Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9011/2005-1
Relator: FOLQUE DE MAGALHÃES
Descritores: DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
ACÇÃO PAULIANA
REVERSÃO
MASSA FALIDA
LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. A declaração de falência apenas muda o estado da pessoa, mas não altera nem converte essa pessoa jurídica numa outra. O que se dá é o “nascimento” de um novo ente com personalidade judiciária autónoma que é a “massa falida”, constituída pelo acervo de bens que compunham o património da pessoa antes de declarada falida.
2. Do art. 147º nº 1 do CPEREF, então vigente não resulta que se retira a personalidade jurídica à pessoa que veio a ser declarada falida. Passa é a não poder reger-se a si própria em matéria patrimonial. Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, é o liquidatário judicial quem assume a representação do falido para todos efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
3. A impugnação pauliana não tem por efeito desfazer o negócio impugnado, à semelhança de uma resolução. Antes, pressupondo a manutenção do negócio, confere ao credor que tenha visto ser julgada procedente a impugnação o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição, conforme dispõe o nº 1 do art. 616º do C.Cv.
4. Se entre a data da formulação dos pedidos da A. e a data da prolação da sentença se verificou a declaração de falência tal facto implicou a aplicabilidade do disposto no art. 157º do CPEREF, segundo o qual são impugnáveis em benefício da massa falida todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil.
5. Resulta da conjugação dos nºs 1, 2 e 3 do art. 159º CPEREF que, ganha a acção de impugnação pauliana, seja ela intentada por credor ou pelo liquidatário judicial, os bens objecto da impugnação revertem para a massa falida, independentemente do valor pelo qual os mesmos devessem responder. Mas, se por qualquer razão o vencido tiver direito a restituição de algum valor, é esse valor considerado como crédito comum.
6. Transitada em julgado a sentença declaratória da falência, proceder-se-á à venda de todos os bens arrolados para a massa falida. Verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o falido seja contitular, só se liquida o direito que o falido tenha sobre esses bens; se os bens já tiverem sido liquidados tem o autor da acção respectiva o direito a ser embolsado do valor correspondente à avaliação dos respectivos bens ou à sua venda (art. 179º nºs 1 e 2 do CPEREF).
7. Por força da procedência da acção de impugnação pauliana, o negócio impugnado não se desfaz. Contudo se esta acção sofreu a vicissitude de ver o vendedor declarado falido, e, por conseguinte, de se ver sujeita ao regime falimentar, a declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido, como decorre do art. 154º nº 3 do CPEREF.
8. É no processo de falência que se procede à execução do direito reconhecido na acção de impugnação pauliana. Só que agora em benefício de todos os credores, e não se supõe que o valor do bem em causa exceda o do credor, pois ele passa a responder, se assim se pode dizer, pelo valor dos créditos dos demais credores do falido.
9. Fruto do disposto no art.154º do CPEREF, tal acção não poderá ser intentada, porque, nos termos do nº 1, declarada a falência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido ou contra terceiro, cujo resultado possa influenciar o valor da massa, são apensadas ao processo de falência.
10. Por força do art. 188º do CPEREF, o credor, querendo obter pagamento, só lhe resta reclamar o crédito que nesta acção venha a ser considerado, transitada que seja a decisão final, no processo de falência (apenso de reclamação de créditos). Não poderá intentar qualquer acção executiva contra o falido.
FG
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Autora:
1º - I, LIMITADA.
1.1.2. Ré:
1º - V, S.A., entretanto, declarada falida, a qual passou a ser representada pelo Liquidatário Judicial da respectiva Massa Falida. 2º - P, S.A.
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1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
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1.3. Objecto das apelações:
1. A sentença de fls. 1055 a 1085, pela qual a acção foi julgada procedente e a reconvenção deduzida pela 1ª R. improcedente.
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1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:
A – Na apelação da ré Promório:
1. Da alteração da matéria de facto.
2. Da nulidade da sentença por substituição da pessoa da 1ª R.
3. Da nulidade da sentença por condenação em objecto distinto do pedido.
4. Da não detenção da A., a 7 de Março de 1997, do crédito no valor de Esc. 716.027.290$00.
5. Do abuso se direito.
6. Da ilegítima remessa para o cálculo dos juros no processo de reclamação de créditos.
7. Da falta do requisito da má fé por parte da ré Promório.
8. Da ilegalidade da reversão da procedência da impugnação pauliana a favor da Massa Falida.
9. Da ilegalidade da ordem de venda do imóvel dada ao Liquidatário Judicial.
10. Da falta de legitimidade do Liquidatário Judicial para vender o imóvel dos autos visto o negócio se manter apesar da impugnação e não ser este o processo próprio para a respectiva execução.
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B – Na apelação da autora I:
Da ilegal reversão do imóvel para a Massa Falida.
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2. SANEAMENTO:
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito dos recursos, pelo que cumpre apreciar e decidir.
Começar-se-á pela apelação interposta pela R. Promório, em virtude de a sua procedência poder dispensar o conhecimento do recurso interposto pela A. I.
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3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que o Tribunal recorrido considerou provados:
Os constantes de fls. 1058 a 1065, para os quais se remete.
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3.2. De direito:
A – Na apelação da ré P:
1. Da alteração da matéria de facto.
2. Tendo sido impugnada a apreciação que o Tribunal recorrido fez da matéria de facto, é por esta matéria que cumpre começar a apreciação do recurso.
3. Começa a Recorrente por alegar que foi violado o disposto no art. 517º do C.P.C. porque a sentença se fundou em factos que resultam do processo de falência de que a Alegante não é parte e sobre os quais não se pôde pronunciar, até porque não foi cumprido o disposto no art. 514º do C.P.C.
4. A Recorrente não indica quais são os factos a que se refere. Porém, compulsando o elenco de factos dados como provados na sentença, conclui-se que a Recorrente deve estar a referir-se aos factos 58 a 60, pois todos os outros correspondem a Factos Assentes ou a Factos da Base Instrutória dados como provados.
(…)
5. Os considerandos constantes da fundamentação (ver fls. 1035 e 1036) são absolutamente pertinentes e logicamente irrefutáveis. Na verdade, não faria sentido algum a A. saber desde Março ou Abril de 1997 que perdera a única garantia de pagamento que tinha sobre a R. V, por esta ter alienado o único prédio de que era detentora, e nada fazer, e mais, propor-se assinar um Protocolo com cláusula inexequível, por a V já não ser dona do prédio referido.
6. Não há, por isso, fundamento válido para se alterar a resposta dada a tal matéria, assim improcedendo a posição da Recorrente quanto a esta questão.
7. Na 11ª conclusão, a Recorrente alega que não é facto, mas já conclusão o que consta do facto 42 da sentença.
8. O facto 42 da sentença tem a seguinte redacção: A venda referida em 16) foi feita sem o conhecimento da A. e esvaziou o património da 1ª R. do único bem que servia de garantia para pagamento dos créditos da A.
9. Em bom rigor a matéria constante do facto 42 encerra uma conclusão. Porém, ela mostra-se necessária para evitar a formulação de um quesito negativo, do género “a 1ª R. não é dona de nenhum outro prédio, além do que foi objecto da venda referida em 16)”, quesitos sempre de difícil prova, sendo certo que, para efeitos de procedência da providência de arresto é relevante saber-se que bens compõem o património do devedor.
10. Por esse motivo, considera-se ser de aceitar a formulação do quesito tal como está e como foi respondido.
11. Na 12ª conclusão, a Recorrente alega que o facto 42 contém erro, porque do património da R. constava pelo menos o preço por que tinha sido vendido o imóvel, ou no que quer que fosse em que o dinheiro se tivesse transformado.
12. A alegação peca por falta de realismo. Quando se diz que a A. perdeu o único bem que servia de garantia tem de entender-se que a expressão “bem” se refere a bem imóvel ou móvel sujeito a registo, e não a dinheiro que é a coisa mais fungível que existe. Tanto assim é que não se sabe qual o destino dado a esse dinheiro proveniente da venda do prédio. O que se sabe é que, sendo a V, ao tempo, já devedora de enormes quantias à A., não afectou o recebimento do preço da venda (se é que realmente o recebeu) ao pagamento, ainda que parcial da dívida dos autos.
13. Não colhe, pois, o argumento expendido pela Recorrente para afastar o facto 42 da sentença.
14. (…)
15. Na 22ª conclusão, pretende a Recorrente que a sentença deveria enunciar os factos que não foram considerados provados.
16. A sentença tem uma estrutura legalmente definida que não contempla a enunciação dos factos dados como não provados. Dispõe o art. 659º nº 2 do C.P.C. que, depois de começar por identificar as partes e o objecto do litígio, e fixar as questões que ao tribunal cumpre solucionar, seguem-se os fundamentos, devendo o juiz descriminar os factos que considera provados.
17. O preceito não diz que devam ser indicados também os factos dados como não provados. E realmente não se vê qualquer interesse nisso, porque a decisão de direito só pode basear-se nos factos provados, sendo certo que um facto não provado não equivale à prova do facto contrário.
18. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
19. Em conclusão, este Tribunal da Relação considera provados todos os factos dados como provados na sentença recorrida, aos quais acrescenta o facto 7-A, resultante da acrescentada alínea G1), com a seguinte redacção:
20. A A S. A. assumiu também a responsabilidade pelos pagamentos das dívidas da r. V perante a F e a A. I.
*
21. Em sede de Direito, a Recorrente insurge-se contra a sentença nos seguintes termos:
22. Da nulidade da sentença por substituição da pessoa da 1ª R.
23. Diz a Recorrente que, na fase do julgamento, a ré V foi substituída pela Massa Falida da V, sem que tal substituição obedecesse às regras de substituição processual legalmente estabelecidas e com manifesto desrespeito do princípio da estabilidade da instância, consagrado no art. 268º do C.P.C.
24. A afirmação da Recorrente não corresponde ao fenómeno jurídico que ocorreu na pendência desta acção.
25. O que aconteceu é que a acção foi intentada contra a pessoa jurídica de natureza colectiva do tipo sociedade comercial com a firma V, S.A., indicada como primeira ré.
26. Na pendência da acção, essa pessoa jurídica foi declarada falida (ver fls. 209).
27. A declaração de falência apenas muda o estado da pessoa, mas não altera nem converte essa pessoa jurídica numa outra.
28. O que se dá é o “nascimento” de um novo ente com personalidade judiciária autónoma que é a “massa falida”, constituída pelo acervo de bens que compunham o património da pessoa antes de declarada falida.
29. Isto por força do disposto no art. 147º nº 1 do CPEREF (então vigente), segundo o qual a declaração de falência priva imediatamente o falido do poder de disposição dos seus bens, os quais passam a integrar a massa falida, massa essa que fica sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.
30. Mas tal injunção não vai ao ponto de retirar a personalidade jurídica à pessoa que veio a ser declarada falida. Passa é a não poder reger-se a si própria em matéria patrimonial.
31. Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, é o liquidatário judicial quem assume a representação do falido para todos efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
32. A Massa Falida constituída a partir do património da V uma vez declarada falida não substituiu a V nesta acção nem é parte nela por qualquer modo.
33. Quem passou a intervir na acção foi o Liquidatário Judicial nomeado àquela Massa, por força do disposto no nº 1 do art. 147º, visto ter passado a ser ele quem detém os poderes de representação da V.
34. Importa não confundir a Massa com o Administrador comum a ela e à V que é o Liquidatário Judicial àquela nomeado.
35. Improcede, por isso, a posição da Recorrente quanto a esta questão.
36. Da nulidade da sentença por condenação em objecto distinto do pedido.
37. Alega a Recorrente que a ré V formulou como pedidos o de não procedência da impugnação pauliana e o pedido reconvencional de condenação da A. no pagamento de 480 mil contos mais indemnização a calcular em execução de sentença. A final, vai a R. V contemplada com a procedência da acção a seu favor. A ré Promório vê-se condenada num processo a favor de uma entidade que nem parte no processo é, para responder por créditos de terceiro que nem sabe quais serão, e em relação aos quais nem se pode defender.
38. A sentença condenou a ré V a pagar determinada quantia à A., julgou procedente a impugnação pauliana, declarando a ineficácia da venda em relação aos credores da massa falida da ré V., e absolveu a A. do pedido reconvencional formulado pela ré V.
39. A A. I pediu, na petição inicial a condenação da ré V a pagar-lhe certa importância, acrescida de juros e a julgar-se procedente a impugnação pauliana da venda da r. V à r. Promório, ordenando-se a restituição do prédio vendido à r. V.
40. Relativamente ao primeiro pedido, o mesmo manifesta-se satisfeito, pelo que nada há a dizer.
41. Quanto ao segundo pedido, importa dizer que a expressão usada na sentença é tecnicamente mais correcta, pois a impugnação pauliana não tem por efeito desfazer o negócio impugnado, à semelhança de uma resolução. Antes, pressupondo a manutenção do negócio, confere ao credor que tenha visto ser julgada procedente a impugnação o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição, conforme dispõe o nº 1 do art. 616º do C.Cv.
42. No caso dos autos, entre a data da formulação dos pedidos da A. e a data da prolação da sentença deu-se a declaração de falência da V.
43. Esse facto implicou a aplicabilidade do disposto no art. 157º do CPEREF, segundo o qual são impugnáveis em benefício da massa falida todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil.
44. A necessidade de actualização do pedido relativo à impugnação pauliana fruto da declaração de falência implicou que a decisão quanto a ele não pudesse ser rigorosamente igual ao pedido, uma vez que agora, após a declaração de falência, não será apenas a A. enquanto credora que vai beneficiar da procedência do pedido de impugnação pauliana, mas sim todos os credores da massa falida, conforme dispõe o referido art. 157º.
45. Julga-se, por isso, que não houve condenação em pedido relevantemente diferente do formulado pela A.
46. Quanto à afirmação de que a Recorrente vê-se condenada a favor de uma entidade que nem parte no processo é ela é totalmente irrelevante e não corresponde à verdade, pois, no processo principal, de falência, a que este está apenso (importa não esquecer) a Massa Falida da V encontra-se perfeitamente definida e identificada, sabendo-se quem a representa e de que se compõe.
47. Julga-se, assim, improcedente a posição da Recorrente quanto a esta questão.
48. Da não detenção da A., a 7 de Março de 1997, do crédito no valor de 716.027.290$00.
49. Alega a Recorrente que a A. não era credora da V da quantia supra referida a 7 de Março de 1997, afirmação crê-se que feita com base no facto de na sentença se ter reportado o montante da dívida à data de 31 de Dezembro de 1997 (facto 32), e, consequentemente, não se verificar um dos pressupostos da impugnação pauliana.
50. Mas, tal alegação não afasta de todo o requisito da pré-existência do crédito da A.
51. Antes do mais, por força do teor do facto 19, segundo o qual a sociedade A, uma das co-responsáveis pela dívida da V, ter enviado à A. uma carta datada de 29 de Julho de 1997, com o assunto “Plano de amortização V – I de 685.968.000$00”, o que significa que cerca de três meses após a data da venda impugnada já o passivo da V se elevava àquele montante, não sendo verosímil que a dívida, em Março de 1997, não fosse já da ordem dos milhares de contos.
52. Mas, além disso, a A. juntou como documento nº 3 ao procedimento de Arresto prova de que a V, no final do ano de 1996, já lhe devia cerca de setecentos contos, de viaturas e peças (ver fls. 73 a 77).
53. Este facto foi dado como provado e mantido, após a oposição e recurso interpostos pela ora Recorrente (ver fls. 463 do Arresto e 272 do Apenso de Recurso em separado).
54. Por isso, pode dizer-se com segurança que, à data de 7 de Março de 1997, a V era devedora da A. do montante de cerca de setecentos mil contos.
55. Quanto ao “endosso das facturas” crê-se que a expressão usada nos autos pela A. é meramente figurativa, pois não se provou ter havido endosso de qualquer factura operado pela F em favor da A. I.
56. O que houve foi a fixação contratual do regime a observar sempre que o fornecimento de viaturas à 1ª R. fosse feito através da F (factos 26 a 31).
57. Assim, acerca desta matéria, ficou provado que sempre que o concessionário não pagasse as facturas do distribuidor designado estas eram cedidas ao concedente que deveria cobrá-las junto desse concessionário (facto 30).
58. Técnico-juridicamente está-se na presença de uma cessão de créditos, que resulta de um contrato que a regulamenta, contrato esse anterior em data às datas em que se verificam os pressupostos da sua aplicação, que são as datas em que a 1ª R. enquanto concessionária da A. não pagou as facturas que deveria ter pago à F enquanto distribuidor designado.
59. O regime que resulta dos factos 26 a 31 é que a F não tem de suportar a falta de pagamento pela 1ª R., caso esta não pague as respectivas facturas, bastando remetê-las à A., a qual encarregar-se-á de cobrá-las à sua concessionária, a 1ª R.
60. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
61. Do abuso se direito.
62. Alega a Recorrente que a A. se colocou em posição de continuar credora da V porque cedeu a garantia bancária de que gozava à F, o que constitui abuso de direito.
63. Salvo melhor opinião, crê-se que não assiste razão à Recorrente, pois essa cessão da garantia bancária à F só aparentemente reverteu em benefício da F, porque o que realmente aconteceu é que a A. viu diminuído o montante da dívida global da V para consigo (facto 6), tendo imputado o recebimento (indirecto) do montante garantido ao pagamento das facturas referidas no facto 32 (facto 34).
64. Não houve, assim, qualquer acto de colocação ou manutenção da posição de credora, para além do que resultou da falta de pagamento atempado das dívidas da 1ª R. para com a A., não se verificando qualquer comportamento abusivo por parte desta.
65. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
66. Da ilegítima remessa para o cálculo dos juros no processo de reclamação de créditos.
67. Alega a Recorrente que não é parte nesse processo, não podendo intervir nele por não ser reconhecida como credora da V.
68. Na verdade, no ponto A da parte dispositiva da sentença, condenou-se a 1ª R. a pagar à A. certas quantias relativas ao fornecimento de viaturas e de peças, acrescida de juros e da sobretaxa de 2%, contados a partir da data de vencimento das respectivas facturas até 3 de Maio de 2000, e juros a liquidar no apenso de reclamação de créditos.
69. A disposição em causa dirige-se fundamentalmente à A. É ela quem deve liquidar o montante de juros já devidamente balizados no tempo, entre a data das facturas vencidas e da sentença falimentar, bem como no que concerne ao valor da taxa.
70. A Recorrente não tem de se defender dessa liquidação, visto que, em princípio, o activo da V, a falida, não chega para pagar o seu passivo, ou seja, não sobrará valor algum de que a Recorrente possa vir a beneficiar, por isso, é que se declarou a falência da 1ª R., é porque se verificou que o seu activo era manifestamente incapaz de fazer face ao passivo.
71. Dispõe o art. 159º nº 1 do CPEREF que, julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou valores correspondentes revertem para a massa falida. O nº 2 diz que os bens ou valores que hajam de ser restituídos devem ser apresentados ao liquidatário dentro do prazo fixado na sentença, sob pena de sanções. E o nº 3 diz que, no caso de a contraparte ter direito a restituição, é o seu valor considerado como crédito comum.
72. Resulta da conjugação dos preceitos referidos que, ganha a acção de impugnação pauliana, seja ela intentada por credor ou pelo liquidatário judicial, os bens objecto da impugnação revertem para a massa falida, independentemente do valor pelo qual os mesmos devessem responder. Mas, se por qualquer razão o vencido (a contraparte como se refere no nº 3) tiver direito a restituição de algum valor, é esse valor considerado como crédito comum.
73. Significa tal que ao vencido adquirente da impugnação pauliana é conferido o direito de defender os seus interesses ao lado dos demais credores.
74. Em resumo, irreleva para a Recorrente que a liquidação dos juros deva ser feita neste apenso ou no processo de liquidação do activo, porque nada pode opor a tal liquidação enquanto parte na acção de impugnação pauliana. Apenas, se reclamar algum crédito seu, nos termos do nº 3 do art. 159º referido, o poderá fazer.
75. Julga-se, assim, improcedente a posição da Recorrente neste particular.
76. Da falta do requisito da má fé por parte da ré P.
77. Alega a Recorrente que não houve má fé da sua parte ao adquirir o imóvel dos autos.
78. Mas, assenta a sua argumentação sobre factos que não foram dados como provados, como sejam: a dívida da V ater-se ao valor da ordem dos cem mil contos; a I beneficiar de uma garantia de quatrocentos mil contos; a A ter-se responsabilizado pelas dívidas da V; a proposta da A obter financiamento bancário.
79. Porém, a verdade é que a dívida não era da ordem dos cem mil contos mas dos setecentos mil contos, razão pela qual os quatrocentos da garantia bancária, apesar de accionados não chegaram para pagar a dívida e o mais são meras declarações de intenção e propostas que não lograram realização, mantendo-se a dívida ainda por pagar.
80. Importa ter presente que embora a ré P seja uma pessoa jurídica diferente da dos seus sócios, estes eram, nomeadamente, técnico de contas da 1ª R. e da A, presidente do conselho de administração da 1 ªR., consultor da 1ª R e da A , e fiscal a 2ª R…(factos 11 a 15).
81. Estas qualidades profissionais supõem o conhecimento por parte da P da situação da V, uma vez que a pessoa de alguns dos sócios daquela também exerciam funções de gestão na V.
82. Ora, por tudo isto não pode a Recorrente vir dizer que não agiu de má fé, ou com desconhecimento dos factos.
83. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
84. Da ilegalidade da reversão da procedência da impugnação pauliana a favor da Massa Falida.
85. Alega a Recorrente tal, por a Massa Falida não ser parte legítima nesta acção, não se tendo verificado qualquer alteração do pedido.
86. A Recorrente persiste em querer ignorar que, na pendência desta acção, a 1ª R. foi declarada falida, o que veio alterar os termos da condenação pedida pela A.
87. Conforme já se salientou, por força do disposto no art. 157º do CPEREF, os actos susceptíveis de impugnação pauliana revertem em benefício da massa falida.
88. Importa não esquecer que esta acção deixou de ter autonomia, a partir do momento em que a 1ª R. foi declarada falida, passando a correr apensadamente ao processo de falência, processo que monopolizou os interesses em causa, uma vez que a própria A. deixou de ser a directa e exclusiva beneficiária com a procedência da acção, pois o benefício da sua procedência reverte para a Massa Falida, como se disse.
89. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
90. Da ilegalidade da ordem de venda do imóvel dada ao Liquidatário Judicial.
91. Alega a Recorrente que é ilegal tal ordem porque deu entrada acção de separação de bens da massa falida que foi recebida e autuada, mas ainda não teve sentença.
92. A este propósito importa ter presente o disposto no art. 179º do CPEREF que diz, no seu nº 1, que, transitada em julgado a sentença declaratória da falência, proceder-se-á à venda de todos os bens arrolados para a massa falida. E o nº 2 seguinte diz que, verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o falido seja contitular, só se liquida o direito que o falido tenha sobre esses bens; se os bens já tiverem sido liquidados tem o autor da acção respectiva o direito a ser embolsado do valor correspondente à avaliação dos respectivos bens ou à sua venda.
93. Por conseguinte, após a declaração de falência, há que proceder à venda dos bens apreendidos para a massa falida. Se houver que restituir ou separar bens, a lei confere ao respectivo autor o direito a ser reembolsado.
94. Por isso, a Recorrente tem o seu eventual direito salvaguardado pela lei, apesar da ordem de venda constante do segmento B da parte dispositiva da sentença.
95. Improcede a posição da Recorrente quanto a esta questão.
96. Da falta de legitimidade do Liquidatário Judicial para vender o imóvel dos autos visto o negócio se manter apesar da impugnação e não ser este o processo próprio para a respectiva execução.
97. Tem razão a Recorrente quando diz que, por força da procedência da acção de impugnação pauliana, o negócio impugnado não se desfaz. Apenas se concede ao credor que execute os bens no património do obrigado, na medida do seu interesse. Sendo certo também que a acção que tem por objecto a impugnação da alienação não se confunde com a acção onde o credor vai executar o seu direito de crédito.
98. Só que, uma vez mais, esta acção sofreu a vicissitude de ver o vendedor declarado falido, e, por conseguinte, de se ver sujeita ao regime falimentar. Uma dessas consequências é a que resulta do disposto no art. 154º nº 3 do CPEREF, segundo o qual a declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido.
99. Assim sendo, é no processo de falência que se procede à execução do direito reconhecido na acção de impugnação pauliana. Só que agora em benefício de todos os credores, e não se supõe que o valor do bem em causa exceda o do credor, pois ele passa a responder, se assim se pode dizer, pelo valor dos créditos dos demais credores do falido.
100. Não assiste razão à Recorrente neste particular.
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B – Na apelação da autora I:
1. Da ilegal reversão do imóvel para a Massa Falida.
2. A única questão que importa apreciar neste recurso é a de se saber da justeza da decisão de fazer reverter o imóvel objecto da impugnação pauliana para a Massa Falida da 1ª R.
3. Diga-se, desde já, que se sufraga a posição e argumentação expendidas na sentença quanto a esta questão.
4. Na verdade, a natureza universal executória do processo de falência, conjugada com a natureza final de que o mesmo está eivado, impõem um regime algo diferente em matéria de efeitos da procedência de uma acção de impugnação pauliana daqueles que estão previstos no campo puramente civilístico.
5. Assim, enquanto, nos termos do art. 616º nº 1 do C.Cv., a lei apenas confere ao credor o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, devendo esse credor executá-los no património do obrigado à restituição, ou seja, o adquirente, o que significa que a lei pressupõe a manutenção do negócio, isto é, que a titularidade do direito de propriedade sobre o bem se mantém na esfera jurídica do adquirente, no caso do alienante ser declarado falido já o regime não é, nem poderia ser, o mesmo.
6. Repare-se que a acção de impugnação pauliana destina-se apenas a reconhecer ao credor o direito a pagar-se por força de bem alienado por devedor em certas circunstâncias que lhe diminuem a garantia patrimonial o que, sem essa alienação, não aconteceria. Por conseguinte, fica provado o crédito e o direito a executá-lo no património do adquirente, na medida do montante desse crédito.
7. Vencida essa acção, não paga voluntariamente a dívida, naturalmente, o credor terá de intentar acção executiva para realizar coactivamente a sua prestação.
8. Ora, fruto do disposto no art.154º do CPEREF, tal acção não poderá ser intentada, porque, nos termos do nº 1, declarada a falência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido ou contra terceiro, cujo resultado possa influenciar o valor da massa, são apensadas ao processo de falência (foi o caso desta acção, que na sua pendência foi apensada ao processo de falência – efeito da natureza universal deste tipo de processos). A que se acrescenta o disposto no nº 3: a declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido.
9. Deste último comando, se vê que de nada serviria à A. ganhar a acção de impugnação pauliana, na sua tese, pois, de seguida não podia executar o direito nela reconhecido, isto mesmo que a execução já tivesse sido intentada antes da declaração de falência. É o efeito final, extintor da actividade negocial do falido a fazer-se sentir.
10. Por isso, em consonância com o acima exposto, dispõe o art. 159º nº 1 do CPEREF que, julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou os valores correspondentes revertem para a massa falida. Gizada como está a acção falimentar, não faria sentido conferir ao credor o direito à restituição dos bens no património do adquirente.
11. Repare-se que, nos termos do art. 188º nº 3 do CPEREF, mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de falência, se nele quiser obter pagamento.
12. Por força desta disposição, a A., querendo obter pagamento, só lhe resta reclamar o crédito que nesta acção venha a ser considerado, transitada que seja a decisão final, no processo de falência (apenso de reclamação de créditos). Não poderá intentar qualquer acção executiva contra o falido.
13. Improcede, assim, a posição da Recorrente quanto a esta questão.
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4 DECISÃO:
1. Por tudo o exposto:
A – Na apelação da ré P:
Nega-se provimento à apelação, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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B – Na apelação da autora I:
Nega-se provimento à apelação, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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2. Custas pelas partes Recorrentes, na medida do respectivo decaimento (art. 446º nº 2 CPC).
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Lisboa, 16.12.2008
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Maria Alexandrina de Almeida Branquinho Ferreira)
2º Adjunto (Eurico José Marques dos Reis)