Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
819/24.7YRLSB-8
Relator: CARLA CRISTINA FIGUEIRA MATOS
Descritores: SENTENÇA ESTRANGEIRA
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE
PROCESSO DE REVISÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
ESTADO PORTUGUÊS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Apenas podem ser partes no processo de revisão de sentença estrangeira as partes que figurarem como tal na decisão objeto de revisão.
II. Podem as mesmas propor em conjunto o processo de revisão de sentença estrangeira, caso em que não existem requeridos, ou pode apenas uma delas intentar o processo, caso em que têm que constar como requeridas todas as demais.
III.   O Estado Português é parte ilegítima no processo de revisão de sentença estrangeira, por não ter sido parte no processo onde foi proferida a decisão cujo reconhecimento se pretende.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO:
A  e B, melhor identificados nos autos, vieram propor Ação Especial de Revisão de Sentença Estrangeira apresentando formulário eletrónico onde consta como requerido o Estado Português (Cf formulário eletrónico que anexa a petição inicial – art 7º nºs 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 29/08).
Alegam para tanto, em síntese, que o requerente reconheceu mediante declaração feita com caracter irrevogável, através de Instrumento Particular, a paternidade de C, com efeitos civis e jurídicos, em 20/12/2003, que  C , nasceu no dia 11/03/1988  no Brasil e foi registada pela sua mãe, …, passando a chamar-se … após o reconhecimento de paternidade; o reconhecimento de paternidade foi registado junto ao Oficial de Registro das Pessoas Naturais – 26º Subdistrito, Vila Prudente, São Paulo/SP e averbado ao registo de nascimento da menor, passando a figurar no ordenamento jurídico brasileiro em 11/02/2004, conforme o assento de nascimento n.º 88462 do livro A-147 – pag.209; por sentença proferida no processo n.º 000.03.163559-8 da 2ª Vara de Registos Públicos da Comarca de São Paulo, Foro Central Cível, do Poder Judiciário do Estado do São Paulo, Brasil, foi decretado Reconhecimento de Paternidade – Ato por Instrumento Particular; da decisão que decretou o Reconhecimento de Paternidade não foi interposto qualquer recurso, pelo que a mesma produziu efeitos em 09/02/2004, segundo a lei do país em que foi proferida.  Mais invocam a verificação dos requisitos exigidos pelo art. 980º do CPC para a confirmação da sentença.
Concluem, peticionando que seja revista e confirmada a sentença com todas as consequências legais, designamente, as de reconhecimento de paternidade para os fins de transmissão da nacionalidade portuguesa para a requerente, para que a mesma possa produzir todos os seus efeitos legais em Portugal.                                                                                           
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Em 21.03.2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique os requerentes para em dez dias esclarecerem a que titulo indicam como requerido o Estado Português (cf. formulário electrónico).”
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Os requerentes vieram apresentar resposta a 23.03.2024 nos seguintes termos:
“Vêm, por intermédio da procuradora que se subscreve indicar que atribuem ao Estado Português o papel de requerido por entenderem que, nesses casos, a ação de revisão de sentença estrangeira não estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, já que pai e filha requerem em conjunto a Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira de Reconhecimento de Paternidade, mas numa simples demanda ao Estado Português para atribuição de eficácia à sentença estrangeira e ao reconhecimento da situação por ela definida.
Neste processo está em causa uma sentença que decreta o reconhecimento de paternidade sem que se vislumbre qualquer outra finalidade da atribuição de eficácia a tal sentença que não a de mero reconhecimento em Portugal do estado de pai e filha resultante daquela.
Pretendem, assim, o mero reconhecimento da situação definida na sentença revidenda, daí que propõem a ação em conjunto, por serem diretamente afetados pela sentença, e para tanto pretendem ver reconhecida a referida relação de pai e filha, perante o Estado Português – Ministério Público - enquanto defensor da legalidade e dos princípios da ordem pública nos termos do artigo 219.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa.”
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Em 09.04.2024 foi proferido despacho de indeferimento liminar com o seguinte teor:
“A  e B , melhor identificados nos autos, vieram propor Acção Especial de Revisão de Sentença Estrangeira contra o Estado Português.
O processo de revisão de sentença estrangeira não implica qualquer reexame do mérito da causa onde foi proferida tal sentença, visando apenas sindicar determinados requisitos formais previstos nas alíneas do artº. 980º do CPC, de forma a que tal sentença possa produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa (cf art 978 nº1 do CPC).
E, tal como se refere no Acórdão do TRG de 08.11.2018 proferido no Proc. 84/18.5YRGMR, “apenas podem ser partes no processo de revisão de sentença estrangeira relativa a direitos privados as partes que figurarem como tal nessa decisão objeto de revisão”.
Quem figura como requerido é o Estado Português, o qual não é parte na sentença cuja revisão se pretende, e consequentemente não deve ser parte no processo de revisão respetiva.
Em suma, quem foi ora demandado é parte ilegítima (Estado Português).
A ilegitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso que implica a absolvição da instância, ou o indeferimento liminar quando a petição seja apresentada a despacho liminar (arts 577 al e), 578, 278 nº1 al d), e 590 nº1 do CPC todos aplicáveis ex vi do art 549º, nº 1 do CPC).
Por todo o exposto, e ao abrigo do disposto no art.º 590º, nº 1, ex vi art.º 549º, nº 1, do CPC, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial de ação de revisão de sentença estrangeira.
Fixo o valor da causa no indicado na petição inicial (cfr. art.º 306º, do NCPC).
Custas da ação a suportar pelos requerentes, nos termos do disposto no art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC.
Notifique.”
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Inconformados, vieram os requerentes a 19.04.2024 apresentar requerimento, com o seguinte teor:
“Os AA vêm, após terem sido notificados da decisão singular a fls. que indeferiu liminarmente a Petição Inicial, reclamar do despacho proferido o que fazem nos seguintes termos:
1- O douto despacho considerou que o Estado Português não poderia ser parte legítima no processo de revisão de sentença estrangeira indeferindo liminarmente a petição inicial.
2- Da simples leitura da Petição Inicial, percebe-se que em nenhum momento os AA indicaram o Estado Português como polo passivo da demanda, haja vista que, conforme indicado no requerimento final da mencionada petição, no caso em tela há ausência de demandados.
3- Ocorre que, por equívoco, ao preencher o formulário eletrónico do Citius, a mandatária, apontou o Estado Português como demandado.
4- Assim, ao abrigo do disposto conjugadamente nos artigos 590º, nº 2, al. a) e 6º, nº 2, do CPC, entendem os AA, a fim de não terem prejudicado o seu direito, que pode o Tribunal suprir a exceção dilatória acima assinalada, permitindo a correção no que tange à legitimidade passiva neste processo especial, suprimindo o Estado Português, uma vez que está em causa a confirmação de decisão que decretou o reconhecimento de paternidade da requerente C por A , seu pai, pretendendo-se obter decisão de revisão e confirmação de sentença com as demais consequências de reconhecimento de paternidade, perante o Estado Português, para efeitos de atribuição de nacionalidade da requerente.
5- A decisão proferida por ser equiparada a uma decisão sobre direitos privados, carece de revisão para produzir efeitos em Portugal.
6- Entendem os AA. que para efeitos da presente ação se dispensa a apresentação de demandados conforme consta da Petição Inicial do processo.
7- Tal fundamento tem suporte em decisão proferida por este Tribunal da Relação no processo n.º529/11.5YRLSB-1 – Acórdão de 4 de outubro de 2011.
8- Decidiu-se neste acórdão que “nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de fazer impor a outrém; de a fazer valer contra outrém. Com efeito, situações há em que com a atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efetivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro”
9- Ora nesses casos a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado Português para atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do Ministério Público enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública) vide Ac. De 4/10/201110- Pretendiam os AA o reconhecimento da situação definida na sentença revidenda, sem que se fizesse valer contra quem quer que fosse em concreto, dispensando-se a indicação de demandados.
11- No entanto, não prevalecendo este entendimento, indicaram o Estado Português - Ministério Público como requerido enquanto defensor da legalidade e dos princípios da ordem pública nos termos do artigo 219.º n.º1da Constituição da República Portuguesa.
Requer desde já o pronunciamento referente ao processo e em especial a esse pedido pelo Ministério Publico, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Requer, por derradeiro, a reconsideração do despacho de referência nº 21414529,pelos fundamentos expostos no processo cuja revisão/confirmação é pretendida através desta ação, pois não há qualquer obstáculo, a que a decisão em causa seja revisada e confirmada, com o que se fará justiça.
Outrossim, caso esse D. Desembargador entenda por bem, não reconsiderar a decisão em referência, requer subsidiariamente, que se digne a submeter o caso à conferência.
Termos em que pede e espera deferimento.”
Notificado de tal requerimento, o MP nada disse.
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Em 19.05.2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Req. de 19.04.2024 (reclamação):
Por se mostrar esgotado o poder jurisdicional do relator em sede de decisão sumária, a reclamação da decisão proferida a 09.04.2024 apenas pode ser apreciada em conferência.
Para o efeito, determina-se a remessa do processo aos vistos, com subsequente inscrição em Tabela.
Notifique.”
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Nos termos previstos no art. 652 nº3 do CPC, a parte que se considere prejudicada por qualquer decisão do relator pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão.
Deduzida a reclamação para a conferencia, o coletivo de juízes reaprecia as questões que foram objeto da decisão singular do Relator, sem qualquer vinculação ao anteriormente decidido.
Colhidos os vistos, cumpre, então, decidir em conferência.       
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II – QUESTÕES A DECIDIR:
Se o Estado Português é parte legitima em processo de revisão de sentença estrangeira.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Os Factos assentes com relevância para a causa são os que constam do relatório supra.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
A decisão reclamada indeferiu liminarmente a petição inicial por ilegitimidade de quem foi demandado – o Estado Português-, considerando que o mesmo não foi parte no processo onde foi proferida a decisão cuja revisão se requer.
Os requerentes discordam de tal decisão, referindo que da simples leitura da Petição Inicial, percebe-se que em nenhum momento os AA indicaram o Estado Português como polo passivo da demanda, mas que, por equívoco, ao preencher o formulário eletrónico do Citius, a mandatária apontou o Estado Português como demandado, entendendo que pode o Tribunal suprir a exceção dilatória acima assinalada, permitindo a correção no que tange à legitimidade passiva neste processo especial, suprimindo o Estado Português.
Mais referem que pretendiam o reconhecimento da situação definida na sentença revidenda, sem que se fizesse valer contra quem quer que fosse em concreto, dispensando-se a indicação de demandados. No entanto, não prevalecendo este entendimento, indicaram o Estado Português - Ministério Público como requerido enquanto defensor da legalidade e dos princípios da ordem pública nos termos do artigo 219.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar.
O processo de revisão de sentença estrangeira não implica qualquer reexame do mérito da causa onde foi proferida tal sentença, visando apenas sindicar determinados requisitos formais previstos nas alíneas do artº. 980º do CPC, de forma a que referida sentença possa produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa (cf art 978 nº1 do CPC).
E, tal como se refere no Acórdão do TRG de 08.11.2018 proferido no Proc. 84/18.5YRGMR (disponível in www.dgsi.pt), “apenas podem ser partes no processo de revisão de sentença estrangeira relativa a direitos privados as partes que figurarem como tal nessa decisão objeto de revisão”.
Podem as mesmas propor em conjunto o processo de revisão de sentença estrangeira, caso em que não existem requeridos, ou pode apenas uma delas intentar o processo, caso em que têm que constar como requeridas todas as demais.
Deverão, pois, ser partes no processo de revisão de sentença estrangeira as pessoas visadas nessa sentença, ou seja, aquelas para as quais decorrem da sentença efeitos jurídicos.
No caso dos autos os requerentes são as pessoas diretamente visadas na decisão a rever, a qual se reporta ao reconhecimento da paternidade de uma relativamente à outra.
Não obstante, no formulário eletrónico que integra a p.i. indicaram como requerido o Estado Português, o qual não é parte no processo de reconhecimento de paternidade onde foi proferida a decisão a rever.
É certo que na própria P.I. não consta tal indicação do Estado Português como parte.
Todavia, nos termos do art. 7º nºs 1 e 2 da Portaria 280/2013 de 29/08, prevalece a informação que consta no formulário eletrónico, do que resulta que o Estado Português é requerido nos presentes autos.
Ainda assim, porque o próprio nº 3 do mesmo artigo 7º permite que a informação constante do formulário possa ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente, foi proferido despacho que determinou a notificação dos requerentes para em dez dias esclarecerem a que titulo indicam como requerido o Estado Português (cf. formulário eletrónico).
E na resposta não se invocou qualquer lapso; pelo contrário, indicaram os requerentes que: “(..) atribuem ao Estado Português o papel de requerido por entenderem que, nesses casos, a ação de revisão de sentença estrangeira não estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, já que pai e filha requerem em conjunto a Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira de Reconhecimento de Paternidade, mas numa simples demanda ao Estado Português para atribuição de eficácia à sentença estrangeira e ao reconhecimento da situação por ela definida.”
Acrescentam que: “(…) pretendem ver reconhecida a referida relação de pai e filha, perante o Estado Português – Ministério Público - enquanto defensor da legalidade e dos princípios da ordem pública nos termos do artigo 219.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa.”
Ou seja, defendem claramente que atribuem ao Estado Português o papel de requerido, invocando o Ministério Público enquanto defensor da legalidade e dos princípios da ordem pública.
Não podem, pois, ora referir que a indicação do Estado Português como requerido decorreu de lapso, quando já tiveram oportunidade para o referir e não fizeram, e, pelo contrário, defenderam o papel de requerido que lhe atribuíram.
Portanto, quem consta dos autos como parte requerida (o Estado Português) é parte ilegítima, por não ter sido parte no processo onde foi proferida a decisão cujo reconhecimento se pretende.
Não deve, pois, constar como requerido no processo de revisão de sentença estrangeira, até porque a lei processual já prevê uma intervenção especifica do Ministério Público nesse processo. Efetivamente, o art. 982º do CPC concede ao Ministério Público bem como às partes a faculdade de alegar, do que resulta claramente que o Ministério Público, embora tenha a mesma prorrogativa de alegar, não é parte no processo nem representa qualquer parte.
A ilegitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso que implica a absolvição da instância, ou o indeferimento liminar quando a petição seja apresentada a despacho liminar (arts. 577 al e), 578, 278 nº1 al d), e 590 nº1 do CPC todos aplicáveis ex vi do art 549º, nº 1 do CPC). Não se trata de mera irregularidade suscetível de sanação após despacho de aperfeiçoamento, mas antes de exceção dilatória cuja consequência legal é o indeferimento liminar. Isto porque, a ilegitimidade singular é insanável - cf Acs do TRG de 16.05.2019 proferido no Proc. 819/15.8T8BGC.G2, de 10.09.2020 proferido no Proc. 559/20.2T8GMR.G1, e Ac. do TRL de 06.02.2020 proferido no Proc. 13034/18.0T8LRS.L1-2.    
É, pois, de manter o indeferimento liminar.
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IV. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas desta 8ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa em indeferir liminarmente a petição inicial.
Custas pelos requerentes.
 Notifique.

Lisboa,6/6/2024
Carla Cristina Figueira Matos
Carla Figueiredo
Amélia Loupo