Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20206/17.2T8LSB.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DURAÇÃO DO TRABALHO
NRAU
MICROEMPRESA
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I -  O conceito de “microempresa” definido no nº 5 do artigo 51º do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, deve ser interpretado de per si, sem recurso a conceitos consagrados noutros diplomas jurídicos, atendendo aos fins específicos visados pelo legislador com aquela Lei: protecção especial para as empresas, que, pela sua dimensão, justificam tratamento diferenciado em sede de arrendamento para fins próprios da sua actividade.
II - Os requisitos previstos no nº 5 do artigo 51º do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, para qualificar uma empresa como “microempresa”, não são coincidentes com os requisitos consagrados noutros diplomas para aquela qualificação, nomeadamente, o consagrado no art. 2º, nº 3 do anexo 1 do Decreto-Lei nº 372/2007, de 6 de Novembro, que criou a “certificação por via electrónica de micro, pequena e média empresas”, que designa por “PME”, e que, no seu artigo 2º, afirma que “Para efeitos do presente decreto-lei, a definição de PME, bem como os conceitos e critérios a utilizar para aferir o respectivo estatuto, constam do seu anexo, que dele faz parte integrante, e correspondem aos previstos na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão Europeia, de 6 de Maio.”.
III – A qualificação de uma empresa como “microempresa” para efeitos do nº 5 do artigo 51º do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, pode – e deve – ser desconsiderada no caso concreto, com recurso, nomeadamente, aos institutos jurídicos de fraude à lei, má-fé e abuso de direito (e porventura ainda outros, v.g., levantamento ou desconsideração da personalidade colectiva), de forma a evitar a utilização daquela qualificação para fins não coincidentes com os visados pelo legislador com a sua criação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
A [ José Pedro …..]  intentou a presente ação contra B [ Sapataria …., Lda” ] , pedindo que seja declarada a inexistência do direito da Ré à renovação do contrato de arrendamento, por um período de 3 anos, prevista no nº 3 do art. 6º da Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, relativo à loja e sobreloja sitas na Rua do Carmo, nº …., freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, que aquela invocou em carta de 03/02/2015, por não se encontrarem preenchidos cumulativamente todos os requisitos exigidos naquela norma para esse efeito.
Para o efeito, alega em síntese útil, que: é usufrutuário daquele imóvel e a Ré arrendatária do mesmo desde 1936, destinando a referida loja e sobreloja a estabelecimento de venda e a oficina e manufatura de calçado; em 29 de Janeiro de 2013, o Autor comunicou à Ré, ao abrigo do disposto nos arts. 50º e ss da Lei nº 6/2006, de 27/02, na redação dada pela Lei nº 32/2012, de 14/08, a actualização da renda e a transição do contrato para o NRAU, passando a renda mensal a ter o valor de € 1.050,00 e o contrato considerar-se celebrado pelo prazo certo de 5 anos, renovável por períodos de 3 anos; a Ré opôs-se ao tipo, duração do contrato e à aplicação do NRAU, e contrapropôs que a renda se fixasse em € 685,00 e que o contrato se mantivesse para fins não habitacionais por tempo indeterminado, o que o Autor não aceitou, comunicando à Ré que, nos termos dos arts. 2º, 33º, nºs 1 e 5, al. b), conjugado com o art. 35º, nº 2, als. a) e b), todos do NRAU, o contrato para fins não habitacionais se considerava celebrado por um prazo certo de 5 anos e que a renda mensal se fixava em € 762,50, alterações que entraram em vigor no primeiro dia do segundo mês seguinte; em 03/02/2015, a Ré comunicou ao Autor que, ao abrigo do art. 6º, nº 3 da Lei nº 79/2014, de 19/12, verificando-se todos os requisitos desta disposição, o Autor não poderia opor-se à renovação do contrato por um período de três anos, sem prejuízo da atualização da renda por aplicação dos coeficientes de atualização anual respetivos; porém, o Autor contesta que a Ré seja uma microempresa, concluindo que a mesma não tem direito à renovação prevista no nº 3 do art. 6º da Lei nº 79/2014, de 19/12; se é certo que, em matéria de arrendamento não habitacional, os limites no domínio dos efectivos e dos limiares financeiros a considerar para a caracterização de uma dada empresa como microempresa são aqueles que constam da redacção do art. 51º, nº 5 da Lei nº 6/2006, também é certo que o regime do arrendamento urbano em vigor não prevê quais as regras a observar quanto à forma como devem ser calculados, anualmente, o balanço, o volume negócios líquido e o número médio de empregados durante o exercício; e, tal lacuna, deve ser suprida pelo recurso, por analogia, às regras estabelecidas no Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11, e anexo que o integra, na medida em que as razões que justificam a regulamentação estabelecida neste diploma procedem no presente caso, uma vez que a Ré, ao invocar que é uma microempresa, pretende beneficiar de uma vantagem que a lei, no domínio do arrendamento urbano, reserva para as entidades com este estatuto; por aplicação das regras contidas no citado Decreto-Lei nº 372/2007, as sociedades “Sapataria Jandaia, Lda.”, “Inter-modas Internacionais, Lda.”, e “Representações e Comércio Domingos Brandão, Lda.” são empresas associadas da ora Ré e, como tal, os dados destas empresas também devem ser incluídos na caracterização da Ré como pequena, média ou grande empresa, o que significa que o volume de negócios líquido da Ré é de € 2.750.769,58 e o seu número de efectivos 28, não reunindo os requisitos de micro empresa.
A Ré B contestou, defendendo a improcedência da acção.
Para o efeito, em síntese útil, impugna alguns factos; e discorda das conclusões do Autor, por entender que a Lei nº 6/2006, no seu art. 51º, define, expressamente, o que é uma microempresa para efeitos dessa Lei e que, com essa norma, o legislador pretendeu estabelecer especificamente um regime jurídico especial diferente do que consta do Dec. Lei nº 372/2007; e, sendo assim, a Ré reúne todos os requisitos da microempresa definidos no art. 51º da Lei nº 6/2006, beneficiando do direito à renovação do contrato nos termos previstos no art. 6º, nº 3 da Lei nº 79/2014.
Foi realizada audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador, tendo sido fixado o objecto do litígio e os temas de prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente.
Inconformado com tal sentença, veio o Autor dela interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes Conclusões:
“A – O conceito de microempresa constante do n.º 5 do artigo 51.º do NRAU – na redacção vigente, introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro – definiu esta como sendo a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites enunciados nas a), b) e c) desse segmento normativo;
B – Na sentença, ora sob recurso, evidenciou-se que a R. – a sociedade B – em conjunto com mais três outras sociedades por quotas têm quatro sócios sempre comuns e, ainda, com idênticas proporções no capital social dessas empresas, na ordem de 30% para cada um dos três sócios e de 10% para o sócio restante (cf. parágrafos 19 a 35 dos factos dados como provados na sentença de que ora se recorre);
C – Ao que acresce o facto de estas quatro sociedades se dedicarem ao comércio de calçado e outros produtos similares, sob a denominação genérica de Sapataria Jandaia, sendo possível adquirir um bem num estabelecimento de uma dessas sociedades e trocá-lo por outro bem noutro estabelecimento com idêntica denominação pertencente a outra dessas quatro sociedades (cf. parágrafos 36 e 37 dos factos dados como provados na sentença sub judice);
D – Do que resulta que esta unidade de negócio, protagonizada por estas sociedades em relação de grupo, excede todos os limites previstos para a caracterização da Ré, ora Recorrida como microempresa;
E – Assim, a questão fulcral prende-se, tão-somente, com a interpretação a dar ao n.º 5 do artigo 51.º do NRAU (na redacção da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro);
F – Na sentença, que ora se impugna, acentuou-se o facto de a definição de microempresa vir precedida da preposição “para efeitos da presente lei”, o que implicava necessariamente, nos dizeres desse aresto, ser aquele o único critério para aferir da qualidade de microempresa de que a R. se arroga;
G – Ora, como vem sendo entendimento pacífico, perfilhado tanto pela doutrina como pela jurisprudência, a interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente;
H – Impondo-se, enquanto intérpretes, presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cf. artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil), não se pode ignorar que o legislador, no mesmo segmento da norma em que refere “para efeitos da presente lei”, apôs também um outro critério para a caracterização da microempresa, considerando que esta deverá ser considerada como tal “independentemente da sua forma jurídica”;
I – O que denota, por parte do legislador, a clara intenção de situar o conceito de empresa não apenas numa perspectiva apenas formal, mas essencialmente numa perspectiva substancial;
J – O que aliás se compagina com Recomendações da União Europeia (v.g. Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE, de 6 de Maio), bem como da legislação nacional que a acolheu (v.g. Decreto-Lei n.º 327/2007, de 6 de Novembro) prescrevendo também nesse sentido;
L – Avulta ainda, nesta interpretação sistemática, a publicação do Novo Regime Jurídico da Concorrência – a Lei n.º 19/2012, de 18 de Maio – onde claramente se enuncia um conceito de empresa em que o que releva para a sua identidade é o facto de constituírem uma unidade económica ou de manterem entre si laços de interdependência, mesmo tratando-se de um conjunto de empresas juridicamente distintas (cf. n.º 2 do artigo 3.º desse diploma);
M – Assim, estando na base deste dissídio um estabelecimento comercial e questões relativas ao arrendamento urbano não habitacional, é forçoso reconhecer, em prol da unidade do sistema jurídico, que a definição de microempresa adoptada pelo legislador da Lei n.º 19/2014, não podia ignorar o conceito de empresa definido anteriormente pelo mesmo legislador, em 2012, na regulação do regime jurídico da concorrência;
N – Resulta dos autos que, não obstante existirem quatro estabelecimentos comerciais aparentemente autónomos, na realidade, estamos perante uma única empresa, consubstanciada numa estrutura organizada de meios de produção, que possuem marca e demais elementos comuns, sob a mesma marca, imagem institucional, clientela e direção;
O - Na verdade, o legislador, ao criar uma norma de protecção para determinadas categorias de arrendatários, in casu as microempresas, atendendo às suas especificidades, pretendeu subtrair estas ao regime geral, o que aliás é coerente com a mens legislatoris visível noutros diplomas sobre este tipo de entidades empresariais;
P – Mas o que não se pode pretender é que, por meros artifícios legais – a constituição de quatro empresas com idêntico objecto social e detidas pelos mesmos sócios, funcionando sobre a mesma denominação, como se de uma só empresa se tratasse – se venha a obter um resultado que a lei previu e proibiu;
Q – Com efeito, a norma ínsita no n.º 5 do artigo 51.º do NRAU tem por objectivo proteger, no regime do arrendamento urbano, as microempresas, consideradas em função do total do balanço, do volume de negócios líquido e do número médio de empregados durante o exercício, mas tratando-se de várias empresas que devam ser consideradas como uma só, esses limiares terão de ser apurados pela soma desses elementos das sociedades associadas, apesar de juridicamente distintas;
R – Mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, perfilar-se-ia a criação de um artifício para defraudar a lei;
S – E, embora o legislador não tenha previsto, em termos genéricos, a figura da fraude à lei, excepto quanto às normas de conflitos em direito internacional privado, esta é extensível a todo o negócio jurídico, consistindo na prática de um ou mais actos lícitos para obter um resultado que a lei proíbe;
T – No caso dos autos é evidente o nexo entre a constituição de várias sociedades, de forma lícita, para lograr obter um resultado que a lei proíbe – que venham a ser reconhecidas como microempresas aquelas que, sem esse subterfúgio, não poderiam ser caracterizadas como tal, por ultrapassarem os limiares definidos na lei.”.
Contra-alegou a apelada, pugnando pela improcedência da apelação, e formulando as seguintes Conclusões:
“I) A Recorrida tem direito à renovação do contrato de arrendamento, ao abrigo do nº 3 do artigo 6º da Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, relativo à Loja e Sobreloja sitas na Rua do Carmo, nºs. …., freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, por um período de três anos;
II) A decisão proferida encontra-se bem fundamentada, não merecendo a censura que o Recorrente lhe aponta e que consiste na errada interpretação e aplicação do direito;
III) O Recorrente considera que a norma constante do n.º 5 do artigo 51.º do NRAU – na redacção vigente, introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, foi incorrectamente interpretada, na medida em que não atendeu ao segmento que refere “independentemente da sua forma jurídica”, antes apenas considerou aqueloutro que diz “para efeitos da presente lei”.
IV) Entende, pois, que tal expressão denota, por parte do legislador, a clara intenção de situar o conceito de empresa não apenas numa perspectiva formal, mas essencialmente de cariz substancial;
V) O normativo em causa (da Lei n.º 6/2006, na versão em vigor), na parte relevante diz: Para efeitos da presente lei, «microempresa» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes (…);
VI) O segmento que agora o Recorrente chama à colação tem um significado óbvio, e que não se prende com qualquer perspectiva substancial do conceito de empresa, mas apenas e tão só, com a forma jurídica que a mesma assume.
VII) Ou seja, no âmbito desta legislação em concreto, é indiferente que a empresa seja uma sociedade comercial, em qualquer das suas diferentes modalidades, uma sociedade civil ou, tão só um comerciante em nome individual;
VIII) Se a intenção do legislador fosse a de aplicar o conceito de microempresa definido no Decreto-Lei n.º 372/2007 de 6 de novembro, com todas as especificidades e regras aí definidas, teria remetido diretamente para esse diploma, sem estabelecer qualquer definição paralela daquele conceito, como o fez noutros diplomas;
IX) Ressalta dos factos provados e dos documentos existentes nos autos, que o funcionamento e existência da sociedade R. verifica-se de há muito longa data, sem que tenha, em momento algum, actuado em abuso de personalidade colectiva;
X) O contrato de arrendamento em causa nos presentes autos data de 1936 e as alterações societárias verificadas são anteriores à Lei n.º 79/2014;
XI) Lançando mão das regras da hermenêutica que o recorrente invoca, a interpretação harmoniosa e que respeita a letra do preceito em causa – n.º 5 do artigo 51.º do NRAU – é o de que para efeitos de arrendamento não habitacional, microempresa é aquela que, qualquer que seja a sua forma jurídica, cumpra os requisitos que ali são indicados, a saber, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites ali indicados.
XII) Consequentemente, a Recorrida é uma microempresa para os ditos efeitos.”
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objeto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, n.º 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114 a 116.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil). Porém, o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cfr. nº 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Nestes termos, neste recurso, a questão a decidir é (cfr. arts. 3º e 50º das alegações e al. E) das conclusões):
- a interpretação do conceito legal de “microempresa” expresso no art. 51º, nº 5 do NRAU, na redacção da Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provado o seguinte:
1. O autor é usufrutuário do prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do Carmo, nºs .. a …, freguesia de Santa Maria Maior, Concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo 1968, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o nº 52, freguesia de Conceição.
2. A ré é arrendatária da Loja com entrada pelo nº 78 e Sobreloja, com entrada pela Loja com o nº ..e pelo nº …, do referido prédio, desde 1936.
3. Por escritura celebrada em 24 de Julho de 1936 perante o Notário Bacharel Mário ……, com Cartório na Rua Áurea, nº 265, em Lisboa., foi dada nova redação ao contrato de arrendamento no qual a posição de arrendatária foi adquirida pela R. por trespasse, em 23 de Julho de 1936.
4. A Loja e Sobreloja arrendadas destinam-se, respetivamente, a estabelecimento de venda e a oficina e manufatura de calçado.
5. Em 29 de Janeiro de 2013, o autor comunicou à ré a alteração do direito de propriedade sobre o prédio arrendado, e a atualização da renda e a transição do contrato de arrendamento para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), nos termos e para os efeitos dos artigos 50º e seguintes da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação dada pela Lei 32/012, de 14 de Agosto.
6. Nessa missiva, o autor comunicou à ré que a renda mensal do locado passaria a ser de 1.050,00 €, e que o contrato passava a considerar-se celebrado com prazo certo por um período de cinco anos, renovável por períodos de três anos.
7. A ré respondeu ao autor em 1 de Março de 2013, comunicando-lhe que, ao abrigo do artigo 51º, nº 3 do NRAU, se opunha ao valor da renda apresentada pelo autor, ao tipo e duração do contrato de arrendamento e à aplicação do NRAU.
8. Contrapropondo que o valor da renda mensal se fixasse em 685,00€, e que, quanto ao tipo de duração do contrato, ele se mantivesse para fins não habitacionais, por tempo indeterminado.
9. Não concordando com a proposta da ré, o autor por carta datada de 6 de Março de 2013, comunicou-lhe, nos termos e para os efeitos dos artigos 2º, 33º, nº 1 e nº 5, b), conjugado com o artigo 35º, nº 2, a) e b), todos do NRAU, que o contrato, para fins não habitacionais, se considerava celebrado por um prazo certo de cinco anos e que a renda mensal se fixava nos 762,50€.
10. Tais alterações entraram em vigor no primeiro dia do segundo mês seguinte, ou seja, em 1 de Maio de 2013.
11. Fruto das atualizações legais entretanto ocorridas, a ré paga atualmente ao autor pelo arrendamento do locado, a renda mensal de €767,84.
12. Em 3 de Fevereiro de 2015, por carta registada que se encontra junta aos autos como doc. 8 junto com a petição inicial e se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, a ré comunicou ao autor que, ao abrigo do artigo 6º, nº 3 da Lei de 79/2014, de 19 de Dezembro, se mostravam reunidos os requisitos constantes da referida disposição, do que resultava que o autor não poderia opor-se à renovação do contrato de arrendamento atual por um período de três anos, sem prejuízo da atualização da renda por aplicação dos coeficientes de atualização anual respetivos.
13. Invocando e apresentando comprovativos, para o efeito, da existência no locado de um estabelecimento comercial, alegadamente uma microempresa, aberto ao público.
14. Juntando para comprovar tal circunstância cópia da sua Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa ao ano de 2013, certamente a última disponível já que, à data, corria ainda o prazo legal para a aprovação das contas relativas ao exercício de 2014.
15. E apresentou comprovativos da realização de investimentos no locado e em equipamentos especificamente vocacionados para o mesmo, efetuados anteriormente à data da entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14 de Agosto.
16. Por comunicação datada de 13 de Abril de 2015, o ora autor contestou a suficiência da prova produzida no que concerne aos investimentos alegadamente realizados, não aceitando consequentemente a pretendida renovação do contrato por três anos.
17. Nessa mesma comunicação, o ora autor, tendo conhecimento que no espaço locado se encontrava instalada a Sapataria Jandaia, Lda., entidade com personalidade jurídica distinta da Sapataria Pelicano, Lda., sociedade arrendatária, solicitou esclarecimentos acerca do título que legitimava aquela primeira sociedade a ocupar o espaço arrendado.
18. A ré não prestou ao ora autor os esclarecimentos solicitados.
19. A sociedade B , ora ré, é uma sociedade por quotas com sede na Rua do Carmo, nºs. …., freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, com o número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e de pessoa coletiva 500407789.
20. Esta sociedade tem como objeto o comércio de sapatos, a que corresponde o CAE principal 47721-R3.
21. E, desde 2013, tem um capital social de 15.000,00€, distribuído por quatro sócios da seguinte forma: Senhor Domingos …., titular de uma quota de 4.500,00€, Senhora D. Maria …. titular de uma quota de 1.500,00€, Senhor João Carlos ….., titular de uma quota de 4.500,00€, e Senhora D. Isilda ….., titular de uma quota de 4.500,00€.
22. A gerência desta sociedade é assegurada por três gerentes, concretamente os Senhores Domingos ….., titular do NIF 116638273, João Carlos de Carvalho Amorim Afonso, titular do NIF 175238340, e D. Isilda ……, titular do NIF 169016501.
23. Existe outra sociedade por quotas, com a firma SAPATARIA JANDAIA, LDA., com sede na Avenida da Igreja, nº 24-A, freguesia de Alvalade, concelho de Lisboa, com o número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e de pessoa coletiva 500780293.
24. Esta sociedade tem como objeto o comércio de calçado e pronto-a-vestir, a que corresponde o CAE principal 47721-R3.
25. E, desde 2013, tem um capital social de 10.000,00€, distribuído por quatro sócios da seguinte forma: Senhor Domingos ….., titular de uma quota de 3.000,00€, Senhora D. Maria ….., titular de uma quota de 1.000,00€, Senhor João Carlos ….., titular de uma quota de 3.000,00€, e Senhora D. Isilda ….., titular de uma quota de 3.000,00€.
26. A gerência desta sociedade é assegurada por três gerentes, concretamente os Senhores Domingos ….., titular do NIF 116638273, João Carlos ….., titular do NIF 175238340, e D. Isilda …., titular do NIF 169016501.
27. Existe também outra sociedade por quotas, denominada INTER-MODAS INTERNACIONAIS, LDA., com sede na Rua dos Correeiros, nº 101 – 1º Esquerdo, freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, com o número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e de pessoa coletiva 500140138.
28. Esta sociedade tem como objeto o comércio de modas e confeções, pronto-a-vestir, papelaria, malas, calçado, peleiro e artigos de couro, a que corresponde o CAE principal 47721- R3.
29. E, desde 2013, tem um capital social de 15.000,00€, distribuído por quatro sócios da seguinte forma: Senhor Domingos …., titular de uma quota de 4.500,00€, Senhora D. Maria ….., titular de uma quota de 1.500,00€, Senhor João Carlos ….., titular de uma quota de 4.500,00€, e Senhora D. Isilda ….., titular de uma quota de 4.500,00€.
30. A gerência desta sociedade é assegurada por quatro gerentes, concretamente os Senhores Domingos …., titular do NIF 116638273, Maria ….., titular do NIF 116638346, João Carlos …., titular do NIF 175238340, e D. Isilda ….., titular do NIF 169016501.
31. Existe ainda outra sociedade por quotas, com a firma REPRESENTAÇÕES E COMÉRCIO DOMINGOS BRANDÃO, LDA., com sede na Rua dos Lagares d´el Rei, nº 19-D, r/chão Direito, freguesia de Alvalade, concelho de Lisboa, com o número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e de pessoa coletiva 503474371.
32. Esta sociedade tem como objeto representações e comércio por grosso e a retalho de calçado, peles e couro, marroquinaria, artigos em pele e vestuário em geral, bem como arrendamento e gestão de imóveis próprios, a que corresponde o CAE principal 46422-R3.
33. E, desde 2013, tem um capital social de 25.000,00€, distribuído por quatro sócios da seguinte forma: Senhor Domingos ….., titular de uma quota de 7.500,00€, Senhora D. Maria ….., titular de uma quota de 2.500,00€, Senhor João Carlos ….., titular de uma quota de 7.500,00€, e Senhora D. Isilda …., titular de uma quota de 7.500,00€.
34. A gerência desta sociedade é assegurada por três gerentes, concretamente os Senhores Domingos ….., titular do NIF 116638273, D. Isilda …., titular do NIF 169016501, e D. Maria ….., titular do NIF 116638346.
35. As quatro sociedades por quotas mencionadas, B , SAPATARIA JANDAIA, LDA., INTER-MODAS INTERNACIONAIS, LDA. e REPRESENTAÇÕES E COMÉRCIO DOMINGOS BRANDÃO, LDA., que todas elas têm, pelo menos desde 2013, os mesmos quatro sócios, os Senhores Domingos …., João Carlos …., D. Isilda ….. Amorim Afonso e D. Maria …...
36. As quatro sociedades dedicam-se, entre outros, ao comércio de calçado e a outros produtos similares.
37. É possível adquirir um bem num estabelecimento de uma dessas sociedades e trocá-lo por outro bem noutro estabelecimento com idêntica denominação pertencente a outra dessas quatro sociedades.
38. No ano de 2012, a ré teve um volume de negócios líquido €320.173,07 e empregou durante o exercício 4 pessoas.
39. No ano de 2015, a ré teve um volume de negócios líquido de €341.889,84 e empregou 4 pessoas.
40. No que respeita à sociedade Sapataria Jandaia, Lda., no mesmo ano, registou um volume de negócios líquido de 1.385.150,84€, e empregou 16 pessoas.
41. No mesmo ano, a sociedade Inter-Modas Internacionais, Lda. teve um volume de negócios líquido de 402.775,94€ e empregou 6 pessoas.
42. E, também no mesmo ano de 2015, a sociedade Representações e Comércio Domingos Brandão, Lda. registou um volume de negócios líquido de 620.952,96€, e empregou 2 pessoas.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No caso dos autos, é matéria incontroversa que estamos perante um típico e nominado contrato de arrendamento urbano, para fim não habitacional, celebrado antes da entrada em vigor do RAU de 1990 (Decreto Lei nº 321/90, de 15/10) e do Dec. Lei nº 257/95, de 30/09 (aplicável aos contratos não habitacionais), nos termos do qual a Ré, desde 1936, é arrendatária do imóvel constituído por Loja, com entrada pelo nº 78, e Sobreloja, com entrada pela Loja com o nº 78 e pelo nº 76, do prédio urbano sito na Rua do Carmo, nºs 76 a 84, freguesia de Santa Maria Maior, Lisboa, assumindo actualmente o Autor a posição de senhorio naquele contrato, por ser usufrutuário do imóvel, e destinando-se a referida Loja e Sobreloja, respectivamente, a estabelecimento de venda e a oficina e manufatura de calçado.
Também matéria incontroversa é a transição daquele contrato para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), que se operou no início de 2013, por iniciativa do senhorio, nos termos legais, então, aplicáveis, com a actualização da renda a partir de 1 de Maio de 2013, passando tal contrato a ter um prazo de cinco anos - cfr., em termos conjugados, os arts. 2º, 31º, nº 7, 33º, nºs 1 e 5, al. b), 35º, nº 2, als. a) e b) e 50º e ss do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com a redacção dada pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto.
A questão controversa nestes autos é se a apelada pode ser qualificada como microempresa, para efeitos da disposição constante da norma transitória do art. 6º, nº 3 da Lei nº 79/2014, de 19/12, de forma a beneficiar de um acréscimo de três anos de prazo de duração do referido contrato de arrendamento, o que se prende essencialmente com o conceito legal de “microempresa”, que aquela Lei veio dar ao art. 51º, nº 5 do NRAU.
O tribunal a quo considerou que a apelada reunia as qualidades para ser qualificada como “microempresa”, para os referidos efeitos, com a consequente improcedência da acção. Para o efeito, a sentença recorrida, sufragando “a argumentação da ré”, apresenta a seguinte fundamentação essencial:
Com efeito, entendemos que com o citado artigo 51.º, n.º 5 da Lei 6/2006, na redação introduzida pela Lei 79/2014 de 6 de novembro, o legislador pretendeu estabelecer, especificamente, para a circunstância ali em causa e para o fim ali visado, um conceito de microempresa próprio daquele regime, distinto daquele que emerge do Decreto-Lei n.º 372/2007, o que resulta notório, desde logo, perante o elemento literal – sublinhe-se, mais uma vez, a expressão utilizada pelo legislador, “Para efeitos da presente lei”, que não foi decerto escolhida ao acaso. Se aquele conceito de microempresa foi consagrado especificamente para aquela lei, tal implica que só aquele releva naquele âmbito.
Socorrendo-nos das regras de interpretação ínsitas no artigo 9.º do Código Civil, é manifesto que temos, aqui, no caso em apreço, o elemento literal da norma que afasta outros conceitos de microempresa que não aquele que ali se encontra expresso, definindo exatamente os critérios pelos quais se alcança aquele conceito.
Se a intenção do legislador fosse a de aplicar o conceito de microempresa definido no Decreto-Lei n.º 372/2007 de 6 de novembro, com todas as especificidades e regras aí definidas, teria remetido diretamente para esse diploma, sem estabelecer qualquer definição paralela daquele conceito, como o fez noutros diplomas, tal como salientado pela ré, nomeadamente, no Código de IRS, no n.º 4 do artigo 43.º onde expressamente se diz: “4 - Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro”.
Contudo, não o fez neste caso, optando, de forma clara, por elencar expressamente os requisitos necessários à qualificação de uma organização comercial como microempresa, com relevância apenas para efeitos do regime de arrendamento não habitacional. E há que realçar que se não remeteu para aquele diploma, foi porque entendeu que não se justificava aplicar ao regime de arrendamento não habitacional as especificidades ali consagradas, designadamente, as que respeitam às empresas associadas e à agregação dos dados destas para efeitos de cálculo dos efetivos e dos montantes financeiros. O que se compreende bem e tem a sua razão de ser no facto das matérias, fins, propósitos e campos de aplicação serem manifestamente distintos em cada um desses regimes e se coaduna com a expressa revogação da declaração do IAPMEI do elenco dos meios de prova exemplificativos previstos no artigo 4.º, n.º 2 da Portaria 226/2013 – artigo 1.º da Portaria 115/2014 de 29 de maio, que alterou aquela Portaria 226/2013. Na verdade, independentemente dos motivos que a possam ter determinado, o que é certo é que o IAPMEI é a entidade a quem incumbe a certificação regulamentada no Decreto-Lei 372/2007 e a revogação expressa daquele meio de prova do elenco exemplificativo indicia, pelo menos, uma despreocupação do legislador na intervenção desta entidade para atestar os requisitos do conceito de microempresa para os efeitos do regime do arrendamento não habitacional.
Ademais, como também realçou a ré, idêntica opção tomou o legislador no Código de Trabalho, onde definiu critérios diferentes para a integração o conceito de microempresa, distintos quer dos critérios definidos no Decreto-Lei 372/2007, quer dos definidos no regime de arrendamento não habitacional.
Na verdade, dispõe o artigo 100.º, n.º 1, al. a) do Código do Trabalho, “Considera-se: a) Microempresa a que emprega menos de 10 trabalhadores; (…)”, ou seja, neste diploma, o conceito de microempresa é definido apenas por referência ao número de trabalhadores.
Assim, ressalta à saciedade do exposto, que o legislador adota, nos diferentes diplomas, conceitos distintos para “microempresa”, consoante as matérias em causa e os fins em vista, impondo-se-nos, enquanto intérpretes, presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3 do CC).
De facto, não podemos ignorar que uma empresa pode ter uma qualificação para determinados fins e ter qualificação distinta noutro contexto, ou seja, nada impede que uma empresa seja qualificada como microempresa para efeitos de arrendamento não habitacional e como pequena ou média, ainda que por associação a outras, para efeitos da obtenção de apoios comunitários.
O Decreto-Lei 372/2007 de 6 de novembro, regulamenta a certificação eletrónica, das micro, pequenas e médias empresas, visando a desburocratização e desmaterialização no relacionamento das empresas com os serviços públicos responsáveis pela aplicação das políticas destinadas às PME, sendo patente que aquela certificação apenas é obrigatória nos casos e para os efeitos ali expressamente previstos, isto é, para a obtenção de apoios, nacionais ou comunitários, tudo no âmbito de relações administrativas, ou seja, aquelas que são reguladas pelo direito público, administrativo. Assim, em todas as demais circunstâncias, para além daquelas ali plasmadas, a utilização da certificação por parte das empresas é voluntária, podendo ser utilizada ou não.
Flui do exposto, em suma, que os princípios orientadores, os objetivos visados e respetivo campo de aplicação desta regulamentação são totalmente díspares daqueles que são prosseguidos e que norteiam o regime jurídico do arrendamento não habitacional especialmente previsto para as microempresas. Razão pela qual, não colhe o argumento do autor no sentido de que as razões que justificam o regime do Decreto-Lei 372/2007 de 6 de novembro, procedem no caso em apreço, inexistindo qualquer lacuna no regime de arrendamento não habitacional.
Em face dos argumentos que se deixaram expostos, acolhemos inteiramente o entendimento de que o conceito de microempresa a ter em conta para efeitos de arrendamento e, concretamente, das normas de transição dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados anteriormente ao Decreto-Lei n.º 257/95 é, única e exclusivamente, o conceito definido no artigo 51.º, n.º 5 da Lei 6/2006, com as alterações introduzidas pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro, já em vigor à data da comunicação emitida pela ré, com data de 3 de Fevereiro de 2015, não se aplicando nenhuma das disposições do Decreto-Lei 372/2007 de 6 de novembro.
Na verdade, cremos que esta é a única interpretação que a própria letra da lei admite, a única que salvaguarda e garante o princípio da estabilidade e segurança no direito e aquela que melhor se harmoniza com o espírito do legislador espelhado ao longo de todo o nosso sistema jurídico.”.
 Defende o apelante que: a alteração ao conceito de “microempresa” trazida pela citada Lei nº 79/2014, não pode deixar de estar associada a uma pretendida harmonização, por parte do legislador, com a definição constante de outros diplomas legais que classificam empresas de acordo com uma determinada dimensão (v.g., art. 2º, nº 3 do Anexo 1 do Decreto-Lei nº 372/2007, de 6 de Novembro) e, bem assim, com o próprio conceito que emana de documentos comunitários, como a Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE, de 6 de Maio de 2003, nomeadamente no art. 2º do Anexo à Recomendação; e, por isto, o conceito de microempresa vertido no NRAU tem de ser interpretado - de acordo com as regras e princípios elencados no art. 9º do Cód. Civil - tendo em consideração o previsto no Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11, na aludida Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE e no Novo Regime Jurídico da Concorrência (Lei nº 19/2012, de 18/05). Realizada, naqueles moldes, a interpretação da disposição legal em causa - art. 51º, nº 4, al. a), e nº 5 do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014 –, forçoso é concluir que a apelada e as outras três empresas mencionadas nos autos têm de ser consideradas, não como estruturas individuais, mas sim como uma única empresa. E, por isto, atendendo ao número global dos trabalhadores e ao total anual dos balanços e dos volumes de negócios líquidos das quatro empresas, não é possível a qualificação da apelada como uma microempresa para efeitos de aplicação do art. 51º, nº 4, al. a), e nº 5 do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014.  
Apreciemos, então, fazendo uma breve, mas necessária, incursão à legislação pertinente aplicável à resolução do diferendo e à demais invocada pelo apelante.
Como é consabido, a Lei nº 6/2006, de 27de Fevereiro, com entrada em vigor no dia 28 de Junho de 2006, aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano, e reformulou a lógica arrendatícia então vigente, instituindo, para o que aqui interessa, um processo de transição da disciplina legal aplicável aos contratos de arrendamento anteriores àquela entrada em vigor para o NRAU, designadamente, no que respeita aos prazos de duração dos contratos e à actualização das rendas.
Com especial interesse para o caso dos autos, dispunha o art. 53.º do NRAU, sob a epígrafe “Actualização faseada do valor da renda”, e visando os contratos de arrendamento para fim não habitacional, que:
1 - A actualização do valor da renda é feita de forma faseada, podendo decorrer durante 5 ou 10 anos, nos termos dos artigos 40.º e 41.º
2 - A actualização é feita em 10 anos quando:
a) Existindo no locado um estabelecimento comercial aberto ao público, o arrendatário seja uma microempresa ou uma pessoa singular;
(…);
3 - Microempresa é a que tem menos de 10 trabalhadores e cujos volume de negócios e balanço total não ultrapassam (euro) 2000000 cada.”
Verifica-se, assim, logo em 2006, com a aprovação do NRAU, a existência de um conjunto de arrendatários em dadas circunstâncias que merece uma especial protecção em relação ao regime regra. Estando, desde logo, ab initio, incluída nessa categoria a situação de, existindo no locado um estabelecimento comercial aberto ao público, o arrendatário ser uma pessoa singular ou uma microempresa, entendendo a Lei como microempresa: aquela “que tem menos de 10 trabalhadores e cujos volume de negócios e balanço total não ultrapassam (euro) 2000000 cada.”
Posteriormente, a Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto (que entrou em vigor no dia 12 de Dezembro de 2012: cfr. art. 15º), alterou, através do seu art. 4º, a Lei nº 6/2006, de 27/12, introduzindo um regime transitório marcado por mecanismos de protecção para certas categoria de arrendatários, inclusive, quanto aos contratos não habitacionais, permitindo a empresas a invocação da qualidade, agora, de “microentidade”.
Na verdade, determina o art. 51°, n° 4, al. a) do NRAU, com a redacção dada pela referida Lei 31/2012, de 14/08, que o arrendatário, querendo opor-se à pretensão do senhorio de transição para o NRAU e de actualização da renda, pode invocar "que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microentidade”; dispondo o nº 5 do mesmo preceito que: “Para efeitos da presente lei, «microentidade» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes:
a) Total do balanço: (euro) 500 000;
b) Volume de negócios líquido: (euro) 500 000;
c) Número médio de empregados durante o exercício: cinco.”
Este conceito de “microentidade” é bem mais restrito do que era consagrado na versão originária do NRAU sobre o conceito de “microempresa” (cfr. supra transcrito art. 53º, nºs 2 e 3 do NRAU, versão originária), uma vez que passaram a ser consideradas microentidades (as antigamente referidas naquele preceito legal como microempresas e como pessoas singulares, ou seja, empresários em nome individual), apenas as que tenham menos de 5 empregados (eram 10) e que facturem somente até € 500000 anuais ou que tenham um valor de balanço equivalente (eram € 2000000).
Posteriormente, a Lei nº 79/2014, de 19 de Dezembro, que entrou em vigor em 18 de Janeiro de 2015, veio alterar, através do seu art. 3º, o NRAU, dilatando o universo dos arrendatários comerciais sujeitos a um regime especial de protecção e prorrogando o período transitório nesses arrendamentos, dispondo, desde logo, no art. 6º, a título de disposição transitória, que:
“1 - As alterações introduzidas à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pela presente lei aplicam-se aos procedimentos de transição para o NRAU, previstos nos artigos 30.º e seguintes e 50.º e seguintes, que se encontrem pendentes na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo dos direitos e obrigações decorrentes dos atos já praticados nesses procedimentos e do disposto nos números seguintes.
(…)
3 - Nos contratos de arrendamento não habitacional cuja renda já tenha sido atualizada nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 33.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, aplicável por força do disposto no artigo 52.º do mesmo diploma, o arrendatário pode invocar as circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo 51.º, no prazo de 30 dias a contar da entrada em vigor da presente lei, desde que comprove a realização de investimentos no locado ou em equipamentos para ele especificamente vocacionados, efetuados nos três anos anteriores à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, não podendo o senhorio opor-se, nestas situações, a uma renovação do contrato por um período de três anos, sem prejuízo da atualização da renda por aplicação dos coeficientes de atualização anual respetivos, definidos nos termos do artigo 24.º. (…)”.
Na referida Lei nº 79/2014, de 19/12, o legislador alterou, para o que aqui interessa, a redacção do art. 51º, nº 4, al. a), e nº 5 do NRAU, que passou a preceituar que:
“4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54.º, invocar uma das seguintes circunstâncias:
a) Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa;
(…)
5 - Para efeitos da presente lei, «microempresa» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes:
a) Total do balanço: (euro) 2 000 000;
b) Volume de negócios líquido: (euro) 2 000 000;
c) Número médio de empregados durante o exercício: 10.”.
Constata-se, pois, que o conceito de “microentidade” foi substituído, através da Lei nº 79/2014, de 19/12, pelo conceito de “microempresa”, com o aumento significativo do valor dos limites anteriormente estabelecidos na Lei nº 31/2012, de 14/08. Na verdade, considera-se, agora, microempresa aquela que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: total do balanço: € 2.000.000 (anteriormente € 500.000); volume de negócios líquido: € 2.000.000 (anteriormente € 500.000); e número médio de empregados durante o exercício: 10 (anteriormente 5).
O que significa que, a Lei nº 79/2014, de 19/12, retomou não só a denominação da versão originária do NRAU – microempresa -, como o essencial previsto naquela versão originária do NRAU quanto ao limite máximo do número de trabalhadores (10) e ao total do balanço (€ 2.000.000) e volume de negócios (€ 2.000.000) a ter em consideração para aquela qualificação (relembramos aqui o acima transcrito art. 53º, nº 1, al. a) e nº 3 da versão originária do NRAU); com a diferença de que, na versão originária do NRAU, era necessário, para a qualificação como microempresa, que nenhum daqueles três elementos fosse ultrapassado, e na versão do NRAU dada pela Lei nº 79/2014, para aquela qualificação, basta que dois daqueles elementos não sejam ultrapassados, ou seja, um daqueles elementos pode, agora, ser excedido, não impedindo, com isso, a qualificação como microempresa.
Foi ao abrigo do art. 51º, nº 4, al. a), e nº 5 do NRAU, na redacção dada pela Lei nº 79/2014, de 19/12, a que vimos aludindo, que a apelada invocou perante a apelante a circunstância de ser uma “microempresa” que havia efectuado investimentos nos três anos anteriores à entrada em vigor da Lei nº 31/2012, de 14/08, para os efeitos do art. 54º do mesmo diploma legal; defendendo a apelante entendimento diverso.
Como resulta do que se vem enunciando, está em causa a interpretação jurídica a realizar do conceito legal de microempresa.
Em matéria de interpretação das leis, o art. 9º do Cód. Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (nº 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (nº 2); além disso, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3).
A este respeito, escreve José Oliveira Ascensão, in “Interpretação das leis – Integração das lacunas e Aplicação do princípio da analogia”, acessível em http://www.oa.pt/upl/%7B0a2c7ef5-b0a3-449f-bee8-88db3fc0335f%7D.pdf, que o referido art. 9º do Cód. Civil: “marcou a prevalência do espírito sobre a letra da lei, mas colocou expressamente a letra como limite à busca do sentido ao estabelecer: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Fica assim marcado o limite, vasto, à busca do sentido. Por razões de certeza jurídica, esse limite não poderá ser excedido. Ainda que sejam persuasivas as razões avançadas em contrário, tendentes a provar ilogismo, desacerto ou mesmo lapso do legislador.” Ou seja, e ainda nas palavras do Autor citado, mas, agora, in “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 4.ª ed., revista, Almedina, 1987, p. 326: “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer isto dizer que o texto funciona também como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento verdadeiro da lei. Para além dito, porém não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra qualquer apoio”.
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina, nessa sede, elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica - sobre este tema, cfr., nomeadamente, Oliveira Ascensão, in ob. citada., p. 336-343; Karl Larenz, in “Metodologia da Ciência do Direito”, 3ª ed, tradução, p. 439-489; Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12ª reimpressão, Coimbra, 2000, p. 175-192; e, Francesco Ferrara, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, tradução de Manuel Andrade, 3ª ed., 1978, p. 138 e ss.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como, a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Ou seja, a interpretação deve ter em conta “a unidade do sistema jurídico” (art. 9º, nº 1 do Cód. Civil).
O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito (occasio legis: todo o circunstancialismo social e histórico que rodeou o aparecimento da lei: art. 9º, nº 1 do Cód. Civil), as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste no espírito ou razão de ser da norma, na sua justificação social (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao criar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. O art. 9º, nº 2 do Cód. Civil refere-se, a este respeito, a “pensamento legislativo”, dando, pois, como se viu antes, preferência ao espírito sobre a letra, mas sempre com a limitação, como também se viu, de que esse espírito ainda encontre na letra da lei “um mínimo de correspondência verbal”.
Socorrendo-nos dos elementos interpretativos acabados de referir, temos, em primeiro lugar, o expresso e explícito conceito de microempresa que o próprio texto legal (nº 5 do art. 51º do NRAU, na versão dada pela Lei nº 79/2014) consagra e que aqui relembramos: “Para efeitos da presente lei, “microempresa” é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes:
a) Total do balanço: 2 000 000;
b) Volume de negócios líquido: 2 000 000;
c) Número médio de empregados durante o exercício: 10.”.
Da apreensão literal deste preceito legal, resulta, desde logo, que:
- a definição de “microempresa” não foi feita por remissão para qualquer definição já existente noutro diploma legal, assumindo o legislador, de forma manifesta, um conceito próprio, operativo, autónomo e completo de microempresa, específico para o NRAU (“Para efeitos da presente lei, …”);
- naquela definição legal, não foi feita qualquer ressalva ou menção, no que respeita à relação entre empresas (autónomas; parceiras; associadas) ou a um conjunto de empresas que constituem uma unidade económica ou mantêm entre si laços de interdependência, como acontece noutros diplomas jurídicos (v.d., respectivamente, os citados pelo apelante: art. 3º do anexo da Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE, de 06/05/2003 e art. 3º do anexo 1 do Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11 – de igual teor; e art. 3º, nº 2 da Lei nº 19/2012, de 18/05).
Partindo, agora, desta apreensão literal do texto legal em análise para a tarefa seguinte da interpretação jurídica, que excede aquele domínio literal, de interligação e valoração, recorrendo, para esse efeito, aos demais elementos de interpretação (histórico, sistemático e teleológico), chegamos também à conclusão que aquele conceito legal de microempresa: se basta a si próprio, devendo ser aplicado com autonomia relativamente a outras definições de microempresa (constantes de outros diplomas jurídicos); corresponde verdadeiramente ao espírito do legislador (à ratio legis) no momento da criação legislativa da protecção especial a certa categoria de empresas em termos de contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais; e atende à unidade do sistema jurídico e às actuais condições específicas - cfr. art. 9º do Cód. Civil.
Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, a Lei nº 79/2014, de 19/12, não quis consagrar, ao nível do NRAU, um conceito novo, hodierno, original na legislação do arrendamento urbano, de microempresa, designadamente ao substituir a expressão, então em vigor (desde a entrada em vigor da Lei nº 31/2012, de 14/08), de microentidade. Na verdade, e como acima já se aflorou, aquela Lei apenas retomou a denominação prevista na versão originária do NRAU (microempresa) e como que “repristinou” os limites máximos do número de trabalhadores (10) e o total do balanço (€ 2.000.000) e volume de negócios (€ 2.000.000) a ter em consideração para aquela qualificação anteriormente constantes da versão originária do NRAU e que perdurou na nossa ordem jurídica entre 2006 e 2012 (relembramos aqui o acima transcrito art. 53º, nº 1, al. a) e nº 3 da versão originária do NRAU).
O que significa que, ao contrário do entendimento da apelada (cfr. arts. 14º e 15º das alegações), com a Lei nº 79/2014, de 19/12, o objectivo do legislador não foi alcançar uma harmonização com a definição constante de outros diplomas legais que classificam empresas de acordo com uma determinada dimensão (como o Decreto Lei nº 372/2007, de 06/11, e a Lei nº 19/2012, de 18/05) ou com o conceito de empresa que emana da Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE, de 06/05/2003, mas sim, de continuar a definir um conceito próprio, específico, de microempresa para os concretos – e únicos - fins de protecção especial a certa categorias de entidades nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais. Pode recorrer-se, ainda, nesta sede, ao elemento histórico de interpretação, através da Exposição de Motivos constante da proposta de Lei nº 250/XII, que esteve na génese da referida Lei nº 79/2014, de 19/12, de onde resulta que, após avaliação do regime decorrente da Lei nº 32/2012: “No tocante aos contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, que transitam para o novo regime, foi reconhecida a necessidade de assegurar maior estabilidade ao arrendatário, para proteção da atividade económica que é desenvolvida no locado e do emprego que lhe está associado.”). Por outras palavras, a intenção do legislador foi, desde a génese do NRAU, em sede de protecção especial a certa categorias de empresas nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, assumir um conceito próprio, completamente operativo e autónomo de outras definições de microempresa constantes de outros diplomas que regulam matérias e institutos jurídicos diversos e com diferentes objectivos legislativos que não os visados com o NRAU (como a Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE, de 06/05/2003; o Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11; e o Novo Regime Jurídico da Concorrência – Lei nº 19/2012, de 18/05, invocados pelo apelante).
Como elemento revelador daquela intenção do legislador desde a génese do NRAU, constata-se que, em 2012, perante uma denominação (microempresa) igual à mencionada na Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE e no Decreto-Lei nº 372/2007 (invocados pelo apelante) e perante elementos quantitativos para qualificação de uma microempresa iguais aos consagrados naquela Recomendação e naquele Decreto-Lei, que então existiam (desde a versão originária do NRAU em 2006, como acima se salientou), o legislador, através da Lei 31/2012, de 14/08, substituiu aquela denominação e optou, de forma expressa, por outros elementos quantitativos (completamente diversos dos previstos naquela Recomendação e Decreto-Lei), certamente, atendendo às específicas e concretas circunstâncias sociais e históricas que, então, se viviam na sociedade portuguesa – o que espelha que o legislador, para efeitos de NRAU, não pretende consagrar o conceito de microempresa previsto naquela Recomendação e Decreto-Lei (senão, em 2012, teria mantido a versão originária do NRAU, mais semelhante quantitativamente ao conceito de microempresa mencionado naquela Recomendação e consagrado no aludido Decreto-Lei).
Por outro lado, tivesse o legislador querido harmonizar o conceito de microempresa no NRAU com o conceito de microempresa constante de outros diplomas legais, nomeadamente, com o do Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11, invocado pela apelada, tê-lo-ia certamente feito através de uma remissão directa, sem estabelecer qualquer definição daquele conceito em sede de NRAU, de forma a não suscitar dúvidas de interpretação, como fez noutros diplomas, nomeadamente, no nº 4 do art. 43º Código de IRS, onde expressamente se diz: “Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro”, sendo certo que esta remissão foi consagrada já pela Lei 15/2010, de 26/07, que alterou aquele art. 43º (portanto, anteriormente à alteração da Lei nº 31/2012 em sede de NRAU). E, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados nos vários diplomas legais (cfr. parte final do nº 3 do art. 9º do Cód. Civil). Relembra-se aqui, ainda, o afirmado na sentença recorrida a este propósito: “E há que realçar que se não remeteu para aquele diploma, foi porque entendeu que não se justificava aplicar ao regime de arrendamento não habitacional as especificidades ali consagradas, designadamente, as que respeitam às empresas associadas e à agregação dos dados destas para efeitos de cálculo dos efetivos e dos montantes financeiros. O que se compreende bem e tem a sua razão de ser no facto das matérias, fins, propósitos e campos de aplicação serem manifestamente distintos em cada um desses regimes e se coaduna com a expressa revogação da declaração do IAPMEI do elenco dos meios de prova exemplificativos previstos no artigo 4.º, n.º 2 da Portaria 226/2013 – artigo 1.º da Portaria 115/2014 de 29 de maio, que alterou aquela Portaria 226/2013. Na verdade, independentemente dos motivos que a possam ter determinado, o que é certo é que o IAPMEI é a entidade a quem incumbe a certificação regulamentada no Decreto-Lei 372/2007 e a revogação expressa daquele meio de prova do elenco exemplificativo indicia, pelo menos, uma despreocupação do legislador na intervenção desta entidade para atestar os requisitos do conceito de microempresa para os efeitos do regime do arrendamento não habitacional. Ademais, como também realçou a ré, idêntica opção tomou o legislador no Código de Trabalho, onde definiu critérios diferentes para a integração o conceito de microempresa, distintos quer dos critérios definidos no Decreto-Lei 372/2007, quer dos definidos no regime de arrendamento não habitacional.
Na verdade, dispõe o artigo 100.º, n.º 1, al. a) do Código do Trabalho, “Considera-se: a) Microempresa a que emprega menos de 10 trabalhadores; (…)”, ou seja, neste diploma, o conceito de microempresa é definido apenas por referência ao número de trabalhadores.
Assim, ressalta à saciedade do exposto, que o legislador adota, nos diferentes diplomas, conceitos distintos para “microempresa”, consoante as matérias em causa e os fins em vista. (…)
De facto, não podemos ignorar que uma empresa pode ter uma qualificação para determinados fins e ter qualificação distinta noutro contexto, ou seja, nada impede que uma empresa seja qualificada como microempresa para efeitos de arrendamento não habitacional e como pequena ou média, ainda que por associação a outras, para efeitos da obtenção de apoios comunitários.
O Decreto-Lei 372/2007 de 6 de novembro, regulamenta a certificação eletrónica, das micro, pequenas e médias empresas, visando a desburocratização e desmaterialização no relacionamento das empresas com os serviços públicos responsáveis pela aplicação das políticas destinadas às PME, sendo patente que aquela certificação apenas é obrigatória nos casos e para os efeitos ali expressamente previstos, isto é, para a obtenção de apoios, nacionais ou comunitários, tudo no âmbito de relações administrativas, ou seja, aquelas que são reguladas pelo direito público, administrativo. Assim, em todas as demais circunstâncias, para além daquelas ali plasmadas, a utilização da certificação por parte das empresas é voluntária, podendo ser utilizada ou não.
Flui do exposto, em suma, que os princípios orientadores, os objetivos visados e respetivo campo de aplicação desta regulamentação são totalmente díspares daqueles que são prosseguidos e que norteiam o regime jurídico do arrendamento não habitacional especialmente previsto para as microempresas. Razão pela qual, não colhe o argumento do autor no sentido de que as razões que justificam o regime do Decreto-Lei 372/2007 de 6 de novembro, procedem no caso em apreço, inexistindo qualquer lacuna no regime de arrendamento não habitacional.” – asserções que subscrevemos.
A este propósito, ainda se pode aduzir que não era intenção do legislador, com a alteração da Lei nº 79/2014, de 19/12, aplicar ao NRAU o conceito de microempresa previsto quer na aludida Recomendação 2003/361/CE, quer no citado Decreto-Lei nº 372/2007 (conceito de igual teor nestes dois diplomas jurídicos), porquanto os critérios para a qualificação de uma empresa como microempresa previstos na Lei nº 79/2014, nem sequer são coincidentes com os critérios exigidos para aquela qualificação na Recomendação da Comissão Europeia 2003/361/CE e no Decreto-Lei nº 372/2007 – ao contrário do que parece ser o entendimento do apelante, nomeadamente, nos arts. 31º a 33º das alegações.
Na verdade, de acordo com o disposto no nº 5 do art. 51º do NRAU, com a redacção da Lei nº 79/2014, para uma empresa ser qualificada como microempresa é suficiente que não ultrapasse dois dos três limites seguintes: total do balanço: € 2000000; volume de negócios líquido: € 2000000; e número médio de empregados durante o exercício: 10. Pelo contrário, de acordo com o disposto quer no art. 2º, nº 3 do anexo da aludida Recomendação 2003/361/CE, quer no art. 2º, nº 3 do anexo 1 do aludido Decreto-Lei nº 372/2007 (de igual teor): “Na categoria das PME, uma micro empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 2 milhões de euros.”, ou seja, para esta qualificação é necessário sempre que o número de trabalhadores seja inferior a 10 e o volume de negócios anual ou o balanço total anual não exceda € 2000000. O que significa que, uma empresa com mais de dez trabalhadores pode ser qualificada como microempresa para efeitos do NRAU (se os valores totais do balanço e do volume de negócios líquido forem inferiores a € 2000000), mas já não pode ser qualificada como tal para efeitos da Recomendação 2003/361/CE, nem do Decreto-Lei nº 372/2007 (mesmo se os valores totais do balanço e do volume de negócios líquido forem inferiores a € 2000000).
Quanto ao segmento inserto na definição legal de microempresa expressa no art. 51º, nº 5 do NRAU, com a redacção da Lei nº 79/2014, “independentemente da sua forma jurídica”, ao contrário do entendimento da apelada (cfr. arts. 52º e 53º das alegações e als. H) e I) das conclusões), não cremos que, com tal expressão, tenha sido pretensão do legislador “valorizar o conteúdo da definição de empresa numa perspectiva substancial em detrimento de outra meramente formal”. Na verdade, aquela expressão já resultava da noção de “microentidade” consagrada no art. 51º, nº 4, al. a) do NRAU, na redacção da Lei nº 31/2012, e veio substituir a menção a “uma microempresa ou uma pessoa singular” prevista no art. 53º, nº 2, al. a) do NRAU, na versão originária. Ou seja, com a Lei nº 31/2012, o legislador englobou a pessoa singular (empresário em nome individual) na noção de microentidade com a referida terminologia “independentemente da sua forma jurídica”, pretendendo, pois, abarcar, desta forma, todas as empresas naquele conceito sem prejuízo da sua específica forma jurídica. Com a Lei nº 79/2014, o legislador seguiu igual caminho, integrando na noção de microempresa todas as empresas, independentemente de serem, por exemplo, Empresário em Nome Individual, Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, Sociedade Unipessoal por Quotas, Sociedade por Quotas, Sociedade Anónima, Sociedade em Nome Coletivo, Sociedade em Comandita. É este o significado e alcance de “independentemente da sua forma jurídica”.
A este propósito, chama-se à colação que, nos conceitos de empresa consagrados nos diplomas jurídicos invocados pelo apelante surge igual (“independentemente da sua forma jurídica” – art. 1º do anexo da Recomendação 2003/361/CE e art. 1º do anexo 1 do Decreto-Lei nº 372/2007, de 06/11) ou idêntica (“independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento” - art. 3º, nº 1 da Lei nº 19/2012, de 18/05) terminologia, também com significado diverso do ora invocado pelo apelante, uma vez que: por um lado, naqueles conceitos, mormente os consagrados na Recomendação 2003/361/CE e no Decreto-Lei nº 372/2007, consta, a seguir àquela formulação, que: (…) São, nomeadamente, consideradas como tal as entidades que exercem uma actividade artesanal ou outras actividades a título individual ou familiar, as sociedades de pessoas ou as associações que exercem regularmente uma actividade económica.”; e, por outro lado, naqueles diplomas jurídicos, a previsão e definição de empresas autónomas/associadas/parceiras e a conjunto de empresas (respectivamente) é feita noutras normas de tais diplomas e sem qualquer alusão à forma jurídica como determinante para tais efeitos (cfr. respectivamente, art. 3º do anexo da Recomendação 2003/361/CE e art. 3º do anexo 1 do Decreto-Lei nº 372/2007; e art. 3º, nº 2 da Lei nº 19/2012).
Por todo o exposto, conclui-se que o conceito legal de microempresa consagrado no art. 51º, nº 5 do NRAU, com a redacção da Lei nº 97/2014, se basta a si próprio, devendo ser aplicado com autonomia relativamente a outras definições de microempresa, não existindo, pois, e designadamente: qualquer lacuna que seja necessário integrar com recurso a outros diplomas legais ou à supra aludida Recomendação da Comissão Europeia; nem qualquer interpretação extensiva a realizar, porquanto a letra do texto corresponde verdadeiramente ao espírito do legislador (à ratio legis) no momento da criação legislativa da protecção especial a certa categoria de empresas em termos de contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, ou seja, a fórmula verbal adoptada declara exactamente aquilo que o legislador pretendia dizer; nem qualquer fundamento para, no fundo, como parece ser o entendimento do apelante, afastar o conceito de microempresa previsto pelo legislador no NRAU e aplicar o conceito de microempresa consagrado na referida Recomendação da CE e no referido Decreto-Lei nº 372/2007, uma vez que, como vimos supra, tais conceitos não são totalmente coincidentes quanto à exigência dos requisitos quantitativos para aquela qualificação, nomeadamente no que respeita ao número de trabalhadores (sempre inferior a 10 nestes diplomas; podendo ser superior a 10 no conceito de microempresa previsto no NRAU).
Volvendo ao caso dos autos, resulta que a apelada, quer considerando o ano de 2012, quer considerando o ano de 2015, teve 4 funcionários (portanto, menos de 10) e teve um total anual de volume de negócios líquido de € 320.173,07 e de € 341.889,84, respectivamente (cfr. Factos Provados sob os nºs 38 e 39, respectivamente), portanto inferior a € 2.000,000, pelo que não ultrapassou dois dos três limites previstos no citado art. 51º, nº 5 do NRAU, na redação introduzida pela Lei 79/2014 de 19/12.
Desta forma, é de qualificar a apelada como microempresa, nos termos e para os efeitos do disposto neste preceito legal.
Resta fazer umas breves considerações quanto ao aduzido nas alegações e conclusões do recurso, relativamente à evocação das figuras jurídicas de fraude à lei, má-fé e abuso de direito, que o apelante propugna (apenas em sede de recurso), pese embora a improcedência desses argumentos resulte já evidenciada de tudo o que anteriormente se deixou explanado.
Temos por seguro que, naturalmente, os referidos institutos jurídicos de fraude à lei, má-fé e abuso de direito (e porventura ainda outros, v.g., desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva) podem – e devem - “paralisar” a qualificação de uma empresa como microempresa para efeitos do NRAU, de forma a evitar a utilização daquela qualificação para fins não coincidentes com os visados pelo legislador com a criação daquele conceito (isto é: protecção especial apenas para as empresas, que, pela sua dimensão e por actuarem de forma independente, justificam tratamento diferenciado em sede de arrendamento).
Porém, também temos por seguro que, no caso dos autos, não resulta dos factos provados a existência de um nexo evidente entre a constituição das várias sociedades e a sua comunhão de sócios/gerentes (a ora apelada e as outras três referenciadas: “Sapataria Jandaia, Lda”, “Inter-Modas Internacionais, Lda” e “Representações e Comércio Domingos Brandão, Lda”) e a obtenção do resultado que a lei proíbe, de molde a que se possa concluir que a aplicação da norma em causa já não corresponde à função económica/proteccionista que lhe subjaz.
Até porque, o contrato de arrendamento dos autos foi celebrado pela apelada em 1936 e quer a constituição da apelada e das outras três mencionadas sociedades, quer, inclusive, as alterações societárias verificadas e invocadas pelo apelante, remontam a datas anteriores à entrada em vigor da Lei nº 79/2014, e nada ficou provado que permita concluir pela existência de fraude à lei, má-fé, abuso de direito ou qualquer actuação da apelada subsumível a outro instituto jurídico ou princípio geral de direito que tenha como escopo proibir a utilização de um meio, em si lícito, para alcançar um fim não pretendido pelo legislador com a previsão e estatuição da norma.
Por todo exposto, bem andou a sentença recorrida ao qualificar a apelada como microempresa, pelo que resta decidir pela respectiva manutenção, julgando-se improcedente a apelação.
 V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pelo apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 5 de Novembro de 2019
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro