ser uma situação que pode acontecer quando há uma infeção que não se controla e uma cirurgia que possa ter maus resultados. Perguntado ao marido da autora se esta, a data altura, teve medo de ser amputada, respondeu afirmativamente, explicando que a perna estava muito infetada, que «todos os dias era drenado o pus e aquela necrose e as bolhas são saravam», «durante vários dias todas as manhã o médico passava de manha e dizia: isso não está bem», «tomava grandes doses de antibióticos», iam-lhe aumentando a dose. «Falou-se na situação» [de possível amputação]. É de ter em atenção na apreciação desta matéria que o acidente ocorreu em 14 de outubro (facto 1); a autora sofreu fratura da tíbia e do perónio (facto 11), e ficou a aguardar que as feridas fossem tratadas, a fim das condições cutâneas permitirem a cirurgia (facto 12), com a perna muito inchada, com bolhas, líquido e pele negra (facto 13), sendo operada apenas em 20 de novembro (facto 15). Conjugando estes factos e aqueles depoimentos, o facto da al. c), ora em questão, é suficientemente provável para ser considerado assente, pelo que o acrescentamos ao elenco dos factos provados, consignando-o sob o n.º 14-A. Facto não provado «k) A A. necessita de 8 horas de ajuda por semana para passar a ferro, fazer as limpezas, ir às compras»: A autora pede que este facto se considere provado sem indicar meios de prova. Alicerça o pedido na sua presunção pessoal, através de raciocínios que extrai de outros factos. Podemos entender que pretende que o consideremos provado por presunção judicial. Lembramos que esta consiste numa ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do CC). Em primeiro lugar, há que deixar claro o significado do pretendido facto no contexto de uma ação de responsabilidade civil por acidente de viação, e que consiste no seguinte: a autora necessita de um terceiro (cujo custo, a ré, responsável pelo acidente, suportaria), durante 8 horas por semana, para passar a ferro, fazer as limpezas e ir às compras. Com base na experiência comum, parece-nos exagerado que, numa casa de um casal com remunerações inferiores a dois salários mínimos per capita (classe média-baixa), com dois filhos (um adolescente e outro jovem adulto), sejam necessárias cerca de 16 horas por semana para limpezas, engomadoria e compras, caso em que caberiam à autora, 8 dessas 16 horas. Isto sem contar com a ajuda que os filhos devem dar nas ditas tarefas. Percorrendo os factos provados, não temos como provado que a autora tenha ficado, por causa do acidente dos autos, totalmente impossibilitada de passar a ferro, fazer compras e limpezas, nem que a sua casa necessite de 16 horas semanais dessas tarefas e que, portanto, a autora careça de um terceiro que faça as 8 horas que lhe incumbiriam. Provado está que os danos que sobrevieram à autora não a impossibilitam de executar as ditas tarefas, apenas lhe dificultam a sua execução; e, para compensar os esforços acrescidos nas tarefas do dia a dia, foi fixada à autora uma indemnização na vertente «dano biológico», cujo montante também é objeto deste recurso. Em suma, não aditamos o facto da al. k). 2. Do quantum indemnizatório 2.1. Enquadramento geral Considerando as conclusões da autora, as suas pretensões neste recurso são as seguintes: i. aumento da quantia fixada na sentença a título de «indemnização por danos não patrimoniais», de € 40.000 para € 60.000; ii. aumento da quantia fixada na sentença a título de «indemnização por dano patrimonial futuro» de € 40.000 para € 60.000; iii. assistência médica e medicamentosa contínua; iv. € 250 mensais para serviços de limpeza, engomadoria e compras. Veremos ponto por ponto. Preliminarmente, é de dizer que, na petição inicial, a autora liquidou a indemnização por danos de natureza não patrimonial em € 50.000, mas não liquidou indemnização pela vertente patrimonial do dano biológico ou danos patrimoniais futuros. No articulado superveniente, manteve o valor dos danos de natureza não patrimonial e liquidou o dano biológico em € 55.000. A pretensão de, neste recurso, ultrapassar aqueles patamares não tem base legal. Há que reapreciar os valores atribuídos, mas não poderão ser fixados valores que, para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial e do dano biológico, ultrapassem o total de € 105.000. Os fundamentos do que acabamos de afirmar encontram-se sobretudo nos artigos 260.º, 264.º, 265.º e 609.º e do CPC, que corporizam os chamados princípios da estabilidade da instância e do pedido. Para a melhor reapreciação dos danos e sua quantificação no caso concreto, há que ter em mente alguns conceitos gerais relativos à catalogação de danos, em especial, os conceitos e posicionamento do dano corporal, dano biológico, afetação da capacidade de ganho, e dano de natureza não patrimonial. Como pano de fundo, tenhamos presente o regime da obrigação de indemnizar constante dos artigos 562.º a 564.º, 566.º e 570.º do CC. Tradicionalmente, os danos subsumem-se numa das seguintes categorias jurídicas: danos patrimoniais, ou de natureza patrimonial, e danos não patrimoniais, ou de natureza não patrimonial (também designados, danos morais, embora, de acordo com certa nomenclatura, os morais também sejam tidos apenas como uma parcela dos não patrimoniais). Na presente apelação estão em causa danos de ambas as naturezas. Nos danos patrimoniais, distingue-se o dano emergente e o lucro cessante ou, nas expressões do artigo 564.º, n.º 1, do CC, o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. O dano emergente compreende o prejuízo causado nos bens ou direitos existentes na titularidade do lesado à data da lesão; o lucro cessante, os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas que ainda não tinha na sua titularidade à data da lesão. Na apelação, a autora discute, entre o mais, o cálculo das perdas salariais (lucros cessantes). De há uns anos a esta parte tem sido trabalhada a noção de dano corporal, que, de acordo com certa terminologia, e sobretudo numa fase inicial, também foi designado por dano biológico. O dano corporal (ou dano biológico, sinónimos de acordo com certa nomenclatura) designa lesões na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica. Trata-se de um dano real ou dano-evento, pelo que se situa num patamar mais elevado e a montante dos danos-consequência, sendo estes últimos que são suscetíveis de se reconduzir às categorias antes referidas. Sobre o conceito de dano corporal (ou biológico, quando sinónimos) no direito português, nomeadamente sobre a sua adoção pela jurisprudência, v. Maria da Graça Trigo, «Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português», ROA, Ano 72, I (jan.-mar. de 2012), pp. 147-178. A autora defende e conclui que «O dano biológico [conceito que ali utiliza como sinónimo de dano corporal], sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais» (p. 177, ênfases e frase entre parênteses retos nossos). Como dano-evento que é, do dano corporal podem decorrer danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais, podendo os primeiros assumir feição de danos emergentes ou de lucros cessantes. O dano corporal pode, portanto, refletir-se de várias maneiras na esfera patrimonial do lesado, nomeadamente: - Pode provocar perdas diretas de retribuição; - Pode provocar uma diminuição efetiva, mas indireta, da remuneração porque o lesado produzirá menos e, por via disso, receberá menos; - Pode, alternativamente, sem provocar perda efetiva de remuneração (pelo menos imediata e face à relação laboral ou profissional vigente), impor ao lesado um esforço acrescido para manter o nível de produtividade anterior ao dano. Para além destas situações, em conjunto com alguma delas ou isoladamente, o dano corporal pode causar ao lesado dificuldades acrescidas em atos correntes do dia-a-dia. É relativamente a esta decorrência que se tem colocado a questão de saber se se trata de dano patrimonial ou de dano não patrimonial. Como quer que se entenda, o dano corporal pode ter também, e normalmente tem, (outros) reflexos não patrimoniais. Com o tempo, tem vindo a reservar-se a expressão dano corporal para o acima referido dano real ou dano-evento e a designar-se por dano biológico uma das suas possíveis decorrências. É claramente essa a terminologia adotada na Portaria 377/2008, de 26 de maio – que regulamenta o DL 291/2007, de 21 de agosto, que, por sua vez, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel –, com as alterações introduzidas pela Portaria 679/2009, de 25 de junho. Esta portaria designa por dano corporal o dano real ou dano-evento ao qual destinámos até agora indiferentemente as expressões “dano corporal” e “dano biológico”; e destina a expressão “dano biológico” para um dos danos-consequência do dano corporal. O que acabamos de escrever torna-se claro da leitura dos seguintes artigos ou trechos: - Pela presente portaria fixam-se os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal (artigo 1.º, n.º 1); - Nos termos do disposto no artigo 3.º, são indemnizáveis em caso de danos corporais, fora do caso de morte, os seguintes: a) Os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional; b) O dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil; c) As perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data da fixação da incapacidade; d) As despesas comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões sofridas no acidente. Nos termos do disposto no artigo 4.º, além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo I da presente portaria, nas seguintes situações: a) Por cada dia de internamento hospitalar; b) Pelo dano estético; c) Pelo quantum doloris; d) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta para a prática de toda e qualquer profissão ou da sua profissão habitual; e) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da atividade habitual; f) Quando resulte uma incapacidade permanente absoluta para o lesado que, pela sua idade, ainda não tenha ingressado no mercado de trabalho e por isso não tenha direito à indemnização prevista na alínea a) do artigo anterior. Na Portaria 377/2008, o “dano biológico” é, pois, um dano-consequência do “dano corporal”; consiste no dano pela ofensa à integridade física e psíquica, de que resulte ou não perda da capacidade de ganho. Esta aceção corresponde essencialmente àquela que se afigura ser atualmente predominante na jurisprudência do STJ: “dano biológico” enquanto consequência patrimonial da incapacidade geral ou funcional do lesado (assim se conclui no Ac. do STJ de 24/02/2022, proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Cons. Maria da Graça Trigo). A lógica das normas da Portaria está explicada no seu preâmbulo, após ali se afirmar que parte significativa das soluções adotadas está ancorada em estudos sobre a sinistralidade automóvel do mercado segurador e do Fundo de Garantia Automóvel, bem como na experiência partilhada por estas entidades. Pelas normas do mesmo diploma (Portaria 377/2008, com as atualizações introduzidas pela Portaria 679/2009), o dano biológico é indemnizado: - nos termos dos artigos 3.º, alínea b), 8.º e anexo IV, com indemnização «calculada segundo a idade e o grau de desvalorização, apurado este pela Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, e com referência inicial ao valor da RMMG (retribuição mínima mensal garantida)» (trecho do preâmbulo) – no caso sub judice atingir-se-ia o máximo de € 7.505,19 pois a autora tinha 36 anos à data do acidente (factos 1 e 38) e foi-lhe fixado défice funcional permanente em 7 pontos; e - nos termos previstos no artigo 4.º, alínea e), e no anexo I, a título de danos morais, quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente superior a 10 pontos (v. anexo I), que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua atividade habitual. Apesar de a Portaria ser conceptualmente robusta, os valores de indemnização a que se chega através da sua aplicação, designadamente por dano biológico (artigos 3.º, alínea b), 8.º e anexo IV), são francamente reduzidos e, nessa medida, ponderados apenas como mínimo irredutível – v. Ac. do TRL de 12/09/2017, proc. 3310/11.8TBALM.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa). A própria Portaria, em sede preambular, frisa que o seu objetivo não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do DL 291/2007, de 21 de agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda uma avaliação, tão objetiva quanto possível, pela autoridade de supervisão, da razoabilidade das propostas apresentadas. Os critérios e soluções da Portaria destinam-se, portanto, expressa e diretamente a um âmbito de aplicação extrajudicial: determinação do conteúdo mínimo, por categorias de danos, da proposta que a seguradora deve oferecer no âmbito da regularização do sinistro. 2.2. Danos de natureza não patrimonial Além do acima exposto sobre esta categoria de danos, acrescenta-se que, na fixação da indemnização respetiva, devem ser atendidos os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º, n.º 1, do CC. Estão aqui em causa todos os danos de natureza não patrimonial reconduzíveis ao teor do citado artigo, incluindo aqueles que decorrem do dano corporal. Não sendo os danos não patrimoniais suscetíveis de quantificação, o seu ressarcimento tem uma função essencialmente compensatória: permitir ao lesado dispor de uma soma de dinheiro que lhe permita adquirir bens ou serviços que lhe deem alguma satisfação, compensando, ainda que sofrivelmente, o mal padecido. O montante pecuniário será fixado com recurso à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente (que, no caso, foi enorme – factos 1 a 7), a sua situação económica e a do lesado, e as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º, ex vi do artigo 496.º, n.º 4, ambos do CC). Como, de há muito e reiteradamente, tem sido afirmado nas decisões dos tribunais superiores, a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser meramente simbólica, sob pena de não se mostrar adequada aos fins a que se destina – atenuação da dor sofrida pelo lesado e reprovação da conduta do agente – v. a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 10/05/2017, proc. 131/14.0GBBAO.P1.S1 (Gabriel Catarino), de 25/11/2009, proc. 397/03.0GEBNV.S1 (Raul Borges), este com extensa citação de acórdãos do STJ sobre o tema, e de 18/12/2007, proc. 07B3715 (Santos Bernardino). Vejamos os factos relevantes para avaliação dos danos de natureza não patrimonial: - A autora sofreu acidente de viação em 14.10.2019, no qual sofreu fratura da tíbia e do perónio, tendo sido hospitalizada no mesmo dia (factos 1, 10 e 11); - Foi operada cinco semanas após, em 20/11/2019, tendo, entretanto, padecido muitas dores, com a perna muito inchada, com bolhas, líquido e pele negra (factos 12 a 15); - Teve alta hospitalar em 29/11/2019, pelo que sofreu 47 dias de internamento (factos 16 e 18); - Teve alta hospitalar com muitas restrições, entre as quais realizar levante com meias de contenção, alternar períodos de marcha com períodos de repouso, quando em repouso, manter membro elevado, aplicar gelo 3 x dia, ter auxílio nas atividades de vida diárias (facto 17); - A autora, que vive com o companheiro e dois filhos e que antes trabalhava e contribuía para o sustento da família, ficou angustiada por não poder trabalhar, nem proporcionar afetos e cuidados à sua família, sentiu-se um peso e um estorvo (factos 21 a 25); - A autora teve de alugar uma cadeira de rodas, o que fez a 28/11/2019, e que teve de usar até 23.01.2020, período durante o qual necessitou de terceira pessoa para a sua higiene pessoal, tarefas domésticas, acompanhamento do filho mais novo de/para a escola do dia a dia, levar o filho mais novo à escola (factos 29 a 35); - Entre a primeira alta hospitalar e a consolidação das lesões em 09/06/2021, foi sujeita a nova cirurgia em 24.06.2020, em virtude de pseudartrose do terço distal da tíbia direita, com remoção das cavilhas da tíbia e do perónio, colheita de enxerto da crista ilíaca anterior direita e OTS da tíbia com placa medial LCP; e fez fisioterapia, consistente em massagem e electroestimulação, até 09.06.2021 (factos 39 e 40). - As lesões só vieram a consolidar-se em 09/06/2021, vinte meses após o acidente, sendo então fixado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 7 pontos, que incluem a máxima limitação da flexão dorsal do tornozelo direito, implicando esforços acrescidos no exercício da atividade profissional habitual (facto 37); - A repercussão temporária na atividade profissional total fixou-se em 605 dias (regressou ao trabalho em maio de 2021, 19 meses após o acidente), desde a data do acidente até à data da consolidação, o quanto doloris em 5/7, o dano estético em 4/7, ainda necessitará de ser intervencionada para retirar material de osteossíntese e necessitará para sempre de talonete (factos 37 d), e), j), e 43). O longo rol de circunstâncias que acabámos de consignar tem necessariamente consequências graves e prolongadas no bem-estar, importando em anos de dores, preocupações e angústias, necessidade de lidar com incapacidades permanentes em todos os atos da vida que implicam andar, estar de pé, subir escadas. Uma pessoa ter um acidente com fraturas numa perna (como as da autora), mas ficar com a lesão estabilizada ao fim de um par de meses, com incapacidade permanente parcial de 7% (pelo mesmo dano físico da autora de máxima limitação da flexão dorsal do tornozelo direito e complexo cicatricial), mas sem dores, é muito diferente de sofrer as mesmas fraturas, e, ainda, padecer 20 meses de dores, cirurgias, tratamentos, incapacidade para o trabalho e, pelo menos nos primeiros três meses, para as atividades diárias básicas, acrescendo que, aquando da estabilização das lesões, ainda continuará com dores, terá de se sujeitar a futura cirurgia, e está para sempre diminuída na atividade mais básica, constante e necessária da vida diária – andar. Note-se que, depois da consolidação, 20 meses volvidos sobre o acidente: - foi comunicado à autora que a sua perna não tinha mais evolução positiva, podia fazer uma cirurgia, mas tinha riscos (facto 41); - o calcanhar da autora não assenta no chão, revelando um encurtamento do membro inferior direito, compensado com talonete, a limitação na flexão dorsal do tornozelo dificulta a subida escadas, desequilibra-se, especialmente em superfícies irregulares (v.g., na praia) ou inclinadas, tem dificuldades em agachar-se não consegue estar muito tempo de pé, nem carregar pesos, desloca-se com marcha claudicante (factos 44 a 46, 48, 49, 52); - a autora deixou de poder dançar, andar de bicicleta, correr (factos 50 e 51); - deixou de usar sandálias e saltos altos, inibe-se de mostrar o pé e a perna (factos 47 e 55); - tem dores e, por causa delas, não consegue dormir bem desde que teve o acidente (factos 53 e 56). - assusta-se quando circula de carro (facto 57). A situação da autora, nomeadamente pelas circunstâncias da lista acabada de escrever (posteriores à consolidação das lesões em 09/06/2021), tem um necessário, enorme e constante impacto no seu bem-estar vida fora. A autora sente-se diminuída face ao que era antes do acidente, e tenta minorar o seu sofrimento, recorrendo a hospital particular para monitorizar e acompanhar as suas dores e limitações e tendo consultas de psicologia (factos 58 a 60). A compensação pelos danos de natureza não patrimonial tem de atender, passe a tautologia, aos efetivos danos com essa natureza. Não nos devemos impressionar com a baixa percentagem de “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica”, que foi fixada atendendo apenas a categorias tabelares genéricas relacionadas com aspetos mecânicos e/ou palpáveis do corpo (in casu, código Mc0636, limitação da flexão dorsal do tornozelo direito - 5 pontos – e código Pa0101, complexo cicatricial da perna direita - 1,9 pontos), sem atenção à repercussão dos indicados males na vida diária e no bem-estar da autora, e sem atenção ao sofrimento, passado ou futuro. A mesma percentagem de “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” (7 pontos) e as lesões reconduzíveis às mesmas categorias e pontos (código Mc0636, limitação da flexão dorsal do tornozelo direito - 5 pontos - e código Pa0101, complexo cicatricial da perna direita - 1,9 pontos) podem ter consequências muitos diferentes em pessoas diferentes. Basta que num caso a massa que impede a flexão não contenda em momento algum com um nervo (v.g. plantar, tibial, ciático) e noutro caso contenda. Também as circunstâncias de vida e as formas de encarar os revezes são muito díspares. Para uma pessoa sem responsabilidades parentais e endinheirada a situação física objetiva da autora terá repercussões psicológicas muito mais leves. Tudo ponderado, concluímos que devem ser concedidos os pedidos € 50.000 a título de compensação por danos de natureza não patrimonial. Este montante vai ao encontro de casos paralelos recentes, como os dos seguintes exemplos. Ac. STJ de 06-06-2023, proc. 9934/17.2T8SNT.L1.S1 (Manuel Capelo), e cujo ponto 3 do sumário se lê: «É adequada a indemnização de € 50.00,00 por danos não patrimoniais de quem foi atropelado numa passadeira de peões, cujas lesões se consolidaram ao fim de um ano, ficando com quatro cicatrizes; com sofrimento físico e psíquico entre o acidente e a consolidação mensurado como de grau 5 numa escala de 7, cujo défice funciona permanente físico foi fixado em 12 pontos, repercutindo-se as sequelas nas atividades de lazer e convívio social que exercia de forma regular em grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente, com dano estético permanente de grau 3 numa escala de 7, sendo previsível o agravamento da artrose pós-traumática do tornozelo». Ac. STJ de 09-05-2023, proc. 7509/19.0T8PRT.P1.S1 (Jorge Arcanjo), no qual se relata que o autor tinha 33 anos na data do acidente, ficou portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, dano estético permanente fixável no grau 3/7sofreu dores fixadas no grau 4/7, foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, a um total de 60 sessões de fisioterapia, de forma dolorosa, o período de défice funcional temporário parcial foi de 536 dias, com repercussão total na atividade profissional por um período de 249 dias. Foi-lhe fixada indemnização de € 40.000 por danos não patrimoniais. Por tudo o exposto, fixamos o valor da indemnização por danos de natureza não patrimonial em € 50.000,00, valor com o qual substituímos o de € 40.000,00 da alínea c) do n.º 1 do dispositivo da sentença. 2.3. Dano biológico Tendo presente o que acima escrevemos em III.2.1., vejamos os factos mais relevantes para a avaliação do dano biológico (dano pela ofensa à integridade físico-psíquica): - A autora sofreu acidente de viação em 14.10.2019, no qual sofreu fratura da tíbia e do perónio, tendo sido hospitalizada no mesmo dia (factos 1, 10 e 11); - Foi operada cinco semanas após, em 20/11/2019, tendo, entretanto, padecido muitas dores, com a perna muito inchada, com bolhas, líquido e pele negra (factos 12 a 15); - Teve alta hospitalar em 29/11/2019, pelo que sofreu 47 dias de internamento (factos 16 e 18); - Teve alta hospitalar com muitas restrições, entre as quais, realizar levante com meias de contenção, alternar períodos de marcha com períodos de repouso, quando em repouso, manter membro elevado, aplicar gelo 3 x dia, ter auxílio nas atividades de vida diárias (facto 17); - A autora, que vive com o companheiro e dois filhos e que antes trabalhava e contribuía para o sustento da família, ficou angustiada por não poder trabalhar, nem proporcionar afetos e cuidados à sua família, sentiu-se um peso e um estorvo (factos 21 a 25); - A autora teve de alugar uma cadeira de rodas, o que fez a 28/11/2019, e que teve de usar até 23.01.2020, período durante o qual necessitou de terceira pessoa para a sua higiene pessoal, tarefas domésticas, acompanhamento do filho mais novo de/para a escola do dia a dia, levar o filho mais novo à escola (factos 29 a 35); - Entre a primeira alta hospitalar e a consolidação das lesões em 09/06/2021, foi sujeita a nova cirurgia em 24.06.2020, em virtude de pseudartrose do terço distal da tíbia direita, com remoção das cavilhas da tíbia e do perónio, colheita de enxerto da crista ilíaca anterior direita e OTS da tíbia com placa medial LCP; e fez fisioterapia, consistente em massagem e electroestimulação, até 09.06.2021 (factos 39 e 40). - As lesões só vieram a consolidar-se em 09/06/2021, vinte meses após o acidente, sendo então fixado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 7 pontos, que incluem a máxima limitação da flexão dorsal do tornozelo direito, implicando esforços acrescidos no exercício da atividade profissional habitual (facto 37); - A repercussão temporária na atividade profissional total fixou-se em 605 dias (regressou ao trabalho em maio de 2021, 19 meses após o acidente), desde a data do acidente até à data da consolidação, o quantum doloris em 5/7, o dano estético em 4/7, ainda necessitará de ser intervencionada para retirar material de osteossíntese e necessitará para sempre de talonete (factos 37 d), e), j), e 43). - o calcanhar da autora não assenta no chão, revelando um encurtamento do membro inferior direito, compensado com talonete, a limitação na flexão dorsal do tornozelo dificulta a subida escadas, desequilibra-se, especialmente em superfícies irregulares (v.g., na praia) ou inclinadas, tem dificuldades em agachar-se não consegue estar muito tempo de pé, nem carregar pesos, desloca-se com marcha claudicante (factos 44 a 46, 48, 49, 52); - a autora deixou de poder dançar, andar de bicicleta, correr (factos 50 e 51); - deixou de usar sandálias e saltos altos, inibe-se de mostrar o pé e a perna (factos 47 e 55); - tem dores e, por causa delas, não consegue dormir bem desde que teve o acidente (factos 53 e 56). - assusta-se quando circula de carro (facto 57). Os factos agora listados já o tinham sido em sede de indemnização por danos de natureza não patrimonial na medida em que, como então se disse, se reportam ou originam danos dessa natureza. Os mesmos factos, porém, também têm repercussão patrimonial, pelos esforços acrescidos que demandam em praticamente todas as atividades, seja de lazer, trabalho ou outras. Como acima referimos, pelas normas da Portaria 377/2008 (com as atualizações introduzidas pela Portaria 679/2009), o dano biológico sofrido pela autora, na sua vertente patrimonial, seria indemnizado em cerca de € 7.000. Com efeito, nos termos do artigo 8.º, a compensação prevista na alínea b) do artigo 3.º – dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil –, é calculada de acordo com o quadro constante do anexo IV da portaria. Considerando os valores do dito anexo, que a autora tinha 36 anos à data do acidente (factos 1 e 38), e que lhe foi fixado défice funcional permanente segundo a TNAIPDC em 7 pontos, no caso sub judice atingir-se-ia o máximo de € 7.505,19. Este valor é apenas um mínimo irredutível e muito insuficiente para ressarcir o dano no caso concreto. Lembramos que a autora continua a sofrer de dores e que trabalha como assistente de ação direta numa IPSS que apoia pessoas deficientes. A autora tem cerca de 30 anos de vida ativa pela frente e muitos mais de esperança de vida, durante os quais praticamente todas as atividades que possa exercer estão dificultadas, pela falta de flexão do pé, dores e desequilíbrio. Nos casos análogos mais recentes, a indemnização pelo dano biológico aproxima-se do pedido formulado pela autora. Por exemplo, na situação do Ac. STJ de 06-06-2023, proc. 9934/17.2T8SNT.L1.S1 (Manuel Capelo), em cujo sumário se lê: IV - É adequada a indemnização de € 60.000,00 por danos patrimoniais futuros na vertente de dano biológico de lesada que tinha 35 anos na data do acidente, a profissão de cabeleireira, cujas sequelas, causadoras de défice funcional permanente de 12 pontos, são compatíveis com a sua profissão, mas implicam esforços suplementares acrescidos, estando desempregada na data do acidente e que iria começar a trabalhar no mês seguinte como cabeleireira, tendo tirado o respetivo curso e trabalhando antes disso a dias em limpezas. Ou no caso do Ac. STJ de 09-05-2023, proc. 7509/19.0T8PRT.P1.S1 (Jorge Arcanjo), no qual o autor tinha 33 anos na data do acidente, médico dentista e ciclista federado, ficou portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, dano estético permanente fixável no grau 3/7, sofreu dores fixadas no grau 4/7, foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, a um total de 60 sessões de fisioterapia, de forma dolorosa, o período de défice funcional temporário parcial foi de 536 dias, com repercussão total na atividade profissional por um período de 249 dias. Foi-lhe fixada indemnização de € 80.000,00, pelo dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros. Noutros casos similares, foram fixadas indemnizações inferiores. Por exemplo, no Ac. STJ de 12/12/2017, proc. 1292/15.6T8GMR.S1 (Hélder Roque), 24 anos de idade, 11 pontos de défice funcional, com lesões e recuperação mais complexas e demoradas, indemnização de € 30.000 pelo dano biológico na vertente patrimonial. Ou no Ac. STJ de 14/09/2023, proc. 1974/21.3T8PNF.P1.S1 (Oliveira Abreu), 22 anos de idade, 5 pontos de défice funcional e € 12.000 de indemnização pela perda da capacidade de ganho e pelos esforços acrescidos. Neste caso, porém, o quantum doloris é de 1/7, e o dano não tem não tem repercussão permanente nas atividades desportivas e de l, nem na atividade sexual. Considerando as descritas circunstâncias da autora – idade, longos anos de vida pela frente, natureza da lesão que afeta o andar e, com isso, praticamente todas as atividades, desequilíbrio e dores –, considerando os valores jurisprudenciais mais recentes para casos com muitas semelhanças, considerando, ainda, o facto de a Portaria apenas ter sofrido atualização no primeiro ano, há 16 atrás, julgamos adequado fixar a indemnização pelo dano biológico da autora, vertente patrimonial, em € 50.000. Em suma, fixamos o valor da indemnização pela vertente patrimonial do dano biológico em € 50.000,00, valor com o qual substituímos o de € 40.000,00 da alínea b) do n.º 1 do dispositivo da sentença. 2.4. Da assistência médica e medicamentosa futura No presente recurso, a autora pede que a seguradora apelada seja condenada a pagar-lhe as quantias que vierem a ser liquidadas em decisão ulterior, relativas às despesas com medicação adequada para as dores (pomada e medicamentos), bem como acompanhamento médico e medicamentoso contínuo emergente do dano biológico de que ficou a padecer em resultado do acidente ocorrido no dia 14/10/2019. Na sentença, no que respeita a despesas vindouras, a ré foi apenas condenada a suportar, no futuro, os custos com as seguintes necessidades permanentes da autora: i) ajudas técnicas de manutenção e substituição de talonete; e ii) cirurgia de extração de material de osteossíntese da tíbia esquerda. Com relevância para a presente questão, mostram-se provados os seguintes factos: «37. (…) j) Tem necessidades permanentes: i) ajudas técnicas manutenção e substituição de talonete; ii) cirurgia de extração de material de osteossíntese da tíbia esquerda.» «53. A A. tem dores (26º ampliação).» «56. A A não consegue dormir bem desde que teve o acidente, por causa das dores (66º ampliação).» «59. A A. recorre à CUF para monitorizar e acompanhar as suas dores e limitações (58º ampliação).» Em sede de fundamentação de direito, lê-se nas pp. 40-50 da sentença: «8. Dano futuro Todo e qualquer dano futuro, tais como medicamentos, dores, incómodos + Assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos, incluindo viagens adequadas para repor a situação anterior e tratar as lesões da A. Assim, são apenas estas as situações em que competirá à R. assumir a responsabilidade pelas despesas inerentes, inexistindo suporte fáctico para condenar a R. a suportar as demais despesas indicadas pela A. a título de dano futuro.» Na parte decisória da sentença, porém, apenas ficaram acautelados os custos com as despesas futuras referidas na al. j) do facto 37. Não ficaram contempladas na condenação as possíveis e previsíveis futuras despesas com médicos e medicamentos para controlo das dores ainda decorrentes do dano físico causado pelo acidente. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 564.º do CC, na fixação da indemnização o tribunal pode atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis. Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado – assim o determina o n.º 2 do artigo 609.º do CPC. No caso, é previsível que a autora tenha de despender no futuro quantias em médicos e medicamentos para debelar as dores na perna/pé de que sofre por causa do acidente. Nesta medida acrescenta-se a condenação da ré a indemnizar a autora pelas despesas futuras que esta tenha de suportar em médicos e medicamentos com vista a debelar as dores decorrentes do dano físico causado pelo acidente, a liquidar ulteriormente (fica na disponibilidade da autora deduzir o respetivo incidente, quando o entender oportuno, e se perspetivar essa iniciativa como compensadora). 2.5. Da ajuda de terceira pessoa A autora pretende, finalmente, que lhe seja fixada indemnização no valor de € 250 mensais para serviços de limpeza, engomadoria e compras. Porquanto explicado em III.1. não se provou o facto que poderia justificar tal compensação. IV. Decisão Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, fixando o valor da indemnização por danos de natureza não patrimonial em € 50.000,00 (em substituição do valor de € 40.000,00 da alínea c) do n.º 1 do dispositivo da sentença), e o valor da indemnização pela vertente patrimonial do dano biológico também em € 50.000,00 (em substituição do valor de € 40.000,00 da alínea b) do n.º 1 do dispositivo da sentença), e condenando, ainda, a ré a indemnizar a autora pelas despesas médicas e medicamentosas futuras com vista a debelar as dores decorrentes do dano físico causado pelo acidente, a liquidar oportunamente; confirma-se, no mais, a sentença recorrida. Custas por autora e ré em partes iguais. Lisboa, 30/01/2025 Higina Castelo Fernando Caetano Besteiro Susana Maria Mesquita Gonçalves |